Entrevista
POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE: impasses e perspectivas à universalização do atendimento. ENTREVISTA ESPECIAL COM MARIA INÊS SOUZA BRAVO
POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE: impasses e perspectivas à universalização do atendimento. ENTREVISTA ESPECIAL COM MARIA INÊS SOUZA BRAVO
Revista de Políticas Públicas, vol. 20, núm. 1, pp. 221-231, 2016
Universidade Federal do Maranhão
Entrevistadora: Marly de Jesus Sa Dias1 Realizada em fevereiro de 2016
Maria Inês Souza Bravo possui graduação em Serviço Social pela Universidade Gama Filho, mestrado em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), doutorado em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pós-doutorado em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com estágio pós–doutoral na Universidade Católica de Lisboa (UCP).
Atualmente é professora associada da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e aposentada da UFRJ. É coordenadora do Grupo de Pesquisa registrado no CNPq Gestão Democrática da Saúde e Serviço Social e dos Projetos Políticas Públicas de Saúde: o potencial dos Movimentos Sociais e dos Conselho s do Rio de Janeiro e Saúde, Serviço Social, Movimentos Sociais e Conselhos.
Autora de diversos livros e artigos, cabendo destacar: Saúde e Serviço Social no capitalismo: fundamentos sócio-históricos (São Paulo: Cortez, 2013); Serviço Social e reforma sanitária: lutas sociais e práticas profissionais (São Paulo: Cortez, 2011); Movimentos sociais saúde e trabalho (Rio de Janeiro: ENSP/Fiocruz, 2010), em parceria com Vanda D’Acri Soares e Janaína Bilate Martins e Assessoria, consultoria & Serviço Social (São Paulo: Cortez, 2010), em parceria com Maurílio Castro de Matos.
Tem se destacado por sua história de luta em prol da Reforma Sanitária e contra a privatização da saúde publica. É uma das representantes da Frente Nacional Contra Privatização da Saúde pelo Fórum de Saúde do Rio de Janeiro.
Entrevistadora - Como se deu a contribuição dos sujeitos políticos integrantes do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira (MRSB) ao processo de redemocratização política ocorrida no Brasil nos anos de 1980 que possibilitou a conquista da saúde como direito de cidadania e política de seguridade social e a que projeto societário o MRSB se vinculou?
Maria Inês Souza Bravo - No final dos anos 1970, com o processo de abertura política e, posteriormente, com a redemocratização do país, ocorreu na saúde um movimento significativo que contou com a participação de novos sujeitos sociais na discussão das condições de vida da população brasileira e com propostas governamentais apresentadas para o setor, o que contribuiu para um amplo debate. Os sujeitos políticos que entraram em cena, postulando a democratização da saúde, em um período de luta contra a ditadura civil-militar foram: os estudantes; os professores universitários; os trabalhadores da saúde, defendendo questões como a melhoria da situação saúde e o fortalecimento do setor público; o movimento sanitário, tendo o Centro Brasileiro de Estudos e Saúde (CEBES) como mecanismo de difusão e ampliação do debate; os partidos políticos de oposição e os movimentos sociais urbanos (BRAVO, 1996).
Em 1986, acontece a 8ª Conferência Nacional de Saúde, o marco mais importante na história da política pública de saúde neste país, que pode ser considerada como a Pré-Constituinte da Saúde. Esta Conferência, sendo a primeira com participação popular, contou com presença ampla de diversos segmentos da sociedade civil, desde as representações sindicais, conselhos, associações e federações nacionais de profissionais de saúde e movimentos sociais. Com o tema Democracia e Saúde, reuniu cerca de quatro mil e quinhentas pessoas – sendo mil delegados -, para discutir os rumos da saúde no país, a partir dos seguintes eixos temáticos: Saúde como dever do Est ado e dir eito do cidadão, Reformulação do Sistem a Nacional de Saúde e Financiament o Setorial. A 8ª Conferência Nacional de Saúde significou o momento de sedimentação do projeto da Reforma Sanitária brasileira, expresso no seu relatório final.
Toda esta movimentação foi articulada pelo Movimento Sanitário que elaborou a proposta da Reforma Sanitária brasileira que tem como caract erística central o fortalecimento do setor público, em oposição ao modelo de privilegiamento do setor privado (OLIVEIRA; TEIXEIRA, 1986) – implantado no período da ditadura do grande capital (1964 a 1974) – bem como, a politização da saúde com o objetivo de aprofundar a consciência sanitária2 e a análise da saúde no contexto mais amplo das desigualdades sociais, com o conceito de determinação social do processo saúde e doença.
O Projeto de Reforma Sanitária se vincula ao Projeto societário Democracia de Massas que defende a ampliação da democracia e dos direitos sociais tendo como prospecção o socialismo. Uma das palavras de ordem do movimento sanitário era: Saúde, Democracia e Socialismo.
Entrevistadora: Qual a importância da conquista da saúde em sentido ampliado e como direito de cidadania para a afirmação dos direitos sociais no Brasil?
Maria Inês Souza Bravo - No que tange ao modelo de proteção social, a Constituição Federal de 1988 é a mais progressista do país, onde a Saúde, conjuntamente com a Assistência Social e a Previdência Social integra a Seguridade Social. À saúde coube cinco artigos (arts. 196 - 200) e nestes está inscrito que esta é um direito de todos e dever do Estado, e a integração dos serviços de saúde de forma regionalizada e hierárquica, constituindo um sistema único.
É evidente que esta conquista não foi dada, na medida em que no processo constituinte foi visível a polarização da discussão da saúde em dois blocos antagônicos: um formado pela Federação Brasileira de Hospitais (FBH) e pela Associação das Indústrias Farmacêuticas (internacionais) que defendia a privatização dos serviços de saúde, e outro denominado Plenária Nacional da Saúde, que defendia os ideais da Reforma Sanitária, que podem ser resumidos como: a democratização do acesso, a universalidade das ações e a descentralização com controle social.3 A premissa básica é a compreensão de que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado. A vitória das proposições da reforma sanitária deveu-se a eficácia da Plenária, via sua capacidade técnica, pressão sobre os constituintes e mobilização da sociedade, via Emenda Popular assinada por cinquenta mil eleitores e cento e sessenta e sete entidades (TEIXEIRA, 1989; BRAVO, 1996).
Entrevistadora - Passados 27 anos de sua conquista, a efetivação do direito à saúde e dos princípios e diretrizes do SUS enfrentam dificuldades que vêm impedindo a plena implementação das garantias conquistadas na Constituição de 1988, sobretudo com o aprofundamento do processo de privatização da saúde. Concretamente, quais os impactos financeiros, sociais, políticos e de assistência para a política de saúde no país?
Maria Inês Souza Bravo - O projeto político econômico consolidado no Brasil, a partir dos anos 1990, projeto neoliberal, confronta-se com o projeto da reforma sanitária, construído na década de 1980.
O projeto da reforma sanitária é questionado e consolida-se na segunda metade dos anos 1990, o projeto de saúde articulado ao mercado ou privatista. Este último, pautado na política de ajuste, tem como tendências a contenção dos gastos com a racionalização da oferta e a descentralização com isenção de responsabilidade do poder central. Ao Estado cabe garantir um mínimo aos que não podem pagar, ficando para o setor privado o atendimento aos cidadãos consumidores. Como principais características destacam-se: o caráter focalizado para atender as populações vulneráveis, a desconcentração dos serviços e o questionamento da universalidade do acesso.
Nesse período, assistiu-se o redirecionamento do papel do Estado, influenciado pela Política de Ajuste Neoliberal e é gestada pelo capital a cultura política da crise (MOTA, 1995). Essa estratégia busca adesão dos trabalhadores para viabilizar a contrarreforma do Estado4 e o desmonte dos mecanismos de proteção social, fragilizando a luta dos movimentos sociais por direitos.
O movimento sanitário, sujeito político fundamental na formulação do Projeto de Reforma Sanitária na década de 1980, ficou recuado a partir dos anos 1990.
Nos governos do PT, a política de saúde sofreu os impactos da política macroeconômica. As questões centrais não foram enfrentadas, tais como a universalização das ações, o financiamento efetivo, a Política de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde e a Política Nacional de Medicamentos. Diversas questões são evidenciadas como a precarização e terceirização dos trabalhadores, a privatização da saúde com a adoção dos chamados novos modelos de gestão, bem como o fornecimento de subsídios ao setor privado e a articulação com o capital estrangeiro.
Na atualidade, três projetos disputam o setor saúde no país, com consequências diretas para os usuários do Sistema Único de Saúde (SUS): o projeto da Reforma Sanitária, herdeiro das propostas do movimento sanitário brasileiro das décadas de 1970/1980, que defende a ampliação dos investimentos públicos para a expansão do setor estatal nos níveis federal, estadual e municipal, suplantando progressivamente a complementariedade do setor privado, garantindo acesso universal e irrestrito a toda a população aos serviços de saúde; o projeto da Reforma Sanitária Flexível , que se adequa ao contexto do subfinanciamento da saúde, acreditando na otimização da gestão e na responsabilização dos profissionais de saúde para a efetivação do SUS possível, mesmo que isso envolva concessões que contrariam os interesses dos trabalhadores e o pleno usufruto do direito à saúde; e o projeto Privatista, que faz da mercantilização da vida, através da ampliação do setor privado na oferta de serviços de saúde, tanto no livre mercado quanto por dentro do SUS, a fonte de lucros de que se alimenta. Infelizmente, este é o projeto hegemônico hoje na saúde.
O que se evidencia é que o projeto Privatista vem se fortalecendo no Brasil, subordinando a saúde à lógica do capital. Este processo tem se dado através da renúncia fiscal e do subsídio à expansão desordenada dos planos e seguros privados de saúde, tornando o Brasil o segundo mercado mundial de seguros privados, perdendo apenas para os Estados Unidos. Destacam-se também a isenção de impostos aos grandes hospitais privados, como o Sírio Libanês, Albert Einstein, entre outros; bem como as desonerações fiscais para a importação e produção interna de equipamentos e insumos biomédicos, inclusive medicamentos. Outra questão tem sido a alocação progressiva de recursos públicos do SUS junto ao setor privado, através de convênios e contratos. Por último, ressalta-se a adoção de mudanças de caráter privatizante no arcabouço jurídico institucional, criando condições para a atuação de novos modelos de gestão junto ao SUS, que será abordado na próxima questão.
Entrevistadora - A disseminação dos novos modelos de gestão, a exemplo das Organizações Sociais (OS’s), Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips), Fundações de Direito Privado e parcerias público-privadas, Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) apesar de contrárias aos princípios do SUS, fez com que as terceirizações e quarteirizações da saúde pública se tornassem epidêmicas em todo o país. Que consequências, diretas e indiretas, presentes e futuras, isso traz para usuários, trabalhadores do SUS, enfim, para a sociedade em geral?
Maria Inês Souza Bravo - Estes novos modelos de gestão se expressam em distintas modalidades, algumas com personalidade jurídica de direito privado sem fins lucrativos, como as Organizações Sociais (OSs) e as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs), criadas pelo governo de FHC; e outras, em Fundações Estatais de Direito Privado (FEDPs), proposta surgida durante o segundo governo Lula e já implantada, através de leis próprias, em diversos Estados e Municípios. Destaca-se também a criação da EBSERH, durante início do governo Dilma, voltada para os Hospitais Universitários (HUs) e demais hospitais sob responsabilidade federal, e que já começa a ser replicada em outras esferas, como é o caso do Rio de Janeiro, com a Rio Saúde.
Em todas estas modalidades de gestão aprofundam-se a precarização do trabalho e o desr espeito para com o controle social, constituindo-se formas mascaradas de privatização que ameaçam o direito à saúde, pois entregam a gestão das unidades de saúde, patrimônio, equipamentos, serviços, trabalhadores e recursos públicos para entidades de direito privado. Essas modalidades de mercantilização da saúde constituem um grave e intenso ataque contra o SUS, ameaçando o seu presente e inviabilizando o seu futuro. Tem-se como exemplo a Crise da Saúde vivida no Rio de Janeiro, no final de 2015 e início de 2016, em que os hospitais geridos pelas Organizações Sociais foram fechados, e evidenciou-se, em todas elas, denúncias de corrupção.
Este é um cenário em que cada vez fica mais clara a transformação do SUS em um Sistema Nacional de Saúde totalmente dependente do setor privado, onde as áreas que interessam ao capital são entregues e seguem a lógica do mercado, auferindo lucros enormes aos grupos econômicos que fazem da doença um grande negócio, restringindo as ações públicas estatais a práticas de cuidados focalistas, revestidas de um assistencialismo de baixa qualidade, voltados a grupos e regiões menos favorecidas e sem a garantia de acesso a todos os níveis de assistência, rebaixando a pauta da saúde a uma lógica que nega a determinação social do processo saúde-doença.
Entrevistadora - A medida prioritária dos dois mandatos da presidente Dilma no campo da gestão dos HUs tem sido a polêmica criação e implementação da EBSERH. De fato, o que tem representado a implementação da referida empresa no atual contexto do SUS?
Maria Inês Souza Bravo - A EBSERH foi apresentada pelo Governo Federal como a única solução para a crise do maior complexo hospitalar público do país, resultante da progressiva redução de pessoal que assolou o setor público e da falta de investimentos para dar conta dos objetivos dos HUs: ensino, pesquisa, extensão e assistência à saúde.
A principal justificativa para criação da Empresa apresentada pelo Governo Federal seria a necessidade de regularizar a situação dos funcionários terceirizados dos HUs em todo o país.
Considera-se que as saídas para esta crise consistiriam na alocação de mais recursos financeiros para os HUs e na realização de concursos públicos para suprir a carência de recursos humanos, regidos pelo Regime Jurídico Único do Servidor Público Civil da União.
Entretanto, o Governo Federal apresenta como saída a EBSERH, cuja constitucionalidade está sendo questionada pela ADI 4895, ajuizada pela Procuradoria Geral da República.
Apesar da massiva propaganda feita pelo Governo Federal em favor da Empresa, a EBSERH e alguns dos HUs geridos por ela já apresentam vários problemas, tais como: 1) irregularidades, prejuízos financeiros e insuficientes serviços de saúde aos usuários ; 2) indícios de desperdícios no uso do dinheiro público nas capacit ações de gestores da Empresa; 3) irregularidades nos concursos realizados pela EBSERH; 4) insatisfação dos empregados contratados pela EBSERH explicitada através da deflagração de greves; 5) Desrespeito à autonom ia universitária e aos órgãos colegiados de deliberação nos processos de adesão à EBSERH; 6) judicialização de demandas contra a EBSERH.
A Frente Nacional contra a Privatização da Saúde elaborou um Relatório analítico das irregulari dades e dos prejuízos à sociedade, aos tr abalhadores e ao erário causados pela Em presa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), baseados em pesquisa na imprensa e acompanhamento realizado por alguns Fóruns de Saúde em que exemplifica as questões explicitadas acima nos diversos hospitais que estão geridos pela EBSERH.
O documento da Frente ([20--?]) conclui com as seguintes afirmações:
· A EBSERH é uma empresa de direito privado, cujo objetivo é a exploração direta de atividade econômica, incluindo a produção de lucro. A gestão de hospitais universitários, cujas atividades – Educação e Saúde – caracterizam-se como serviços públicos de relevância e interesse social, não podem ser transformados em atividades econômicas.
· O Governo Federal anunciou que pretende transformar outros hospitais em Empresa, como é o caso da recém-criada subsidiária da EBSERH, Saúde Brasil, que almeja gerir outros hospitais federais e institutos no Rio de Janeiro. Além disso, a EBSERH vem gerindo os recursos do Programa Mais Médicos.
· A entrega dos HUs para uma empresa com personalidade jurídica de direito privado rompe com o caráter eminentemente público da Universidade e permite que a lógica do setor privado seja predominante nesse espaço.
· A autonomia universitária é quebrada e coloca-se em risco a liberdade de ensinar, estudar e pesquisar e o próprio processo de formação profissional. A predominância da lógica mercantil leva à priorização dos interesses do mercado privado da educação e da saúde, da indústria de equipamentos e medicamentos.
· Com a EBSERH, põe-se fim ao Regime Jurídico Único (RJU), pois os vínculos de trabalho com a empresa são geridos pela CLT. Em vez de servidores públicos sob o regime estatutário, teremos apenas empregados públicos, caso esta Empresa se estabeleça dentro das Universidades.
Entrevistadora - A experiência recente dos Fóruns estaduais de saúde fez emergir em 2010 a Frente Nacional contra a Privatização (FNCPS). Qual a importância desta Frente na luta em defesa da saúde pública? Como as lutas da Frente se vinculam a um novo projeto societário em oposição à atual política social viabilizada pelo Estado?
Maria Inês Souza Bravo - A Frente Nacional contra a Privatização da Saúde surge com o objetivo de defender o SUS universal, público, 100% estatal, sob a administração direta do Estado, e lutar contra a privatização da saúde e pela Reforma Sanitária formulada nos anos de 1980. É composta por diversas entidades, movimentos sociais, fóruns de saúde, centrais sindicais, sindicatos, partidos políticos e projetos universitários.
Os Fóruns da Saúde e/ ou Frentes estaduais existentes em diversos estados e municípios5 e a Frente Nacional têm se constituído em espaços de controle democrático na perspectiva das classes subalternas, na medida em que tem apontado como desafio estratégico resistir aos interesses do capital dentro do SUS, ou seja, a saúde como mercadoria e fonte de lucro. São espaços que congregam setores da esquerda, sendo uma frente anticapitalista.
A perspectiva da Frente é fortalecer as lutas contra a privatização nos estados e municípios, articulando e aprofundando-as em nível nacional. Os Fóruns e/ ou Frentes estaduais também têm se posicionado em defesa da qualidade dos serviços ofertados pelo SUS. Estes têm um grande desafio na construção de uma nova hegemonia no campo da saúde que reafirme o caráter público e estatal da saúde e o seu valor de uso, resistindo à sua utilização como mercadoria e fonte de lucro, perante a força dos aparelhos privados de hegemonia a serviço da reprodução dos valores e concepções de mundo da classe dominante que naturalizam as desigualdades sociais, despolitizam as expressões da questão social e criminalizam as reações dos movimentos sociais à devastadora destruição dos direitos sociais.
As estratégias dos Fóruns e Frent e para construção de uma nova hegemonia na saúde retomam o alicerce da Reforma Sanitária proposta nos anos de 1980 - saúde não é mercadoria - avançando no sentido da defesa da estatização da saúde e têm se dado de forma articulada no campo jurídico, no âmbito do parlamento, no conjunto da sociedade, nas ruas, no controle democrático do controle social , no âmbito da formação , nos meios de comunicação/opinião pública6.
Em síntese, a Frente Nacional tendo como referência o projeto da Reforma Sanitária que concebe a saúde como direito de todos e dever do Estado, vem se posicionando contra a privatização da saúde e em defesa da saúde pública estatal, universal e de qualidade, procurando articular as lutas no campo da saúde a um novo projeto societário.
Entrevistadora - Quais as conquistas e principais desafios da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde para o fortalecimento do SUS, da Reforma Sanitária e da Seguridade Social Pública no Brasil?
Maria Inês Souza Bravo - A Frente tem tido algumas conquistas. Foi responsável pela constituição de Fóruns de Saúde em vinte estados brasileiros: Alagoas, Bahia, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe e do Distrito Federal.
Tem conseguido, também, mobilizar diversas forças sociais, tais como: sindicatos de funcionários públicos; algumas centrais sindicais (CSP-Conlutas; Intersindical - Instrumento de Luta e Organização da Classe Trabalhadora; professores universitários de diversas universidades; entidades estudantis da área de saúde (Medicina, Enfermagem, Serviço Social, Farmácia, Nutrição); algumas entidades nacionais (ABEPSS, CFESS, ANDES, FASUBRA, FENTAS, FENASPS); alguns partidos políticos (PCB, PSOL, PSTU, e setores do PT, PC do B e PDT) e o MST.
Ressalta-se a sensibilização para criar núcleos ou setoriais de saúde em alguns partidos políticos (PSOL, PSTU, PCB) e em algumas centrais como a CSP-Conlutas. Cabe destacar a realização de seminários, debates e manifestações contra as parcerias público- privadas com destaque para a implantação e implementação das Organizações Sociais e da EBSERH em diversos estados e municípios brasileiros.
A Frente Nacional contra a Privatização da Saúde elaborou uma agenda, apontando algumas questões que dificultam a implantação do SUS público, Estatal, universal e de qualidade e destacando algumas propostas para a garantia do direito à saúde, em cinco eixos estruturantes: Determinação Social do processo saúde e doença - saúde no contexto mais amplo das desigualdades sociais; Gestão e Financiamento da rede pública estatal de serviços de saúde; Modelo Assistencial que garanta o acesso universal com serviços de qualidade, priorizando a atenção básica com retaguarda na média e alta complexidade; Política de Valorização do Trabalhador da Saúde e Efetivação do Controle Social.
Sobre o primeiro eixo, a Frente aponta para a necessidade de resgatar o conceito de det erminação social do processo saúde e doença tal como no Movimento da Reforma Sanitária. Isto significa inserir a saúde no contexto mais amplo das lutas pela supressão das desigualdades sociais, lutas antineoliberais e anticapitalistas com prospecção socialista, sem perder de vista as mediações desse processo no cotidiano das práticas da saúde, ou seja, articular as lutas pela saúde às lutas por outra sociedade.
Com relação à gestão e financiamento, ressalta a tendência em curso do fundo público ser colocado a serviço do financiamento do setor privado, seja através da compra de serviços privados pela rede pública, por meio de convênios, em detrimento da alocação de recursos públicos na ampliação dos serviços públicos, seja através do repasse da gestão, patrimônio, bens, serviços, servidores e recursos públicos para entidades privadas com os denominados novos modelos de gest ão. Tendência que está coerente com as recomendações dos organismos financeiros internacionais, dentro do programa de ajuste estrutural, de fortalecimento do setor privado na oferta de serviços de saúde. A Frente compreende que os problemas existentes no campo da gestão do SUS não se resolvem através de novos modelos de gestão, mas assegurando as condições materiais necessárias para a efetivação do modelo de gestão preconizado pelo SUS. Isto implica a necessidade de mais recursos para ampliação dos serviços públicos com gestão pública estatal e controle social efetivo.
Defende-se o modelo assistencial previsto no SUS constitucional que valoriza a prevenção e a promoção da saúde, a universalidade, a integralidade e a intersetoralidade das ações, na perspectiva de romper com o modelo centrado na doença e subordinado aos interesses lucrativos da indústria de medicamentos e equipamentos biomédicos, descolado das necessidades da população que ainda é hegemônico.
Destaca-se também que o processo de precarização dos serviços de saúde acontece em similitude com o processo de precarização do trabalho em saúde, tendo um forte rebatimento na qualidade dos serviços prestados à população usuária do SUS, visto que os serviços de saúde não se realizam sem o trabalho humano em todas suas dimensões. A Frente reivindica condições dignas de trabalho através da elaboração de uma política de valorização do trabalhador em saúde.
Por fim, no último eixo da agenda, sinaliza-se como desafio tornar os espaços institucionais de controle social de disputa para a efetivação do direito universal à saúde e para a defesa da saúde 100% pública e estatal, sob o comando direto do Estado. Aponta a experiência dos Fóruns de Saúde e da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde como espaços não institucionais de controle democrático importantes para fortalecer a participação social e o SUS.
Referências
BEHRING, E. R. Brasil em contra-reforma: desestruturação do Estado e perda de direitos. São Paulo: Cortez, 2003.
BERLINGUER, G. Medicina e política. 3. ed. Tradução Pe. Bruno Giuliani. São Paulo: Editora Hucitec, 1987.
BRAVO, M. I. S. Desafios Atuais do Controle Social no Sistema Único de Saúde (SUS). Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 88, 2006.
BRAVO, M. I. S. Serviço social e reforma sanitária: lutas sociais e práticas profissionais. São Paulo: Cortez/UFRJ, 1996.
FRENTE NACIONAL CONTRA A PRIVATIZAÇÃO DA SAÚDE. Relatório Analítico das irregularidades e dos prejuízos à Sociedade, aos Trabalhadores e ao Erário causados pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares – EBSERH. [S. l.]: [20--?]. Disponível
MOTA, A. E. Cultura da crise e seguridade social. São Paulo: Cortez, 1995.
OLIVEIRA, J. A. A.; TEIXEIRA, S. M. F. (Im)previdência social: 60 anos de história da previdência no Brasil. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: ABRASCO, 1986.
TEIXEIRA, S. M. F. (Org.). Reforma sanitária: em busca de uma teoria. São Paulo: Cortez, 1989.
Notas