Recepção: 03 Junho 2018
Aprovação: 08 Setembro 2018
DOI: https://doi.org/10.5902/1984686X32906
Resumo: O presente artigo tem como pano de fundo teórico o debate acerca do papel social da educação escolar, pois, ao optar por pesquisar as políticas de avaliação em larga escala e seus impactos na escola, somos impulsionados por anseios de mudanças da realidade social e escolar, pela indignação frente aos quadros de fracasso escolar e pela latente vontade de visibilizar as experiências democráticas de educação existentes. O texto apresenta resultados de investigações realizadas no âmbito do grupo de pesquisas, discutindo as repercussões dos testes de larga escala para o cotidiano de escolas do município do Rio de Janeiro, com foco nas práticas das(os) professoras (es). Desvela também as astúcias e táticas (CERTEAU, 2008) que acontecem nas escolas quando os resultados dos testes de larga escala ficam associados às políticas bonificação, com ênfase na meritocracia. Tais táticas se revelam de muitas formas. Em especial, destacamos a prática observada nas escolas pesquisadas que, com o intuito de aumentar os índices de desempenho das mesmas, a equipe docente comunica aos responsáveis pelas crianças com necessidades educativas especiais que elas podem permanecer em casa nos dias dos exames externos. Essa medida revela o quanto a política de avaliação externa quando associada a políticas de bonificação afeta sobremaneira o papel social da escola. Os estudos não podem ser generalizados, pois são estudos de caso, mas revelam questões importantes para o campo da avaliação na sua relação com o papel social da educação escolar.
Palavras-chave: avaliação em larga escala, cotidiano escolar, políticas meritocráticas.
Abstract: This article has as theoretical background the debate about the social role of school education, because, when choosing to research the policies of large scale evaluation and its impacts on school, we are driven by anxieties of changes in social and school reality, by the indignation at school failure and by the latent willingness to make visible the existing democratic experiences of education. The text presents results of research carried out within the research group, discussing the repercussions of the large scale tests for the daily life of schools in the city of Rio de Janeiro, focusing on the practices of the teachers. It also uncovers the wiles and tactics (Certeau, 2008) that take place in schools when the results of the large-scale tests are associated with bonus policies, with emphasis on meritocracy. Such tactics are revealed in many ways. In particular, we highlight the practice observed in the schools surveyed that, in order to increase their performance indices, the teaching staff communicates to those responsible for children with special educational needs that they can stay at home on the days of the external examinations. This measure reveals how the external evaluation policy when associated with bonus policies greatly affects the social role of the school. The studies can not be generalized, as they are case studies, but reveal important issues for the field of evaluation in its relation with the social role of school education.
Keywords: evaluation, everyday school life, meritocratic policies.
Resumen: El presente artículo tiene como telón de fondo teórico el debate acerca del papel social de la educación escolar, pues, al optar por investigar las políticas de evaluación a gran escala y sus impactos en la escuela, estamos impulsados por anhelos de cambios de la realidad social y escolar, por la indignación frente a los cuadros de fracaso escolar y por la latente voluntad de visibilizar las experiencias democráticas de educación existentes. El texto presenta resultados de investigaciones realizadas en el ámbito del grupo de investigación, discutiendo las repercusiones de los exames a gran escala para el cotidiano de escuelas del municipio de Río de Janeiro, con foco en las prácticas de las (los) profesoras (es). También desvela las astucias y tácticas (CERTEAU, 2008) que se suceden en las escuelas cuando los resultados de las pruebas a gran escala se asocian a las políticas de bonificación, con énfasis en la meritocracia. Tales tácticas se revelan de muchas formas. En particular, destacamos la práctica observada en las escuelas investigadas que, con el propósito de aumentar los índices de desempeño de las mismas, el equipo docente comunica a los responsables de los niños con necesidades educativas especiales que ellas pueden permanecer en casa en los días de los exámenes externos. Esta medida revela cuánto la política de evaluación externa cuando está asociada a políticas de bonificación afecta sobremanera el papel social de la escuela. Los estudios no pueden ser generalizados, pues son estudios de caso, pero revelan cuestiones importantes para el campo de la evaluación en su relación con el papel social de la educación escolar.
Palabras clave: evaluación a gran escala, vida escolar cotidiana, políticas meritocráticas.
INTRODUÇÃO
O artigo traz como pano de fundo o debate acerca do papel social da educação escolar, pois, ao optar por pesquisar as políticas de avaliação em larga escala e seus efeitos para a escola, somos impulsionados por anseios de mudanças da realidade social e escolar, pela indignação frente aos quadros de fracasso escolar e pela latente vontade de visibilizar as experiências democráticas de educação existentes. Em outras palavras, esses anseios têm ligação com a necessidade de construção de quadros de sucesso escolar mais relevantes, pois acreditamos que a pesquisa em avaliação desempenha um papel importante nesse processo. Consideramos que os efeitos das avaliações externas no contexto das práticas escolares não se estabelecem de forma absoluta e são mediados pelas tensões da cultura escolar.
Desde os anos 1990, as políticas de avaliação externa, com foco nos testes de larga escala, têm tomado a cena dos diferentes sistemas educativos estaduais ou municipais no Brasil, direcionando os currículos, definindo aquilo que vai ser ensinado nas escolas, criando os standards de aprendizagem.
O texto apresenta considerações traçadas a partir de duas investigações desenvolvidas no âmbito do grupo de pesquisa. O foco das pesquisas é a avaliação em larga escala e suas implicações para as escolas e suas práticas, nos anos iniciais do ensino fundamental, em especial no Ciclo de Alfabetização, na rede municipal de educação do Rio de Janeiro. Entendemos a avaliação, no âmbito pedagógico, como um elemento essencial dos processos de ensino-aprendizagem de todos os sujeitos e, no âmbito político-social, como uma possibilidade de promoção de uma escola mais democrática, numa perspectiva não excludente e seletiva (ESTEBAN, 2008; AFONSO, 2009; FERNANDES,C. 2010a; FERNANDES, D. 2009) e afirmamos que tal concepção de avaliação coaduna-se com os princípios da construção da autonomia por parte dos estudantes, com um currículo multicultural e com uma pedagogia que se fundamenta nas diferenças e na diversidade sociocultural. São trazidas ao debate, a partir dos resultados das pesquisas, as tensões geradas pelas avaliações externas[i] nos cotidianos das escolas investigadas em confronto com uma perspectiva hegemônica muito presente nas propostas pedagógicas oficiais e nos projetos político-pedagógicos das escolas, que é a de uma avaliação mais processual e formativa, com ênfase em instrumentos de avaliação que não sejam provas e testes, por excelência.
A grande inquietação que nos move a realizar as investigações fica também por conta da naturalização da utilização de testes e exames, no cotidiano da escola. No âmbito das secretarias de educação municipal e estadual do Rio de Janeiro, os testes de larga escala, Prova Rio e SAERJINHO, são elaborados e até, muitas vezes, aplicados por empresas privadas contratadas para a prestação de tal serviço. A transferência de verbas públicas para o setor privado também se naturaliza e há certa aceitação, porque tais serviços são apresentados como melhorias para a qualidade da educação escolar oferecida.
Os resultados aqui apresentados fazem parte da primeira fase da pesquisa[ii] que se desenvolveu ao longo dos anos de 2010 a 2014 e abrangeu, nesse período, apenas o município do Rio de Janeiro. Posteriormente, outros municípios foram investigados. Privilegiou-se o município do Rio de Janeiro[iii], inicialmente, por ser a maior rede do estado do Rio de Janeiro e da América Latina e, por apresentar, no período citado, uma efervescência política com a mudança da gestão municipal, que gerou inúmeros decretos e portarias analisados no cômputo das pesquisas. A metodologia dessa fase constitui-se basicamente de análise documental, como instrumentos de avaliação, portarias e resoluções e propostas curriculares e envolveu uma equipe de cinco pesquisadores. O objetivo maior, nesse primeiro momento, era compreender as possíveis relações entre uma proposta de avaliação externa de rede ou de larga escala, com enfoque na avaliação de desempenho com uma concepção de avaliação continuada, como exige uma organização em ciclos, considerando que a investigação se concentrou nos anos iniciais do ensino fundamental, correspondentes ao Ciclo de Alfabetização.
Numa segunda fase, foram realizadas observações das práticas de duas professoras das turmas do Ciclo de Alfabetização, entrevistas com essas professoras, observações dos conselhos de classe e acompanhadas as aplicações das provas bimestrais nessas turmas, em duas escolas da zona sul do município do Rio de Janeiro. Nessa fase, cujas considerações serão discutidas mais adiante nesse texto, tivemos a oportunidade de perceber as influências da política vigente e suas implicações para o funcionamento das escolas, práticas docentes e mecanismos de exclusão com as crianças.
No decorrer das observações, percebemos diversos relatos que merecerão destaque e reflexão e são de grande relevância para a temática que a pesquisa aborda.
O cenário político da rede municipal
Problematizamos a relação, tão em voga em nosso discurso educacional contemporâneo, entre a avaliação e uma educação escolar de maior qualidade, entendendo qualidade como aquela que se traduz numa escola que atende a todos[iv], em suas diferenças, que cumpre seu papel de ensinar, que não seleciona os melhores, não classifica, nem exclui, que atende aos direitos constitucionais.
Os resultados demonstram que o conceito de qualidade, polissêmico, é utilizado de forma indiscriminada nos documentos analisados e que a avaliação externa aparece como redentora dos males da educação. Apontamos também que os documentos oficiais concebem uma perspectiva de avaliação da aprendizagem formativa, processual e continuada e, ao mesmo tempo, uma perspectiva seletiva, classificatória e meritocrática no que tange à avaliação externa de desempenho na rede. Mesmo considerando-se que as duas dimensões da avaliação tenham funções distintas para a educação escolar e que possam chegar a uma série de procedimentos complementares no processo da sua reapropriação pelas redes de ensino, elas partem de matrizes teóricas que não se conciliam, o que tem suscitado questionamentos entre os docentes. A presença dos testes e exames, faz com que os professores convivam em seu cotidiano de trabalho, seja na sala de aula, seja na escola, com as implicações que o modelo de avaliação externa traz, dada a sua forte ênfase na função reguladora e classificatória, em contradição com propostas metodológicas que ensejam novas práticas avaliativas de caráter mais formativo.
Partimos do pressuposto que as políticas municipais e estaduais que implementam os ciclos de alfabetização com sistemas de avaliação como a não-reprovação de alunos, com formas de organização do tempo/espaço/currículo/avaliação escolar distintas da organização seriada, trazem profundas mudanças para as escolas, para os próprios sistemas que a implantaram e para o sistema nacional de avaliação, uma vez que a avaliação torna-se central nos processos de implementação das propostas nas escolas. Entretanto, argumentamos que, há de se romper com uma cultura-crença da/na avaliação no sentido de que a qualidade da educação se dá a partir de uma perspectiva de avaliação meritocrática/classificatória/excludente. Essa cultura se dá no interior das escolas e fora delas, quando a partir das avaliações externas realizadas pelas redes municipais e ou estaduais, como exemplo do que vem acontecendo agora, são feitos os famosos rankings ou são premiadas escolas e professores. Embora, no discurso educacional contemporâneo, as avaliações ganhem destaque pelo fato de serem fundamentais para a garantia da qualidade das escolas, o que vemos são os usos dos resultados das avaliações para outros fins, não só porque nossa cultura escolar está permeada por crenças e valores diretamente relacionados à avaliação, mas também porque há interesses políticos e econômicos que acompanham as políticas.
O ano de 2009, no município do Rio de Janeiro, foi marcado por muitas mudanças na política educacional, com a entrada do prefeito Eduardo Paes: programas e projetos de instituições não-governamentais (Se Liga, Acelera, Fórmula da Vitória, Projeto Alfa e Beto, entre outros); as provas anuais de avaliação da rede (Prova Rio); as avaliações bimestrais enviadas pela SME/RJ e a decorrente publicação de rankings, estabelecendo uma política pautada pelos preceitos da performatividade com prêmios para alunos e professores[v]. No ano de 2018, portanto quase uma década depois, com uma nova gestão administrativa municipal, o cenário pouco se modificou, tendo a política das avaliações bimestrais se naturalizado entre os professores. Afonso (1998) discute o conceito de accountability associado a três dimensões: avaliação, prestação de contas e responsabilização. Essa tríade costura as políticas de avaliação implementadas nos últimos anos pelas secretarias de educação, de vários estados e municípios do país, em especial no Rio de Janeiro. Nesse sentido, a avaliação passa a cumprir o papel de fornecer dados objetivos que subsidiem os processos de prestação de contas e de responsabilização. Os responsáveis têm sido em primeira instância, os estudantes, em segunda instância, suas famílias e nessa esteira, os professores que, quando não são recompensados com prêmios e 14º salários, são castigados porque não veem seus salários aumentados, nem recebem condições mais dignas para trabalhar, uma vez que a verba destinada para a educação sempre é pequena.
Os resultados dos exames como a Prova Rio e as provas bimestrais ajudaram a criar na rede municipal de ensino do Rio de Janeiro, num primeiro momento, um sentimento de competitividade entre escolas, materializado a partir dos rankings das mesmas, ajudando a construir um perfil de escola pública pautado no resultado de desempenho, cujos melhores alunos foram premiados, assim como as escolas, os professores e funcionários. Criou-se o Prêmio Anual de Desempenho: um salário adicional para professores/as e funcionários/as das escolas regulares; e uma viagem a Nova Iorque para diretores/as e professores/as de escolas do 1º e 2º segmentos que atingiram as maiores notas no IDEB/2009. Tal política trazia, em seu bojo, um projeto de sociedade, cujas marcas se traduziam nas ações e planejamentos da gestão educacional[vi].
Os instrumentos de avaliação da SME-RJ: a Prova Rio, instituída em 2009 como instrumento de avaliação da rede municipal de ensino e as Provas Bimestrais da rede municipal de educação (resolução SME/RJ Nº 1078 de 27 de maio de 2010), aplicadas, ainda hoje, a todos os alunos das escolas municipais para acompanhamento da aprendizagem, assim como o, o Índice de Desenvolvimento da Educação do município do Rio de Janeiro (IDE-Rio) não se coadunam com a perspectiva de uma avaliação formativa que ainda aparece preconizada em alguns documentos que norteiam as orientações didáticas na rede.
O cotidiano da escola vem paulatinamente sendo marcado por uma rotina de treinamento e aplicação de testes. Os resultados das pesquisas aqui apresentadas têm apontado que as práticas docentes são alteradas no dia a dia da escola, especialmente quando os exames vêm acompanhados de uma política de meritocracia. Tal política tem causado impactos nos cotidianos das diferentes escolas. Esses impactos podem ser positivos, ou seja, trazer de fato crescimento e compromisso para o projeto da escola, bem como podem ter efeitos negativos, danosos, do ponto de vista educativo e até ético, para todos os estudantes, especialmente para aqueles que necessitam de ações educativas especiais. Para compreender os efeitos dos testes e nos aprofundarmos na reflexão acerca das políticas educacionais, é fundamental observarmos e investigarmos o cotidiano das escolas, a partir da produção desse conhecimento por meio das pesquisas.
Nas pesquisas, considerando a complexidade e as diferenças existentes no cotidiano das escolas, temos observado que uma boa parte dos professores[vii]entende que aplicar um teste, uma prova, é uma forma fidedigna de avaliar seu aluno, tomando o exame como um instrumento capaz de avaliar a aprendizagem. Apesar dos (as) professores(as) afirmarem que compreendem a avaliação como um processo que envolve diferentes etapas e momentos, boa parte se satisfaz com a aplicação dos testes para orientar seu trabalho e para designar uma nota ou conceito aos seus alunos. Da mesma forma, que no nível macro, entendem que aplicar uma prova e gerar um índice basta para avaliar o sistema educacional. Portanto, há um grupo que ainda entende avaliação como medida, embora, em seu discurso, não mais apareça dessa forma.
O cenário político da rede municipal
A partir da observação das práticas de duas professoras das turmas do Ciclo de Alfabetização, entrevistas com essas professoras, da observação dos conselhos de classe e das aplicações das provas bimestrais nessas turmas, em duas escolas do município do Rio de Janeiro, tivemos a oportunidade de perceber as influências da política vigente e suas implicações para a escola.
No decorrer das observações, percebemos diversos relatos que merecem destaque e reflexão e são de grande relevância para a temática que a pesquisa aborda.
Com o objetivo de repensar a avaliação escolar a partir da forma que ela vem se materializando dentro do espaço da sala de aula, é importante refletir sobre o papel social dessa escola que conduz com eficiência esse processo excludente e rotineiro que vem se perpetuando ao longo dos tempos e que estão entranhadas na cultura escolar (FERNANDES, 2010).
Segundo Fernandes (2010) estas mudanças nos causam uma reflexão acerca dessa função, seus valores e crenças. E também:
Refletir se as práticas avaliativas estão coerentes com a função primeira da instituição escolar que é a de incluir, formar, perpetuar valores e conhecimentos, modificar, transformar, construir, criar, ousar (p. 102).
No que tange às práticas avaliativas, é de suma importância trazer para o contexto desta discussão a relação dos instrumentos de avaliação com a prática pedagógica, sendo necessário destacar que tanto destinado ao sistema de ensino ou aos sujeitos que o vivem, este ato nos traz uma série de implicações no que se refere às decisões a serem tomadas.
Segundo relatos da professora do 1º ano, ao final do ano de 2010, foi aplicada a primeira Avaliação Externa na sua turma por sujeitos de fora da escola e que, em suas orientações, tinham que mudar os alunos de sala, o que causou estranhamento entre as crianças, por saírem de seu ambiente alfabetizador. A professora considerou tal prática contrária ao trabalho que foi desenvolvido ao longo do ano, e caracteriza este momento não como uma avaliação e sim um “massacre”.
No fim do ano letivo de 2010, enviaram uma avaliação para o 1º ano. Quem aplicou foram pessoas de fora da escola. Tiraram as crianças da sala deles e colocaram em outra. Não concordo, pois eles saíram do ambiente alfabetizador, causando assim estranhamento neles. Isso não foi uma avaliação e sim um massacre. Mesmo assim a turma não foi mal, pois estava preparada (caderno de campo).
Em relação a esta avaliação, a professora deixa claro seu posicionamento ao ser questionada sobre essa política:
Eu não gosto dessas avaliações prontas (...) porque eu não tenho acesso a elas (caderno de campo).
É notório que todas as mudanças ocorridas nos últimos tempos na sociedade, trouxeram transformações econômicas, políticas e sociais. E essas transformações, ao passo que foram surgindo, consequentemente afetaram a escola e os professores e, assim, o seu trabalho. Segundo Santomé (1996) a redução do papel do professor é intencional, tendo em vista que são colocados no papel de meros executores de uma política, onde matérias, projetos, técnicas e propostas são as tarefas mais importantes.
A análise de Afonso (2008) também demonstra a questão:
De fato, a forma mais radical que os neoliberais têm tentado impor para resolver os problemas da escola pública tem consistido em esvaziá-la ainda mais dos recursos necessários à sua missão societal, propondo ao mesmo tempo a revalorização do ensino privado e a criação de mecanismos de mercado na educação. Neste mesmo sentido têm procurado reduzir ou impedir o exercício da autonomia profissional dos professores submetendo-os a controles externos cada vez mais apertados que os transformam em meros executores de programas e currículos produzidos predominantemente em função dos novos interesses hegemônicos (p.71).
A estratégia de redução da autonomia docente tem se apresentado como um princípio comum entre as políticas educativas de cunho neoliberal. Em nome desses interesses hegemônicos (que nos discursos se confundem com uma determinada ótica de qualidade da educação), os professores, no geral, são colocados no lugar de incompetentes, na medida em que a maioria dos seus alunos não apresentam os níveis de proficiência esperados. Sendo assim, essas políticas tentam reduzir a função docente.
Percebemos neste contexto, que o professor vive uma situação de proletarização de seu trabalho, enfrentando assim crises na profissão ao mesmo tempo em que são tidos como técnicos executores destinados a executar reformas.
Fica nítida a concepção de avaliação da professora como um processo mais condizente com o trabalho que vem desenvolvendo no cotidiano de sua prática, que é reafirmado através de sua fala:
Eu gosto do registro. Em qualquer atividade que eu dou, e vejo que aquele aluno conseguiu, pra mim é gostoso de ver o crescimento do aluno e ver que ele aprendeu. Eu não vejo a avaliação como um castigo, eu vejo como um resultado positivo, até para eu ver onde está a falha, o que ele está precisando
Para Freitas (2009):
A avaliação, a despeito do conteúdo e do método, impõe um “modelo de raciocínio”, uma “forma de pensar”, uma forma de o professor se relacionar com o aluno, embutida em suas práticas específicas (p. 25).
É nessa perspectiva que a relação da prática pedagógica narrada pela professora, a respeito do uso dos registros, é entendida como ação que busca uma avaliação que de fato haja no sentido de criar e consolidar práticas pedagógicas democráticas (ESTEBAN, 1999).
Durante a semana de avaliação, a professora, por não ter em sua turma a Prova Bimestral e seguindo às orientações dadas pela coordenação, aplica algumas atividades feitas por ela e, que ao dialogar com seus alunos, chama de prova. É uma forma encontrada pela professora para que as crianças se preparem para fazer as provas no ano seguinte. A aula torna-se espaço de treino e não de descobertas e desafios. A mensagem enviada às crianças é de que a escola é um lugar onde são preparadas para fazer provas para que saiam dela mais rapidamente. Entretanto, e felizmente, as crianças são sujeitos de e da cultura e, nela, recriam e ressignificam processos. Além disso, aprendem mais coisas na escola, do que os adultos pretendem ensiná-las.
Ao analisar a prática cotidiana da professora, nota-se uma tensão entre o que faz porque acredita e o que faz porque lhe é pedido. Treinar as crianças para se saírem bem na prova, pode não significar acreditar em tal forma de avaliar, mas uma preocupação legítima e cuidadosa com seus alunos; para que eles se saiam bem. Ou não. Mas a tensão gerada e o desvio para uma pauta de ação conflituosa no cotidiano da sala de aula, gerada a partir da introdução dos exames, é fato. O momento da prova, diferente do dia-a-dia, é uma encenação, cuja finalidade é o treino da postura e da disciplina. Ela entrega várias folhas de atividade, de diferentes livros, outras feitas em mimeógrafo e avisa aos alunos que não podem falar a resposta. Muitos alunos questionam como fazer determinadas questões, porém ela responde que não vai dizer e que eles têm que pensar.
Em sua fala fica nítida a mudança na sua postura em relação à sua mediação com as crianças, em virtude do treino para os exames bimestrais.
A minha turma faz também. É um modo de fazê-los cair na regra. Eles se habituam, tem uma noção do que é a avaliação. Pelo que eu vejo das minhas companheiras não é uma coisa torturante (caderno de campo).
Considerando as possíveis análises acima, evidenciamos que, em uma simples semana, as práticas avaliativas desenvolvidas na turma do 1º ano, sofreram variadas transformações: em todas as atividades, a professora estimulava que os alunos respondessem diversas questões, buscassem tirar suas dúvidas entre si e com ela mesma, os alunos com mais facilidade em determinados conceitos trabalhados podiam ajudar os colegas, entre outras situações. Mesmo a partir de um método de alfabetização mais tradicional, a professora em determinados momentos, incentivava seus alunos a construírem coletivamente conceitos que, de fato, seriam importantes para esse processo de aquisição da leitura e escrita.
Outra possível análise é a concepção arraigada de avaliação quando a professora diz que as crianças terão noção do que é a avaliação. Ela não diz a prova, mas a avaliação. Um modo de introduzir a regra, a avaliação como elemento disciplinador.
Por fim, a naturalização. “Não é uma coisa torturante”.
Ao concebermos o processo de avaliação e as mudanças nas práticas que se constroem no espaço da sala de aula, percebemos que é necessária a compreensão e coerência entre ensinar, aprender, avaliar. Nessa perspectiva, Fernandes (2010) adverte que:
Uma mudança na avaliação dos processos de aprendizagem exige uma concepção de aluno como um ser crítico, criativo e participativo, com autonomia e capacidade de tomar decisões. Exige também uma concepção de ensino que privilegia a participação, o diálogo, a autonomia, a reflexão por parte dos professores quanto dos alunos (p.98).
Essa concepção de aluno e de ensino nos remete a uma avaliação que faz parte do processo de aprendizagem e não algo dissociado, propiciadora de aprendizagens significativas e parte integrante do currículo escolar (FERNANDES, 2010).
O que julgamos importante no contexto do que foi vivenciado no decorrer desse trabalho são as marcas que a condução de um processo burocrático e sem nenhuma relação com as práticas cotidianas vivenciadas pela turma podem deixar na vida escolar desses sujeitos.
As observações do cotidiano, nas duas escolas, desvelaram também as astúcias e táticas (CERTEAU, 2008) que acontecem quando os resultados dos testes de larga escala ficam associados às políticas bonificação, com ênfase na meritocracia. Tais táticas se revelam de muitas formas. Em especial, destacamos a prática observada que, com o intuito de aumentar ou, não baixar, os índices de desempenho das escolas, a equipe docente comunica aos responsáveis pelas crianças com necessidades educativas especiais que elas podem permanecer em casa nos dias dos exames externos.
As crianças são convidadas a não irem à escola no dia das provas, pois “não é necessário”; “as provas não são para elas”. Assim, as equipes de direção e coordenação comunicam aos responsáveis pelas crianças com necessidades especiais. Tal postura afeta aquilo que está dito nos documentos oficiais, de que o Atendimento Educacional Especializado (AEE), nas Salas de Recursos Multifuncionais, assegura e “auxilia no processo de inclusão dos educandos, eliminando barreiras para a plena participação dos mesmos nas atividades propostas no cotidiano escolar” (RIO DE JANEIRO, 2018b).
Segundo Esteban (1999):
A avaliação escolar, nesta perspectiva excludente, silencia as pessoas, suas culturas e seus processos de construção de conhecimentos; desvalorizando saberes fortalece a hierarquia que está posta, contribuindo para que diversos saberes sejam apagados, percam sua existência e se confirmem como a ausência de conhecimento (p.15).
Transformar os alunos em meros sujeitos capazes de responder isto ou aquilo é querer excluir o que eles têm de mais precioso em seu processo de aprender: sua subjetividade.
Que aprendizagens estão realizando as crianças que fazem os exames e as que não fazem? O que elas aprendem disso em conjunto? Por que alguns fazem e outros não? Quais conhecimentos são mais importantes? Quem sabe mais? Quem sabe menos?
Nesse sentido, Loch (2010) afirma que:
É necessário entender a avaliação como a possibilidade de vir a ser ou fazer um outro de si mesmo, a construção de cada um e do coletivo como diferentes, saudáveis, alegres, cidadãos. É a prática da nossa existência se construindo a partir da avaliação que fazemos de nós (...) O caráter da avaliação tem assim outra dimensão, é diferente, pois propicia avanço, progressão, mudança, a criação do novo (p.107).
Considerações finais
A escola contemporânea apresenta conflitos epistemológicos (que, aliás, sempre existiram) muito latentes no cotidiano de suas práticas educativas, seja nas salas de aula, seja na gestão. Essas diferenças podem e deveriam desafiar-nos a pensar qual escola queremos. Entretanto, as pesquisas têm mostrado que as escolas vêm alterando as suas relações pedagógicas, a organização dos seus tempos e espaços, seus currículos, para trabalhar a partir dos exames que chegam.
Avalia-se para se justificar as políticas e, como a avaliação não é neutra, nem destituída de ideologia e de poder, ela justifica e legitima resultados e ações. A avaliação em larga escala deveria servir para melhor orientação da gestão das políticas, porém, vem se constituindo como instrumento de formatação das escolas à lógica do mercado, impactando sobremaneira o papel social da escola e o significado dela para as crianças e jovens.
Referências
AFONSO, Almerindo J. Sociologia da Avaliação: problemas de delimitação de um campo teórico-conceptual. Políticas Educativas e Avaliação Educacional. Braga: Universidade do Minho, pp. 74-76, 1998.
_____________ Avaliação educacional: regulação e emancipação: para uma sociologia das políticas avaliativas contemporâneas. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 2009.
APPLE, Michael W. Para além da lógica do mercado: Compreendendo e opondo-se ao neoliberalismo. Rio de Janeiro: DP&A Editora. 2005.
CERTEAU, Michael. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2008.
ESTEBAN, Maria Teresa. A avaliação no cotidiano escolar. In: ESTEBAN, M. T. (org.) Avaliação: uma prática em busca de novos sentidos. Rio de Janeiro, ed. DP&A, 1999, 1ª edição.
____________________. Silenciar a polissemia e invisibilizar os sujeitos: indagações ao discurso sobre a qualidade da educação. Portugal, Universidade do Minho, Revista Portuguesa de Educação, 2008, 21(1), pp. 5-31.
FERNANDES, Claudia de O. A necessária superação da dicotomia no debate séries-ciclos na escola obrigatória. Cadernos de Pesquisa, v.40, n.141, p.881-894, set./dez. 2010a.
________________________. Avaliação: um diálogo com professores. In: SILVA, J., HOFFMAN, J. e ESTEBAN, M. T.(orgs.) Práticas Avaliativas em todas as áreas: rumo às aprendizagens significativas. Porto Alegre, Ed. Mediação, 2010, 7ª edição.
FERNANDES, Domingos. Avaliar para aprender. São Paulo, Editora UNESP, 2009.
FREITAS, Luiz Carlos. et al. Avaliação educacional: caminhando pela contramão. Petrópolis: Vozes, 2009.
LOCH, Jussara M. de Paula. O desafio da ética na avaliação. In: SILVA, J., HOFFMAN, J. e ESTEBAN, M. T.(orgs.) Práticas Avaliativas em todas as áreas: rumo às aprendizagens significativas. Porto Alegre, Ed. Mediação, 2010, 7ª edição.
NAZARETH, Henrique. D. G. Qualidade da educação e avaliação: uma análise na mídia impressa. Relatório de pesquisa de iniciação científica, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO, 2011.
RIO DE JANEIRO (RJ). Secretaria Municipal de Educação. Educação em Números. Rio de Janeiro. 2018a. Disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/web/sme/educacao-em-numeros. Acesso em 15/05/2018.
________________________. Educação Especial. Rio de Janeiro. 2018b. Disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/web/sme/educacao-especial. Acesso em 29/05/2018.
________________________. Resolução SME nº 1078, de 27 de maio de 2010. D. O. Rio, Rio de Janeiro, 27 maio, 2010.
SANTOMÉ, J. T. A Instituição Escolar e a Compreensão da Realidade: o Currículo Integrado. In: HERON, L. da. et al. (orgs.) Novos Mapas Culturais/ Novas Perspectivas Educacionais. Porto Alegre, Ed. Sulina, pp.58-74, 1996.
Notas