Incluir, comparar e competir: serviços de avaliação externa em larga escala e inclusão escolar

Include, Compare and Compete: Large-Scale External Assessment Services and School Inclusion

Incluir, Comparar y Competir: Servicios de Evaluación Externa a Gran Escala e Inclusión Escolar

Geovana Mendonça Lunardi Mendes
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
Marilia Segabinazzi
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil

Incluir, comparar e competir: serviços de avaliação externa em larga escala e inclusão escolar

Revista Educação Especial, vol. 31, núm. 63, pp. 849-861, 2018

Universidade Federal de Santa Maria

Recepción: 07 Marzo 2018

Aprobación: 08 Septiembre 2018

Resumo: Em um mesmo contexto escolar coexistem políticas educacionais com diferentes ênfases, como é o caso das políticas de inclusão escolar dos alunos público-alvo da educação especial e as políticas de avaliação externa em larga escala. Nesse trabalho, ao explorarmos dados sobre a utilização de pacotes de serviços privados que envolvem avaliação externa em larga escala para os sistemas de educação municipal no estado de Santa Catarina e sua relação com proposições de educação inclusiva, apresentamos os resultados parciais de duas investigações e damos atenção à utilização desses recursos como mecanismo de tradução das políticas de avaliação da educação e suas implicações para a construção de uma educação inclusiva. Os dados aqui apresentados foram coletados a partir de diferentes fontes de informação como: matérias da mídia local, documentos legais de contratação desses serviços e também contato direto com as prefeituras para identificar a existência desses serviços no município. O paradoxo criado entre propostas que elegem a competição e a comparação como elementos-chave em detrimento do necessário reconhecimento das diferenças entre sujeitos, é um dos focos de reflexão apresentados no texto e são postos em cena para discutir as implicações desses serviços na educação pública municipal.

Palavras-chave: Avaliação Externa em Larga Escala, Inclusão Escolar, Políticas Educacionais.

Abstract: In the same school context, educational policies with different emphases coexist, such as the school inclusion policies for students with special education needs and the large-scale external assessment policies. In this paper, drawing on data about the use of private service packages involving large-scale external assessment for municipal education systems in the state of Santa Catarina and its relationship with propositions of inclusive education, we present partial results of two inquiries and give attention to the use of these resources as a mechanism for the translation of the education assessment policies and their implications for the construction of an inclusive education. The data presented here were collected from different sources of information, such as: local media articles, legal documents for contracting these services, and direct contact with municipal administrations to identify the existence of these services in the town. The paradox created between proposals that choose competition and comparison as key elements to the detriment of the necessary recognition of differences between subjects is one of the focuses of reflection presented in the text and are brought about to discuss the implications of these services in municipal public education.

Keywords: Large-Scale External Assessment, School inclusion, Educational Policies.

Resumen: En un mismo contexto escolar coexisten políticas educacionales con diferentes énfasis, como es el caso de las políticas de inclusión escolar de los alumnos que son objetivo de la educación especial y las políticas de evaluación externa a gran escala. En este trabajo, a partir de los datos sobre la utilización de paquetes de servicios privados que involucran evaluación externa a gran escala para los sistemas de educación municipal en el estado de Santa Catarina y su relación con proposiciones de educación inclusiva, presentamos los resultados parciales de dos investigaciones y damos atención a la utilización de estos recursos como mecanismo de traducción de las políticas de evaluación de la educación y sus consecuencias para la construcción de una educación inclusiva. Los datos aquí presentados se recogieran en diferentes fuentes de información, como: materias de los medios de comunicación locales, documentos legales de contratación de esos servicios y también contacto directo con las alcaldías para identificar la existencia de esos servicios en el municipio. La paradoja que se creó entre propuestas que eligen la competición y la comparación como elementos clave en detrimento del necesario reconocimiento de las diferencias entre sujetos es uno de los focos de reflexión presentados en el texto y se ponen en escena para discutir las implicaciones de estos servicios en la educación pública municipal.

Palabras clave: Evaluación Externa a Gran Escala, Inclusión Escolar, Políticas Educacionales.

Introdução

“Nós vivemos num estado constante de crise, e essa crise também envolve o Estado moderno, cuja estrutura, funcionalidade e efetividade (inclusive o sistema de representação democrática) já não se ajustam aos tempos em que vivemos”. (BAUMAN, BORDONI, 2014, p.43)

Uma das reformas públicas que trouxe consequências significativas ao campo da educação é aquela que diz respeito à reestruturação dos Estados[1] no que concerne ao seu papel ante à prestação de serviços públicos. Fortemente ligado ao discurso da insustentabilidade da disposição de vultosas receitas para manter os estado de Bem-Estar Social, a partir dos anos 1980 ocorreu o reposicionamento das funções do Estado, sendo um dos fortes predicados dessa nova configuração o Estado como "contratador" e "avaliador" em detrimento de ser o prestador de serviços públicos[2]. A partir disso, a lógica narrativa das políticas públicas tende, então, a ser pensada a partir de critérios relacionados ao modo de atuação do setor privado, o que permanece até hoje (DALE, 2004; LAVAL, 2004; DARDOR E LAVAL, 2016).

Eficácia passa, portanto, a ser palavra de ordem para que o Estado possa fazer “mais com menos”. Para Laval (2004), na educação, o termo eficaz vem acoplado às medidas de redução ou, pelo menos, de controle dos custos educativos. Segundo essa abordagem,

O esforço prioritário deve incidir sobre a gestão mais racional dos sistemas escolares, graças a uma série de dispositivos complementares: a definição de objetivos claros, a coleta de informações, a comparação internacional dos dados, as avaliações e o controle das mudanças. Em suma, pela importação da abordagem do gerenciamento, se deveria passar, como na indústria, das técnicas de produção de massa a formas de organização fundamentadas no ‘caminho da qualidade’. (LAVAL, 2004, p.188).

A eficácia administrativa é então erigida como norma suprema, até o ponto em que a ação pedagógica propriamente dita é considerada como passível de avaliação enquanto uma produção de valor agregado. São testemunhas disso os discursos atuais sobre uma cultura de avaliação, o cálculo das competências e a medida das performances, já estudados por numerosos pesquisadores (BALL 2013; 2014; LAVAL, 2004; HYPOLITO, 2013; BAUER E TAVARES, 2013; DARDOT E LAVAL, 2016).

Nesse contexto, as avaliações externas em larga escala dos sistemas educacionais representam uma das ênfases dessa nova configuração. No Brasil, ainda que a preocupação com os sistemas de avaliação educacional tenha registros oficiais desde a década de 1950, a atenção ao tema deu-se, principalmente, no final dos anos 1980, passando por diversas readequações até a atual estrutura dos sistemas avaliativos. Cabe destacar também que os rankings internacionais, especialmente o PISA, assim como aconteceu com vários países, tiveram uma influência enorme na forma como internamente o Brasil organizou seu sistema avaliativo.[3]

Além disso, como explica Gatti (2012), esse tipo de avaliação surge como sendo elemento privilegiado para o diagnóstico e a realização das expectativas de promoção da melhoria da qualidade do ensino básico e superior. Podemos destacar desse processo de crença nas avaliações como vetores de melhorias educacionais, dois objetivos: a melhoria daquilo que é compreendido pelo Estado como qualidade da educação, a partir da aferição dos resultados dessas avaliações; o controle dos dados obtidos nesses sistemas como elemento direcionador de políticas públicas e estratégias para o alcance do que ficou estabelecido como parâmetro de qualidade (BONAMINO E SOUZA, 2012; WERLE, 2011).

É nesse mesmo período, especialmente a partir de 1990, que o movimento de inclusão dos alunos com deficiência na rede regular de ensino ganhou força, indo de encontro a pressupostos homogeneizantes no âmbito dos sistemas educacionais. Assim como as políticas internacionais de avaliação em larga escala, as políticas de inclusão escolar de alunos com Deficiência, além os movimentos sociais pró-inclusão tiverem forte influência, nos contextos nacionais, os acordos e pressões transnacionais. No caso brasileiro, diferentes medidas foram tomadas até que se chegasse ao que hoje é a Política Nacional da Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva - PNEEPEI (BRASIL,2008), documento que referencia e normatiza o processo de escolarização do público-alvo da Educação Especial e estabelece as atuais diretrizes para a garantia de ingresso, permanência e êxito destes alunos na escola. Trata-se de uma proposta que visa proporcionar a escolarização desses sujeitos a partir do reconhecimento das suas necessidades e capacidades e da inserção na dinâmica da escola regular.

Apresentadas essas duas políticas que ganham força no bojo de grandes transformações do setor público, a perspectivas de instrumentos de avaliação e controle dos serviços, bastante fundamentados na medição e comparação; e a proposta de inclusão escolar que preconiza o reconhecimento às diferenças do público escolar, tem-se então a seguinte condição posta aos sistemas de educação: demandas de rendimento e atendimento dos padrões de qualidade impostos pelas estratégias de avaliações externas em larga escala; de outro, a partir das políticas de inclusão escolar dos alunos público-alvo da educação especial, a necessidade de adaptação dos sistemas escolares à heterogeneidade de seu alunado, sobretudo no que se refere à avaliação de seus processos de aprendizagem ante suas especificidades. O paradoxo[4] que representa a coexistência de políticas dessa natureza é um dos focos de discussão desse trabalho.

Considerando então essa condição posta aos sistemas de ensino é importante lembrar que no Brasil a Educação Básica é ofertada em regime de colaboração com a União, os estados e municípios (BRASIL, 1988) e, no caso das etapas de Educação Infantil e Ensino Fundamental, é sobre esses últimos que recai a responsabilidade maior de execução das políticas de educação. Sobre isso, corroboramos com Pletsch e Mendes (2015) ao afirmarem que os municípios, a partir das orientações e regulações nacionais, escolhem alguns caminhos diante de suas realidades locais, na busca por adequar seus sistemas de ensino a essas demandas.

Em se tratando desses caminhos, Adrião et al. (2009) explicam que, a partir dos anos 1990, com a perspectiva de gestão descentralizada, os governos subnacionais viram-se exigidos a realizar tarefas para atender as demandas de determinadas políticas públicas. Assim, as responsabilidades municipais são inúmeras e complexas, abrindo espaço para que várias iniciativas aconteçam por meio de parcerias com entes privados, em busca de soluções para as demandas exigidas. Dentre tais iniciativas, destacamos aquela que permeia o foco central deste trabalho: a aquisição de sistemas de avaliação e gestão de indicadores da educação municipal, produto oferecido pela iniciativa privada ou entidades sem fins lucrativos e que promete instrumentalizar os sistemas, com vistas a alcançarem desempenho satisfatório nas avaliações externas em larga escala a que serão submetidos, ou mesmo obterem seu próprio índice e panorama de qualidade da educação local.

Portanto, ao discutirmos aspectos do paradoxo gerado pela coexistência desses dois movimentos em tela e algumas de suas possíveis consequências, pretendemos fazê-lo destacando a estratégia de utilização de serviços prestados por empresas privadas ou sem fins lucrativos, ofertadas aos municípios para a medição e gerenciamento da qualidade da educação, por entendermos que trata-se de um dos mecanismos encontrados pelos municípios para responder às demandas das políticas educacionais que lhes são endereçadas. Dessa forma, aspectos referentes ao mercado de soluções educacionais (Ball, 2014; 2016) não podem ser ignorados, e representam um farto campo de investigação sobre as origens dos discursos celebratórios em torno das avaliações externas em larga escala e que apresenta algumas implicações aos processos de inclusão escolar dos alunos público-alvo da Educação Especial.

Este trabalho traz os primeiros resultados de pesquisas desenvolvidas por nosso grupo[5] relacionadas ao tema das avaliações externas em larga escala e sua relação com aspectos da política de inclusão escolar no Brasil. Apresentamos achados parciais de pesquisa em torno dos serviços de gestão e avaliação escolar adquiridos por alguns municípios catarinenses e analisamos alguns aspectos dessas propostas às luz da ideia de inclusão escolar que defendemos, dos pressupostos da PNEEPEl (2008) e de estudos que tratam da crescente crença na intrínseca relação entre avaliação externa em larga escala e melhoria da qualidade da educação.

Comparar e Competir: sobre serviços de AELES nas redes municipais de ensino

O curso da pesquisa que desenvolvemos, em que pese ainda em andamento, já revela algumas pistas sobre os serviços de AELEs que têm sido utilizados pelos municípios. Utilizamos diferentes fontes de coletas de dados, uma vez que esse trabalho encontra fundamento nos pressupostos de Teoria da Atuação Política, proposta pelos pesquisadores Ball, Maguire e Braun (2016). As fontes de natureza documental, foram diversas tais como: matérias da mídia local, documentos legais de contratação desses documentos e também contato direto com as prefeituras para identificar a existência desses serviços no município.

Trata-se de compreender escolhas, seleção e ênfases discursivas presentes em algumas políticas. Para tanto, os autores da Teoria da Ação Política buscam outra perspectiva da análise de políticas, distanciando-se da linearidade vertical. A ideia é considerar que o processo foge a uma implementação e configura-se como uma complexa teia em torno de interpretações e traduções, com atores de diferentes níveis de interferência de dentro e fora da escola, ou até mesmo enraizados para além do contexto educacional.

Com isso não é possível encerrar as políticas como sendo tentativas de resolver um problema. Em boa medida, isso se refere somente ao aparato formal e à prescrição de textos legais. A pesquisa em políticas educacionais, portanto, não pode restringir-se a essa perspectiva. Há um espaço de negociação, contestação e lutas entre diferentes agentes (BALL, MAGUIRE E BRAUN, 2016).

Ball, Maguire e Braun (2016, p.72) explicam que “as interpretações e as traduções são geralmente atuações de políticas em diferentes arenas” Interagindo em diferentes partes do processo que relacionam mais diretamente práticas e prioridades.

Diante disso, consideramos que os serviços de avaliação externa em larga escala utilizados pelos municípios e que derivam de serviços prestados por instituições privadas ou paraestatais, representam um dos aspectos que envolvem a tradução e interpretação das políticas educacionais desse contexto e é sobre características desses serviços e dos discursos que os circundam que nossas pesquisas têm se debruçado.

A primeira estratégia de pesquisa utilizada, já que estávamos interessados em serviços prestados e ou contratados, foi realizar um levantamento de licitações ou minutas de contratos no Diário Oficial dos Municípios, entre os anos de 2013 e 2017.

Ao buscar a quantidade de municípios que no Estado de Santa Catarina firmaram algum tipo de contratação de pacotes de serviços ou apenas de avaliação externa em larga escala, encontramos 45 extratos. No entanto, como trata-se de um conjunto de dados ainda em análise, deste número selecionamos para análise deste artigo somente os que mencionam de forma clara a aquisição de avaliações externas em larga escala. Chegamos então ao número de 19 municípios, além de uma associação de municípios, que engloba 22 cidades do Estado, cujos dados de aquisição desse tipo de serviço foram encontrados na página oficial da associação, a partir da perspectiva do Arranjo de Desenvolvimento da Educação[6].

Dos 19 munícipios e da Associação de municípios pesquisadas encontramos os seguintes serviços contratados:

Quadro 1
Dados parciais sobre a prestação de serviços que envolvem avaliações externas em larga escala no Estado de Santa Catarina
Prestador do ServiçoDescrição do ServiçoQuantitativos[7]
Editora Positivo LTDAAquisição de sistema de ensino, o qual comtempla, de maneira coordenada, relacionada e articulada produtos e serviços, dentre eles avaliação externa em larga escala e sistema de gerenciamento de indicadores da educação17 municípios e 1 Associação de municípios com 22 associados
FTD S/ASistema pedagógico de ensino contendo produtos e serviços, dentre eles avaliação externa em larga escala para diagnóstico da educação municipal.1 Município
CAED/UFJFContratação de empresa para elaboração, aplicação, processamento, análise e devolutiva de resultados de prova municipal.1 Município
Elaborado pelas autoras

Para além dos dados quantitativos de utilização desse tipo de serviço, buscamos conhecer alguns de seus aspectos qualitativos. A partir da análise dos materiais publicados nas páginas oficiais das empresas ou mesmo nos documentos contratuais foi possível extrair informações que merecem algumas reflexões.

A empresa que representa quase 100% das vendas de pacotes de serviços educacionais aos municípios, tem como propaganda do serviço de avaliação externa em larga escala a possibilidade de comparar o resultado dos alunos com alunos da mesma turma, entre turmas, da mesma escola e de escolas similares. Além disso, propõem-se a traçar medidas que que busquem o desenvolvimento das competências dos estudantes, bem como promete oferecer um panorama completo do desempenho dos alunos. Outro ponto que chama a atenção é a ênfase dada à possibilidade de comparar o desempenho desses alunos com as avaliações nacionais e internacionais, tais como o PISA e Prova Brasil.

Imagens do vídeo promocional do sistema Hábile de Avaliação Externa em Larga Escala
Figura 1
Imagens do vídeo promocional do sistema Hábile de Avaliação Externa em Larga Escala
Elaborado pelas Autoras a partir de www.editorapositivo.com.br/habile

A instituição que firmou contrato com a capital do estado de Santa Catarina, é vinculada à uma Universidade Federal, porém, de acordo com informações do seu site na Internet, também presta apoio à iniciativas educacionais privadas, além de ser parceira do Governo Federal na execução das avaliações externas em larga escala oficiais do Governo.

Uma terceira empresa que apareceu como prestadora de serviço a dois municípios do Estado, em seu material de divulgação apresenta como um dos diferenciais a execução de avaliações em larga escala e simulados, bem como a garantia da análise dos resultados.

Dados coletados na mídia local e nacional apresentaram um outro conjunto de informações que oferecem outros elementos de tradução e interpretação dessas políticas de AELEs. Nove matérias de diferentes jornais ou portais de notícias na internet apresentaram as iniciativas municipais de contratação de serviços educacionais que envolvem avaliação externa em larga escala como um diferencial para a melhoria da qualidade da educação; como instrumentos que possibilitam identificar as fragilidades do ensino; avaliar as habilidades e competências dos estudantes; além de possibilitar a comparação e melhorar o rendimento em avaliações nacionais. O excerto abaixo exemplifica o tipo de conteúdo celebratório veiculado nas mídias locais:

“Esse é o terceiro ano que a prova é aplicada em Itapema, e, desde o ano passado, conta com uma inovação muito importante para a Educação Inclusiva, a disponibilização de provas adaptadas que atendem os alunos com deficiência. ‘Alunos com qualquer tipo de necessidade fazem acompanhados de sua professora auxiliar uma prova adaptada, com isso, temos um índice ainda maior de aprendizado, conseguindo elencar novas metas e ações para melhorias no ensino e aprendizagem de todos. [...] a aplicação da prova permite que os educadores tenham tempo de diagnosticar o nível de conhecimento dos alunos, preparando-os para a avaliação do próximo ano que indica o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica). "Através destas provas, percebemos quais as dificuldades dos alunos e onde precisamos ter mais atenção. Esses instrumentos nos ajudam a avançar na qualidade do nosso ensino, prioridade do Governo Rodrigo Bolinha na melhoria constante da educação" (Prova Hábile é aplicada na Rede Municipal de Ensino www.portalitapema.com)

Apenas um portal vinculado a um sindicato de trabalhadores municipais apresentou uma matéria questionando a aplicação de avaliações dessa natureza, conforme destacamos:

“Este tipo de convênio coloca o dinheiro público que deveria ser destinado à educação do Município nas mãos de consultores externos que estão a serviço da implementação das políticas do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) que têm como foco a privatização da educação pública, por meio de mecanismos de controle que estimulam a competição entre as escolas, estabelece a meritocracia e coloca o problema da educação pública na esfera individual e não como coletivo”. (Prova Floripa: de quem é a responsabilidade? http://www.sintrasem.org.br/Default/Noticia/964/prova-floripa-de-quem-e-a-responsabilidade )

A combinação de dados disponíveis até o momento permite-nos traçar algumas considerações que relacionam essas alternativas buscadas pelos municípios, como forma de tradução/interpretação das políticas de avaliação externa em larga escala e os pressupostos de uma educação inclusiva, conforme destacaremos nas notas finais a seguir.

É possível incluir em contextos de competição? A guisa de notas finais.

Ball, Maguire e Braun(2016), apontam em seu estudo que a coexistência de políticas múltiplas dentro da escola é surpreendente. No seu estudo, foram capazes de identificar mais de 170 políticas em curso nas quatro escolas pesquisadas. Conforme apontam: “algumas colidem ou se sobrepõem, produzindo contradições, incoerências ou confusão”(p.19), gerando o que se pode chamar de “tensões entre as políticas”. É no quadro destas “tensões “que entendemos a coexistência destas duas políticas aqui analisadas.

Diante disso, até o momento os dados coletados nos permitem traçar algumas considerações. A primeira delas relaciona-se aos diferentes atores que emergem nesse cenário e que concorrem para os processos de interpretação e tradução das políticas, sendo possível perceber que políticos, empresas, organizações sindicais e mídia local emergem como atores de uma rede em torno do tema ou conforme Ball (2013,p. 177) como “novas vozes e interesses que são representados no processo político, e novos nós de poder e influência são constituídos e fortalecidos”. Em nosso entender, essas novas vozes decorrem de novos acordos, conforme destaca Anderson(2017, p.601),

estamos cada vez mais conscientes de que essas políticas neoliberais são influenciadas por acordos de empreendedores filantropos, fundações, grupos de reflexão, agências internacionais e negócios educacionais globais. (Ball, 2012; Fang, 2017; Verger, Lubienski, Stainer-Khamsi, 2016). À medida que as escolas públicas são cada vez mais absorvidas em uma lógica de mercado, lucro e e ciência, as identidades pro ssionais dos professores e gestores estão sendo redesenhadas em torno da visão desses empreendedores, alguns dos quais são educadores ou pesquisadores de políticas educacionais (Ball, 2011; Gillies, 2011).

Além disso, consideramos que, ao fornecer esse tipo de serviço aos municípios, as prestadoras oferecem também uma lógica discursiva bastante afastada dos pressupostos de uma escola irregular aos moldes do que propõem autores como Roger Slee, enfatizando a comparação e competição. Tal fato está bastante relacionado com o que apontam Dardot e Laval (2016, p.327) em relação ao propósito de construção de um neosujeito altamente vinculado às necessidades empresariais: “trata-se agora de governar um ser cuja subjetividade deve estar inteiramente envolvida na atividade que se exige que ele cumpra”.

Do sujeito ao Estado, passando pela empresa, um mesmo discurso permite articular uma definição de homem pela maneira como ele quer ser ‘bem-sucedido’, assim como o modo que ele deve ser ‘guiado’, ‘estimulado’, ‘empoderado. (empowered) para cumprir seus ‘objetivos’. Em outras palavras, a racionalidade neoliberal produz o sujeito que necessita dos meios de governá-lo para que ele se conduza realmente como uma entidade em competição e que, por isso, deve maximizar seus resultados, expondo-se a riscos e assumindo a inteira responsabilidade por eventuais fracassos (DARDOT E LAVAL, 2016, p.328).

A escola ganha, então, um papel central, na medida em que passa a ser vista como a chave para responder às novas demandas sociais, para ensinar "as coisas certas" e as disposições mentais corretas, que promovam o “aumento do capital eu de cada um" (VEIGA-NETO, 2013, p.162). A expansão da tecnologia avaliativa como estratégia disciplinar repousa no ideário de que o indivíduo deve ser mais livre para fazer suas escolhas e mais ele deve ser vigiado, de modo que necessidades objetivas de um sistema geral torne-se também objetivos individuais. A aspiração de realização pessoal transfere ao indivíduo a responsabilidade do cumprimento dos objetivos, trazendo uma boa carga de sofrimento psíquico ao sujeito. (DARDOT E LAVAL, 2016).

Também queremos chamar a atenção para um falso discurso inclusivo que tem sido difundido por esse tipo de estratégia, que limita-se à estratégia de inserir grupos como os alunos público-alvo da Educação Especial na normativa da escola regular, na medida em que tanto as avaliações aplicadas pelo Estado, como as oferecidas por instituições privadas ou sem fins lucrativos, têm buscado um refinamento de suas formas de aplicação, lançando mão da adaptação de provas aos alunos da Educação Especial, bem como da aplicação de questionários contextuais para a correlação de resultados das avaliações com perfis, construindo o que Lockmann (2017, p.6) chama de “semelhança imaginada”. A partir desse refinamento das estratégias de coleta de dados e o estabelecimento de similitudes e estratégias de uma falsa inclusão, conforme Lockmann (2017), os resultados derivados desses processos fazem mais do que divulgar resultados sobre qualidade da educação, eles também produzem processos de subjetivação e de modo de ser dos sujeitos, que em nossa percepção constituem-se de significativas barreiras para a inclusão e respeito à diferença.

Por fim, nos parece importante refletir que talvez a coexistência de políticas com objetivos distintos, ajudem a formar o amálgama necessário para a constituição de uma escola cada vez menos pública e mais articulada aos interesses mercantis, próprias deste Estado que contrata, avalia e regula e de um mercado que tem identificado o campo educacional com um grande negócio. Tanto as políticas de inclusão, quanto as políticas de avaliação são, em si, novos nichos desse mercado em franca expansão.

Referências

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Notas

[1] Esse movimento tem como um de seus marcos históricos, o Consenso de Washington, que, na década de 1980, subscrito por diferentes Estados do sistema mundial, prescreveu dentre outros o papel do Estado na economia e sua necessária reestruturação (SANTOS, 2011);
[2] Dardot e Laval (2016) explicam que o Estado foi reestruturado de duas maneiras, que tendem a gerar confusão: uma, que provoca a maciça privatização de empresas públicas, passando a não ser mais a prerrogativa principal do Estado a produção de serviços públicos; outra reestruturação por dentro, “com a instauração de um Estado avaliador e regulador, que mobiliza novos instrumentos de poder e, com eles, estrutura novas relações entre governos e sujeitos sociais”. (DARDOT E LAVAL, 2016, P.273). Do mesmo modo, Bauman e e Bordoni (2014), apontam para a modificação do papel do Estado num contexto de permanente crise.
[3] Especialmente sobre como as Políticas Internacionais de avaliação em larga escala tem influenciado as políticas nos estados nação, ver: Gustavo E. Fischman, Amelia Marcetti Topper, Iveta Silova, Janna Goebel & Jessica L. Holloway (2018)Examining the influence of international large-scale assessments on national education policies, Journal of Education Policy, DOI: 10.1080/02680939.2018.1460493
[4] Na perspectiva de Hattge (2013), embora , aparentemente, a inclusão escolar e questões que remetem à performatividade possam assumir aparência contraditória, a autora explica que a ideia de paradoxo é mais bem aplicada nesse caso, uma vez que contradição remete à ideia contrária, quando na verdade para que a lógica da performatividade esteja em ação, todos devem estar incluídos e a ela submeterem-se, sendo mais bem mais explicada pelo conceito de paradoxo, que remete a estar junto e não contra.
[6] Trata-se de metodologia que favorece o trabalho colaborativo entre Secretarias de Educação de municípios próximos geograficamente. Os participantes do ADE se apoiam mutuamente para colocar em prática ações estratégicas com o objetivo de avançar na melhoria dos indicadores da Educação. (www.instituto.positivo.com.br)
[7] Por tratar-se de uma pesquisa ainda em desenvolvimento, lembramos que os dados aqui apresentados são parciais e que com o desenvolvimento da investigação os quantitativos serão atualizados. Também pela mesma razão, por hora optamos por não divulgar os municípios de forma nominal. Ao final da pesquisa disponibilizaremos a lista completa.
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