Artigos - Dossiê Temático
Recepção: 20/01/16
Aprovação: 22/02/16
Resumo: Historicamente, o debate em torno da política de saúde sempre representou uma das questões mais complexas e contraditórias no âmbito da questão social no Brasil. Neste sentido, podemos afirmar que a saúde é parte e expressão da estrutura macrossocietária e suas interfaces com a ordem capitalista hegemônica. A perspectiva de loteamento das urgências e emergências hospitalares no Rio de Janeiro revela a lógica de subordinação da saúde às relações sociais estabelecidas pela égide neoliberal, suscitando contradições entre público e privado, que colocam em xeque a linguagem pública dos direitos sociais em nome dos ideais mercantilistas. O presente estudo apresenta reflexões que apontam para a consolidação de um modelo de gestão na saúde, que privilegia a perspectiva privatizante dos serviços, fortalecendo a lógica de desconstrução do modelo de atendimento enquanto sistema único, além de incidir diretamente no direito de cidadania, provocando fraturas profundas no processo de construção da política de saúde.
Palavras-chave: Saúde, Organizações sociais, Cidadania.
Abstract: limits for the consolidation of universal health in Rio de Janeiro : Historically, the debate over health policy has always represented one of the most complex and contradictory issues in the social question in Brazil. In this sense, we can say that health is part and expression of corporate structure and its interfaces with the hegemonic capitalist order. The prospect of allotment emergency rooms and hospital emergencies in Rio de Janeiro reveals the health subordination of logic to social relations established by neoliberal auspices, raising contradictions between public and private, which call into question the public language of social rights in the name of mercantilist ideals. This study presents reflections related to the consolidation of a health management model, which focuses on privatization perspective of services, strengthening the deconstruction of logic of the service model as a single system, and focus directly to the right of citizenship, causing deep fractures in the process of construction of a health policy.
Keywords: Health, Social organizations, Citizenship.
1 INTRODUÇÃO
A participação de entes privados na constituição de serviços e políticas públicas não representa um debate exclusivamente contemporâneo. Ao contrário, a relação público e privado é histórica e contraditória, sendo palco de intensas lutas e disputas entre as classes sociais antagônicas. Na saúde, o caráter contributivo, desde a criação das primeiras Caixas de Aposentadorias e Pensões, sempre norteou a consolidação da política nacional, conferindo traços marcantes e hiatos profundos entre a saúde pública e as demais formas de organização dos serviços de saúde. Neste sentido, o debate sobre o público e o privado na atenção à saúde na atualidade congrega características históricas a traços de modernidade, tendo as Fundações Estatais de direito privado e as Organizações Sociais (O.S.) como expoentes do novo modo de pensar a gestão da saúde no país.
As O.S., objeto de estudo desta pesquisa, surgem no país ao longo dos anos de 1990 no contexto da Reforma do Estado, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), sendo formalmente constituída pela Medida Provisória n° 1.591, de 9 de outubro de 1997 e caracterizada em 1998 pela Lei n° 9.637, de 15 de maio, que dispôs sobre a qualificação de entidades privadas como O.S. O Modelo de gestão pública, por intermédio das O.S., representaria, no processo de Reforma do Estado, a possibilidade de constituição de um Estado gerencial e enxuto, que delega a outras entidades suas funções produtivas e de prestação de serviços. O ressurgimento do velho discurso do Estado falido em suas funções, com parcos recursos e da crise fiscal e, consequentemente, da incapacidade de investimentos adequados, representaria a justificativa para a necessidade de participação das O.S. nas políticas públicas.
A proposta se constituiria em repassar para a administração do sistema privado a gestão de equipamentos e serviços de saúde. Assim, o Estado estaria desobrigado de garantir e efetivar, diretamente, o direito fundamental à saúde, no que se refere à assistência integral, administração de recursos e funcionamento da rede de acordo com os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS). O modelo de gestão proposto pelas O.S. na saúde e legitimado pelo poder público, traz novamente ao cenário político a lógica privatizante do capitalismo, fortalecendo os imperativos do capital no interior da política de saúde.
Entre as principais considerações sobre o modelo de gestão das O.S., destacamos as observações de autores como Bravo (2011), que apontam a desconstrução do modelo de atendimento na saúde como um sistema integrado de apoio e continuidade da atenção, caracterizado pelo loteamento de suas unidades e a ruptura da proposta de rede de serviços organizada e hierarquizada. Neste modelo também chama atenção, a inexistência de mecanismos de controle social, em contraposição às prerrogativas apontadas pelo SUS, com o esvaziamento do debate político. Nesta perspectiva, observamos o contrassenso entre o público e o privado, marcado pelo predomínio da lógica mercantil em detrimento das reais necessidades de saúde da população. E por fim, o novo modelo de gestão de recursos humanos com a proposta de extinção do quadro funcional de estatutários, o que interfere diretamente na qualidade dos serviços oferecidos, fragilizando os espaços de negociação e lutas políticas da classe trabalhadora.
Não estamos diante de situações pontuais de privatização, mas sim, diante da reestruturação de toda a rede estadual de saúde de urgência e emergência hospitalar, o que demonstra a originalidade e pertinência de suas reflexões. Sua atualidade nos impõe desafios e indagações, cujas respostas precisam ser devidamente analisadas para que possamos oferecer elementos concretos, capazes de criar parâmetros para a análise de seus rebatimentos sobre os direitos sociais de cidadania. Sua trajetória recente esconde velhas discussões e antigas mazelas que assolaram a política de saúde em vários momentos históricos do país. Estas características revelam grandes dificuldades a serem superadas, para desvendamento desta realidade. No entanto, não representam obstáculos intransponíveis à investigação, que pretende se constituir de maneira crítica e reflexiva, desvelando características fundamentais para a compreensão dos impactos deste modelo de gestão sobre a população usuária dos serviços públicos de saúde e sobre todos os direitos sociais a eles inerentes.
2 SEGURIDADE SOCIAL NO BRASIL: algumas considerações sobre proteção social e saúde
Para construção de uma abordagem teórica atrelada a uma perspectiva crítica, criativa e desveladora sobre a saúde enquanto política pública no Brasil, é necessário iniciar o processo de reflexão a partir da constituição do sistema de proteção social no país. A proposta, ora em curso, consiste em subsidiar o debate sobre a política de saúde brasileira, descortinando a conjuntura da qual é parte integrante, assim como, decifrando os elementos que se colocam como pano de fundo e atravessam sua estrutura, em um processo dinâmico de profundas transformações sociais e históricas.
Os sistemas de proteção social são, portanto, compreendidos e estruturados a partir do conjunto de transformações de ordem política, econômica e social que ocorrem em determinada conjuntura histórica, interferindo e sendo influenciada diretamente pelo resultado da correlação de forças e pela contradição existente entre os ideais de liberdade e igualdade, que por sua vez, determinaram a conformação da antinomia ou controvérsia entre políticas de proteção social de caráter universal versus as políticas sociais de cunho focalizado.
Trata-se de uma contradição da sociedade capitalista, cujas mediações econômicas e políticas imprimem um movimento dinâmico e dialético: se do ponto de vista lógico, atender às necessidades do trabalho é negar as necessidades do capital, do ponto de vista histórico, a seguridade social é por definição esfera de disputas e negociações na ordem burguesa. (MOTA, 2009, p. 40).
No Brasil, apenas a partir dos anos de 1980 observamos uma conjuntura permeada por ações efetivas, onde a sociedade brasileira ensaia os primeiros passos para a institucionalização e constitucionalização de mecanismos de proteção social, atrelados ao exercício da cidadania, da democracia e dos direitos sociais, políticos e trabalhistas. Nem mesmo os traços e características excludentes do mercado que se acentuam no período imediatamente posterior a Constituição Federal (CF) de 1988 foram suficientes para negar à classe trabalhadora do país as conquistas inerentes à carta constitucional, fortalecendo a esfera dos direitos sociais, ampliando o acesso a serviços públicos, alargando a oferta de serviços, tanto no âmbito da saúde como na assistência social.
Embora tenham trilhado trajetórias históricas distintas, a saúde, a previdência e a assistência social precisam ser observadas e compreendidas enquanto elementos intrínsecos da política de proteção social que, na letra da lei, deveria se configurar dentro de uma perspectiva de integralidade. Correspondem a políticas distintas, que foram construídas e consolidadas no interior de uma sociedade influenciada ideologicamente pelas estratégias de mundialização e financeirização do capital, que consequentemente, definem traços e características comuns às três bases da seguridade social.
Nesta perspectiva, observamos a conformação da política de proteção social orquestrada no interior de uma conjuntura política, econômica e social contraditória, fortemente marcada por projetos societários antagônicos. A seguridade social, dotada de objetivos de universalização da cobertura e de atendimento, uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços, caráter democrático e descentralização da administração, passa a se confrontar com uma direção privatizadora e focalizadora das políticas de proteção social, retração dos investimentos públicos e a subordinação das políticas sociais às políticas de ajuste econômico, determinada pela ofensiva de cunho neoliberal.
Neste sentido, observamos que os modelos de proteção social, e todas as conquistas sociais inerentes a eles, vêm sendo colocados em xeque pelo ideário capitalista contemporâneo, suscitando e aprofundando tensões, antinomias e contradições, presentes ao longo da história do país. Trata-se, portanto, da dicotomia entre a igualdade prevista na ordem legal e universo público da cidadania e os imperativos de eficácia da economia e a lógica devastadora do mercado, que permeou o processo de construção, desconstrução e reconstrução das políticas públicas que formam o tripé da Seguridade Social no Brasil, dadas as suas particularidades.
A corrente mais nítida e antiga é a mais óbvia. Fundamenta-se no suposto de que a política social como via de efetivação de direitos substantivos e universais não logra conciliar liberdade e igualdade porque obsta a liberdade, reduz o espaço de livre- arbítrio, produzindo uma falsa (ou ameaçadora) igualdade. A política social, portanto, deve ser concebida como alívio ou como compensação pelos prejuízos que a desigualdade, inevitavelmente, causa a alguns. Ou seja, estritamente focalizada – saúde pública para os pobres, educação gratuita para quem precisa, medidas assistenciais com alvos delimitados, enfim. (VIANNA, 2005, p. 127).
Em linhas gerais, podemos afirmar que os imperativos do neoliberalismo desenham contornos próprios aos sistemas de proteção social, consolidando uma perspectiva coercitiva e fatalista, que determinam critérios de elegibilidade e padrões mínimos de atendimento às demandas sociais, a partir da compreensão que subjuga a sociedade à lógica internacional de mercado quase inescapável, que ajusta e regula a política de proteção social em escala global. O mercado, então, passa a ser identificado como o único e exclusivo estruturador da sociedade e de suas políticas, obscurecendo horizontes de possibilidades outras, e, assim, impondo barreiras quase intransponíveis aos princípios de responsabilidade pública e social do Estado frente aos direitos sociais até aqui conquistados.
O intuito da nova ordem societária é despolitizar a questão social, promovendo processos alienantes de precarização, mercantilização e subordinação do público ao privado. A perspectiva é transformar a política de saúde em uma mercadoria disponível no mercado dos planos privados, a previdência em uma modalidade dos seguros sociais e assistência social como política focal e estruturadora, transformando o cidadão, até aqui dotado de direitos sociais, em mero consumidor, ou ainda, colocando-o abaixo da linha da pobreza, onde é identificado como cidadão miserável.
É neste contexto de privatização e mercantilização, apresentado como inevitável e inexorável, que se insere a política de saúde, sobre a qual nos debruçaremos a seguir, com mais detalhes.
3 AS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS E A PERSPECTIVA DA “NOVA” GESTÃO DA SAÚDE
Atrelada ao movimento societário, suas contradições e transformações, a saúde se consolidou historicamente como um campo de construção de conhecimento e práticas sociais de suma importância do ponto de vista das relações políticas, sendo, portanto, prioritária no contexto de elaboração das políticas sociais. Deste modo, podemos compreender que a saúde está intrinsecamente atrelada aos determinantes sócio-históricos e culturais que definem e atravessam as condições de vida e trabalho da sociedade, que por sua vez, é parte e expressão de uma estrutura macrossocietária em escala global. A cada período, um lastro histórico, com características peculiares, capazes de influenciar os contextos sociais subsequentes e conceder contornos próprios à política de saúde, produto das relações sociais antagônicas e conflitos entre classes.
No Brasil, a intervenção estatal ocorre apenas no início do século XX, quando a saúde emerge como expressão da questão social, refletindo o avanço da divisão social do trabalho e, consequentemente, o crescente processo de reivindicação do movimento operário, no interior da economia capitalista exportadora cafeeira. Neste período, a política de saúde assumia um caráter nacional, estando estruturada entre a saúde pública e a medicina previdenciária, embora tenha conservado características de períodos anteriores de filantropia e prática liberal, revelando um padrão de oferta de serviços de saúde extremamente diversificado que combina ações públicas estatais, intervenções de organizações religiosas de caridade e filantropia de grupos.
No período compreendido entre 1964-1974, o binômio repressão-assistência surge como a face da intervenção do Estado, que objetiva ampliar seu poder de regulação sobre a sociedade, suavizando tensões e legitimando o regime, através de uma política assistencial ampliada, burocratizada e modernizada. Em meados dos anos de 1970, ainda no interior de um contexto extremamente autoritário, a saúde brasileira apresenta novos sinais de crise, com o sucateamento das instituições públicas de saúde e a baixa qualidade dos serviços prestados, evidenciando um período de profunda crise orgânica do Estado, caracterizada por uma crise de ordem econômica e política como pano de fundo. Concomitantemente, a esfera da saúde demonstra traços de crise em relação ao modelo médico-assistencial privatista, associado a um momento de insatisfação e descontentamento crescente da população, diante de um modelo de assistência à saúde individualista, descoordenado, justaposto e desorganizado.
Na conjuntura de crise de legitimação do regime autoritário, caracterizada por alguns autores como distensão política, a ascensão do movimento operário e popular e de outros movimentos e organizações políticas de oposição já mencionados contribuiu para o fortalecimento da sociedade civil e para a ampliação do processo de negociação dos movimentos com o Estado, na defesa dos direitos mínimos da cidadania. (BRAVO, 1996, p. 39).
Os anos de 1980 experimentaram um amplo processo de democratização do país, que propunha a superação do regime ditatorial do período anterior e a profunda crise econômica atribuída ao governo autoritário. A chamada transição democrática contou com a participação de novos sujeitos sociais, que conduziram a discussão em torno da saúde a uma dimensão política que ultrapassa a perspectiva setorial e técnica até aqui observadas. A consideração dessas questões conduziu a lógica do movimento da reforma sanitária a uma proposta condizente de reformulação do sistema de saúde, pautada nos ideais de democracia, universalização e equidade. Em linhas gerais, podemos, então, compreender o movimento da Reforma Sanitária como um importante processo histórico, que contribuiu efetivamente para a construção de um novo sistema nacional de saúde, por intermédio da reorganização e redimensionamento do setor saúde, de modo a suscitar os ideais de universalização do acesso e igualdade no atendimento.
Desta maneira, a saúde passa a ser concebida como um direito de cidadania, se configurando como um dever do Estado, garantido em diversos instrumentos legais, com destaque para a CF de 1988. Neste contexto, a saúde rompe com os limites tecnicistas que conferiam contornos a sua política e assume uma dimensão política e ideológica, que por sua vez, está fundamentalmente associada aos movimentos democráticos do período. Observa-se um amplo processo de transformação da saúde, com a mudança do seu arcabouço e suas práticas institucionais, que significou a politização da questão da saúde e o redirecionamento do papel do Estado.
A mudança do arcabouço e das práticas institucionais foi realizada através de algumas medidas que visaram o fortalecimento do setor público e a Universalização do atendimento; a redução do papel do setor privado na prestação de serviços de saúde; a descentralização política e administração do processo decisório da política de saúde e a execução dos serviços ao nível local, que culminou com a criação do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS) em 1987 e depois, em 1988, SUS (Sistema Único de Saúde), passo mais avançado na reformulação administrativa no setor. (BRAVO, 2009, p. 98-99).
No entanto, é importante destacar que o projeto da Reforma Sanitária se conformou simultaneamente ao avanço da ideologia de cunho neoliberal, e, portanto, à coexistência de dois projetos políticos e ideológicos antagônicos. Assim, paralelo aos ideais revolucionários contidos na Reforma Sanitária, observou-se o avanço da ofensiva neoliberal, cujas bases teóricas e ideológicas vão de encontro à perspectiva universalizante contida no processo de reformulação da política de saúde.
As repercussões da proposta neoliberal no campo das políticas sociais são nítidas, tornando-se cada vez mais focalizadas, mais descentralizadas, mais privatizadas. Presencia- se a desorganização e destruição dos serviços sociais públicos, em consequência do ‘enxugamento do Estado’ em suas responsabilidades sociais. A preconizada redução do Estado é unidirecional: incide sobre a esfera de prestação de serviços sociais públicos que materializam direitos sociais dos cidadãos, de interesse da coletividade. (IAMAMOTO, 2001, p. 36).
No âmbito da saúde, portanto, a Reforma Administrativa, sob a égide dos imperativos neoliberais, encontrou na legislação do SUS o principal obstáculo para a reconstrução da política de saúde na perspectiva de uma ideologia mercantilizadora. Neste sentido, a proposta capitalista de reorganização da política de saúde objetiva a desconstrução dos ideais da Reforma Sanitária dos anos de 1980, quando a saúde é tratada pela primeira vez na história do país como direito universal. A lógica seria vincular a saúde ao mercado e assim, promover parcerias com a sociedade civil, em detrimento de uma política estatizante e da administração pública. O Estado deixaria, então, de ser o responsável direto pelo desenvolvimento econômico e social, transferindo para o setor privado suas funções, que progressivamente perdem o caráter público. Trata-se da criação de uma esfera pública não-estatal, que obedece às leis do mercado, consolidando o caráter focalizado da saúde, com ampliação da privatização, descentralização dos serviços em âmbito local e prioridade da assistência médico-hospitalar em contraposição às ações promoção e proteção à saúde.
O projeto de saúde, articulado ao mercado, ou a reatualização do modelo médico assistencial privatista, está pautado na Política do Ajuste, que tem como principais tendências a contenção dos gastos com racionalização da oferta e a descentralização com isenção de responsabilidade do poder central. A tarefa do Estado, nesse projeto, consiste em garantir um mínimo aos que não podem pagar, ficando para o setor privado o atendimento dos que têm acesso ao mercado. (BRAVO, 2009, p. 101).
O Estado assume, então, novos contornos ao implementar políticas de desregulamentação, privatização e terceirização dos serviços públicos, fortalecendo e consolidando políticas sociais de caráter focalista e transformando tudo em mercadoria, inclusive as políticas de proteção social, entre as quais está a saúde. Neste contexto, os modelos empresariais de administração se consolidam como perspectiva de gestão ideal e coerente para conduzir as políticas públicas, dentro de uma lógica mercantil e tendo o capital como locus privilegiado. O Plano Diretor da Reforma do Estado de 1995, no bojo desta conjuntura, propõe a consolidação de um Estado mais flexível, com ênfase no controle dos resultados. A perspectiva seria implantar e promover o processo de descentralização e terceirização, sob diferentes possibilidades: Contratos de Gestão, O.S. (1998), Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) (1999), Organizações Não-Governamentais (ONG) e Fundações Estatais de Direito Privado (2007).
As O.S. surgem, portanto, no país, como um novo modelo de gestão pública, revestido por uma faceta popular, que estaria em consonância com os princípios do SUS, embora sua proposta seja clara no sentido de defini-las como entidades de direito privado. Tal fenômeno, cujos marcos legais surgem ao longo dos anos de 1990, combinam a perspectiva de uma gestão empresarial enxuta e desburocratizada com o discurso fatalista em torno de uma administração estatal incapaz de garantir e gerir investimentos adequados às políticas públicas. Neste sentido, observa-se um plano de gestão flexível e autônomo, com ênfase no aumento de desempenho e geração de resultados, sempre sob a ótica capitalista mercantil, que visa racionalizar os gastos e otimizar os recursos. O intuito consiste em introduzir representantes do capital nas unidades e serviços públicos e criar mecanismos para reprodução da mais-valia no interior da máquina pública, em um evidente movimento de refluxo do Estado no que se refere a sua função protetora. Propõe-se uma lógica de organização e administração baseada no consenso, sem luta e de aceitação da ordem vigente, ou seja, uma participação passiva de indivíduos, que progressivamente perdem sua capacidade de representação coletiva.
As “reformas” que se impuseram no âmbito do Estado e em suas instituições tiveram efeitos solidamente regressivos, suprimindo ou mutilando direitos sociais antes consagrados. Uma larga bibliografia atesta, de forma indesmentível, o desastre social ocasionado pelos “ajustes estruturais” monitorados pelo Fundo Monetário Internacional e patrocinados pelo Banco Mundial. (PAULO NETTO, 2007, p. 150-151, grifos do autor).
Evidentemente, esse contexto impõe à política de saúde e à Seguridade Social como um todo, complexos paradoxos sociais tensionados por projetos societários antagônicos, em um dinâmico e incessante processo de lutas de classes e disputas ideológicas. De um lado, observamos as garantias constitucionais, resultante das conquistas da classe trabalhadora, tendo como principal marco legal a CF de 1988 e o conjunto de direitos sociais instaurados pela Carta Magma. De outro lado, concentram-se as configurações da ordem capitalista internacional e seu caráter regressive e conservador, que se configura como uma imponente ameaça aos direitos sociais conquistados e ao status de cidadania possível.
No âmbito da saúde, atualmente o desmonte da política pública perpassa pela evidente falácia de redução dos investimentos públicos e, consequentemente, pela deterioração e fragmentação dos serviços oferecidos, o que torna a política incipiente e residual, incapaz de proteger e promover saúde, uma vez que está atrelada à lógica dos mínimos sociais e, portanto, ainda se constitui a partir de uma lógica curativista que atua para o tratamento das demandas emergenciais e imediatas. O modelo de gestão proposto pelas O.S. na saúde e legitimado pelo poder público, fortalece no cenário político a lógica privatizante do capitalismo, consolidando os imperativos do capital no interior da política de saúde. A grande consequência dessa nova forma de pensar e conduzir os serviços de saúde está atrelada ao agravamento e expansão das expressões da questão social e a ruptura com o processo democrático do país, com reflexos sobre a qualidade da atenção à saúde e toda gama de direitos sociais conquistados.
4 ORGANIZAÇÕES SOCIAIS x REDES DE PROTEÇÃO SOCIAL NA SAÚDE: a experiência do Rio de Janeiro
Seguindo o direcionamento nacional dado à política de saúde, no Estado do Rio de Janeiro, como em outros Estados do país, as conquistas garantidas pela consolidação da legislação que concebe o SUS e seus princípios de universalização, equidade e integralidade, se conformaram no interior de um cenário de sucateamento dos serviços públicos, segmentação entre as políticas de proteção social e focalização da atenção, fortalecendo o discurso em torno da insuficiência do Estado na consolidação de serviços públicos de qualidade. O reflexo desta conjuntura de segmentação da política de saúde e precariedade dos serviços prestados conduz parcelas significativas da população à busca por serviços de saúde no âmbito do mercado privado, enquanto outros tantos, que não podem pagar por tais serviços, percorrem obrigatoriamente grandes trajetos ou enormes obstáculos para efetivar seu direito fundamental ao atendimento público de saúde, cada vez mais reservado à população miserável do país.
Neste sentido, identificamos o ressurgimento de velhas práticas institucionais, restaurando antigos padrões e modelos de atendimentos, pautados em ações curativas e medicamentosas, atreladas a um modelo médico-hegemônico, de tratamento dos sintomas sem, necessariamente, atuar a partir das causas das doenças, ou seja, alijado de uma perspectiva de prevenção e promoção à saúde. Assim, observamos que a proposta de Política de Saúde consolidada na década de 1980 foi sendo desconstruída imediatamente após a promulgação de seus marcos legais, que legitimaram os ideais da Reforma Sanitária. Deste modo, a saúde e seus dispositivos constitucionais e legais foram atravessados por um projeto societário capitalista, que rompeu com os princípios da equidade e integralidade previstos pelo SUS, em detrimento de uma prioridade dada à assistência médico-hospitalar pontual e focalizada.
O governo Fernando Henrique Cardoso lidera as mutações pelas quais passa o Estado brasileiro, com ênfase no âmbito da saúde; da lógica do seguro e não da Seguridade Social, da focalização em vez da universalidade, da privatização contra o investimento no serviço público, da desregulamentação e flexibilização dos direitos trabalhistas e da descentralização sem controle social. (ANDREAZZI, 2013, p. 65).
As Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) (24h) se constituíram neste contexto como um projeto político- ideológico, cuja perspectiva seria atender as exigências e demandas de saúde, resultantes das relações sociais neste período. A expectativa era o esvaziamento das emergências hospitalares e o atendimento das demandas de saúde-doença não contempladas pelos hospitais gerais, assim como, pelas unidades básicas de saúde. Tal modelo de atendimento na saúde está atrelado à Política Nacional de Urgência e Emergência, lançada pelo Ministério da Saúde (MS) em 2003, com o intuito de estruturar e organizar a rede de urgência e emergência no país. A primazia desta política representa, na verdade, uma perspectiva de gestão e organização da política de saúde com foco na competitividade, no aumento do desempenho e na geração de resultados.
Contraditoriamente, a Política Nacional de Urgência e Emergência hospitalar é concebida, neste contexto, com a finalidade de promover a articulação e integração de todos os equipamentos de saúde, com o objetivo expresso de ampliar e qualificar o acesso aos serviços, dentro de uma perspectiva humanizada e integral, que possibilite aos usuários em situação de urgência/emergência a oferta de serviços de saúde, de forma ágil e oportuna. Entretanto, sua efetivação, materializada na expansão do modelo de atendimento proposto pelas UPAs, revelam aspectos de continuidade da política de saúde, tal como previsto pelo projeto privatista neoliberal. A ênfase da política continua fortemente marcada pelo caráter focalizador de suas ações, precarização e terceirização dos recursos humanos e serviços, contribuindo para a manutenção de uma estrutura segmentada e descoordenada.
Neste sentido, a proposta de integrar a atenção das urgências, à rede de atenção primária e ao atendimento de média e alta complexidade oferecido pelos hospitais gerais, fracassou ao não conseguir garantir a pactuação entre os diferentes níveis de atenção. As ações e serviços permaneceram descoordenados, justapostos e fragmentados, não sendo capaz de romper com a rigidez e o caráter focalizado da política de saúde, que fortalece o modelo de assistência médico- hospitalar segmentado e pontual. A população usuária dos serviços de saúde permanece sem referências para o atendimento de demandas relativas à promoção e proteção à saúde. Por outro lado, as UPAs - 24h viam suas estruturas e capacidade de atendimento limitadas, na medida em que não encontravam na rede hospitalar retaguarda para a continuidade da atenção. A falsa imagem de resolutividade e eficácia, vinculada ao atendimento das UPAs - 24h esconde na verdade, velhas mazelas da rede de atendimento à saúde, fortalecendo a lógica curativista e medicamentosa da saúde pública brasileira.
A proliferação de UPAs - 24h, seja sob gestão municipal e estadual, ou ainda, mais recentemente a inauguração das Coordenações de Emergências Regionais (CER), não foi capaz de atender as reais demandas da população usuária dos serviços de saúde, levando o projeto de atendimento à saúde a sofrer fortes críticas relativas à precarização de recursos humanos, superlotação das unidades, falta de equipamentos essenciais e ausência de resolutividade das demandas de saúde- doença. A conformação de suas estruturas revelou, na verdade, a mera transferência do lócus do atendimento das urgências e emergências de saúde. Sua concepção permanece, portanto, atrelada a ações individuais, relacionando a cura a um ato de consumo, e deste modo, fortalecendo a ideologia neoliberal, que considera a saúde estatal complementar ao mercado capitalista.
Com a hegemonia do capital financeirizado, a chamada contrareforma, que busca remodelar os Estados nacionais em nível mundial, promove um verdadeiro desmonte da política de saúde, castrando as possibilidades de o Estado responder às necessidades de saúde da maioria da população. No Brasil, e mais especificamente, no Rio de Janeiro, a transição político-partidária e as sucessivas mudanças na condução do governo e da política de saúde não significou alterações substanciais na lógica mercantil, que atravessa as políticas públicas do país, resvalando na qualidade da atenção à saúde. No Rio de Janeiro, a participação militar do Corpo de Bombeiros na administração das unidades de urgências evidenciou a reatualização do caráter conservador que sempre permeou historicamente a política de saúde do Brasil. Este seria apenas um traço da política de saúde do Estado, fundado em uma conjuntura de despolitização da sociedade e na concepção de democracia restrita.
A gestão, que em 2008 era do Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Rio de Janeiro (CBMERJ), passou, em 2011, a ser definitivamente da Secretaria de Estado de Saúde, que se dissociou da Secretaria de Defesa Civil neste mesmo ano. Este seria apenas o primeiro passo para a consolidação de um novo projeto de gestão que em janeiro de 2013 culminaria no loteamento das unidades de urgência, que passariam a ser administradas por diferentes O.S., conforme editais e contratos de gestão publicizados. Trata-se de um contexto político singular, que acompanha uma tendência nacional, materializada no Estado do Rio de Janeiro, uma vez que observamos nos últimos anos, o mesmo movimento no nível de atenção básica na gestão das chamadas Clínicas da Família e de setores essenciais dos hospitais gerais, como os Centros de Terapia Intensiva (CTI) e Maternidades e mais recentemente, hospitais gerais como um todo.
Assim, observamos que a política de saúde permanece sendo influenciada, ou melhor, determinada pelo resultado da correlação de forças antagônicas em disputa na sociedade capitalista contemporânea. Deste modo, as políticas públicas continuam atendendo aos interesses das classes dominantes, contribuindo para a reprodução da força de trabalho, inclusive do exército industrial de reserva, além de favorecer os interesses privados de geração de lucro e apropriação privada dentro da esfera pública. Estamos nos referindo a um complexo médico- industrial-financeiro sustentado por serviços auxiliares de diagnóstico e terapêutica, que cresceu assustadoramente nos últimos anos, consolidando os interesses privados do capital na saúde, também representado pela substituição de serviços próprios em hospitais por contratos com empresas privadas.
[...] poder-se-ia ressaltar que a rede de serviços sociais viabiliza ao capital uma ampliação de seu campo de investimentos, subordinando a satisfação das necessidades humanas à necessidade da reprodução ampliada do capital. As respostas às exigências básicas da reprodução da vida da classe trabalhadora, social e historicamente definidas, são transformadas, pela lógica que preside o processo de valorização, num meio de diversificação dos ramos de aplicação produtiva do capital. Assim, a qualidade dos serviços prestados subordina-se ao imperativo de rentabilidade das empresas. (IAMAMOTO; CARVALHO, 2007, p. 100-101).
Neste sentido, podemos compreender que a reprodução da força de trabalho e a geração de lucros representam os principais objetivos na relação entre a saúde e o processo de acumulação capitalista. A perspectiva do capitalismo é melhorar as condições de saúde do trabalhador, de maneira a possibilitar seu rápido retorno ao trabalho, e assim, obter a produção de mercadorias em melhores condições, ou seja, mais produtos no menor tempo possível. Nesta conjuntura, a medicina também assume relevância no âmbito político, uma vez que suas construções ideológicas são manipuladas de modo a encobrir relações sociais desiguais, estabelecidas historicamente entre a classe trabalhadora e as frações de classes dirigentes do país. A saúde, portanto, representaria um campo privilegiado de reprodução da ideologia capitalista, acentuando traços de individualismo e do próprio liberalismo, que por sua vez, favorece o deslocamento da ação coletiva e preventiva para uma ação meramente curativa e individual.
A política de saúde, portanto, é capaz de revelar claramente as antinomias de dois projetos antagônicos em disputa, expressas na gestão e organização dos serviços públicos de saúde e consequentemente, nos direitos constitucionais de cidadania. O modelo de gestão da saúde, hoje predominante no Estado do Rio de Janeiro, se configura com a expressão máxima das contradições entre público e privado, colocando em xeque a linguagem pública inerente aos direitos sociais, na perspectiva de demolição das referências públicas em nome de ideais mercantilistas. O velho discurso do Estado burocrático, marcado pela rigidez e anacronismo de suas ações, subsidia o discurso que confere status de modernidade e eficiência às organizações do Terceiro Setor ou O.S. Estas, por sua vez, surgem no cenário nacional como alternativas possíveis, dotadas de virtudes solidárias e empreendedoras, capazes de oferecer serviços públicos eficientes, flexíveis e dinâmicos, de maneira competitiva e livre das amarras ou tutela do Estado.
E é nesses termos que faz a defesa do Terceiro Setor definido como um espaço público não- estatal no qual atividades de interesse público podem ser desenvolvidas sem os constrangimentos burocráticos do Estado e à margem dos imperativos de lucro do mercado. (TELLES, 1999, p. 13)
O discurso de eficiência e solidariedade, que confere às O.S. a imagem de modernidade, omite, na verdade, as contradições inerentes a este modelo de gestão, que interferem e colocam em risco os ideais democráticos construídos historicamente na relação entre Estado e sociedade, descaracterizando a própria concepção de cidadania e direitos, e, consequentemente, os sistemas de proteção social. A saúde que deveria abranger ações e serviços organizados em uma rede regionalizada e hierarquizada, compondo um sistema único, passa a estar subordinada aos interesses mercantis do Terceiro Setor, que através de editais públicos, reorganizam a rede de serviços aleatoriamente, provocando profundas fraturas que condenam a política de saúde enquanto sistema de proteção unificado. As diretrizes de descentralização, atendimento integral e participação da comunidade passam a ter um significado irrisório diante das prerrogativas do capitalismo.
Neste sentido, a saúde, que na letra da lei permanece marcada por seu caráter universal, paulatinamente, é metamorfoseada em políticas de ações focais, onde prevalecem os objetivos de satisfação do mercado em detrimento dos reais interesses e necessidades da população usuária dos serviços. Os princípios de descentralização com direção única em cada esfera de governo e atendimento integral tornam-se consequentemente letras mortas. E o que antes era uma conquista ou um marco legal, um espaço político de negociações e disputas, agora obedece aos interesses do grande capital, que alija os trabalhadores de seu processo de construção e quer nos fazer acreditar que não há horizontes possíveis e destino diferente.
Esta conjuntura revela que o silencioso avanço da gestão das O.S. sobre os serviços de saúde no Rio de Janeiro representa um complexo processo de reordenamento da saúde, que atravessa e interfere diretamente sobre as relações sociais como um todo, com rebatimentos sobre a construção e consolidação da política de saúde. O debate específico sobre o modelo de gestão das O.S. na saúde nos remete a análises sobre os projetos políticos e ideológicos em disputa ao longo do movimento histórico de nossa sociedade. Muito além de representar uma discussão entre público e privado, as reflexões pertinentes à lógica de gestão proposta pelas O.S. refletem como um prisma sobre questões fundamentais para a consolidação da cidadania. Estamos nos referindo a conceitos e categorias analíticas que revelam as múltiplas expressões da questão social no Brasil. Deste modo, podemos afirmar que a reflexão, análise e desvendamento das contradições presentes no novo modelo de gestão da saúde pública no Rio de Janeiro suscitam indagações sobre questões relativas aos direitos sociais, integralidade das ações, acesso aos serviços de saúde, controle e participação social e relações de trabalho, demonstrando as múltiplas conexões entre o debate da política de saúde na contemporaneidade e as transformações históricas e sociais que atravessam a sociedade.
5 CONCLUSÃO
Muito além do debate sócio- histórico, a conformação do modelo de gestão proposto pelas O.S. na saúde tem sido alvo de profundas críticas quanto a sua idoneidade, efetividade e capacidade de organização e oferta de serviços de saúde de qualidade, em consonância com as diretrizes e princípios previstos nos principais instrumentos e marcos legais do país. Escândalos de corrupção e denúncias de precarização e privatização dos serviços por meio das O.S. têm marcado a breve trajetória desse novo modo de pensar e gerir a saúde no Rio de Janeiro.
A denominada crise financeira declarada no Estado do Rio de Janeiro, reflexo de um amplo movimento recessivo em escala nacional, expôs a fragilidade da administração das O.S., deflagrando uma profunda crise na saúde, que culminou na ausência de insumos básicos para atendimento da população usuária, atraso no salário dos trabalhadores, não pagamento de fornecedores e prestadores de serviço e fechamento de algumas unidades de saúde e setores essenciais, como CTIs e muitos outros serviços.
Alvo de auditorias do Tribunal de Contas do Estado (TCE) e do Município (TCM) do Rio de Janeiro, a gestão das O.S. revela que a chamada crise da saúde não é meramente orçamentária, apontando cifras milionárias mal administradas, com denúncias dos movimentos sociais e órgãos competentes de compra de medicamentos superfaturadas e contratos com prestadores de serviços sem licitação e outra forma de controle social, tal como previsto na legislação que regulamenta a saúde.
Todas essas questões incidem diretamente sobre a qualidade dos serviços prestados, colocando em xeque o direito fundamental à saúde, de caráter universal e igualitário. Os ideais mercantilistas que norteiam a tomada de decisões, neste contexto, prevalecem em detrimento do direito de cidadania e das reais demandas e interesses da população usuária dos serviços de saúde. Trabalhadores de todas as classes são ideologicamente engolidos e amedrontados pelo risco do desemprego. Perdem seu caráter combativo e subordinam-se aos interesses do capital, reproduzindo a lógica excludente do capital em suas ações e na atenção à saúde. Os números se sobrepõem à qualidade dos serviços oferecidos, numa lógica alienante e patológica. A saúde passa, então, a ser palco de grandes negócios, acordos e contratos, firmados à mercê da perspectiva da saúde enquanto direito social e política pública.
Trata-se de um cenário desafiador, que convida teóricos e movimentos sociais a pensar e refletir criticamente sobre esta conjuntura, ultrapassando a esfera da denúncia propriamente dita, para pensar alternativas possíveis, que recoloquem no caminho da saúde os ideais experimentados e defendidos pelo movimento da Reforma Sanitária, de igualdade e justiça social. O desafio é ampliar o debate, compreender suas implicações legais e as perdas frente às conquistas sócio-históricas materializadas em direitos sociais, postos em xeque pelo novo modo de pensar e gerir a saúde. Dar amplitude e visibilidade a um debate escamoteado pelo corolário capitalista, que avança silenciosamente, desregulamentando direitos, fragilizando as relações sociais e imprimindo uma lógica cruel de elegibilidade a partir dos determinantes e interesses mercantis.
REFERÊNCIAS
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