ARTÍCULOS Y ENSAYOS
Rodas culturais, resistência e juventudes:reflexões político-pedagógicas
Rodas Culturais, resistencia y juventud:reflexiones político pedagógicas
Rodas Culturais, resistance and youth:political-pedagogical reflections
Rodas culturais, resistência e juventudes:reflexões político-pedagógicas
Estudios sobre las Culturas Contemporáneas, vol. XXV, núm. 49, pp. 67-87, 2019
Universidad de Colima

Recepción: 30 Julio 2018
Aprobación: 19 Octubre 2018
Resumo: O artigo apresenta resultados de pesquisa empírica que estudou as práticas culturais juvenis em um contexto de favela, especificamente as rodas culturais realizadas pela comunidade de Manguinhos, durante os anos de 2016 e 2017. Por meio de uma estratégia metodológica etnográfica “presencial” e “on-line” analisamos a dimensão prático-fenomenológica das rodas com o objetivo de conhecer e descrever os elementos constitutivos dessa prática e refletir sobre seus desdobramentos político-pedagógicos. Os resultados apontam a potencialidade da mediação das rodas culturais tanto para desenvolver processos de subjetivação coletiva, quanto para se constituir como espaços de sociabilidade autônoma, onde práticas político-culturais de resistência acontecem, num marco de produção de valores e de agência das juventudes para as juventudes.
Palavras-chave: juventudes, rodas culturais, práticas de resistência, favela, produção de subjetividades.
Resumen: Este artículo presenta resultado de una investigación empírica que estudió las prácticas culturales juveniles em un contexto de favela, específicamente las rodas culturales realizadas por la comunidad de Manguinhos, RJ, durante 2016-2017. A través de una estrategia metodológica etnográfica “presencial” y “on-line” analizamos la dimensión práctico-fenomenológica de las rodas con el objetivo de conocer y describir los elementos constitutivos de esta práctica, y reflexionar sobre su carácter político-pedagógicos. Los resultados indican la potencialidad de la mediación de las rodas culturales tanto para desarrollar procesos de subjetivación colectiva, como para constituirse como espacio de sociabilidad autónoma, donde suceden prácticas político-culturales de resistencia en un marco de producción de valores y agencia de las juventudes para las juventudes.
Palabras clave: Juventudes, Rodas culturales, Prácticas de resistencia, Favelas, Producción de subjetividades.
Abstract: This article presents results of a field research that dealt with youth cultural practices in a favela context, specifically the rodas culturais held in the “PAC” of Manguinhos, during 2016 and 2017. Through a “face - to - face” and a on-line ethnographic methodological strategy we analyzed the practical-phenomenological dimension of the rodas aiming at knowing and describing the constitutive elements of this practice and reflect on its political-pedagogical unfolding. The results point to the potential of the rodas mediation both to develop processes of collective subjectivation and to constitute spaces of autonomous sociability, where political and cultural practices of resistance take place within a framework of production of valuesand youth agency for youths.
Keywords: Youth, Rodas Culturais, Resistance Practices, Favela, Production of subjectivities.
Neste artigo apresentamos resultados de pesquisa empírica em que investigamos as práticas juvenis em um contexto de favelas, especificamente, as rodas culturais de Manguinhos, RJ (MGH). O trabalho de campo teve início em maio de 2016, quando por meio de um Projeto de Pesquisa-extensão1, conhecemos um grupo de meninos e meninas moradores de MGH, adolescentes jovens entre 15 e 19 anos de idade, estudantes do ensino médio de colégios estaduais localizados nessa área urbana. A partir desse projeto interagimos com os/as jovens em diferentes espaços de sociabilidade, fato que nos permitiu conhecer diferentes práticas, espaços e dinâmicas de recriação social e cultural. Dessa forma, chegamos às rodas culturais.
As rodas culturais são eventos públicos, surgidos recentemente na cena carioca e ligados ao movimento hip hop. A modalidade de roda cultural implica a ocupação de locais públicos a partir da confluência de diferentes artistas de rua, principalmente relacionados às manifestações do hip hop (rap, break, grafite, batalhas de rima, freestyle, discotecagem, skate, poesia). As rodas em MGH chamaram nossa atenção porque convocavam um número expressivo de jovens da comunidade, e os/as meninos/as do projeto gostavam de ir “pra roda”. Com isso, instigou-nos conhecer esses espaços de sociabilidade e de produção cultural, indagando principalmente sobre seus desdobramentos políticos, pedagógicos.
Sabíamos a importância de conhecer o cotidiano das rodas culturais em MGH, ou seja, descrevê-las nos seus aspectos fenomenológicos: como funcionam, quem participa, como se organizam. E algumas questões foram surgindo: o que se faz nas rodas? , que princípios e regularidades estão presentes na prática da atividade?; e a partir desses elementos, enfim, indagar sobre as dimensões culturais, subjetivas, identitárias e educacionais, que as perpassam.
Como pano de fundo, partimos da compreensão de que histórica e geopoliticamente América Latina tem uma trajetória marcada por processos de desigualdade e segregação social (desde a era colonial até os dias atuais) que repercutem singularmente nos grupos juvenis. Nesta mesma perspectiva, Santos (2017) afirma que a partir do fim do ciclo progressista no Brasil, vem se consolidando o fascismo social - reprimido naquele ciclo - como forma instituída de organização político-cultural, inerente a uma história sociopolítica colonialista, que não consegue romper com regimes culturais e epistêmicos eurocêntricos, machistas, racistas e elitistas. Segundo o autor, o golpe parlamentar realizado sobre o governo da presidente Dilma Rouseff em 2016, é expressão desse retrocesso na configuração do poder mundial, com um boicote à articulação geopolítica e econômica entre os países em desenvolvimento representados pela imagem do Sul Global. Desde então, os investimentos diretos do Estado nas políticas sociais vêm anualmente sofrendo um duro corte de verbas com sua máxima expressão na Proposta de Ementa Constitucional que congela os gastos públicos nestes setores pelos próximos vinte anos. Ou ainda pela tentativa de desmonte de inúmeros projetos de parceria do tipo horizontal sul-sul.
Nesse complexo contexto de acirramento das reformas neoliberais, golpes políticos, operações anti-corrupção midiáticas e deteriorização da qualidade de vida dos setores populares, algumas juventudes, reconhecendo-se excluídas, periféricas e silenciadas, se aventuram, por meio de diferentes estratégias, a “levar pra frente” seus projetos de vida e assumem a identidade “de ser favela” como forma de posicionamento nas lutas políticas. Favela é um termo historicamente em disputa. A grande novidade é a sua apropriação pelos movimentos populares como expressão de um modo/condição de vida próprio da periferia urbana das grandes cidades latino-americanas. Neste sentido, o movimento Hip hop parece haver contribuído enormemente com esta politização da juventude nas favelas. Por outro lado, as diferentes e múltiplas ações juvenis complexificam as leituras sobre os percursos que as resistências das novas gerações vêm assumindo nos últimos anos, e interpelam as abordagens de pesquisa para ampliar a ressonância sobre diversos caminhos de “como” e “para quꔓser jovem” hoje.
Pensando as resistências na cultura
Com base nos estudos culturais, compreendemos as práticas sócio-coletivas das juventudes como experiências de vida integrais, nas quais narrativas e ações se entrelaçam na construção de subjetividades, construção que necessariamente supõe a presença do outro, de uma alteridade, ou seja, o estabelecimento de vínculos mediados por relações de afetividade, sociabilidade e poder.
Giroux (1999) elabora um conceito de pedagogia intimamente relacionado à cultura e à política. Para o autor as práticas pedagógicas são formas de fazer política com a cultura, dado o fato de estarem sempre implicadas “na construção e organização de conhecimento, desejos, valores e práticas” que transpassa diferentes linguagens, atividades e espaços sociais (Giroux, 1999, p. 14). Assim, assumimos teoricamente que os/as jovens, no desenvolvimento das suas práticas culturais, realizam uma dupla agência, que é ao mesmo tempo pedagógica e política. Por um lado, a dimensão pedagógica refere-se à “criação de representações simbólicas e de práticas nas quais estas representações estão engajadas”, o que supõe “preocupação particular com a análise de representações textuais, auditivas e visuais, e com a maneira como essas representações estão organizadas e regulamentadas dentro de arranjos institucionais específicos” (Giroux, 1999, p. 15). Por outro, a especificidade da dimensão política se assenta no desenvolvimento de um processo que tem como horizonte “mobilizar conhecimentos e desejos que possam conduzir à minimização do grau de opressão na vida das pessoas” (Giroux, 1999, p. 15). Tendo em vista essa perspectiva crítica, nos aliamos a Freire (1978) em sua aposta nos processos educativos que valorizam o saber popular e promovem modalidades dialógicas “não formais” para o desenvolvimento do trabalho pedagógico.
Assim, aderimos a uma visão sociológica da cultura para abordar questões e problemáticas de educação, na qual os sujeitos, na sua ação desenvolvem diferentes lutas para definir o possível, o acionável, o imaginável, o sonhável, o proibido, o temido, se posicionar e se constituir em relação às estratégias de poder que pretendem governar sua vida e seus corpos. Por um lado, a cultura colonialista/erudita é a que se faz a partir dos centros de poder estatal com recursos e mecanismos de legitimação de saberes, alianças na produção discursiva das mídias, classes e grupos representados nas esferas de governo, etc. Por outro, a cultura inferiorizada/popular é a que se exerce na militância micropolítica do dia a dia, nas salas de aula, na sociabilidade comunitária, nas ruas, nos espaços institucionais ou informais onde as micro-relações cotidianas (que transcendem o imposto, o naturalizado, o macro-determinado) vão agindo estrategicamente e “construindo um mundo dentro do mundo” (Gallo, 2003, p. 78). Neste sentido, o caráter inferiorizado/popular, atrela uma força de resistência potencialmente transgressora: uma vontade de se aventurar na transformação/subversão da ordem estabelecida.
Castro (2009), com base nas formulações de Foucault, explica que as subjetividades são “efeitos de uma construção”, dinamizadas pelas diferentes práticas de sociabilidade e de produção de cultura, nas quais vão se construindo e tensionando os sentidos sobre o que somos, o que queremos ser, como nos definimos a nós mesmos, como atuamos, que desafios e projetos colocamos em nossos horizontes, as chamadas “formas restritas dos modos de subjetivação”. As práticas de sociabilidade e criação de cultura que as juventudes dinamizam em diferentes instâncias correspondem a esta forma de subjetivação, pois são os próprios jovens, a partir de suas mágoas, desejos, problemas e incertezas, que podem problematizar a realidade e atuar para transformá-la. Nessa perspectiva, os corpos, atitudes, comportamentos, valores, discursos, projeções são também territórios em luta, dimensões materiais e simbólicas nas quais processos de poder e de resistência ocorrem.
Jovens como sujeitos sociaise agentes de poder
Os estudos sobre juventude nas últimas décadas têm evidenciado contextos que nos permite entendê-la na sua complexidade. Concordamos com Charlot (2000 citado em Dayrell 2007), que a condição de jovem como sujeito social supõe compreendê-lo como ser humano aberto a um mundo historicamente construído, que é portador de desejos e motivações e que vivencia sua trajetória nesse mundo a partir de relações com outras pessoas, também sujeitos.
As pesquisas sobre a juventude sofreram diferentes redirecionamentos no último século. Zluan e Raitz (2014), na reconstrução histórica dos estudos sobre juventudes no Brasil, indicam que é nos anos 1990 que o “jovem” começa a ser estudado como “protagonista da sua própria história”, sendo anteriormente reconhecido só como agente associado a “problemas” e “desvios”. As chamadas “pesquisas tradicionais”, com um “olhar adulto” sobre o jovem têm reafirmado o caráter transitório do “ser jovem”, no sentido de um sujeito que “virá a ser”, sem reconhecer as prioridades, projetos e vivências concretas dessa etapa de vida (Zluhan e Raitz, 2014).
Reguillo (2000:36) situa a virada construtivista e hermenêutica sobre os jovens da América Latina entre os anos 1980 e 1990, quando passam a ser pensados como sujeitos de discurso por estarem “capacitados” para desenvolver uma construção objetivante sobre o mundo, com recursos e competências para se apropriar e mobilizar processos sociais, simbólicos e materiais. Segundo a autora, é a partir do “consumo cultural” que emergem os tensionamentos imbricados nas culturas juvenis, sendo o “lugar de negociação-tensão com os significados sociais”. Carrano (2012, p. 86), por seu turno, reconhece uma maior autonomia geracional e institucional dos jovens – em relação ao mundo adulto e às institucionalidades modernas - para construir seus próprios lugares, acervos e identidades culturais; movimento que se manifesta numa atitude juvenil de maior escolha sobre os marcos simbólicos que são introjetados para se reconhecerem e serem socialmente reconhecidos.
Boghossiam e Minayo (2009) reconhecem a “virada” teórica dos estudos nos anos 2000, a partir do surgimento de um novo paradigma baseado na categoria de “participação”. Segundo as autoras, vinculados à juventude, existem preconceitos e visões negativas a partir das quais as novas gerações são representadas socialmente, colocando os jovens no lugar de “bode expiatório” para lhes adjudicar problemas contemporâneos, como o aumento da criminalidade, da violência, do desemprego, da perda do laço social e do descrédito face à política e à ação coletiva. Reafirmam a importância de “dar força aos inúmeros mecanismos de participação que vêm sendo inventados pelos jovens e atualizados de formas criativas, mobilizadoras e, muitas vezes, transgressoras”, valorizando o potencial dos “novos espaços de interlocução e de representação” (Boghossiam e Minayo (2009:421).
Um outro aspecto importante sobre os estudos de juventude foi evidenciado por Zanella et al(2013). Os autores afirmam ter observado uma falta de compromisso político do campo acadêmico para com os próprios jovens, pois estes “não se apresentam, em sua maioria, como agentes copartícipes da denúncia, mobilização e construção de uma sociedade de direitos mais acessíveis a todos”. Afirmam que os estudos estariam reforçando uma visão tutelar e “integradora” sobre os jovens, que limita as reais possibilidades de ação política nos espaços de tomada de decisões. Frente a essa postura acadêmica, os autores convidam a indagar sobre as “diversas manifestações dos jovens em variados campos e condições” a fim de recuperar um caráter crítico da pesquisa com base no conhecimento e visibilidade das diferentes formas, sempre contraditórias, de resistências juvenis para além das institucionalidades (Zanella et al, 2013:332).
Importante assinalar que as investigações sobre as juventudes têm problematizado conceitos como autonomia, participação, resistência, protagonismo e consumo como dimensões vinculadas aos diferentes modos de ser jovem na contemporaneidade. Assim, junto a Dayrell (2007), entendemos as culturas juvenis de forma heterogênea, sendo múltiplos os estilos, as manifestações, as práticas, as influências e os interesses associados a esses espaços de criação, protagonismo público e sociabilidade. Cruces indica que os/as jovens do século XXI se encontram numa posição complexa, nem tão livres como muitas vezes se supõe, nem completamente submetidos e determinados. O exercício de agência frente às adversidades está transformando as necessidades em virtudes, “necessidade de se fazer a si mesmos, de se dar um lugar ao autoproduzir-se” (entrevistado em Canclini, Cruces e Pozo, 2012:XIII, tradução nossa). Desta forma, os jovens atualmente desenvolvem diferentes estratégias de inserção nas esferas e mercados culturais, deslocamentos que reconfiguram tanto as dinâmicas do próprio “campo”, como as identificações profissionais e as competências requeridas nas práticas de produção, distribuição e consumo cultural (Reguillo, 2000, Canclini, 2012).
A dissolução de lugares, fluxos e papeis nos circuitos culturais vigentes colocam as juventudes frente a novos papéis sociais, como atores chaves na sociedade do conhecimento. Já se afirma que as interações na “Era da Rede” configuram subjetividades prosumidoras (prosumers = produtor + consumer) (Jenkins, 2008), ou seja, pessoas que circulam e usam as mídias digitais, sendo, ao mesmo tempo, produtores e consumidores de conteúdo. Esse fenômeno atinge principalmente as novas gerações, crianças e jovens que se consideram nativos digitais da Internet 2.0, 3.0 (Scolari, 2016). Como vem sendo evidenciado por vários estudos e no nosso local de pesquisa, o acesso a essas tecnologias se dá das mais variadas formas. Em meio a essas questões, participaram de nossa pesquisa um grupo de jovens, prosumers, partícipes de práticas culturais inerentes aos circuitos culturais dos/das jovens das favelas cariocas. Nessa investigação, procuramos compreender como eles estão se produzindo como sujeitos, como organizam suas práticas de sociabilidade, que experiências de vida relatam, como se colocam em relação às estratégias de poder a eles dirigidas, o que denunciam e o que anseiam.
A estratégia de pesquisa:O “olhar de perto e de dentro” na etnografia das práticas
O “olhar de perto e de dentro” no plano intermediário dos processos intersubjetivos, se orienta a apreender padrões de ação, de relação e de construção de sentidos “dos múltiplos, variados e heterogêneos conjuntos de atores sociais cuja vida cotidiana transcorre na paisagem da cidade” (Magnani 2002:17). Sendo parte da tradição antropológica urbana, este “olhar” se apoia na etnografia como principal estratégia de pesquisa (Magnani, 2002, 2009). Conforme especifica o autor, fazer etnografia supõe tanto uma “prática” (programada e contínua) como uma “experiência” (imprevista, descontínua), sendo esta última condição indispensável da primeira. Como método, a etnografia engloba estratégias diversas de inserção no campo, incluindo um conjunto de técnicas (observação participante, aplicação de entrevistas, análises de documentos, imagens, etc.) que vão fornecendo “o material” a partir do qual fazer as escolhas teóricas e as vinculações conceituais, aspirando à organização e inteligibilidade dos processos e práticas abordadas (Magnani, 2009:136).
Importante esclarecer que neste modo de fazer etnografia, não existem programações metodológicas rígidas. Assim, as atividades de pesquisa não são reduzidas à implementação isolada de uma “técnica”, senão que supõem um trabalho vivo e criativo de combinação entre várias ferramentas de aproximação e análise conforme as características, os desafios e os desdobramentos colocados pela experiência de campo. Em suma, como indica Magnani (2002:17) a estratégia etnográfica deve ser entendida para além de “um conjunto de procedimentos”, sendo principalmente um modo de aproximação e “apreensão” das realidades sociais, modo que supõe a mediação do pesquisador como sujeito imbricado na experiência de campo.
Seguindo este modo de nos aproximar do campo, procedemos num primeiro momento a interagir e observar dez rodas (realizadas entre setembro de 2016 e junho de 2017) a fim de descrevê-las como práticas de sociabilidade, considerando elementos característicos do contexto de prática, os diferentes sujeitos participantes, os elementos simbólicos, ritualísticos e comunicativos que configuram seu caráter coletivo-cultural e subjetivante. Posteriormente, ensaiamos uma leitura político-pedagógica das rodas a partir daqueles elementos contemplados na etnografia.
Como indicam os resultados das pesquisas incluídas em “Jóvenes, culturas urbanas y redes digitales” (Canclini, Cruces, Pozo, 2012), o modo de ser jovem/s hoje, pressupõe o trânsito entre o mundo on-line e o off-line, dimensões de construção de vínculos e significados intimamente relacionadas. Portanto, na descrição etnográfica, além de recuperar elementos observados durante os eventos “ao vivo”, também consideramos materiais disponíveis nas mídias sociais digitais, pois estas plataformas estão intimamente ligadas ao que “ocorre” no “real” das práticas abordadas.
O circuito de Rodas Culturais
O hip hop, sendo uma cultura urbana global que ativa reapropriações localizadas, coloca-se como a estética predominante no contexto das grandes cidades brasileiras (Holanda, 2014). Assim, dentro do movimento hip hop as rodas culturais, ou “rodas de rima”, são iniciativas públicas de manifestação cultural geralmente promovidas e organizadas por jovens já inseridos no circuito da cultura urbana, com objetivo de gerar um espaço de encontro, de expressão, de lazer e divertimento de baixo custo. Dada sua vinculação ao hip hop, as rodas culturais se expressam por meio dos elementos próprios a esse movimento urbano (rap, grafite, break), tendo como principal manifestação o rap no formato de batalhas de rima, ou rima de improviso, mas também ampliam a inclusão de outras diversas manifestações culturais de rua (Alves, 2016).
As rodas culturais surgiram no Rio de Janeiro há aproximadamente 8 anos, a partir da atuação do “Circuito Carioca de Ritmo e Poesia” (CCRP) (Alves, 2016). Após o incêndio do Centro Interativo de Circo (CIC), na Lapa, local onde a galera do hip hop carioca se reunia, foi preciso procurar outro lugar para fazer o rap acontecer (MC Shaell, 2016)2. Assim, em 2010, a roda de rima da Lapa começou a funcionar embaixo dos Arcos e nesse mesmo ano, outras rodas começaram a surgir em diversos cantos da cidade. O mapa “Rodas Culturais no Rio de Janeiro” indica que atualmente, na cidade carioca, são mais de 50 as rodas ativas, muitas delas acontecendo nos territórios das favelas e periferias (UFF-CNPQ-FAPERJ).3
As Rodas Culturais em manguinhos,o que se faz? O que se vive?
As Rodas Culturais do coletivo do Pac´Stão,4 nossos parceiros de pesquisa, acontecem semanalmente na praça do complexo do PAC, localizada em frente à Biblioteca Parque no Complexo de favelas de MGH. A roda é organizada de forma autônoma como espaço de expressão e diálogo por jovens moradores de favelas da região vinculados ao movimento hip hop. Acontecem as batalhas de rimas, rap, grafite, poesia, skate, passinho, entre as formas de manifestação cultural observadas.
Já com quase um ano e meio de existência, a Roda do Pac’Stão tem um importante papel no desenvolvimento da cultura de MGH. Realizou mais de 60 eventos próprios5 e vem participado ativamente de outras iniciativas político-culturais de maior abrangência comunitária (dia das crianças, manifestações na defesa da Biblioteca Parque Manguinhos, rodadas por colégios, participação em outras rodas culturais).
O “PAC” é “o espaço” onde os/as jovens da comunidade se encontram, conversam, fazem diferentes atividades, assistem a eventos culturais, transitam ao sair da escola, ao frequentar a biblioteca, etc. Neste sentido, observamos que, apesar da militarização das favelas, do fechamento de lugares de lazer e divertimento, da proibição de bailes de funk, na “praça do PAC” a população ainda encontra um lugar permitido e protegido para se reunir, para recriar vínculos, para compartilhar atividades. A vitalidade do espaço do PAC nos faz pensar que nem as limitações impostas pelo poder público aos espaços de encontro nas favelas eliminou a existência deles. Assim, no PAC os jovens estão se encontrando, interagindo, trocando experiências, produzindo-se como sujeitos nesses múltiplos intercâmbios.
A noção de pedaço ajuda a compreender estes processos de uso da cidade e produção de identidades das juventudes. Como afirma Magnani (1998:116 citado em Magnani, 2002:21), o pedaço:
[...] designa aquele espaço intermediário entre o privado (a casa) e o público, onde se desenvolve uma sociabilidade básica, mais ampla que a fundada nos laços familiares, porém mais densa, significativa e estável que as relações formais e individualizadas impostas pela sociedade.
Ser do “Pac’stão” remete a uma construção identitária coletiva, típica do “pedaço”, dado que o “espaço intermediário” da roda dá lugar ao desenvolvimento da experiência compartilhada entre pares que se reconhecem a partir de condições de vida semelhantes (idade, local de moradia, raça, classe social, gostos musicais). O texto que descreve a Roda na sua Página de Facebook indica a importância desse território para os/as jovens:
Quando criaram o parque [referência a praça do PAC], jovens do Manguinhos, Jacaré, Mandela, Arará, Complexo do alemão iam pro parque pra se encontrar. Muitos já dançavam break, outros faziam rimas, andavam de skate, porém como moravam em favelas diferentes não havia o diálogo. Com isso foi criada a Roda, aonde vários coletivos surgiram o fez aproximar todas as tribos!6
Na descrição de cada evento na Página de Facebook da Roda Cultural do Pac’Stão, apresentam-se os seus propósitos:
...] de atingir a todo o público do jovem das comunidades locais, fazendo a união entre os quatro elementos e as culturas urbanas existentes na região: • Break • Rap • Disck Joker • Grafite • Passinho (funk)
No depoimento de uma artista, membro do coletivo organizador da roda, observamos a referência à cultura como estratégia de mudança social: “O nosso principal foco é atingir as crianças da nossa comunidade, porque nossa realidade é drástica. Através do rap, e dos livros, nós tentamos mudar nosso futuro” (Jessica Trape, na matéria publicada em março de 2017 no Jornal fala Manguinhos). Essa valorização da cultura também foi observada em diferentes interações no campo quando “nos momentos de fala” das rodas, frequentemente se fazia referência à importância da cultura e da arte para combater a repressão, a violência, o racismo, a inferiorização e a segregação, que condicionam os jovens das favelas. A possibilidade de participar em coletivos de produção cultural e arte urbana se coloca assim como um projeto “alternativo-viável”, tanto individual quanto coletivo, para esses jovens.
Numa constatação importante, Veríssimo (2015) relata que a primeira vez que ouviu falar de “Roda Cultural”, foi em 2013, durante uma aula de filosofia num colégio de São Gonçalo, RJ. A aula tratava sobre as práticas cidadãs na ágora grega como condição para surgimento da filosofia ocidental:
O objetivo era tentar fazer com que os alunos pensassem nas consequências da existência de um espaço público e laico, morada da vida política, onde os cidadãos se colocavam em posição de igualdade [...], onde podiam criticar uns aos outros dentro de determinadas regras, e colocar suas ideias em debate. [...] [o professor perguntou se os estudantes conheciam um espaço dessas características na atualidade e] uma aluna, que prestava bastante atenção à aula, afirmou: “Tem sim, professor. É a Roda Cultural” (Veríssimo, 2015:1).
Observamos que um dos objetivos centrais das rodas é a reapropriação do espaço público, como espaço simbólico, para o debate em torno de ideias e interesses compartilhados, seja nos eventos presenciais ou nas mídias digitais. Assim, as rodas se apresentam como uma modalidade que, de certa forma, recupera a importância do exercício da política pelos jovens. No caso da Roda Cultural do Pac’stão, esse exercício passa pela reapropriação organizada do espaço da praça do PAC e no tratamento de questões que fazem sentido para os jovens daquelas favelas.
Em nossas visitas de campo observamos que as temáticas específicas, relativas a questões públicas de MGH ou ligadas à “identidade juvenil de favela”, pulsavam semanalmente nas rodas. Entre elas podemos mencionar a situação da Biblioteca Parque Manguinhos (que foi arbitrariamente fechada pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro desde dezembro de 2016 - assim como diversas outras bibliotecas no Estado), questões de gênero e empoderamento das mulheres, o caso de encarceramento injusto do Rafael Braga Viera7, homenagens a meninos mortos ou encarcerados pela polícia, e relatos sobre reiterados episódios de abuso policial.
Um exemplo interessante é o depoimento a seguir que apresenta de forma explícita a intensão do coletivo organizador das rodas quanto à recuperação da ação pública, naqueles territórios onde o papel “público” do Estado está ausente ou fragilizado:
Primeiramente FAVELA RESISTE!!!
[...] O Pac’Stão é um coletivo formado por jovens de diversas favelas que ocupam um espaço praticamente abandonado pelos nossos órgãos governamentais, temos uma Casa da Mulher FECHADA, Biblioteca FECHADA, Escola EM PÉSSIMAS condições, fora os constantes conflitos e tiroteios que passamos diariamente aonde moramos. Levamos oportunidades a CRIANÇAS E JOVENS que não tem condições de ir ao cinema ou assistir uma peça de teatro, [...] Hip Hop é PAZ, AMOR, DIVERSÃO E UNIÃO para que a voz dos oprimidos seja escutada. Seguimos na luta8
Segundo a postagem, concordamos com Alves (2015) ao afirmar que as rodas têm como orientação gerar um espaço para expressar de forma criativa e interativa aquelas questões que fazem parte do universo real dos jovens. Outro fator que caracteriza as rodas é que a reapropriação do “público” se faz por meio de uma mediação poético-artística. Como indica Alves (2015:19) as rodas têm uma preocupação como um “fazer literário”, criativo, ligado principalmente ao momento das “batalhas de rima” e do microfone livre ou “freestyle desinteressado”. Segundo a autora, as rodas de rima são instâncias de aprendizado sobre o fazer poético, pois servem para ganhar experiência num ambiente familiar e lúdico a partir do encontro entre os novatos e os artistas mais “consagrados” (Alves, 2015:120). Os artistas mais experientes são geralmente os que comandam e organizam as rodas, enquanto o público, predominantemente composto de meninos mais novos, assiste aos encontros, e alguns deles, interagem nos momentos das batalhas e do microfone livre.
Nas rodas de MGH observamos que essa preocupação com um fazer literário/musical/artístico compartilhado e participativo também está presente, pois os momentos das batalhas e do microfone livre são estruturantes em todas as edições. Constatamos também essa relação entre artistas mais experientes e o público “mais novo”, principalmente meninos entre 6-7 e 20 anos, moradores de MGH ou outras favelas.
As Rodas das quais participamos não se realizaram de forma aleatória nem desorganizada. Elas se dividem em momentos, conforme o tipo de interação que “se facilita” entre o público e a roda. As batalhas de rima também têm suas regras, que são lembradas antes do começo dos enfrentamentos e estão “escritas” perto do local onde o DJ costuma localizar-se. Essas regras são: “sem pederastia”, “deixa a mãe do amigo em casa” “não dobrar o fio do microfone”, “sem xenofobia”, “respeito” “não sentem na pista [de skate]”, “proibido bike na pista” “cuidado com as crianças”, “fé”.
Além das batalhas de rima, a roda possui outros momentos. Geralmente se apresenta um/uma convidado/a que costuma ser representante de outra roda ou artista independentes. Este momento é semelhante à performance de um show tradicional na qual o papel do artista e do público ficam bem diferenciados. Assim, a roda vira espetáculo a que o público assiste, filma, fotografa, curte.
O fato do/a convidado/a vir de “outro território” também indica o contato existente entre grupos e artistas do movimento hip hop carioca. Identificamos apresentações de artistas do Morro do Alemão, de favelas de Niterói e São Gonçalo, de favelas da zona sul, de Olaria. Também a partir de informação na Página de Facebook da roda constatamos participação de MCs da zona oeste e de outras favelas da zona norte. Como indica Alves (2016), o movimento cultural em torno das rodas supõe a consolidação de uma importante rede de coletivos artísticos na cidade de Rio de Janeiro. Esta característica específica vale a pena ressaltar por conta de sua força no imaginário coletivo dos jovens. Em territórios dominados e divididos por máfias de poderes diferentes, muitas vezes os moradores identificam fronteiras invisíveis entre as diferentes facções que marcam a subjetividade dos jovens. Num território conflituoso e cheio de fronteiras invisíveis, as ações que possibilitam a mobilidade dos/as jovens entre as diferentes favelas têm uma importância considerável, pois permitem o fluxo de informações, ideias, iniciativas culturais e ações de resistência.
Além do momento do/a convidado/a, a roda gera um outro espaço chamado “microfone livre”, no qual se convida outros/as artistas presentes no público para que “façam sua fala” “mostrem sua arte”. Aqui, a modalidade predominante é o freestyle que não apresenta nem restrição temática, nem normas de competição, como no caso das batalhas. Esse momento é pensado para aqueles que, ainda não tendo muita experiência na rima, se animem a aparecer em público, a “compartilhar” sua poesia, sua rima, sua dança, sua performance. Também observamos que é no momento do microfone livre que as mulheres ficam mais à vontade para participar, pois nas batalhas, embora não exista uma norma que as exclua, a participação é hegemonicamente masculina. Os acontecimentos das rodas também podem ser acompanhados no Facebook onde, além da programação, é possível seguir os diferentes momentos por meio das fotografias postadas.
Para completar a descrição sobre a estruturação das rodas é importante não deixar de mencionar as atividades paralelas que, embora não ocupem o lugar central do microfone, acontecem ao redor da roda, em simultâneo. Essas atividades são variadas: campeonatos de skate, apresentações de artistas visuais (charges, grafites), fotógrafos e produtores audiovisuais fazendo a “cobertura da roda”, turmas fazendo parkur, vendedores independentes de objetos e camisetas, circulação do caderno de assinaturas de MC e demais artistas, etc. Todas essas atividades também fazem parte da roda cultural pois completam a criação do “ambiente”, “do clima” “do universo” associado à cultura de rua, à cultura dos jovens de favela que curtem o hip hop.
Num mesmo contexto político autoritário em que se publica sem o devido debate um currículo nacional único na área de educação que acaba com a estratégia dos temas transversais que articulam diversos conteúdos em torno de uma questão específica, os movimentos culturais populares mais uma vez demonstram que o caminho não é único e que os temas transversais e as atividades paralelas são recursos potentes para atingir os diferentes subgrupos de jovens.
O uso de um linguajar próprio, expressões corporais, gestos, vestimentas, dão conta de códigos de comunicação que são particulares dessa cultura, nesse contexto. O modo de mexer os corpos, de falar e de acompanhar as batidas também têm a ver com uma prática performática que “diz”, que manifesta posições de sujeito e questões identitárias. Os gestos com as mãos são outro meio para criar símbolos. Por exemplo, fazer uma “P” com os dedos, simboliza o “Pac’stão”.
Outro deslocamento observado na dimensão da linguagem é referente aos nomes dos artistas. Geralmente os artistas de hip hop têm ou ganham um apelido que vira nome durante a roda e outros espaços informais nos quais os jovens interagem. Também cada um/a, cria uma “assinatura” que não responde ao sistema alfanumérico latino. São tipos de desenhos que só podem ser reconhecidos e decodificados por aqueles que formam parte do circuito do hip hop ou da cultura da favela. Esse tipo de caligrafia também faz parte da paisagem urbana em MGH decorando prédios, pontes, viadutos, caixas de lixo, paredes.
Além do contato boca a boca e alguns cartazes colocados ao longo da praça do PAC, a roda utiliza principalmente o Facebook como plataforma digital de promoção de eventos e visibilidade pública. Como mencionamos, na página de Facebook e na plataforma Youtube é possível acessar o conteúdo textual, imagético e audiovisual sobre as rodas, pois é comum que durante as rodas os/as jovens filmem e tirem fotografias, registros que logo são postados nessas mídias. Em face dstas observações em campo, podemos inferir que as redes digitais, como plataformas de geração e compartilhamento de conteúdos, estão funcionando como “arquivos” do movimento hip hop no Brasil.
Refletindo sobre o caráter político-pedagógicoDAS RODAS CULTURAIS
Giroux (1999) entende a pedagogia numa perspectiva crítica e cultural, como uma forma de política que transpassa diferentes linguagens, atividades e espaços sociais. Nessa concepção, o fazer pedagógico-político está sempre implicado na construção e organização de conhecimento, desejos, valores e práticas em diferentes âmbitos sociais. Com base nessa ideia e conforme o descrito sobre as rodas culturais, consideramos que elas são um tipo de prática social que expressa um modo particular de política pedagógico-cultural.
Em relação à dimensão cultural-pedagógica, o interessante das rodas é que a função pedagógica (de conduzir o processo de criação de sentidos e práticas) se dá entre jovens, construído sobre regras comportamentais de base comum, as quais são respeitadas e consolidadas por todos. Baseados na cultura hip hop, eles criam o espaço de interação, decidem sobre as formas de expressão, estabelecem suas regras, falam suas linguagens, propõem conteúdos segundo seus interesses. São formas de construir um saber próprio, com sentido e significado para eles/as.
Quanto à dimensão política, constatamos o quanto nas rodas culturais existe uma preocupação no desenvolvimento de temáticas e atividades que têm como horizonte “mobilizar conhecimentos e desejos que possam conduzir à minimização do grau de opressão na vida das pessoas” (Giroux, 1999, p. 15). Isso ficou evidente no discurso público da roda do Pac’Stão manifesto nos canais digitais e em depoimentos de alguns de seus membros nas mídias comunitárias. Consideramos que a ação política - no sentido de prática estratégica engajada nas lutas pelo poder e sobre as questões de interesse público-coletivo - se observa na organização em torno da ocupação do espaço público para produzir um fazer coletivo de caráter cultural e autônomo (nome próprio, recursos autogestionados, lideranças juvenis) e também no caráter aberto-participativo dos eventos. Ou seja, um espaço público de caráter diverso, mas territorial, engajado nas questões sociais, culturais e políticas que perpassam a realidade dos jovens das favelas.
A ação político-pedagógica da roda tende assim, como indica Giroux (1999), a um engajamento público e a um projeto guiado por valores sobre o comum, os poderes, as liberdades, a justiça, as diversidades, que orientam os relacionamentos intersubjetivos.
Na perspectiva crítica também se analisa o caráter “institucional” de toda prática político-pedagógica. Nesse sentido, podemos dizer que as rodas pertencem a esferas alternativas não formais, mas nem por isso “desinstitucionalizadas”. O trabalho de campo permitiu-nos reconstruir a institucionalidade presente no modo de produção, circulação e consumo da prática cultural a partir da identificação de um modo de funcionamento (data e hora de acontecer, local fixo de realização, os momentos da roda), parâmetros “regulamentares” (como as regras nas batalhas) e “normativos” (posturas, linguagens, vestimentas próprios a cultura hip hop), como também “papéis estabelecidos” para os sujeitos participantes (os MCs que coordenam a roda, os jovens batalhadores, os artistas convidados, os que participam como B-boys, B-girls, o público geral). Além disso, há o fato de as rodas encontrarem-se imersas num movimento cultural e identitário que também se manifesta em outros territórios. Nesse sentido, podemos localizá-las num âmbito institucional específico, ou melhor dizendo, numa resistência que encontra suas próprias formas de se instituir.
O que se aprende Com as Rodas Culturais?
No microcosmo de MGH, nesses dois anos de interação, foi possível observar o impacto da retirada dos poucos investimentos públicos que existiam para as juventudes. Também foi visível o aumento da violência ocasionada pelas ações coercitivas e violentas de um Estado em crise econômica e política, que reafirmou sua vocação repressiva e elitista logo do golpe jurídico-parlamentar de 2016.
Foi nesse contexto que conhecemos as rodas culturais, práticas públicas, abertas, de jovens para jovens, que estão desenvolvendo formas diferenciadas de subjetivação e identidade coletiva por meio do hip hop e das artes de rua. Recuperando os principais aspectos da prática das rodas destacamos: a) a produção de um “fazer coletivo”, inclusivo e plural, autogestionado e organizado; b) a ocupação do espaço público, tanto urbano como digital, recuperando lugares que foram reduzidos nas favelas no marco da “guerra contra as drogas” e o sucateamento das políticas públicas; c) a mediação fundamental do hip hop, como movimento político-pedagógico orientado à transformação das realidades juvenis subalternizadas.
Com as rodas culturais de MGH, temos muito a aprender. Principalmente pela atitude e perseverança de não sucumbir à “ordem das coisas”. De entender que existe no campo cultural brechas para profanar o espaço público e exercer a condição de sujeitos sociais. Que as resistências implicam um trabalho corajoso e criativo com foco nas pessoas, valorizando experiências, saberes e corpos, dos que “estão ali” “pegando a visão”, fugindo às imposições do poder e constituindo junt@s identidades e estratégias na luta pela vida.
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