SEÇÃO TEMÁTICA: ANTROPOLOGIA DA EDUCAÇÃO
Quando alguém conversa sobre política comigo, lembro dos romanos: Marcos de estudantes chilenos de ensino médio para fazer uso político da história
When someone Talk Politics to Me, I am Reminded of the Romans: Chilean high school students’ frameworks for making political use of history
Quando alguém conversa sobre política comigo, lembro dos romanos: Marcos de estudantes chilenos de ensino médio para fazer uso político da história
Educação & Realidade, vol. 45, núm. 2, e99896, 2020
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Faculdade de Educação
Recepção: 21 Novembro 2019
Aprovação: 27 Janeiro 2020
Resumo: Este artigo examina como estudantes chilenos de ensino médio envolvidos em protestos estudantis demonstram e fazem uso de sua compreensão sobre política e história para informar e orientar suas próprias ações políticas. Com base em trabalho de campo realizado em 2014 em uma escola chilena de ensino médio, utilizo a análise de discurso para examinar entrevistas de estudantes como um tipo específico de trabalho social. Nestas entrevistas, defendo que os estudantes apresentavam e participavam da produção constante de marcos coerentes em que história e política estão conectadas. A compreensão de história e política dos estudantes informa e afeta uma à outra, bem como se torna significativa em sua educação em cidadania.
Palavras-chave: Educação em Cidadania, Chile, Pensamento Histórico, Formação em Estudos Sociais, Protestos Estudantis.
Abstract: This article examines how Chilean high school students who are involved in student protests demonstrate and make use of their understandings of politics and history, in order to inform and orient their own political actions. Based on fieldwork conducted in 2014 in a Chilean public high school, I use discourse analysis to examine students’ interviews as a particular kind of social work. In these interviews, I argue that students were displaying and participating in the constant production of coherent frameworks in which history and politics are connected. Students’ understandings of history and politics inform and affect each other, as well as become significant in their citizenship education.
Keywords: Citizenship Education, Chile, Historical Thinking, Social Studies Education, Student Protests.
Introdução1
Em 2019, a mídia chilena relatou que uma reforma curricular do ensino médio aprovada pelo Ministério da Educação e pelo Conselho Nacional de Educação transformaria o ensino obrigatório de história, geografia e estudos sociais em disciplinas eletivas para estudantes do 11º e do 12º ano. Historiadores, professores e outros atores civis da sociedade indignados se opuseram imediatamente à reforma. O Ministério argumentou que os temas abrangidos nas antigas aulas de história, geografia e estudos sociais do 11º e do 12º estavam sendo redistribuídos, e que alguns deles seriam incluídos em uma nova disciplina de educação em cidadania, a ser implementada em 2020. Os críticos da reforma curricular consideravam este argumento falacioso, pois a educação em cidadania exigia pensamento e conhecimento histórico para ser efetiva. “As disciplinas de Educação em Cidadania e História, Geografia e Estudos Sociais podem se acompanhar”, declarou uma carta aberta de quase 750 historiadores, “[…] mas uma não pode substituir a outra se nossa meta for educar cidadãos para os desafios do século XXI” (Cordero-Fernández; Estefane, 2019).
Na verdade, a percepção de que o ensino de história afeta diretamente a educação em cidadania dos estudantes é amplamente compartilhada (Carretero; Castorina, 2010; Siede, 2012; Muñoz Delaunoy; Ossandón Millavil, 2013). Esta crença está tão enraizada no sistema educacional chileno que, até a mencionada criação da disciplina de educação em cidadania, as disciplinas de história, geografia e estudos sociais era encarregadas de oferecer educação em cidadania para estudantes de ensino médio (Chile, 2015). Entretanto, os vínculos entre história e educação em cidadania não eram explorados empiricamente tanto quanto deveriam, particularmente em termos das práticas cotidianas de educadores e estudantes. Uma antropologia da educação em cidadania - com seu foco em como os estudantes aprendem e praticam determinados tipos de cidadania ao se envolverem em práticas sociais e educacionais cotidianas - pode lançar luz sobre estes vínculos, não apenas comprovando sua existência ou não, mas iluminando as maneiras como são produzidos, enfraquecidos, fortalecidos e transformados.
Para fazê-lo, este artigo examina as conexões entre sua compreensão de história e política estabelecidas por estudantes chilenos. Com base em trabalho de campo realizado em 2014 em uma escola pública chilena de ensino médio que passava por vários protestos estudantis e na análise de entrevistas em profundidade com dois estudantes, recorro à abordagem de Wortham e Reyes (2015) à análise de discurso para examinar como estudantes de ensino médio demonstravam sua compreensão e as usavam para se posicionarem. Defendo que os estudantes o faziam ao participar da constante produção de marcos coerentes em que história e política estão intimamente conectadas, o que então informava sua ação política. Assim, compreender o próprio passado é, para estes estudantes, um componente essencial de qualquer ação política atual, bem como de qualquer processo de educação em cidadania.
Antropologia da Educação em Cidadania e Consciência Histórica
Nas últimas décadas, antropólogos da educação em cidadania forneceram novos marcos teóricos e abordagens metodológicas para estudar de que maneira os estudantes são socializados como cidadãos de determinadas estados-nação. Enfocando os processos de contestação, negociação e produção cultural que ocorrem nas escolas (Sobe, 2014), examinaram os contextos onde estes processos ocorrem e as diferentes práticas pedagógica neles envolvidas (Luykx, 1999; Levinson, 2001; Hall, 2002; Rubin, 2007; Brenei, 2008; Lazar, 2010; Bellino, 2016). Conforme propõe Levinson (2005, p. 336), ao usar métodos etnográficos e elucidar marcos culturais de significado e identidades locais, uma antropologia da cidadania pode nos ajudar a compreender como os estudantes “[…] imaginam seu pertencimento social e exercem sua participação como cidadãos democráticos”.
Uma antropologia da educação em cidadania é de especial importância ao questionar as relações que os estudantes estabelecem com seu passado e o dos outros. Seixas (2006) definiu este campo particular de estudo como aquele da consciência histórica: os diferentes “[...] entendimentos individuais e coletivos do passado, os fatores cognitivos e culturais que dão forma a estes entendimentos, bem como as relações de entendimentos históricos com aqueles do presente e do futuro” (Seixas, 2006, p. 10). Entretanto, um risco de seguir estritamente a definição de Seixas é que se pode pensar acerca destes diferentes entendimentos do passado apenas como ideias abstratas que existem na mente das pessoas. Abordar este problema a partir de uma perspectiva antropológica permite que nos concentremos em consciência histórica não como uma série de pensamentos desencarnados, mas como ações pelas quais os seres humanos apresentam seus entendimentos do passado e os usam para alcançar seus objetivos no presente. Nordgren (2016) nomeou este fenômeno humano particular de uso da história. “[U] da história”, defende ele, “é uma consciência histórica performativa. Em comunicação, as concepções emotivas e cognitivas são expressas em como o passado, o presente e o futuro estão relacionados” (Nordgren, 2016, p. 484). Estudiosos têm se debruçado sobre como a produção de conhecimento histórico é mediada por relações de poder (Trouillot, 1995; Schwartz; Cook, 2002; Stoler, 2002), como demonstrar conhecimento histórico pode permitir que as pessoas exerçam uma boa cidadania (Stack, 2012), e como determinados modos de aprender história podem ser significativos para o modo como os jovens praticam sua cidadania cotidiana (Bellino, 2017). Este artigo contribui para este corpo de literatura ao explorar as diferentes maneiras como estudantes chilenos de ensino médio constroem, por meio de discurso-ação, marcos para demonstrarem seus entendimentos de política e história e, por seu intermédio, conseguem orientar e defender suas próprias ações políticas no presente.
Contexto e Local
Em 2011, uma quantidade massiva de estudantes chilenos de ensino médio e universitários tomou as ruas como parte de um movimento social que confrontava o governo de extrema-direita de Sebastian Piñera. O Movimento Estudantil Chileno exigia Educação de Qualidade para Todos e desafiava um sistema educacional orientado para o mercado estabelecido sob a ditadura de Augusto Pinochet (Stromquist; Sanyal, 2013). Além disso, os estudantes exigiam não apenas mudanças nas políticas educacionais em nível nacional, mas também soluções para problemas de financiamento e infraestrutura em suas próprias escolas. Em 2013, Michelle Bachelet foi eleita pela segunda vez como presidenta do Chile, com uma plataforma que incluía uma reforma educacional que atendesse a diversas preocupações dos estudantes. Contudo, os protestos continuaram até o fim do governo de Bachelet em 2018, pois os estudantes exigiam que suas vozes fossem incluídas no projeto e na implementação desta reforma educacional.
Entre junho e agosto de 2014, realizei o trabalho de campo etnográfico no Liceo Domingo Faustino Sarmiento (ou apenas Liceo Sarmiento), uma escola pública de ensino médio em Santiago, Chile. O Liceo Sarmiento atende apenas estudantes do sexo masculino, em geral oriundos de famílias de classe média e trabalhadora. A escola também faz parte do que é conhecido como liceos emblemáticos: um grupo de escolas públicas chilenas de ensino médio que não apenas são as mais antigas do país, mas que também têm uma história política bem conhecida. Tanto devido a esta história como a sua localização próxima do principal locus de protestos estudantis - o centro histórico de Santiago -, os estudantes destas escolas têm sido alguns dos participantes mais ativos no Movimento Estudantil Chileno. Neste contexto, o Liceo Sarmiento passou por muitas ocupações lideradas por estudantes durante a última década. As ocupações são uma forma particular de protesto em que os estudantes de uma escola votam por ocupar as dependências da escola. Se a votação for pela aprovação, as aulas são suspensas, os professores deixam a escola e seu controle passa dos administradores aos estudantes. Embora não seja obrigatório que os estudantes estejam presentes na escola ocupada, muitos optam por ficar, e alguns até mesmo dormem lá; outros apenas visitam a escola de tempos em tempos ou simplesmente ficam em casa.
Em agosto de 2014, o Liceo Sarmiento já tinha sido ocupado duas vezes durante o ano. Em ambas as situações, a escola permaneceu ocupada por períodos de não menos de três semanas. De acordo com o Grêmio Estudantil do Liceo Sarmiento, a ocupação foi a maneira encontrada pelos estudantes para exercerem pressão sobre o governo de Bachelet e, ao fazê-lo, participar do debate da reforma educacional nacional. Contudo, muitos outros estudantes se opuseram à ocupação, argumentando que ameaçava seus direitos educacionais ao impedir que tivessem aulas regularmente. De fato, a ocupação da escola era um tópico polêmico quando cheguei no Liceo Sarmiento, permeando a maior parte das interações entre os atores da escola, inclusive aquelas entre os estudantes e eu como pesquisador.
Métodos, Participantes e Análise de Dados
Durante meu trabalho de campo no Liceo Sarmiento, trabalhei principalmente com uma turma do 10º ano2. A turma era formada por trinta e oito estudantes com idade entre quinze e dezesseis anos. Realizei observação participativa com esta turma durante suas aulas de estudos sociais e de línguas, seu Conselho de Classe semanal e seus intervalos e horário de almoço3. Também me reuni com eles durante outras atividades escolares, como celebrações escolares e reuniões de pais e mestres. Observei atividades extracurriculares, como tarefas e aulas particulares, se e quando convidado pelos próprios estudantes.
No começo do meu trabalho de campo, apliquei um questionário a todos os componentes da turma. O questionário era composto por sete itens e sua intenção era evidenciar as preferências políticas dos estudantes, suas percepções a respeito do passado recente do Chile e sua situação política atual, e eficácia cívica autorrelatada por eles (Mitra; Serriere, 2012). Também realizei nove entrevistas semiestruturadas em profundidade com alguns destes estudantes, usando os resultados do questionário para compor uma amostra que considerasse todos os perfis políticos presentes na turma. As entrevistas questionavam as percepções dos estudantes a respeito da política chilena no presente e no passado, além de sua participação política atual e projetada como cidadãos, permitindo aos entrevistados que ampliassem suas respostas ao questionário.
Para este artigo, analisei as transcrições de duas entrevistas, aquelas conduzidas com os estudantes Florencio e Víctor4. Eles representam dois perfis políticos diferentes - de acordo com os resultados de seus questionários, Víctor era esquerdista, enquanto Florencio se alinhava mais com a direita liberal. Embora ambos fossem politicamente ativos e se opusessem ao modo como o governo estava implementando a reforma educacional, Florencio e Víctor nitidamente discordavam da ocupação do Liceo Sarmiento. Florencio - presidente democraticamente eleito desta turma - rejeitava categoricamente esta estratégia política. Acreditava firmemente que a ocupação era não apenas ineficaz como prejudicial para eles como estudantes, e seu posicionamento provocou alguns problemas entre ele e os presidentes de outras turmas. Víctor, por sua vez, defendia a ocupação, mesmo quando a maioria de seus colegas de turma se opunha a ela. Por fim, Florencio e Víctor também divergiam em sua avaliação acerca do passado recente do Chile: embora não destacasse o regime de Pinochet, Florencio era menos crítico a ele do que do governo de Salvador Allende5; por seu lado, Víctor era muito crítico da ditadura de Pinochet e declarava explicitamente sua admiração por Salvador Allende e o que ele representava. Em suma, estes dois estudantes representavam extremidades divergentes do espectro político e histórico.
Minha análise não pressupõe relações causais, como às vezes comentaristas chilenos públicos o fazem ao vincularem os entendimentos históricos dos estudantes com suas ações políticas. Não afirmo que Víctor defendia a ocupação porque apoiava o legado de Allende, nem que Florencio não o fazia por tender mais para a direita do que a maioria de seus colegas. Afirmar isto implicaria que os pensamentos existentes na mente das pessoas determinam suas ações e que, ainda pior, os estudantes não são nada além de receptores passivos de ideias, sempre sob risco de doutrinação. Tampouco afirmo que, ao responder a um questionário ou a uma entrevista, os estudantes estão revelando ao pesquisador conteúdos velados de suas mentes. O que afirmo é que, ao participarem de questionários e entrevistas, estes estudantes estão apresentando a seus interlocutores determinados entendimentos de história e política como sendo válidos, assim como se posicionando com relação a estes entendimentos. Dito isto, minha análise se concentra em alguns dos mecanismos usados por estes estudantes para alcançarem este trabalho social, explorando não uma relação causal qualquer, mas como estes entendimentos, quando evidenciados, funcionam como recursos uns para os outros e permitem que estes jovens construam marcos complexos que são relevantes para suas ações políticas atuais.
Analiso estes dados usando técnicas de análise de discurso a partir da antropologia linguística (Wortham; Reyes, 2015). Para tanto, enfoco as relações entre eventos narrados e narradores no contexto destas entrevistas ao examinar seus signos indexicais evidentes e como são usados pelos emissores para definir o que supostamente política e história são, quais as relações entre elas e quais são seus próprios posicionamentos a respeito de ambas. Conforme já foi afirmado, não pretendo descrever um modelo específico de pensamento sobre as ligações entre política e história, mas sim explorar os diferentes modos como estes estudantes interpretam estas relações e elaboram marcos para fazê-lo. Também objetivo compreender melhor como estes jovens utilizam recursos culturais para alcançar este trabalho social, a fim de restabelecer seu próprio posicionamento como atores históricos. Abordar esta questão mediante análise de discurso pode lançar uma luz sobre estas entrevistas, na medida em que “[…] enfatiza que a linguagem não é apenas um sistema autocontido de símbolos, mas sim, mais importante, um modo de fazer, ser e tornar-se” (He, 2000, p. 429).
Marcos para Política e História
Interpretando a Política
As entrevistas de Florencio e de Víctor foram conduzidas de maneira semelhante: ambas aconteceram nas dependências da escola (a de Víctor durante um intervalo e a de Florencio após o fim do dia letivo), seguiram as mesmas diretrizes, incluíram as mesmas perguntas e foram gravadas em áudio. Cada uma começou com o estudante declarando seu nome, idade e o ano em que se matriculou no Liceo Sarmiento, e continuou com a resposta a três perguntas sobre seus professores e sua pedagogia. A seguir, foi solicitado a eles que definissem o que era política. Em suas respostas, é possível observar como similaridades fascinantes começaram a emergir.
Entrevista de Florencio (O que é política)
Entrevista de Víctor (O que é política)
O primeiro aspecto que podemos observar nos excertos é que tanto Florencio como Víctor reconhecem que a política é um conceito polissêmico. Fazem isso ao apresentarem duas versões diferentes do que a política pode ser, embora cada estudante estabeleça esta distinção de maneira diferente. Para Florencio, a política tanto pode ser representada por um líder virtuoso e capaz - representado na figura do senador romano (linhas 3-5) - como caracterizada por atos traiçoeiros pela falta de confiança (linhas 11-14). Víctor, por outro lado, diferencia entre uma versão de política baseada em relações e decisões coletivas (linhas 5-8) de outra que designa apenas qualquer ação, independentemente de ser coletiva ou individual (linhas 8-11)No entanto, mais importante do que as definições dos estudantes é o modo como, por meio de seus discursos eles se aliam com uma destas versões. O dêitico pessoal é particularmente significativo para alcançar isto. Na linha 6, Víctor usa o dêitico eu ao apresentar uma versão do que significa política, e então, após ter usado o discurso relatado ao apresentar uma segunda definição como se fosse expressa por outra pessoa (linhas 8-10), usa outra vez o dêitico eu para evitar mostrar concordância com esta versão (a verdade é que nunca entendi isso completamente, linhas 11). De modo semelhante, Florencio usa o dêitico pessoal como eu e mim para se aliar com sua primeira definição de política (linhas 2-3 e 6) e, embora o faça outra vez ao apresentar uma segunda definição (linhas 11-14), desta vez acrescenta indexicais avaliativos para avaliar esta definição como negativa, como traiçoeira (linha 11) e duplo padrão (linha 14). Florencio vai além e não apenas se alia com uma destas versões: nas linhas 16 a 18, declara seu distanciamento da outra, enquanto nas linhas 22 a 23 afirma que como presidente de turma, estou fazendo política. Desta forma, Florencio posiciona-se como praticante de política - compreendida da maneira particular com a qual instruiu seu interlocutor a fazer -, ao fortalecer o modelo binário que já apresentou.
Interpretando a História
Depois de mais quatro perguntas sobre educação política na sua escola, as entrevistas se voltaram para uma discussão de história, tanto como conceito como em relação ao passado recente do Chile. Aqui, um dos itens do questionário foi usado, permitindo que os estudantes ampliassem suas respostas anteriores (Quadro 1 e 2). A seguir, são apresentados dois eventos diferentes narrados. Seu exame permite que analisemos como o conceito de história estava sendo produzido por estes estudantes, esclarecendo algumas das possíveis relações entre este conceito e o de política.


Entrevista de Florencio (O que é história)
Entrevista de Víctor (O que é história)
Neste primeiro evento narrado, o significado denotativo do discurso dos estudantes mostra tanto similaridades como diferenças: enquanto Florencio afirma que a história é uma cronologia de fatos (linha 3), Víctor enfatiza a centralidade do desenvolvimento humano nela. Entretanto, ambos os estudantes referem a importância da história para não cometer os erros do passado (transcrição de Víctor, linhas 38 a 40, e transcrição de Florencio, linhas 4 a 6). A isto, Florencio acrescenta uma segunda razão para a história ser importante, destacando uma ligação entre história e o conhecimento geral (linha 27). Ele utiliza esta ligação para diferenciar dois grupos distintos de pessoas: aquelas que têm conhecimento geral e aquelas que são ignorantes (linha 29). Além disso, usando indexicais avaliativos nas linhas 26 a 29, constrói uma relação hierárquica entre estes dois. Dando voz a um componente do primeiro grupo, e usando dêitico pessoal como si (linha 27) e este cara (linha 29), Florencio se posiciona como parte do primeiro grupo, de maneira semelhante ao que tinha feito anteriormente ao responder o que é política. Alguns destes mecanismos aparecem novamente no seguinte evento narrado.
Entrevista de Florencio (A respeito do passado recente do Chile)
Entrevista de Víctor (A respeito do passado recente do Chile)
Durante este segundo evento narrado, estes dois estudantes lançam mão de ferramentas culturais distintas para construir uma narrativa histórica (Barton, 2001). Florencio e Víctor diferem claramente em suas maneiras de fazê-lo. Florencio utiliza um modelo linear que, coerente com sua própria definição de história, organiza sequencial e cronologicamente três momentos históricos (Democracia Socialista / Ditadura / Democracia Neoliberal). Cada um também é expresso metonimicamente por meio de um líder político (Democracia Socialista/Salvador Allende - Ditadura/Augusto Pinochet - Democracia Neoliberal/Ricardo Lagos), uma decisão que é coerente com a definição de política adotada por ele. Ao usar indexicais avaliativos, Florencio também estabelece uma progressão linear entre o primeiro momento histórico (que nos coloc:ou em <uma situação difícil nas linhas 18-19), passando para o segundo (nos prejudicou mais do que nos beneficiou nas linhas 21-22) e, finalmente, chegando ao terceiro (Desde então estamos em alguma ascensão nas linhas 26-27). Esta progressão é reforçada mais tarde com os indexicais avaliativos positivos para descrever Ricardo Lagos como personagem histórico (linhas 45-46). Além disso, Florencio utiliza o dêitico pessoal nos e nós para se incluir como parte da sociedade chilena (linhas 18, 21-22, 28-29). Em seu relato, a sociedade chilena parece seguir seus líderes para atravessar este processo histórico linear.
Víctor identifica os mesmos três momentos históricos que Florencio, embora utilize um modelo binário para organizá-los de maneira diferente. Ele reúne ditadura e democracia neoliberal e as opõe à Democracia Socialista. Também utiliza relações metonímicas, mas, em seu caso, estas relações conectam momentos históricos com determinados grupos sociais: Democracia Socialista com o Povo (linhas 13-14, 22-23), e tanto Ditadura como Democracia Neoliberal com poderosos (linhas 31, 41-42 e 50-51). Além disso, Víctor utiliza esta estrutura binária ao selecionar o principal personagem histórico da história recente do Chile (linhas 76-82). Ao contrário de Florencio, que diferencia claramente o político da esfera social, Víctor os funde, distinguindo dois grupos sociais diferentes e os governos que defendiam (e ainda defendem) seus interesses. Ademais, nas linhas 79 a 81, Víctor faz equivaler os termos o Povo e sociedade chilena, posicionando este grupo social (e o governo associado a ele) como aquele que representa verdadeiramente a história chilena. Para concluir este trabalho social, Víctor utiliza a pessoa dêitico nós (linha 79) para se posicionar como membro deste grupo, alcançando o que Florencio já tinha feito em sua própria entrevista.
É importante observar a coerência dos mecanismos usados por Florencio e por Víctor até este ponto para apresentar seus entendimentos de política e história e como interpretam os eventos narrados: para Florencio, tanto história como política dizem respeito a uma liderança individual virtuosa, enquanto Víctor se refere à dimensão coletiva da vida humana. Além disso, ambos conseguem se posicionar como praticantes de política de maneira positiva, não negativa. O que é significativo é que Florencio faz isto ao falar sobre política, enquanto Víctor o faz ao falar sobre história. O fato de este trabalho social poder ser alcançado nestes dois momentos diferentes lança ainda mais luz sobre as relações entre política e história apresentadas por estes estudantes e o marco que estão estabelecendo para incluir e compreendê-las.
Avaliando as próprias ações políticas
Depois de discutir o passado recente do Chile e sua situação atual, a entrevista rumava para uma série de perguntas sobre a compreensão que os estudantes têm de eficácia cívica. Entre outros aspectos, foi perguntado se se sentiam capazes de melhorar sua escola e seu país. Também foram questionados sobre o grau de eficácia de votar, protestar e promover ações de solidariedade. As respostas dos estudantes a todas estas perguntas no questionário foram usadas como catalizador e como sondagem (Quadro 1 e 2). Além disso, devido ao contexto particular pelo qual o Liceo Sarmiento estava passando, também fez parte da entrevista falar sobre as ocupações de escolas como mecanismo do protesto. Mais uma vez, dois eventos narrados diferentes são apresentados e analisados a seguir.
Entrevista de Florencio (Como melhorar minha escola e meu país)
Entrevista de Víctor (Como melhorar minha escola e meu país)
Neste primeiro evento narrado, as avaliações dos estudantes a respeito de sua própria eficácia cívica são coerentes com os marcos que tinham apresentado ao seu interlocutor. Florencio, por exemplo, explica como suas ações políticas poderiam ser mais ou menos eficazes, dependendo de sua própria habilidade percebida para ocupar posições de liderança em diferentes comunidades (escola e país). A diferença entre contribuir com um grão de areia ou uma pedra (uma comparação de dois indexicais avaliativos que utiliza nas linhas 28-29) está diretamente relacionada com estas distinções: como presidente de uma turma de sua escola, ele relata conseguir produzir mudanças, mas em nível de país, ele expressa que estas mudanças somente podem ser feitas por instituições como o Congresso (linha 17-19). Para Víctor, por sua vez, o que torna uma ação eficaz é sua natureza coletiva. Ele vai ainda mais longe: tanto com o discurso relatado e o uso do me dêitico pessoal, ele apresenta esta versão do que a política deveria ser como a única possível e continua o trabalho social de posicionar-se em relação a ela (fui ensinado assim, porque ninguém pode cuidar apenas de si mesmo, linha 35).
Entrevista de Florencio (Maneiras de melhorar o país)
Entrevista de Víctor (Maneiras de melhorar o país)
Neste evento narrado final, os estudantes empregam novamente os marcos que utilizaram durante o restante da entrevista; agora, os utilizam para avaliar a eficácia de ações políticas concretas. Florencio rejeita a ideia de que votar, protestar ou mesmo ações de solidariedade possam ter sucesso na melhoria de seu país. O que é interessante é que seus argumentos mudam quando se refere a cada uma destas ações, estando estas alterações diretamente relacionadas à comunidade com a qual ele associa cada ação. Ao falar sobre votar e ação de solidariedade - ambas associadas à comunidade nacional -, ele relaciona sua ineficácia com não ocupar uma posição de liderança e, consequentemente, apenas podendo ajudar indivíduos específicos (linhas 9-14 e 48-50). Entretanto, ao falar sobre protestar - uma ação que ele associa à comunidade escolar -, ele orienta seu discurso não para qualquer condição estrutural que resulte na ineficácia de protestar, mas a seus colegas e à maneira específica como estão fazendo isto. O uso de indexicais avaliativos negativos tais como idiota (linha 24), paradoxal (linha 26), e não ser coerente (linhas 27), reforça esta modificação. Parece que a possibilidade de ser um líder na escola permite que Florencio se posicione aqui em oposição a um adversário político, de tal maneira que não seja percebida quando fala sobre o nível nacional.
Enquanto para Florencio o que torna uma ação política eficaz ou não está diretamente relacionado a sua própria possibilidade de ocupar uma posição da liderança, para Víctor esta eficácia está ligada à natureza coletiva das ações. Ele expressa isto em relação direta a como as ações avaliadas se relacionam com as pessoas e o Povo: votar não é eficaz porque os candidatos não são os verdadeiros representantes do Povo (linhas 18-19), protestar é eficaz porque está relacionado nossa conscientização, do Povo para o Povo (linhas 23-24), e ações de solidariedade são muito eficazes porque alguém se relaciona diretamente com as pessoas (linhas 34) e está mais próximo das pessoas (linha 54). Assim como Florencio, isto é coerente com os entendimentos que Víctor apresentou sobre política e história e como tinha se posicionado anteriormente com referência a estas. Por fim, avaliação de Víctor sobre a ocupação do Liceo Sarmiento completa o trabalho social dele quando faz uso de um marco para conectar história e política como meios de orientar, demonstrar e defender suas próprias ações políticas, ilustrando as complicadas maneiras pelas quais este trabalho social funciona. O posicionamento de Víctor durante a entrevista poderia nos levar a pensar que ele seria um apoiador entusiasmado da ocupação de sua escola - um mecanismo de protesto tradicionalmente associado à esquerda chilena. Entretanto, seu discurso revela as complexas influências que formatam sua decisão de apoiar a ocupação ou não. De fato, Víctor condiciona o apoio à ocupação a uma avaliação prévia das dimensões coletivas da ocupação: o indexical avaliativo funcionar usado por ele nas linhas 71 a 73, 80, e 88 é sempre apresentado como diretamente dependente de palavras que referem a ação coletiva como participação (linhas 71 e 80) e espaços sociais e culturais (linha 87). Portanto, utiliza mais uma vez o mesmo marco usado para definir o que é política e história e para se posicionar frente a estes entendimentos, desta vez para orientar suas próprias ações políticas em seu presente.
Conclusões
Os pesquisadores interessados em educação em cidadania não têm prestado suficiente atenção às conexões entre como as pessoas compreendem e fazem uso da história e como aprendem e praticam sua própria cidadania. Neste artigo, lancei luz sobre este fenômeno ao usar uma abordagem mediante análise de discurso para examinar o discurso de dois estudantes chilenos de ensino médio em um contexto político polêmico. Defendi que estes estudantes empregam marcos específicos não apenas para compreender como política e história estão relacionadas, mas como ferramentas culturais para engajamento em trabalho social. Este trabalho social permite que estes estudantes orientem suas próprias ações políticas, mas que também se apresentem como concorrentes legítimos em um jogo político democrático (Mayorga, 2018) e se engajem em um processo do subjetificação política (Biesta, 2016). Analisar estes processos através de uma lente antropológica destaca as nuances deste trabalho social, ilustrando como as interações educacionais são sempre mediadas por estudantes que compreendem o mundo ao seu redor e os novos significados produzidos ao fazê-lo.
Não é possível nem necessário afirmar qualquer relação causal entre os entendimentos dos estudantes sobre política e história. Este artigo mostra que não importa qual entendimento influencia o outro, mas como ambos estão conectados em estruturas coerentes. É mais importante observar que estes marcos, quando utilizados, têm implicações concretas para as vidas e as ações dos atores que os usam. Isto não quer dizer que estes marcos não sejam afetados por tradições políticas ou disciplinares mais amplas - como as da direita e da esquerda chilena, da historiografia marxista estrutural ou liberal progressiva. De fato, minha observação participante em aulas e outras atividades da escola mostraram que os estudantes constantemente encontram muitos recursos relacionados a estas tradições. Pesquisas adicionais deveriam explorar como estudantes de ensino médio interagem, rejeitam ou se apropriam destes diferentes recursos para compreender melhor sua educação em cidadania não como um processo passivo de receber conhecimento desencarnado, mas sim ativo, em que os estudantes aprendem a ser cidadãos ao olhar constantemente para futuros imaginados, além de seus passados percebidos. Passado, presente e futuro são não dimensões separadas da vida, mas parte de um continuum; da mesma forma, história e política estão inerentemente entrelaçadas.
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Notas
Autor notes