Relato de pesquisa

Entre “Dois Mundos”: A Experiência Vivida do Sujeito CODA

Between “Two Worlds”: The Living Experience of the CODA

Entre "Dos Mundos": La Experiencia Viva de la Persona CODA

Ana Rebeca Medeiros Nunes Oliveira
UniChristus, Brasil
Terezinha Teixeira Joca
Universidade de Fortaleza, Brasil
Marilene Calderaro da Silva Munguba
Universidade Federal do Ceará, Brasil
Lucas Guimarães Bloc
Universidade de Fortaleza, Brasil

Entre “Dois Mundos”: A Experiência Vivida do Sujeito CODA

Revista Educação Especial, vol. 35, pp. 1-21, 2022

Universidade Federal de Santa Maria

Recepción: 21 Marzo 2022

Aprobación: 16 Noviembre 2022

Publicación: 15 Diciembre 2022

Resumo: A sigla Coda foi criada para nomear os filhos ouvintes de pais surdos, uma abreviação para o termo em inglês “child of deaf adults”. São pessoas que transitam entre "dois mundos", vivendo suas experiências no mundo surdo, ao relacionar-se com a cultura e comunidade surda e comunicar-se com línguas de sinais, ao mesmo tempo que convive com costumes, povos e línguas do mundo ouvinte, e que exercem uma possível mediação cultural diante dessas comunidades. Este artigo tem como objetivo compreender o mundo vivido (Lebenswel) do sujeito Coda, que vive com características distintas, imerso no mundo ouvinte, e o mundo surdo. Este estudo é de cunho qualitativo, relevando aspectos voltados à realidade do sujeito e suas relações sociais, abordando questões culturais e identitárias. A partir do método fenomenológico, inspirado em Merleau-Ponty, no período de fevereiro a junho de 2019, foram realizadas a coleta de informações e sua análise a partir de entrevistas semiestruturadas com quatro participantes Codas. A análise dos dados seguiu os seguintes passos: divisão do texto nativo; análise descritiva e “sair dos parênteses”. Foram estabelecidas como categorias para análise: a responsabilidade de ser Coda e a experiência entre os dois mundos. Entende-se que a experiência diante do mundo vivido do Coda é atravessada tanto por um lugar comum de ser Coda, quanto por uma experiência singular. Conclui-se que não há como separar a experiência do vivido do sujeito Coda em mundo ouvinte e mundo surdo, pois ele se constitui entre esses dois mundos.

Palavras-chave: surdez, família, cultura surda.

Abstract: The initials CODA were made to designate the children of deaf adults, an abbreviation form to the term in english “children of deaf adults”. Those are people that move between “two worlds”, they live their experiences in the deaf world in their relationships with the deaf culture and the deaf community. Also, when they communicate using sign language at the same time they live with the habits, people and languages of the hearing world that exert a possible cultural mediation in these communities. The objective of this article is to understand the living world (Lebenswelt) of the CODA subject that lives with distinct characteristics, inside the hearing world and the deaf world. This research is qualitative, it reveals aspects related to the reality of the subjects and their social relations, addressing identity and cultural issues. Based on the phenomenological method, inspired by Merleau-Ponty, in the period of february until june 2019, we conducted a data collection and its analysis based on semistructured interviews with four CODA participants. The data analysis was made based on the following steps: Native text division; descriptive analysis and “leaving the parenthesis”. It was established as categories for analysis: the responsibility of being CODA and the experience between two worlds. It is understood that the experience before the living world of a CODA is crossed both by a common place of being CODA as by a singular experience. It was concluded that there is no way to separate the experience lived by the CODA subject in a hearing world and the deaf world, because he exists between these two worlds.

Keywords: deafness, family, deaf culture.

Resumen: La sigla CODA se creó para nombrar a los hijos oyentes de padres sordos, una abreviatura para el término en inglés “child of deaf adults”. Son personas que transitan entre “dos mundos”, experimentando sus vivencias en el mundo sordo, al relacionarse con la cultura y comunidad sorda y al comunicarse con las lenguas de señas, a un mismo tiempo en que conviven con las costumbres, pueblos y lenguas del mundo oyente, ejerciendo una posible mediación cultural frente a estas comunidades. Este artículo intenta comprender el mundo vivido (el Lebenswelt) del sujeto CODA que vive con características diferentes y está inmerso en el mundo oyente y en el mundo sordo. Este estudio es de naturaleza cualitativa, enfatizando aspectos relacionados con la realidad del sujeto y las relaciones sociales de él, abordando cuestiones culturales e identitarias. Desde una perspectiva del método fenomenológico, inspirado en Merleau-Ponty, en el período de febrero a junio de 2019, fueron realizadas la colecta de informaciones y su análisis a través de entrevistas semiestructuradas con cuatro participantes CODA. El análisis de los datos ha seguido los siguientes pasos: División del texto nativo; Análisis descriptivo y “Salir de los paréntesis”. Se establecieron las siguientes categorías para el análisis: la responsabilidad de ser CODA y la experiencia entre los dos mundos. Se entiende que la experiencia frente al mundo vivido del CODA es atravesada tanto por un lugar común de ser CODA, como por una experiencia singular. Concluimos que no hay manera de separar la experiencia del sujeto CODA en mundo oyente y en mundo sordo, pues él se constituye entre estos dos mundos.

Palabras clave: Sordez, familia, cultura sorda.

Introdução

É possível que uma família constituída por pais surdos conceba filhos ouvintes. A sigla Coda (Children of Deaf Adults), de origem inglesa, é utilizada também no Brasil para nomear os filhos ouvintes de pais surdos. Para compreender a experiência de ser Coda, recorremos à noção fenomenológica de mundo vivido (Lebenswelt). Cunhado por Edmund Hussserl e desenvolvido por Maurice Merleau-Ponty, esta noção evidencia a produção de sentido que se dá na indissociável relação do sujeito com o mundo (MERLEAU-PONTY, 1999). Há um mundo no qual o sujeito Coda vive suas experiências, um mundo que já está aí e que atravessa sua experiência. Dizer que o sujeito Coda vive entre dois mundos significa afirmar que sua experiência se constitui no contato e comunicação com as pessoas surdas através de Libras e através da fala com pessoas ouvintes. Nos questionamos como se constituem estas experiências que possuem tanto elementos particulares quanto comuns àqueles que habitam entre estes dois mundos. Nomeamos de “dois mundos” diante da diferença que parece existir entre eles e que, ao mesmo tempo, institui modos específicos de experienciar o contato consigo mesmo e com os outros.

O ingresso dos surdos na sociedade tem ocorrido de forma processual. Contudo, ainda é comum que o sujeito surdo seja marginalizado e não consiga se adaptar em determinadas situações que envolvem a necessidade de comunicação. De acordo com Nascimento (2011), os surdos são considerados como deficientes e estão inseridos neste grupo social. Numa perspectiva sócio antropológica, os surdos detêm diferenças e não deficiência. Rodrigues e Quadros (2015, p. 72) enfatizam que deficiência e diferenças não são sinônimas, e asseguram que,

as diferenças não exaltam nem inferiorizam a ninguém, mas a maneira como são produzidas e historicamente significadas geram tensões sociais, as quais, muitas vezes, são responsáveis por excluir e por invisibilizar diversos grupos que não correspondem a determinados padrões valorizados num dado tempo e espaço sociais. (grifo do autor)

Assim, suas diferenças culturais e linguísticas podem ser aspectos que dificultam sua relação com a sociedade ouvinte. A comunicação e a linguagem se apresentam como ferramentas básicas para o estabelecimento de relacionamentos e vínculos. Porém, ao que se refere à comunicação com pessoas de duas línguas de modalidades diferentes, há possibilidade dessa relação ser inviável ou ocorrer de forma parcial.

Neste artigo, abordamos o sujeito ouvinte que é filho de pais surdos e trazemos os questionamentos: como é vivida a experiência do Coda? Como ocorre a formação deste sujeito, estando ele na interface de duas culturas? Como o Coda pode mediar as comunidades surdas e ouvintes? Visto que o sujeito Coda vive entre “dois mundos” (surdo e ouvinte). Este artigo tem como objetivo compreender o mundo vivido (Lebenswelt) do sujeito Coda que vive suas experiências no mundo surdo, ao relacionar-se com a cultura e comunidade surda e comunicar-se com línguas de sinais, ao mesmo tempo que convive com costumes, povos e línguas do mundo ouvinte. A partir da temática a ser destacada, o presente estudo mostra-se relevante para a Psicologia, para educação e para os estudos surdos, porque aborda aspectos subjetivos que são, ao mesmo tempo, de magnitude comunitária e cultural, podendo citar a formação da identidade do sujeito e a constituição de sua subjetividade, bem como a suspensão de sua cultura mãe para elaboração de outros saberes e hábitos. Além de contribuir com a construção de conhecimentos acerca da experiência de ser Coda, pretende-se possibilitar a descrição e compreensão do mundo vivido desse sujeito nas comunidades surdas e ouvintes.

Por consequência dessas indagações, a presente investigação também faz referência à inclusão do surdo na comunidade ouvinte e do ouvinte na comunidade surda, trazendo suas semelhanças e diferenças, focalizando nas dificuldades sobre os aspectos culturais e educacionais. Considerando que este estudo se fundamenta, de forma teórica e metodológica, na Fenomenologia, torna-se relevante pelo contato direto com o sujeito Coda e com os diferentes significados de suas experiências.

Para melhor compreensão do tripé conceitual do estudo, será apresentado de forma sucinta a cultura surda, a língua de sinais e o Coda, além de discorrer um pouco sobre a fenomenologia de Merleau-Ponty, como lente teórica e como proposta metodológica do estudo.

Surdez, Libras e identidade Coda

Considerando o sujeito ouvinte incluso na comunidade surda, torna-se essencial a reflexão em torno dos conceitos e características sobre surdez, cultura e identidade Coda. Trazendo os aspectos necessários sobre a surdez para a sustentação desse estudo, é importante uma elaboração contextual referente aos aspectos políticos, culturais e sociais. Desta forma, é importante abordar particularidades históricas da comunidade surda, pois “esta história reflete uma realidade social, política, histórica que também vai se refletir na história do Surdo através dos tempos. (MOURA, 2000, p. 15).

Uma opção frequente na Comunidade Surda é a comunicação bilíngue. Pereira (2017, p. 8) afirma que “O bilinguismo acredita que dominando a Língua de Sinais é mais fácil para o Surdo perceber estes aspectos na língua oral, já que ele tem exemplos na Língua de Sinais para se guiar”. Desse modo, entende-se que a aquisição da Libras é um aspecto importante para a fomentação cultural do sujeito surdo em sua comunidade. Strobel (2018) menciona que a cultura surda é a forma que o surdo compreende o mundo e o reforma com o objetivo de fazer com que ele seja acessível e habitável, adaptando-o com as suas percepções visuais, que possibilitam a definição das identidades surdas. Entende-se que a cultura surda engloba crenças, costumes, língua, ideais e hábitos da população surda. Cada cultura apresenta suas diferenças e emerge elementos importantes que os identificam como povo e comunidade; uma cultura se difere de outra pelo poder, pelas narrativas, pelas histórias e pelas particularidades.

Como em qualquer cultura, a Cultura Surda é o protótipo de comportamentos que envolvem sujeitos surdos nas vivências em comum. Essa cultura é um fator que identifica esses sujeitos, eles compartilham a língua de sinais, os valores culturais, o modelo de socializar, e esses refletem o que eles são. Na história cultural dos surdos há diversos tipos de artefatos culturais como língua, literatura surda, arte, políticas, experiência visual e esses aspectos constituem o sujeito. O surdo é o criador autêntico de seu modo de vida e de transformação. Perlin e Strobel (2014, p. 26) ressaltam que “para o sujeito surdo ter acesso a informações e conhecimento e para estabelecer sua identidade é essencial criar uma ligação com o povo surdo o qual usa a sua língua em comum: a língua de sinais”.

Essa língua é uma das características fundamentais da comunidade surda, por ser o método de comunicação que alcança a experimentação e sensações visuais do sujeito surdo. Trata-se de um facilitador para o surdo criar a sua identidade a partir de sua alteridade. A identidade surda é construída no seio da cultura surda, pois, para que o surdo se identifique, é necessário que haja o outro. Skliar e Quadros (2000, p. 46) afirmam que “o grupo social surdo trata como diferentes aqueles que desconhecem as experiências visuais vivenciadas pelos surdos como parte de sua cultura e formação de identidade”.

De acordo com Perlin (2010), na comunidade surda, é possível mencionar a identidade política, constituída a partir do encontro e de relacionamentos do sujeito surdo com outros surdos, construindo, assim, uma identidade concentrada no Ser Surdo. Já a identidade híbrida é constituída por sujeitos que nasceram ouvintes e ao longo da vida se tornaram surdos. A identidade surda de transição envolve os sujeitos surdos que, durante um período de vida foram mantidos fora da comunidade, e somente depois tiveram contato com a cultura surda. Silva (2009, p. 26) afirma que a transição é a passagem de um mundo que predomina a cultura ouvinte com representação da identidade ouvinte para a identidade surda com a experiência visual. Perlin (2010) aponta que a identidade surda flutuante caracteriza o sujeito surdo que não tem contato com a comunidade surda por escolha, vivendo de acordo com a cultura ouvinte, mas não deixando de lado particularidades e características surdas.

A língua de sinais é um fator determinante para a formação da identidade surda. Não somente por ser a língua natural dos surdos, mas por ser a partir dos relacionamentos estabelecidos e experimentados através da língua que emergem novas possibilidades que são facilitadoras de contato, diálogo, aprendizagem para o sujeito surdo, que até então só era possível a partir da língua oral. Assim, a identidade do surdo está ligada à língua de sinais, colocando-a como meio que promova a constituição do sujeito como falante e criador de sua própria subjetividade.

Pereira (2017) aponta que o maior agente de socialização do surdo se concentra na família. O desenvolvimento da personalidade do indivíduo, o favorecimento dessa inclusão e o afeto são deveres que facilitam a vida social do sujeito surdo. Portanto, o nascimento do Coda pode implicar no surgimento de um novo membro inclusivo naquela família. Sobre isso, Quadros e Massutti (2007, p. 246) ponderam que:

“a experiência de nascer, viver e crescer em meio a uma família de pais surdos faz com que a percepção das representações culturais, sociais, políticas e linguísticas sejam atravessadas por substratos filosóficos, éticos e estéticos marcados por tensões em zonas fronteiriças de contato.”

Geralmente, essa criança adquire a língua de sinais e se relaciona espontaneamente com a comunidade surda. Quadros, Martin e Pichler (2014) mencionam que, nos primeiros estágios da aquisição da linguagem de crianças bilíngues nativas, é possível que elas combinem as duas línguas. Essa observação propôs que as línguas dessas crianças retratam uma fusão, com fundamentos gramaticais de ambas as línguas. Para além da aquisição de duas línguas, o Coda desenvolve o bilinguismo bimodal, que retrata uma língua falada e outra sinalizada. Assim, a identidade do Coda se desenvolve numa interface da cultura ouvinte e surda, revelando a realidade de ser ouvinte, bem como as experiências visuais.

Frequentemente, o surdo identifica o ouvinte como alguém inerente às experiências visuais, que não sabe a língua de sinais e que não valoriza o sujeito surdo. Porém, o surdo adulto não retrata o filho ouvinte dessa forma, já que há interação desse filho com a comunidade surda e a língua de sinais. De acordo com Skliar e Quadros (2000, p. 44), ser filho ouvinte de pai e mãe surdos não se refere ao que a comunidade surda entende como ouvinte propriamente. Quadros (2017) enfatiza que uma das coisas mais importantes sobre o sujeito Coda é que, mesmo sendo ouvinte, ele herda a língua de sinais e a cultura surda.

Codas estão, permanentemente, vivendo entre fronteiras da língua, do idioma e da cultura. Suas sensações e experiências com o corpo das línguas orais e visuais remetem para o caráter tenso de ter que suportar o peso da idiomaticidade de duas línguas que são irredutíveis uma à outra e de dois mundos culturais que apresentam uma forte assimetria em suas relações de poder. (QUADROS; MASSUTTI, 2007, p. 248).

A partir do momento em que o Coda começa a interagir com os ouvintes, em geral, inicia a compreensão do estereótipo que a surdez está associada à deficiência. De acordo com Skliar e Quadros (2000), nesse momento, é possível que o filho de pais surdos passe por crises de identidade, pois é necessário o entendimento entre ser surdo com o ponto de vista surdo e ser ouvinte com o ponto de vista ouvinte. Por ser comum o Coda ser fluente nas duas línguas, tal bilinguismo pode vir a se tornar um problema de identidade.

Gradualmente, o Coda percebe as diferenças entre a cultura surda e a ouvinte, discernindo suas peculiaridades culturais, sociais e políticas. É importante para a formação do sujeito Coda que estabeleça suas origens surdas, mesmo na sociedade ouvinte.

Quadros (2017) afirma que é comum que o Coda exerça a função de mediador entre os pais surdos e a comunidade/cultura ouvinte. Desse modo, ele se percebe entre dois mundos que denotam valores, normas culturais e línguas distintas. Por conseguinte, o Coda, por ser bilíngue e bicultural, ainda que, em sua maioria, não conheça as técnicas e não tenha a formação de um intérprete profissional, geralmente, ele se torna um intérprete para os pais surdos, não só traduzindo a língua, mas explicando a cultura. Quadros e Massutti (2007, p. 248) afirmam que “sinalizar e falar são processos distintos que remetem à questão da responsabilidade da tradução e à responsabilidade de não tornar homogêneo o que é naturalmente tenso”. Não se trata somente de interpretação de duas línguas, mas de culturas.

A fenomenologia de Merleau-Ponty

Como esse estudo se propõe a compreender a experiência do mundo vivido do sujeito Coda a respeito das configurações do mundo surdo e ouvinte, faz-se necessário obter uma percepção em relação à temática que fundamenta teórica e metodologicamente este estudo. Portanto, serão elucidados, de forma sucinta, alguns elementos da fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty (1908-1961). Sua obra nomeada “Fenomenologia da Percepção” (MERLEAU-PONTY, 1999) inicia com questionamentos acerca de o que é Fenomenologia. Para ele, a fenomenologia é o estudo das essências, mas de uma essência necessariamente situada na existência, em sua facticidade. Esta é uma filosofia transcendental que para obter uma compreensão sobre as coisas, suspende-as. Desse modo, a fenomenologia apresenta o intuito de reaver o contato ingênuo com o mundo, compreendendo os significados que estão no mundo, na existência, na relação. Merleau-Ponty (1999, p. 1) afirma que seria uma “tentativa de uma descrição direta de nossa experiência tal como ela é”, portanto não se identifica com o objetivo buscar explicações e justificativas, mas de descrever a experiência, rompendo com a perspectiva de causa e efeito. Assim, o autor conduz o pensamento referente à negação das causalidades como múltiplas determinações sobre o homem como corpo ou psiquismo, não podendo fragmentar este homem como trechos que elucidam o social ou biológico ou psicológico. Para Fraga e Gomes (2019, p. 6), a fenomenologia em seu caráter existencial “busca a essência dos fenômenos na existência do ser em sua imersão no mundo, em movimento num continuum espacial e temporal, captando sentidos e significações em sua vivência concreta e cotidiana”.

A fenomenologia objetiva descrever o homem no mundo, investigando a experiência para compreender o mundo vivido. O qual é anterior à reflexão, considerando o pré-reflexivo como algo que está sempre ali, mas nem sempre se dar conta que ele está ali. Merleau-Ponty (1999) afirma que antes de qualquer análise que se possa fazer do mundo, ele já estava ali. Para se dar conta de que este algo está ali, é necessário um desprendimento do que é habitual, da atitude de familiaridade que se tem com o mundo. Esse mundo vivido, em seu caráter pré-reflexivo, não pode ser alcançado pela via de atitude natural, uma tentativa usual de interpretação e/ou explicação das coisas por métodos causais.

A experiência precisa ser investigada por uma atitude fenomenológica, a qual busca reduzir os saberes a fim de retornar ao fenômeno que aparece no momento. Esse retorno às coisas mesmas “é retornar a este mundo anterior ao conhecimento do qual o conhecimento sempre fala, e em relação ao qual toda determinação científica é abstrata, significativa e dependente” (MERLEAU-PONTY 1999, p. 4). O movimento de retornar às coisas mesmas, possibilita uma aproximação ao mundo vivido, e, a partir dessa aproximação, é possível construir, compreender e analisar o que aparece.

Retornar à experiência vivida é retornar ao mundo vivido, e mesmo que estes conceitos não signifiquem as mesmas coisas, o acesso ao mundo vivido dá-se por meio da experiência. Nesse sentido, o método fenomenológico busca o significado da experiência vivida. Fazendo referência ao Lebenswelt (mundo vivido), Moreira (2009a, p. 62) afirma que “O conceito de Lebenswelt inclui justamente o entrelaçamento da experiência objetiva com a subjetiva (...) O Lebenswelt é o segmento de existência mundana vivida pelo indivíduo em sua unicidade”. Portanto, a partir da visão de Merleau-Ponty acerca do mundo vivido, foi adotado uma lente inspirada em sua fenomenologia para a realização do estudo. Por conseguinte, este estudo propõe uma dinâmica de retorno à experiência vivenciada pelo sujeito Coda e seus significados diante de sua mundanidade, pois o compartilhar de suas experiências poderá possibilitar o acesso ao seu mundo vivido. Como ressalta Moreira (2004, p. 450), “a busca do significado da experiência será sempre o fim último da pesquisa fenomenológica. O que será diferente será o modo de compreensão deste significado”.

Metodologia

No sentido de identificar os objetivos apresentados, este estudo aportou no método fenomenológico, o mais notável foi a priorização da experiência e emergiu no intuito de tentar realizar uma descrição direta da experiência vivida tal como ela é, buscando não fornecer deferências ou explicações causais para o fenômeno em evidência. De acordo com Moreira (2009b) e Moreira e Cavalcante (2008), a teoria de Merleau-Ponty afirma que o homem é mundo e o mundo é homem, ou seja, há um enraizamento deste homem no mundo. Portanto, para que haja fidedignidade na descrição da experiência do Coda, foi necessário a utilização da redução fenomenológica com o intuito de que o pesquisador obtenha proximidade com a realidade do sujeito.

A pesquisa foi realizada com quatro Codas vinculados à Associação de Profissionais Intérpretes e Tradutores de Libras do Ceará (Apilce), que se configura como uma entidade civil, sem fins lucrativos, que objetiva resguardar os direitos dos profissionais intérpretes da Libras e assegurar à pessoa surda o direito de uso corrente da língua de sinais. O número de participantes (quatro) foi estimado pela quantidade de pessoas Codas que estavam disponíveis e se encaixavam aos critérios de inclusão: 1) Ter idade igual ou superior a dezoito anos, visto que a pesquisa visa estudar aspectos da vida adulta do sujeito Coda 2) Ser Coda 3) Estar vinculado à Apilce. Adotou-se como critérios de exclusão: 1) Não ter interesse em participar da pesquisa 2) Não ter disponibilidade de horário para entrevista.

A pesquisa ocorreu no período de fevereiro a junho de 2019. A partir das indicações, divulgou-se, de forma individual, a proposta da pesquisa, considerando a disponibilização de contatos pela Apilce. Posteriormente, os Codas foram convidados a entrevistas individuais que aconteceram na associação, em horário previamente agendado.

Para a coleta de informações, utilizou-se a entrevista semiestruturada, traçada a partir de perguntas que norteiam a fala do sujeito e que intenciona compreender o significado da experiência para ele. Dado que o caminho que se pretende seguir é, basicamente, a descrição da experiência, a entrevista tem sido o instrumento amplamente utilizado por pesquisadores fenomenológicos (MOREIRA, 2004, p. 450). Essa técnica possibilitou entrar em contato com as experiências dos participantes e, com autorização prévia, o conteúdo das entrevistas foi gravado e transcrito para que fosse possível o acesso ao texto nativo. Possibilitando, assim, uma melhor compreensão do fenômeno estudado.

Considerando a técnica escolhida, por ser um modelo semiestruturado, foram preestabelecidas duas perguntas disparadoras: “como é para você a experiência de ser Coda?” e “como você vê o Coda como mediador entre o mundo surdo e o mundo ouvinte?”. A análise das informações coletadas se utilizou do método fenomenológico. Moreira (2009b) afirma que a análise fenomenológica não necessita ocorrer de forma padronizada em todas as pesquisas. Uma vez que o fenômeno é mundano, o pesquisador lida com aspectos universais e singulares. Nesta pesquisa, seguimos os passos da análise fenomenológica propostos pela autora, acima citada: divisão do texto nativo; análise descritiva e “sair dos parênteses”. Para análise das entrevistas, seguimos os seguintes passos: a) As entrevistas foram transcritas em sua totalidade, considerando também a pontuação de aspectos como pausas, risadas e choros. O processo de transcrição fora realizado pela pesquisadora; b) Em seguida ocorreu a Análise descritiva, identificando os temas que surgiram nas entrevistas, com o objetivo de descrever de forma categorizada o que emergiu fenomenologicamente nas entrevistas realizadas. Neste passo, é utilizada da redução fenomenológica que, aos suspender os a priori, os pesquisadores colocam entre parênteses seus pressupostos, preconceitos e compreensões prévias para se aproximar ao máximo possível do fenômeno que emerge. c) Por fim, “sair do parêntese”, que se configura em retomar os saberes científicos a fim de dialogar com a experiência do entrevistado vinculado ao embasamento teórico que amparou este estudo.

De acordo com Moreira e Cavalcante Junior (2008), trata-se de uma metodologia intimista que utiliza trechos de fala em um processo de análise que, inspirada na fenomenologia de Merleau-Ponty, em vez de se buscar a essência do fenômeno, tem como objetivo compreender os diferentes significados da experiência vivida. Através da redução fenomenológica, o pesquisador “assume sua posição mundana, evitando o pensamento de sobrevoo na forma de uma suposta neutralidade científica” (Moreira & Cavalcante Junior, 2008, p. 250).

Acresce que a investigação foi pautada na Resolução nº 510 de 2016, que dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais do Conselho Nacional de Saúde (CNS, 2016), portanto, o anonimato dos participantes foi garantido mediante a utilização de nomes fictícios: Alberto, Bárbara, Carol e Débora. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade de Fortaleza, conforme o Parecer no 3.215.628.

Resultados e Discussão

A fim de realizar a análise descritiva, foram identificadas as temáticas que surgiram ao longo das falas. Em seguida, esses temas foram reunidos em duas categorias fenomenológicas acerca do mundo vivido Coda: a) A responsabilidade de ser Coda; b) A experiência entre os dois mundos

A responsabilidade de ser Coda

A responsabilidade de ser Coda surgiu como uma temática enfática na pesquisa, sendo identificada como algo que os entrevistados percebem desde a infância. Bárbara descreve que, ainda pequena, sentia essa responsabilidade, mas não a compreendia bem. Conta que, sempre, seus pais foram muito dependentes dela para a comunicação com ouvintes e que, desde a infância, resolve problemas de adultos: “Parece que eu tive que pular a minha infância, tive que pular a minha adolescência, porque veio de maneira muito precoce essa responsabilidade, eu não sei até a que ponto isso é bom ou é ruim”. Segundo Silva (2016), a responsabilidade de ser Coda permeia o mundo vivido do filho ouvinte de pais surdos e está ligada à circunstância de que os Codas podem aprender as duas línguas desde uma idade bem jovem, o que possibilita a adoção da interpretação como uma responsabilidade para o sujeito.

Carol relata que é necessário ter essa responsabilidade em mente, visto que, diariamente, precisa resolver questões com sua mãe. Entretanto, ela não considera que assume um papel de mãe, e sua mãe assume um papel de filha, e, afirma: “Eu sei que nasci com essa responsabilidade (...) sempre tive que ajudar meus pais”. Comenta, inclusive, que houve momentos em que precisou faltar provas, em sua escola, para colaborar em atividades de seus pais. Moroe e Andrade (2018, p. 12) sugerem que a intermediação de idiomas nessas famílias é imposta aos filhos Codas, desde muito cedo, como tem sido exposto pelos participantes deste estudo. Desse modo, é possível perceber que diante da experiência de ser Coda, a responsabilidade é uma característica que surge para os participantes do estudo, ainda crianças. Assim, compreende-se que, a este serviço de tradução, compete um nível de responsabilidade alto, considerando a tradução como um aspecto importante para a comunicação dos pais surdos com o mundo ouvinte. Nesse sentido, Silva (2016, p. 121) descreve “Como uma responsabilidade dada aos filhos ouvintes pelos pais surdos. Essa relação de intermediar conversas em vários contextos fazia com que esses filhos vivenciassem experiências culturais em zonas de fronteiras: línguas diferentes em espaços culturais diferentes”.

Ainda sobre esta temática surge a ideia de amadurecimento. Débora afirma que, diante da responsabilidade de ser Coda, é necessário ter maturidade para compreender alguns aspectos familiares: “essa maturidade vem mais cedo e é colocada numa situação de responsabilidade, tem que ter a maturidade para entender certas questões”. Do mesmo modo, Bárbara afirma que o ponto positivo de assumir a responsabilidade de ser Coda é esse processo de maturação: “(...) querendo ou não a gente acaba tendo uma maturidade maior e precoce do que é viver no mundo, é tipo, você vai e aprende com a vida, e isso me acrescentou muito como pessoa”.

Alberto concorda que o sujeito Coda passa a ter responsabilidades muito cedo e conta que é como se não houvesse escolha devido ao contato com a língua desde cedo, adquirindo a responsabilidade de mediar. Ele afirma:

“A gente passa a ver o mundo de uma outra maneira, passa a ter uma sensibilidade maior, de uma forma particular, peculiar, o caráter da gente, porque a gente tem aquele poder de empatia desde muito cedo, de poder se colocar no lugar do outro, isso nos traz uma visão mais geral, mais ampla das coisas, e por esse fato de eu ter essa responsabilidade com meus pais, eu comecei a trabalhar muito cedo. (Alberto)”

Desse modo, entende-se que o mundo vivido do sujeito Coda se constitui atravessado por responsabilidades desde a infância. Ser intérprete e se colocar como intermédio entre o mundo surdo e ouvinte exige do Coda seu desenvolvimento diante da necessidade de assumir, algumas vezes, de forma precoce um papel.

Ao falar sobre a estrutura familiar acerca do espaço em que o sujeito Coda está inserido, foi possível perceber, nos relatos, uma nova configuração de papéis na relação entre pais e filhos. Todos os entrevistados apontaram que, desde a infância até o presente momento, precisaram atuar de forma diferente com seus pais em relação às famílias de ouvintes.

Os participantes contam que, desde muito cedo, assumem funções que, naturalmente, deveriam pertencer aos pais. Quadros (2017, p. 64) ressalta que “Nascer em uma família surda em meio a uma sociedade de ouvintes é o acontecimento que legitima a existência dos Codas, como uma geração única”. Alberto afirma que “muitas das vezes, os papéis se invertem, a gente passa a ser os pais dos nossos pais e os nossos pais passam a ser os nossos filhos”. Em seguida, complementa dizendo que, “mesmo enquanto criança, precisou assumir a função de levar seus pais ao médico, ao banco ou, até mesmo, a participar da reunião de pais e mestres na escola para interpretar o contexto educacional”. Moroe e Andrade (2018) justificam que isso que ocorre com os Codas é uma inversão de papéis, pois, a criança sente-se responsável pelos pais, ao mediar a comunicação, ao mesmo tempo que os pais esperam essa atitude de responsabilidade para com eles.

Na mesma direção de Alberto, Carol também afirma ter assumido papéis como esses durante a sua vida. Entretanto, conta que houve momentos em que questionou essa inversão de funções com seus pais comparando-se aos seus colegas ouvintes:

Teve vezes que eu cheguei para os meus pais e disse: Mãe, por que é que não é assim aqui? Por que você não me trata dessa maneira? Por que você não vai para reunião da escola? As vezes a gente acha que é porque eles não ligam, mas eu percebi que não. (Carol)

Já para Bárbara, essa incorporação de papéis é um grande desafio a ser enfrentado pelo Coda, principalmente quando ainda criança: “Imagina eu com sete anos ter que ter uma responsabilidade de passar a informação de um médico para minha mãe ou para meu pai, e ter que levá-los ao médico, porque ela não conseguia se comunicar com os ouvintes do hospital”. Diante do exposto, entende-se que o papel incorporado pelo Coda está diretamente vinculado à responsabilidade, um termo já utilizado neste estudo como categoria. “Logo, intermediar a conversa entre os pais e outras pessoas, para a maioria dos filhos de surdos, os fez assumir um papel, uma função que fugia do contexto infantil” (SILVA, 2016, p. 120).

Débora descreve que, no contexto de sua família, realizava atividades que não eram comuns para a realidade de uma criança, acompanhando seus pais em todos os lugares. Porém, para além da função de acompanhá-los, a participante afirma: “Várias vezes quem trazia a informação, quem mostrava o certo e o errado era eu e não os meus pais”. Portanto, infere-se que apresentar o contexto social ouvinte para o sujeito surdo também perpassa pelo papel que o Coda exerce.

Para Quadros (2017), a diferença entre os filhos surdos de pais ouvintes e os Codas é que o filho de surdo carrega consigo a língua e a cultura surda concomitantemente com a língua e a cultura ouvinte. Neste sentido, a autora afirma: “Os Codas são como quaisquer outros filhos, que, independentemente de suas raízes, vão precisar lutar e conquistar seus espaços, com diferentes condições financeiras, com diferentes aspectos interpessoais, sociais e emocionais, com diferentes etnias e gêneros”. (QUADROS, 2017, p. 68).

As respostas apresentadas demonstraram que a mediação, entre surdos e ouvintes, correspondia a uma de suas principais funções. Bárbara afirma que se vê como mediadora, mas, para além das questões comunicativas, é intermediadora entre as duas culturas. Carol descreve que o Coda é o intérprete do âmbito familiar durante o dia inteiro, citando que a tradução é algo automático para ela: “24 horas por dia eu vou ter que ser mediadora, porque é natural, nosso consciente já está natural”. Nesse contexto, Merleau-Ponty (1999) considera que, diante da habitualidade, a movimentação do corpo ocorre de forma natural, sem necessitar de um esforço abundante. A mediação, apontada por Carol, é posta como um saber de familiaridade. Portanto, quando Carol se refere a um consciente já naturalizado, é possível pensar nessa habitualidade como um ajustamento de seu corpo no processo de mediação em seu contexto familiar. Quanto a isso, Reynolds (2013, p. 175) afirma que “para Merleau-Ponty existe um tipo de inteligência do corpo no modo como se ajusta ao ambiente”, ao que se pode inferir que a experiência do sujeito Coda vai se tornando familiar.

Alberto fala que já houve alguns dias em que ele não queria mediar situações e, nesses momentos, falava para seus familiares que não sabia sobre aquilo ou que estava com preguiça, mas afirma que é como se o Coda não tivesse escolha, pois desde pequeno ele tem contato com a língua de sinais e é ele que está ali presente, mais próximo dos pais. Então, não há como fugir da mediação: “Entre o sujeito surdo e o sujeito ouvinte, você está ali no meio. Você sabe falar o Português e a Libras, então, querendo ou não você meio que é obrigado a ser o mediador entre ambas as línguas”. Viver entre esses dois mundos, também, implica em demandas atuais desse sujeito. A experiência do Coda aponta esse papel de mediador, contudo, o seu mundo vivido também é atravessado por outros fatores.

Diante dos discursos apresentados, é possível identificar a mediação como uma característica do Lebenswelt do sujeito Coda, considerando que o mundo vivido vincula o entrelace da experiência subjetiva e a experiência objetiva, possibilitando que o sujeito vivencie a unicidade em sua mundanidade, que ocorre na interface dos dois mundos. Portanto, o que os participantes apontam envolvem questões comuns, porém, cada sujeito possui uma vivência singular. Neste sentido, Moreira (2009a, p. 62) afirma que “Os conteúdos podem variar de uma sociedade para outra, mas a forma de Lebenswelt é única. Sempre há um sentido comum, qualquer que seja o seu conteúdo cultural”. Existem sentidos comuns que emergem da experiência vivida do sujeito Coda na mediação entre o mundo ouvinte e o mundo surdo. Por outro lado, há uma vivência desse sujeito que precisa ser levada em consideração. Dado que, as experiências diante do mundo vivido do Coda perpassam um lugar comum de ser Coda entre os Codas, mas se sobressai a partir do contato de forma singular com os mundos. É possível afirmar que quanto mais o Coda se relaciona com a comunidade e cultura surda, mais a sua experiência se incorpora com os sentidos surdos e suas vivências passam a ser habituais. Vale ressaltar que neste estudo todos os participantes tornaram-se intérpretes de Libras com bastante envolvimento na comunidade surda, mas, pode ocorrer do Coda optar por não se envolver no mundo surdo, o que refletirá em suas experiências.

Ao falar sobre mediação, Débora diferencia o ser intérprete e o ser mediador. Afirma que, mesmo sendo intérprete, quando está com seus pais, independente do contexto, não atua como uma intérprete profissional, mas como uma mediadora. Afirma perceber essa diferença, pois é uma relação que lhe dá liberdade para intervir na comunicação e se percebe envolvida emocionalmente com a situação:

Por ser em um contexto familiar, com meus pais, eu sabendo da vida deles, acontece a mediação, eu considero principalmente porque eu estou envolvida. Poderia ser uma mediação e eu não estar envolvida, mas não é porque eu não sei como me portar ou agir, mas por estar envolvida no contexto, eu intervenho, tomo decisões juntamente com eles (Débora)

No contexto da mediação, Quadros (2017, p. 70) afirma: “Os Codas frequentemente acabam desempenhando a função de mediadores entre seus pais surdos e o mundo ouvinte. Isso faz com que eles se percebam nessa posição entre dois mundos, que apresentam línguas, valores e normas culturais diferentes”. Portanto, é possível compreender que os Codas podem ocupar um espaço que se encontra nesses “entrelugares”, sendo atravessado por questões ouvintes e surdas. Mesmo este lugar sendo comum para os Codas, cada mundo vivido surge também de forma subjetiva, sendo intimamente atravessado pelo mundo.

A experiência entre os dois mundos

Durante a fala dos participantes, foi possível identificar momentos em que eles se referiam à experiência de ser Coda como algo diferente, afirmando que, por participarem do mundo ouvinte e, ao mesmo tempo, do mundo surdo, experienciam um lugar que se encontra entre estes. Apesar do Coda ser ouvinte, ele é transpassado pela experiência da comunidade surda. Neste sentido Moroe e Andrade (2018) afirmam que ao se compreender as experiências de vida dos Codas percebe-se a forte conexão que ele mantém com a comunidade surda. Desse modo, é possível pensar no que se refere ao mundo vivido dos sujeitos Codas, como uma experiência singular, não vinculada apenas às suas vivências de forma dicotômica em cada um dos mundos dos quais eles fazem parte, mas considerando a percepção de um lugar que se encontra mediante às zonas de contato, em interface de saberes mútuos.

Bárbara descreve que no início de sua infância foi difícil compreender as diferenças culturais, em especial quando iniciou a escola, pois acreditava que, como a sua, todas as famílias tinham integrantes surdos e usavam a língua de sinais: “são duas realidades totalmente diferentes, e foi aí que eu vim entender que a comunidade ouvinte tem uma tradição, costumes totalmente diferentes da comunidade surda que também tem a sua tradição e seus costumes”. A participante complementa que, hoje, compreende ser preciso se controlar para agir conforme a comunidade que participa: “agora você está no meio da comunidade surda, você precisa se comportar, falar e se expressar de uma maneira que a comunidade surda vá entender; e quando estou na comunidade ouvinte, da mesma forma”. Acerca do processo da linguagem, Quadros (2017) ressalta que é necessário que a mente bilíngue ignore o vocabulário e a gramática da língua que não está sendo utilizada enquanto ocorre a elaboração dos enunciados na língua-alvo. Entende-se que algumas diferenças culturais convocam o sujeito surdo a agir de forma específica diante de cada comunidade.

Débora afirma que as diferenças desses grupos superam os aspectos linguísticos, surgindo também como aspectos cultural e social: “É diferente porque a percepção deles, em algumas situações, é completamente visual e não passa pelo som, então como a percepção é visual, as coisas têm diferença de tempo”. De acordo com os entrevistados, o acesso à informação é um ponto importante que compõe os fatores que fomentam a diferença cultural entre os grupos.

É totalmente (diferente) de uma pessoa ouvinte, porque todo dia a gente escuta algo, tem informações e eles não têm . . . Todos os dias eu tenho que reservar uma parte do meu tempo para fazer algo com ela, tem lugares que não tem acessibilidade, não tem intérprete, e quando tem, não é intérprete, eles pegam alguém que sabe Libras para tentar, mas a comunicação não é objetiva. (Carol)

Verifica-se que a percepção de mundo do sujeito surdo perpassa por uma modalidade diferente do ouvinte, o surdo capta o mundo a partir da percepção visual (visualidade). Porém, o Coda não se encaixa nem na percepção do ouvinte e nem na do surdo, essas perspectivas se trespassam. Mediante o contato com ambas as culturas, desenvolve também a modalidade visual de se comunicar. Sobre a aquisição linguística do Coda, Oliveira (2018, p.46) declara “A criança vai adquirindo livremente e aparentemente sem esforço duas línguas de modalidades diferentes, fato que contribui para o seu desenvolvimento como um todo, pois ela adquire prematuramente habilidades para lidar com situações linguísticas, sociais e culturais diferentes”.

Acerca da acessibilidade comunicacional, Débora comenta que os ouvintes “não têm tempo” ou não se disponibilizam para explicar as informações aos surdos e, muitas vezes, não há disponibilidade em Libras. Então, o surdo compreende os conteúdos “aos pedaços”. Porém, com o avanço da tecnologia isso tem diminuído. Com o surgimento de acessos à informação a partir das novas tecnologias, como a internet em telefonia móvel, Bárbara afirma que a geração atual de surdos tem mais acesso à informação que a geração de seus pais, por isso, eles conseguem solucionar questões de forma mais simples. Entretanto, esse fator da “desinformação” constata “a necessidade de se reunir com outros surdos”, mas não é o único. Débora aponta que a agregação do povo surdo é um fator cultural da comunidade. Nesse sentido, Quadros (2017, p. 66) considera que “as vivências nas associações de surdos e nos espaços compartilhados com surdos, conforme são mais positivas, se integram às identidades desses filhos de surdos”.

Sobre viver no entre mundos, Bárbara afirma que, inicialmente, foi perturbador, visto que não conseguia compreender ou se identificar, exclusivamente, em um dos mundos. Porém, com o passar dos anos, foi se adaptando com essas duas culturas, o que foi fundamental para o seu desenvolvimento posterior como uma profissional intérprete. A participante cita que se sente bem mais à vontade para utilizar a língua de sinais, principalmente quando está em casa e pode relaxar, mesmo que suas filhas e esposo sejam ouvintes e que saibam Libras: “Hoje eu utilizo muito mais a língua de sinais dentro de casa, mesmo tendo pessoas ouvintes, como meu esposo e filhas, sinto que uma conversa, uma discussão, uma briga se torna bem mais fácil de conversar em Libras do que no português” (BÁRBARA).

Alberto afirma que viver neste espaço atravessado por esses dois mundos possibilitou um melhor desenvolvimento empático em relação ao outro, o que foi importante para sua escolha profissional como intérprete. Considerou que se sente agraciado: “Me sinto presenteado, de verdade, por conta de viver com as duas línguas na mesma família, poder conviver em duas culturas diferentes numa mesma casa, numa mesma família, por aprender a Libras tão cedo e por precisar ter responsabilidades, isso me trouxe grandes aprendizados de maneira geral”. Ainda em relação ao convívio com os familiares surdos, Carol conta que a escolha de sua profissão, como intérprete, surgiu a partir do interesse em colaborar e cuidar do outro, afirmando que “a gente se interessa em ajudar outros surdos que não sejam da família”.

Sobre a experiência de ser Coda, Débora conta que não sabe diferenciar o ser e o não ser. Relata: “Eu não sei ser Coda, a minha vida é ser Coda! [...] então pra mim é uma experiência única e eu não sei comparar de fato”. Nesse sentido, a fenomenologia a partir de Merleau-Ponty compreende o mundo como o meio natural e o campo de concepções e percepções do homem, distanciando-se de um mundo referente a um objeto composto pelos preceitos desse homem. Quando Débora afirma que sua vida é ser Coda, fala de uma experiência uno de viver entre esses mundos de forma natural, não sabendo explicar como é não viver nesta interface. Nota-se que não há uma separação de homem interior e homem exterior, assim, não há uma verdade que habite neste homem, uma vez que é no entrelaçamento com o mundo que o homem se conhece. O mundo é uma representação do que somos, sem a dicotomia de o que é homem e o que é mundo, mas, ao mesmo tempo, sendo uma única luz participando de um Uno, como reflete Merleau-Ponty (1999, p. 9):

O mundo que eu distinguia de mim enquanto soma de coisas, ou de processos ligados por relações de causalidade, eu redescubro “em mim” enquanto horizonte permanente de todas as minhas cogitações e como uma dimensão em relação à qual eu não deixo de me situar.

A experiência de ser Coda perpassa tanto uma experiência comum como uma experiência particular, em especial porque envolve a relação com a comunidade surda, apropriar-se da Língua de Sinais, ter contato com a cultura, ter uma função na comunidade; além da experiência subjetiva de cada sujeito que precisa ser levada em consideração.

Considerações finais

A partir do estudo, entende-se que existe uma responsabilidade que permeia a experiência do Coda e que o convida a um processo de maturação, mesmo diante de uma idade jovem. Considerando que existe um modo de perceber o mundo diferente, tanto da comunidade surda como da comunidade ouvinte, sendo atravessado por aspectos auditivos e visuoespaciais, o que fomenta uma mediação habitual entre os mundos diante de seu Lebenswelt. Assim, é possível dizer que ser Coda pode demandar um desenvolvimento diante da necessidade de assumir papéis.

Acerca das experiências no contexto familiar, compreende-se que existem momentos que há inversão de papéis em relação a pais e filhos. O sujeito Coda, por ser ouvinte, adentra no mundo dos ouvintes de forma mais natural e inclusiva. A interpretação e mediação das informações podem ser apontadas como funções que perpassam o papel de ser Coda.

No mundo vivido do sujeito Coda, não há uma separação entre o que seja exterior e interior ou social e individual, visto que homem e mundo se constituem mutuamente. Do mesmo modo, não há como separar o sujeito Coda em mundo ouvinte e mundo surdo, pois ele se constitui entre esses dois mundos. Em outras palavras, trata-se de uma experiência perpassada pelos dois mundos. Ainda que ele se posicione de forma específica em cada comunidade em que participa, a cultura surda e a cultura ouvinte o atravessam, fazem parte do mesmo tecido que compõem os significados da experiência Coda. É preciso considerar que se o Coda estiver em um contexto surdo, partilhando questões culturais e identitárias, ele ainda continuará a ser um ouvinte, ao mesmo tempo que, em um contexto ouvinte, ele ainda terá suas experiências surdas. Os dois mundos, tidos como diferentes, constituem o solo da experiência do sujeito Coda e parece não haver uma cisão clara entre eles.

Nota-se que, apesar das dificuldades encontradas pelos entrevistados diante da experiência de ser Coda, como o processo de aquisição da linguagem, viver nas interfaces culturais e a necessidade precoce de amadurecimento, há satisfação nesta experiência. A pesquisa aponta que ser Coda pode sensibilizar o desenvolvimento de empatia em relação ao outro, sendo facilitador para o interesse de colaborar com surdos não pertencentes às suas famílias. Nessa perspectiva, o sentimento de empatia com essa comunidade surge como incentivo para a escolha profissional dos participantes como intérpretes da Libras.

Referências

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