Relato de pesquisa
Significados de surdez segundo professoras de Venturosa no Agreste pernambucano
Meanings of deafness according to Venturosa teachers, in Agreste of Pernambuco
Significados de la sordera según las profesoras de Venturosa, en lo Agreste de Pernambuco
Significados de surdez segundo professoras de Venturosa no Agreste pernambucano
Revista Educação Especial, vol. 35, pp. 1-21, 2022
Universidade Federal de Santa Maria
Recepción: 08 Febrero 2021
Aprobación: 25 Noviembre 2022
Publicación: 15 Diciembre 2022
Resumo: Este artigo é um recorte de uma dissertação que teve como objetivo compreender os significados de surdez construídos por professoras da cidade de Venturosa, visibilizando, desta forma, o Agreste pernambucano. Teoricamente, partimos do conceito de “significado”, entendido como construção socialmente compartilhado e constitutivo de modelos indutivos que possibilitam professores a lidar com o imprevisível em sala de aula. Consideram-se o campo em disputas das práticas pedagógicas com a população surda. Do ponto de vista metodológico, 49 professoras responderam a um questionário contendo dez questões abertas e uma escala Likert com 20 itens. Os dados ilustraram uma distância entre o conceito de surdez e a prática profissional de professoras que não convivem com pessoas surdas e/ou com pouca aproximação com a Libras. Estes resultados evidenciaram as posturas que fazem diferenciar a surdez e a deficiência auditiva: presença da fala oral, momento de aparecimento da surdez e nível/grau da audição. Notou-se também uma sensibilidade das participantes ao modelo inclusivo, apesar de uma dificuldade de implementação na educação regular e uma resistência à educação bilíngue (Português-Libras). A invisibilidade científica de regiões como o Agreste Pernambucano justifica estudos que denunciem a defasagem de formação, tanto inicial quanto continuada, longe das metrópoles. Nesse campo de disputas, as professoras lidam com suas defasagens, seus pertencimentos e uma prática que não consegue ser prescrita por completo, já que as “receitas” não funcionam.
Palavras-chave: inclusão, deficiência-auditiva, surdos.
Abstract: This article is part of a dissertation that aimed to understand the meanings of deafness constructed by teachers in the city of Venturosa, thus making visible the Agreste region of Pernambuco. Theoretically, we start from the concept of “meaning”, understood as a socially shared construction and constitutive of inductive models that enable teachers to deal with the unpredictable in the classroom. From the methodological point of view, 49 teachers answered a questionnaire containing ten open questions and a Likert scale with 20 items. The data obtained illustrated a distance between the concept of deafness and the professional practice of teachers who do not work with deaf people and/or who have little contact with Libras. These results showed the postures that differentiate between deafness and hearing impairment: presence of oral speech, moment of onset of deafness and level/degree of hearing. It was also noted that the participants were sensitive to the inclusive model, despite difficulties in implementing it in regular education and resistance to bilingual education (Portuguese-Libras). The scientific invisibility of regions such as Agreste Pernambucano justifies studies that denounce the gap in training, both initial and continued, far from the metropolises. In this field of disputes, the teachers deal with their lags, their belonging and a practice that cannot be completely prescribed, since the “recipes” do not work.
Keywords: inclusion, hearing deficiency, deaf.
Resumen: Este artículo forma parte de una disertación que tuvo como objetivo comprender los significados de la sordera construidos por docentes de la ciudad de Venturosa, visibilizando así la región Agreste de Pernambuco. Teóricamente, partimos del concepto de “sentido”, entendido como una construcción socialmente compartida y constitutiva de modelos inductivos que capacitan a los docentes para lidiar con lo impredecible en el aula. Desde el punto de vista metodológico, 49 docentes respondieron un cuestionario que contenía diez preguntas abiertas y una escala Likert de 20 ítems. Los datos obtenidos ilustraron una distancia entre el concepto de sordera y la práctica profesional de docentes que no trabajan con personas sordas y/o que tienen poco contacto con Libras. Estos resultados mostraron las posturas que diferencian entre sordera y deficiencia auditiva: presencia de habla oral, momento de aparición de la sordera y nivel/grado de audición. También se observó que los participantes fueron sensibles al modelo inclusivo, a pesar de las dificultades para implementarlo en la educación regular y la resistencia a la educación bilingüe (portugués-libras). La invisibilidad científica de regiones como Agreste Pernambucano justifica estudios que denuncian la brecha en la formación, tanto inicial como continuada, lejos de las metrópolis. En ese campo de disputas, los docentes lidian con sus rezagos, su pertenencia y una práctica que no puede prescribirse del todo, pues las “recetas” no funcionan.
Palabras clave: inclusión, deficiencia auditiva, sordos.
Introdução
Este estudo teve como objetivo compreender os significados de surdez construídos e compartilhados por professoras na cidade de Venturosa, no Agreste pernambucano, e suas repercussões na prática profissional. Parte-se de duas perspectivas inicialmente opostas para compreender a surdez. De um lado, o modelo biomédico, que define a surdez como deficiência e busca estratégias para sua cura, e, de outro lado, o modelo social (socioantropológico), que postula a surdez como uma diferença linguística e propõe o reconhecimento da Libras (Língua Brasileira de Sinais) e da cultura surda (SKLIAR, 1998). Essa oposição é historicamente construída pelo uso dos termos (surdo-mudo, surdo, deficiente) e a construção de práticas educacionais para essa população (oralização, comunicação total, bilinguismo) (RAMOS, COSTA-FERNNANDEZ, 2018a). Sendo essas ecoadas nas políticas educacionais dos municípios como Venturosa (RAMOS; COSTA-FERNANDEZ, 2018b)
Assim sendo, interroga-se sobre as influências desses modelos na prática educacional, considerando dois pressupostos: no primeiro, a educação é uma atividade baseada em interações humanas, não podendo ser codificada em sua totalidade (TARDIF, 2014). Em outras palavras, para o professor, na sua função de educador, que vai além da transmissão de conhecimentos, não há uma receita pronta que o instrumentalize para lidar com o ‘caos’ interativo da sala de aula. Paralelamente ao inesperado cotidiano, há um currículo que tende a ser fixo e prescrito. Segundo Maurice Tardif e Claude Lessard (2011), docentes constroem modelos indutivos de ação baseados em suas experiências pessoais, escolares, formativas e profissionais para definir estratégias face a esse desafio. No segundo pressuposto, esses modelos indutivos denotam a utilização do que, para a psicologia histórico-cultural, seriam os significados, definidos como a parte estável dos sentidos, sua parte socialmente compartilhada, tendo em vista que o sentido é a soma da realidade psíquica, com todas as sensações, memórias, emoções (VYGOTSKY, 1998). Os significados servirão de referência aos docentes para enfrentarem as dificuldades e, especialmente, o “novo”, ou seja, o inesperado, o ‘caos’ (TARDIF, 2014) em sala de aula.
Além disso, o paradigma inclusivo na educação agrega mais um aspecto desafiante por impossibilitar a homogeneização e a padronização. A surdez, como diferença, é apresentada pela perspectiva socioantropológica ou social da educação, buscando o reconhecimento da Língua Brasileira de Sinais (Libras) e da subjetividade, ou seja, a singularidade de cada sujeito surdo, constituída a partir da experiência visual (SKLIAR, 1998; SÁ, 2010; STROBEL, 2008). Entretanto, a construção biomédica da surdez colocou-a no espaço da doença e impôs uma cura a partir do ‘voltar a ouvir’ como discurso hegemônico entre aqueles que ouvem (os ouvintes). Nídia Sá (2010) confronta esses discursos e o apagamento político da posição das pessoas surdas, ainda considerando uma impossibilidade de ‘não ouvir’ para os ouvintes. O ato de apagar as histórias coletivas e individuais das pessoas surdas deixa marcas na experiência de ser surdo, como mostra Liliane Longman (2007), criando empecilhos para a aprendizagem e o desenvolvimento (QUADROS, 2012).
A dicotomia inicial dos termos utilizados pelas perspectivas socioantropológicas e biomédicas foi demarcada como forma de fortalecer um outro caminho possível para a educação das pessoas surdas. Entretanto, tem-se questionado a força dessa separação, considerando uma possível síntese das propostas, evitando a oposição extrema. Apesar disso, esse trabalho se vincula ao reconhecimento de uma disputa ainda existente entre modelos que enaltecem formas distintas de ser e utiliza essa configuração como um demarcador analítico dos significados das professoras.
Reafirma-se que compreender a construção de significados de surdez no Agreste pernambucano justifica-se por dois pontos: a) os significados servem de referência à prática profissional, através do modelo indutivo das professoras para lidarem com as ações não prescritas da atividade docente (TARDIF; LESSARD, 2011; TARDIF, 2014); e, por isso, b) interessa-nos saber a ressonância do discurso inclusivo no Agreste pernambucano, já que as pesquisas se centram em contextos metropolitanos.
Venturosa tem aproximadamente 18 mil habitantes e 3.375 estudantes matriculados no ensino básico (IBGE, 2018), distribuídos em 11 escolas públicas - sendo duas estaduais e as demais municipais - além de duas escolas particulares de Ensino Infantil e Fundamental. Constavam, em 2017 no Censo Escolar (INEP, 2017), apenas 37 alunos incluídos, ou seja, alunos que necessitam de atendimento educacional especializado. Deste total, sete alunos estavam matriculados na rede estadual e 30 na rede municipal. Estes números diferem fortemente dos números disponibilizados pela Divisão da Educação Especial do Município, que afirmou ter 90 alunos com Necessidades Educativas Especiais (NEEs) matriculados em instituições do município, das quais 72 com laudo médico, e 18 sendo encaminhadas. A disparidade dos números demonstra uma lacuna entre as instâncias do Estado de Pernambuco, que deve levar a impactos fortes na normativa orçamentária das políticas públicas educacionais (VASCONCELOS; RAMOS, 2018).
Metodologia
A parte metodológica da pesquisa é composta de um questionário de quatro partes (Quadro 1). Os itens da escala Likert, parte do bloco 4, foram construídos a partir de frases comuns da internet e do cotidiano sobre a surdez. A escala Likert deste estudo é composta de cinco itens, variando de 1 - discordo totalmente até 5 - concordo totalmente, sendo o item 3 - nem concordo, nem discordo.
Temática-guia | Bloco | Objetivo | Tipo de Perguntas |
A. Caracterização do sujeito | Informações sobre o sujeito | Coletar informações sobre o sujeito, possibilitando apreender parte de seus pertencimentos. | 1.Nome, 2. Raça, 3. Gênero, 4. Idade, 5. Profissão, 6. Tempo de atuação, 7. Formação. |
Aproximação com a temática | Identificar possíveis aproximações dos participantes com a temática. | 8. Você conhece(u) alguém surdo/deficiente auditivo? 9. Conhece a Libras? | |
B. Significados do sujeito | Definindo | Compreender as concepções gerais de surdez e a deficiência auditiva. | 10. O que é surdez/deficiência auditiva? Existe diferença entre estes termos? |
Posicionamento ideológico | A partir de frases surgidas no campo-tema, analisar a tendência de posicionamento ideológico do sujeito. | Escala Likert, composta de 20 Itens/frases |
O questionário foi aplicado durante uma atividade de formação continuada das docentes com o devido respeito aos aspectos éticos, incluindo a anuência da diretoria da escola, o compromisso dos pesquisadores com o anonimato e o consentimento livre e esclarecido dos participantes. A aplicação só foi iniciada após a aprovação do Comitê de Ética de Pesquisas com Seres Humanos (CEP) da 11832019.1.0000.5208. Inicialmente participaram do estudo profissionais da educação especial, conhecidas como “professoras de apoio”, e, em seguida, aplicou-se o questionário com as professoras da educação infantil do município e, por fim, com as professoras da escola particular, com base no mesmo protocolo de aplicação.
Características das participantes
O estudo contou com a participação voluntária de 22 professoras da educação infantil e 13 da educação especial, além de 14 professoras de uma escola particular, totalizando 49 participantes. Pelo levantamento, apenas seis delas atuavam diretamente com estudantes surdos, ainda assim, todas as demais participaram da pesquisa, com o objetivo de contribuírem à apreensão dos significados macrossociais da surdez que circulam pela instituição escolar.
Todas as participantes são mulheres cisgêneras. Destas, 50% são pedagogas ou estavam cursando pedagogia, e 17% estão cursando licenciaturas diversas. A distância da cidade de Recife, capital do estado de Pernambuco, possibilita uma maior variedade de formações, incluindo professoras apenas com ensino médio completo, especialmente na educação especial, o que demonstra uma importante defasagem entre a formação inicial e continuada (RAMOS; FERNANDEZ, 2020a). No que diz respeito às categorias raciais, 42% das professoras se declaram pardas, 27% brancas, 6% negras e 25% preferiram não se definir.
Sobre o tempo de atuação, 38% das participantes afirmaram intervir há menos de cinco anos. Além disso, 23% das professoras têm até 10 anos de carreira, e 21% têm até 20 anos de carreira. Os cinco primeiros anos são demarcados por Tardif (2014) como um período crítico para a formação da identidade docente, por ser o período em que os saberes advindos da formação acadêmica são colocados em prática e sofrem as maiores mudanças. O ponto central desse período é assumir e socializar o papel de docente, (re)construindo as práticas. De forma complementar, docentes mais experientes, ou seja, que já estão há mais tempo na prática, recebem o novo profissional, tornando-se influências diretas ou indiretas da identidade docente. Nesse processo de trocas e identificações diversas, suas próprias práticas são legitimadas e/ou questionadas.
A análise dos dados foi realizada a partir da categorização e da frequência das respostas, considerando-se a média de concordância entre as perspectivas socioantropológicas ou clínico-terapêuticas (biomédica). Três aspectos se destacam: a) a aproximação à temática da surdez; b) a diferenciação da surdez com a deficiência auditiva, e c) as posturas das professoras frente aos modelos sociais e biomédicos da surdez.
Aproximação com a temática da surdez
As três perguntas do bloco 2 do questionário (8, 9 e 10) se voltavam à temática da surdez e solicitavam a explicitação das relações das participantes com as pessoas surdas e com a Libras. Estudos como os de Sá (2010) sugerem que a aproximação com as comunidades surdas questionam os (pré)conceitos naturalizados no discurso ouvinte hegemônico. Conforme diz Karen Strobel (2008), a imagem do outro surdo ajuda a configurar a forma como lidamos com ele. Por isso, a ênfase dos estudos surdos na fortificação da cultura surda, compreendendo que, a partir desta, as imagens poderão ser questionadas e recolocadas.
NR | Sim | Não | |
8. Conhece alguém com deficiência auditiva/surdez? Caso sim, qual a sua aproximação? | 8% | 65% | 27% |
9. Você tem algum conhecimento em Libras? Se sim, onde/com quem aprendeu? | 0% | 50% | 50% |
O Quadro 2 apresenta a frequência de dis/concordância das professoras a partir das perguntas do questionário. Na pergunta 8, 65% das professoras afirmaram conhecer pessoas surdas ou deficientes auditivas. Contudo, durante a aplicação, as professoras comentavam com frequência: “eu não sou próxima, mas conheço, então conta né?”, “tem uma prima, que mora em São Paulo”, demonstrando que essas pessoas não participaram do convívio cotidiano ou pessoal da participante. Sona (pseudônimo) foi uma das pessoas mais lembradas nas respostas a essa pergunta. Ela usa Aparelho de Amplificação Sonora Individual (AASI), é oralizada e foi professora de artes do município e do estado, mas, à época do estudo, atuava mais em sala de aula.
Além de Sona, aparecem, em menor escala, os nomes de outros dois venturosenses: um foi mencionado quatro vezes e o outro apenas uma vez. Esses, diferentes de Sona, são surdos sinalizadores e bem mais jovens que ela. As professoras sabem da existência dessas pessoas, mas estes são distantes, personagens de narrativas outras, das quais pouco se sabe. Isso remete às experiências das pessoas surdas descritas por Longman (2007). Mesmo que os surdos estejam presentes, a comunidade tende a não (re)conhecer a existência destes, colocando-os no silenciamento e no esquecimento. O surdo recai num isolamento por não conseguir se expressar como os demais e apenas silenciando sua diferença, normalizando-se, passa a ser reintegrado socialmente. Nota-se, então, que um dos grandes desafios da educação surda é o reconhecimento histórico e cultural das pessoas surdas. Como as professoras dizem estar distantes da convivência com os surdos, seus olhares sobre a surdez são limitados, desconhecendo seus aspectos culturais, como a música, a poesia em Libras, a literatura surda (QUADROS, 2012).
Estes resultados confirmam as conclusões de Oliveira (2006) que, ao estudar a construção de uma identidade docente inclusiva, afirma que a mudança de conceitos sobre a inclusão era efetivada a partir da convivência com pessoas diferentes, especialmente as surdas. Pode-se afirmar, então, que, apesar do conhecimento teórico da formação inicial questionar esses termos, a mudança de perspectiva ocorre na convivência, no encontro com a alteridade.
Alguns anos mais tarde, Omote (2014) revisou artigos brasileiros que tratam da relação entre as atitudes sociais sobre a inclusão e a área de formação, tempo de atuação, experiência prévia com a deficiência1 e idade. Entre as conclusões apresentadas, nota-se que:
as atitudes sociais em relação à inclusão podem não ser determinadas por variáveis especificas isoladamente. Muitas características, não só dos sujeitos como também dos objetos atitudinais, parecem estar complexamente relacionadas a essas atitudes (OMOTE, 2014, p. 647).
No entanto, os trabalhos sobre experiência prévia são os que apresentam mais frequentemente atitudes sociais favoráveis. Enfatiza-se o fato de que inclusão depende da interação e das discussões sobre as diferenças. O estudo de Omote (2014), entretanto, não se refere especificadamente à questão da surdez.
A nona pergunta foca o conhecimento sobre Libras, especificamente sobre onde e com quem o participante aprendeu a Libras. Apenas 20,8% das participantes - 41,6% das que declaram conhecer a Libras - responderam ter conhecido esta língua durante a formação universitária. Esse dado ilustra a força da obrigatoriedade da Libras nas licenciaturas, explicitado na regulamentação 5.626/2005 que trata da Lei da Libras. Apesar do avanço da existência da disciplina, autoras têm apontado para a superficialidade que o ensino de Libras apresenta ao ser ministrado em apenas uma disciplina. Os trabalhos de Leite (2016) e Paiva, Faria e Chaveiro (2018) analisam o programa de algumas Instituições de Ensino Superior (IES) públicas e privadas, no que diz respeito ao tema da surdez. Percebeu-se a disparidade entre as IES que inserem uma única disciplina de 32h e outras que inserem até três disciplinas de Libras entre obrigatórias e eletivas. Apesar de díspares, todas as autoras concordam com a impossibilidade de se aprender uma língua em apenas uma disciplina. No caso das professoras de Venturosa, elas afirmam terem tido, por exemplo:
“duas ou três aulas. Infelizmente não me aprofundei.” (Sujeito 20)
“pouco, na faculdade tive somente três aulas sobre libras” (Sujeito 33)
Muitas participantes se formaram em cursos híbridos ou semipresenciais, nos quais as disciplinas são ofertadas em módulos de três ou quatro aulas presenciais, que se somam às atividades on-line assíncronas. A variedade de dispositivos justifica a pouca quantidade de aulas. Mesmo assim, o pequeno número de aulas é assustador. Considerando que as aulas são semanais, significa que as professoras em exercício tiveram menos de um mês de aulas corridas sobre Libras. Em um mês, será possível para essas professoras aprenderem ao menos o básico da Libras?
Além das professoras que conheceram a Libras durante o curso superior, outras 17% das professoras se referiram aos cursos realizados pela Paróquia de São José, em Venturosa. Os dois cursos tinham proposta introdutória, básica e gratuita. Apenas duas professoras, formadas pela Associação de Surdos de Arcoverde, afirmaram ter um conhecimento além do básico em Libras.
Esse mesmo desconhecimento da Libras é encontrado em outros locais (SANT’ANA, 2005; KARNOPP; KLEIN, 2007; SCHEMBERG; GUARINELLO; MASSI, 2012), conforme apontam Schemberg, Guarinello e Massi (2012, p. 28):
O desconhecimento acerca da surdez e da língua de sinais ocorre tanto na família, quanto na escola, pois familiares e professores, ao serem indagados sobre como consideram seu conhecimento em torno da surdez e da língua de sinais, referiram que consideram regular o seu conhecimento acerca da surdez, apresentando dificuldades em compreender as implicações relacionadas à mesma.
Esta visão limitada tende a reforçar o discurso da normalidade e o silenciamento da comunidade surda. Em especial, Karnopp e Klein (2007) chegam a conclusões parecidas, afirmando que boa parte dos professores não tinham condições de utilizar a Libras em sala de aula, contudo todas tinham ao menos cursos básicos ou intermediários na área. A situação de Venturosa é mais grave, com um número maior de professoras que desconhecem a Libras, evidenciando, desta forma, as lacunas territoriais. Apesar de diversas pesquisas afirmarem que existem mais professores fluentes em Libras nas escolas de surdos e nas salas bilíngues, esses locais são inexistentes em Venturosa.
Assim sendo, percebeu-se que as políticas públicas em Venturosa propunham programas educativos de surdos baseados na oralização ou, no máximo, na utilização dos intérpretes/tradutores de Libras que ensinam a Língua ao mesmo tempo em que a aprendem.
Diferenciando surdez de deficiência auditiva
A definição de surdez não é uma tarefa fácil, pois este procedimento implica histórias e posicionamentos complexos. Paralelamente, a surdez é significada no cotidiano com repercussões nas práticas e na percepção da realidade. Sendo assim, a pergunta 10 do questionário da pesquisa convoca a definição dos termos surdez e deficiência auditiva a partir de suas diferenciações. A ideia de diferenciar os termos foi uma estratégia adotada com o objetivo de apreender o movimento de um termo em relação ao outro, não apenas a definição do termo em si.
Assim, considerou-se os termos deficiência auditiva e surdez por compartilharem uma história de disputas. Percebe-se que seus usos se modificam ao longo dos anos, e o que era “correto” para uma geração se torna questionável para outra, já que as histórias ganham novos posicionamentos ao longo do tempo e do espaço.
NR | Sim | Não | |
10. Existem diferenças entre surdez e deficiência auditiva? Caso sim, explicite a diferença. | 8% | 73% | 13% |
Essa pergunta suscita uma informação relevante à luz do desconhecimento das professoras da Libras e a pouca experiência destas profissionais com a temática da surdez. Se a pergunta inicialmente pretendia analisar uma afiliação das professoras ao modelo clínico-terapêutico (surdez como doença) ou socioantropológico (surdez como diferença linguística), na prática, evidenciou-se que essa discussão não era familiar para as participantes.
A maioria das professoras afirmou existirem diferenças entre os dois termos. As professoras que admitem diferença as explicitaram. Considerava-se nesse momento a emergência de duas posturas opostas, já encontradas na literatura: a) biomédica, entendendo a deficiência como falta e constituída de uma parte orgânica (SKLIAR, 1998), e b) de origem social, que a entende como diferença (DINIZ, 2007). Contudo, os discursos das professoras fizeram emergir outras formas de conceituar, contribuindo para a construção de três grandes formas de significação presença da fala oral (9%), momento do aparecimento da surdez (26%), níveis/graus (57%) e não responderam (8%).
Presença de Fala oral (9%): para essas participantes, a diferença se baseia na presença da fala em alguns, entretanto oscila entre acreditar que quem fala são os surdos ou os deficientes auditivos.
Eu acho que a diferença é que alguns surdos falam e outros não (S. 09);
Pessoas com deficiência auditiva falam. (S. 23)
Essa é forma de significar tem uma aproximação mais direta com a experiência concreta, considerando uma diferença perceptível socialmente relacionada ao uso, ou não, da língua oral. A oscilação de quem seriam os que falam e os que não falam (os deficientes são os que falam? Ou seriam os surdos?) denota uma lógica comum - separar a partir do aparecimento da fala oral ou não - , contudo, faltando uma definição coesa.
Esse aspecto não é a base da formulação das políticas educacionais, nem o centro dos estudos. Contudo, ressalva-se o fato de as comunidades surdas usarem esse tipo de aspecto para a identificação e a construção grupal. Considerar-se como surdo aquele que sinaliza (SÁ, 2010), demonstra o uso de uma lógica comum. Entretanto, percebe-se claramente que as participantes partiram de critérios empíricos opostos. Na lógica dessas professoras, notou-se a oposição entre os que falam (deficientes auditivos) e os que não falam oralmente (surdos). Com isso, vinculou-se a surdez com a mudez, incluindo o uso do termo surdo-mudo por uma participante (S. 19).
O antigo termo surdo-mudo é inadequado, já que os surdos, na sua maioria, podem emitir sons, barulhos e, assim, têm acesso a uma forma de comunicação oral. No entanto, eles desenvolvem ou não esta habilidade. No campo das políticas públicas, o termo surdo-mudo tem sido questionado e perdido espaço desde a década de 1950 e a reforma de Ana Rimoli no INES (ROCHA, 2009). Não se encontra na literatura atual mais o uso desse termo, mas, apesar disso, ele continua a ser utilizado em outros campos, incluindo o senso comum.
Momento do aparecimento da surdez (26%): o marco da diferença seria que alguns nascem e outros adquirem a característica da “não escuta”. Alguns participantes atribuíram a surdez a causas inatas e outros a causas adquiridas.
Surdez já nasce, surdo. Quando se perde parte da audição; ou total a perca. (S. 02)
A deficiência auditiva é uma perda adquirida e a surdez advém de origem congênita. (S. 17)
Percebe-se um paralelo entre as discussões sobre o inato e o adquirido, a diferença de “nascer” ou ter biologicamente certas características versus obter determinada característica ao longo da vida. Em 1874, o primeiro “Compêndio para o Ensino de Surdos-Mudos” de Tobias Leite (HOMEM DE MELO, 2012) reforça a marca dos “anormais”, caracterizando-os, adjetivando e classificando em “o surdo-mudo congênito” e “surdo-mudo acidental” (p. VIII). Tobias Leite não usa nomenclaturas distintas para os dois, mas usa adjetivos para diferenciá-los. Essa lógica das professoras pode ser compreendida como uma reinterpretação desse movimento.
Mesmo na perspectiva biomédica, a figura do congênito ou acidental perdeu espaço para a figura da surdez pré ou pós-linguística. Dessa forma, o momento da “perda” da audição continua sendo um aspecto importante (MONTEIRO; SILVA; RATNER, 2016).
Para além do paralelo com estudos clínicos da surdez, o confronto de fatores congênitos com fatores adquiridos reflete a discussão mais ampla sobre aspectos inatos e adquiridos do Ser Humano.
Grau de surdez: essa perspectiva foi adotada por 57% dos participantes, denotando uma circulação mais central dessa postura. Nela, a surdez e a deficiência auditiva seriam a mesma coisa, mas com graus diferentes. Ao contrário dos demais, os membros desse grupo compartilham uma mesma posição. A maioria dos membros, exceto dois, considera que aqueles que ainda escutam algo seriam considerados deficientes auditivos, aqueles que não escutam seriam considerados surdos.
Deficiência auditiva consiste na perda parcial ou total da capacidade de detectar sons (isso vem por causa genética). Já a surdez é toda pessoa que não ouve nada. (S. 33)
Porque a deficiência auditiva tem diagnóstico e pode usar um aparelho para melhorar mais, e a surdez não tem como. Pode até haver algum para eles se identificarem com a libras. (S. 34)
A última forma de significar se aproxima da definição usada pelo modelo biomédico (DINIZ, 2007; MANTOAN, 2003), que embasa a perspectiva clínico-terapêutica (SKLIAR, 1998), de que a diferença se estabelece pelos decibéis, pelo teste de audiometria. Enquanto as duas outras teorias não encontram bases diretas nas políticas ou na ciência atual, essa última foi durante bastante tempo a base única das políticas educacionais brasileiras, apenas questionadas na década de 1980. Dessa forma, desenrola-se uma história discursiva que embasa a diferença nesse contexto e mostra a hegemonia do discurso médico audiologista.
As posturas das professoras frente à surdez
Apresenta-se, a seguir, a tabela de frequência das posturas das professoras frente às ideias comuns sobre surdez. As frases foram inicialmente escolhidas como representantes de modelos de surdez (socioantropológico e biomédico), entretanto, não implica dizer que estes são estanques e totalmente opostos, mas apresentam esse quadro como marcador de análise. Desta forma, as discussões desses resultados considerarão os modelos, suas divergências e convergências apresentadas pela literatura.
Disc. | Neutro | Conc. | NR | |
1. Manter “Escolas exclusivas para surdos” é sustentar o modelo de segregação. | 33% | 13% | 50% | 4% |
2. O governo deveria investir com prioridade em programas de saúde que tratem a deficiência auditiva, incluindo o uso de aparelhos auditivos e implantes cocleares. | 2% | 2% | 94% | 2% |
3. A surdez não é uma doença, mas uma diferença sociolinguística. | 15% | 17% | 65% | 4% |
4. Ter intérprete/tradutor da língua de sinais não é o bastante para o ensino dos surdos. | 17% | 13% | 63% | 8% |
5. Pessoas surdas são as que não escutam nada, tendo surdez grave e profunda. E deficiente auditivo aquele que tem dificuldade de escutar. | 13% | 19% | 69% | 0% |
6. Existe uma cultura surda, que se expressa pelo modo diferente dessas pessoas se comunicarem e vivenciarem o mundo. | 21% | 25% | 50% | 4% |
7. É essencial que os surdos tenham contato com a língua de sinais deles. | 4% | 2% | 92% | 2% |
8. É importante que os surdos aprendam a língua portuguesa para que possam acessar conteúdos abstratos. | 4% | 15% | 79% | 2% |
9. Crianças com deficiência auditiva tendem a ter mais problemas mentais. | 77% | 13% | 6% | 4% |
10. Os surdos aprenderem a língua de sinais faz com que se isolem em seu próprio grupo. | 69% | 8% | 13% | 2% |
11. É mais proveitoso para o desenvolvimento das crianças surdas que seus pais aprendam a Libras. | 6% | 4% | 88% | 2% |
12. Filhos surdos de pais ouvintes devem aprender português para melhor se desenvolver afetivamente. | 31% | 17% | 52% | 0% |
13. Pessoas surdas são incapazes de aprender a falar oralmente. | 63% | 27% | 8% | 2% |
14. O problema dos surdos não é a falta de audição, mas a imposição de ter que ouvir. | 19% | 33% | 40% | 8% |
15. Existem pessoas que preferem usar a Libras ao invés do aparelho auditivo. | 27% | 33% | 38% | 2% |
16. Surdos só podem ser professores de Libras ou professores de outros surdos. | 44% | 27% | 29% | 0% |
17. A sala bilíngue (que se utiliza do português e da Libras) faz com que as crianças não-surdas se atrasem. | 56% | 13% | 25% | 6% |
18. Deviam existir escolas exclusivas para os surdos, utilizando a Libras como língua oficial. | 40% | 19% | 40% | 2% |
19. Surdos são apenas aqueles que se utilizam da Libras como meio principal de comunicação. | 60% | 13% | 27% | 0% |
20. Surdos deveriam ser dispensados automaticamente de aulas de dança e música no ensino básico. | 94% | 0% | 6% | 0% |
No geral, os surdos não são mais figuras atreladas aos problemas mentais (frase 9). No entanto, isso não afasta completamente a tendência biomédica de colocar a saúde como prioridade (frase 2) e considerar esse aspecto como central na definição do surdo ou do deficiente auditivo (frase 5). Apesar de definida em termos clínicos, a surdez não aparece com uma doença (frase 3). Isso acontece por uma provável distinção entre doença e deficiência, contudo, não houve indícios de aproximação com o termo diferença.
O modelo social da deficiência tem trazido questões importantes para a discussão da deficiência, tendo reconfigurado os conceitos de deficiência. Enicéia Mendes (2006) comenta a radicalização da perspectiva inclusiva, que se tornou um valor amplamente defendido por diversos segmentos da sociedade, gerando até mesmo uma ruptura com qualquer questionamento a esse discurso. O desafio seguinte se insere na tentativa de construir a inclusão na prática apresentada sempre em processo, devido à falta de estrutura das escolas, de formação especializada, dificuldades de gestão, entre outros (SANT’ANA, 2005; KARNOPP; KLEIN, 2007; MUSIS; CARVALHO, 2010; GUARINELLO, ET AL,, 2006; COUTINHO, 2013).
Na escola, o paradoxo se aprofunda. Se compararmos as respostas das duas tendências, teremos apontamentos relevantes. O grupo de professoras apoia Libras em vários aspectos demonstrando, assim, como afirma Sá (2010), que o ‘eco da sinalização’ surda ganhou potência. Nota-se, então, que a reivindicação da comunidade surda para entrada da Libras na sala de aula gerou modificações nos significados das professoras do Agreste pernambucano. Contudo, ter a Libras como língua oficial da escola divide opiniões (frase 18). O fato de não conhecerem a língua pode explicar a resistência a Libras como língua oficial, assim como a pesquisa de Karnopp e Klein (2007), em que existe uma lacuna linguística, e as discussões de Quadros (2012).
Para as profissionais, os surdos devem ter acesso à sua língua (frase 7), deixando de considerar a Libras um aspecto de isolamento dos surdos (frase 10), mas essa língua não os define como sujeitos (frase 19). Apesar do espaço que a Libras ganha no discurso das professoras, a capacidade de aprender o português (frase 13) e para acessar conteúdos abstratos (frase 8) é um elemento que parece levar o apoio para a oralização. Por isso, a postura que consiste em considerar escolas específicas (frase 1) provoca um debate, resolvido parcialmente pelas salas bilíngues, que não gerariam atrasos aos ouvintes (frase 17).
Assim sendo, o apoio à Libras ainda oscila quanto a manter sua hegemonia em escolas ou salas bilíngues, tendo como primeira língua a Libras. As suas marcas são a compreensão da Libras como limitada a conteúdos concretos e a dúvida sobre seu uso no contexto familiar, ora acreditando que os pais devem aprender Libras, ora acreditando que os filhos devem aprender português.
As professoras, ao mesmo tempo, consideram que as escolas específicas bilíngues são segregadoras (frase 1), mas reconhecem que o intérprete/tradutor da língua de sinais não é suficiente (frase 4). Contudo, pode não ser o bastante, já que o professor ouvinte pode não conseguir reconhecer a cultura surda. A própria cultura surda (frase 6) é um ponto de discussão que agrega a maioria dos sujeitos, mas que, vista de perto, gera um embate com o ideário da inclusão.
Vários estudos confirmam a adesão limitada dos sujeitos ouvintes ao uso da Libras na educação. Compreende-se, desta forma, que a Libras é a primeira língua, mas não a única. Em seguida, o surdo deve aprender o português oralizado (segunda língua), seja por leitura labial ou outras técnicas. Essa condição confirma que o discurso da normalização apenas foi prorrogado, mas permanece como meta principal (FERNANDES; MOREIRA, 2014; MÜLLER; STÜRMER; KARNOP; THOMA, 2013). Essa construção do bilinguismo como uma fase para a oralização, descolada do aspecto cultural, é uma concessão do discurso ouvintista diante dos estudos do desenvolvimento. Estes demonstram o atraso afetivo e social das pessoas surdas e das lutas da comunidade, o que tende a não alterar o status do ouvintismo como hegemônico (FERNANDES; MOREIRA, 2014).
Não é à toa que a Libras se tornou um tema central dos estudos surdos. Strobel (2008,) por exemplo, demonstra a resistência familiar às escolas surdas, dando-lhe apenas algumas concessões para sua diferença, mas desejando que em algum momento o surdo acesse a língua portuguesa e deixe de precisar delas. Sá (2010) também retoma essa discussão ao mostrar que a Língua é um mecanismo de poder do discurso hegemônico, que “concede” a Libras, ao mesmo tempo que amplia de forma tímida a inserção dela nas escolas.
Isso aponta para a reprodução do embate entre o sistema de educação inclusiva apenas em sala regular versus as salas bilíngues. Por isso, a luta das comunidades surdas por escolas bilíngues que não mantenham o uso da Libras apenas entre estudante e intérpretes/tradutores, mas que se integrem à própria cultura surda, abrindo espaço ao desenvolvimento cultural e identitário das pessoas surdas (QUADROS, 2012).
A escolha entre aparelho auditivo e Libras (frase 15), e a relação dos surdos com a comunidade ouvinte (frase 14) são afirmações carregadas de estranhamentos, difíceis de serem compreendidos dentro do panorama ouvintista. Essas frases têm em comum a construção de uma alteridade pelo ouvintismo, que o coloca no lugar de impositores (STROBEL, 2008). Segundo Sá (2010), ao visibilizar as relações de poder entre a cultura hegemônica ouvintista e a minoria linguística da surdez, percebe-se que a posição de ouvinte é tão naturalizada, que exclui outras possibilidades. Escolher não usar aparelho, não escutar, pode ser interpretado como um ultraje à cultura ouvintista e à sua teoria de superioridade, pois o histórico modelo biomédico se alicerçou no postulado de que a língua oral é superior e aqueles que não aderiram à linguagem oral serão considerados incapazes, privados inclusive de seus direitos civis de cidadão (ROCHA, 2009). Atualmente, a situação não é tão flagrante, mas permanece a ideia de que a Libras não é uma língua, mas uma linguagem, uma mímica.
Essa relação de poder entre grupos aparece também nas respostas sobre as famílias, ecoando o paradoxo de que os pais devem aprender Libras (frase 11), e a necessidade de aprendizagem do português pelos surdos, para que eles se desenvolvam afetivamente (frase 12). Nesses casos, as dificuldades, por terem línguas diferentes, ganham força e questionam o uso da Libras. Algumas professoras repetem o discurso de terceiros, da sociedade, do marido, dos avôs, segundo os quais para ‘integrar’ o sujeito se justifica a possibilidade de oralizar.
Considerações
Ao se centrar na construção de significados por professores locais, este estudo pretendeu visibilizar a realidade da educação inclusiva em Venturosa, tendo em conta os aspectos contextuais da cidade. Considerando que toda pesquisa tem espaço e tempo determinados, partimos de um questionamento sobre a imposição do modelo produzido pela Região Metropolitana como centro de políticas públicas e de programas educativos no estado de Pernambuco. As práticas profissionais das escolas do Agreste Pernambucano, para além da implementação de modelos prescritos nas capitais, alicerçam-se em significados específicos. Esta contextualização das práticas exige das profissionais posturas próprias, muitas delas não prescritas, mas indispensáveis à inserção na comunidade.
Dessa forma, ao nos aproximarmos dos “interiores” pernambucanos, ou seja, das outras regiões do estado de Pernambuco, pretendemos contribuir lançando luz às demais realidades do estado, especialmente à Região do Agreste Meridional, onde se localiza a cidade de Venturosa, campo deste estudo. Venturosa emerge não como representante da região, mas como um caso específico, que nos possibilita interrogar o contexto educacional da região.
A invisibilidade científica da educação do Agreste impõe a ampliação de diálogos em estudos como estes. Os estudos existentes nos dão pistas de áreas importantes, como a defasagem de formação, os desafios financeiros de infraestrutura e de gestão profissional. Nesse campo de disputas, as professoras de Venturosa lidam com suas realidades, seus pertencimentos e uma prática que não consegue ser prescrita por completo, em que as “receitas” não funcionam.
A educação inclusiva implica valores defendidos por todas, especialmente o conceito de inclusão total, acontecendo na sala regular, considerando as escolas específicas como um modelo segregador. A inclusão centrada no processo de socialização, às vezes até destituindo a pedagogia de seu papel desenvolvimental se instituindo como prática de cuidado, dando margem para a entrada da saúde com sua perspectiva de intervenção.
Mesmo reconhecendo as diferenças da surdez, respeitando a Libras, o discurso das participantes enuncia um limite para a educação bilíngue. Ao falar do nível da audição, as professoras se aproximam do discurso da saúde, da audiometria. Esses elementos mostram como a inclusão emerge como cuidado e prática de saúde, afastando-se dos aspectos educacionais.
A divisão estanque entre os discursos biomédico e social se demonstrou inviável na realidade das professoras, que se posicionam rompendo as fronteiras, a depender das questões sociais apresentadas. Um dos exemplos é a diferenciação entre surdez e deficiência auditiva, que se apresenta a partir de outras dicotomias, como o surgimento da “não escuta”, presença de fala oral.
O diálogo entre as perspectivas é posto em prática pelas professoras ao se lançarem em concordância com termos considerados opostos por parte da literatura, mas que, na prática dessas professoras, encontra eco. Isto pode apontar para uma real necessidade de reposicionamento dessa discussão entre os modelos sociais e biomédicos e a consideração de outras posturas.
Em outro aspecto, Venturosa não está totalmente distante de outras realidades interioranas de dificuldade de implementação de práticas inclusivas. Contudo, há poucos trabalhos que apresentam essas especificidades. O que se sabe é que Venturosa apresenta uma precarização dos elementos da formação, especialmente da falta de formação especializada na área da educação especial/inclusiva e da surdez, repercutindo em uma estrutura que gera uma inserção parcial desses estudantes.
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Notas