Editorial
Resumo: Sem resumo
Com o tema “Previdência Social na América Latina: legado histórico e impasses contemporâneos”, a Revista de Políticas Públicas (RPP), v. 20, n. 2 (julho/dezembro 2016) visa a fomentar um debate bastante atual, relevante e controvertido, cuja pertinência se mostra inquestionável no atual contexto de crise estrutural do capital e de aprofundamento da ofensiva conservadora aos direitos sociais conquistados no bojo dos Sistemas de Proteção Social gestados no II Pós-Guerra.
Tal ofensiva encontrou campo fértil para se concretizar mais precisamente a partir do final da década de 1970 e início dos anos 1980 em um contexto de reestruturação capitalista que compreendeu um processo de financeirização da economia sem precedentes na história do capitalismo, além de transformações na base produtiva, acompanhadas de uma mudança significativa no padrão de regula- ção econômica e social, como resposta à crise de rentabilidade do capital iniciada no final dos anos 1960.
Particularmente no que tange às mudanças no padrão de re- gulação, em um contexto político-ideológico marcado pelo fim da guerra fria, pela ascensão de governos conservadores e vitória do pensamento neoliberal, a implicação de tais mudanças, no plano econômico, foi a ênfase na estabilização monetária e no equilíbrio orçamentário em detrimento do emprego, tendo como desdobramen- tos a redução dos gastos públicos, o incentivo às privatizações e a desregulamentação dos mercados.
Ao mesmo tempo, no plano social, assistiu-se a uma impor- tante inflexão passando-se das chamadas políticas de integração, de cunho universalista, para as políticas de inserção, de caráter residual e focalizado nos segmentos sociais mais vulneráveis. Segundo Castel (1998), enquanto as primeiras compreendiam ações voltadas para a ampliação do acesso aos serviços públicos, a redução das desigualdades sociais, o desenvolvimento das proteções e a consolidação da condição salarial, as segundas visam a reduzir o déficit de integração dos segmentos mais vulneráveis. Contudo, diferentemente das iniciativas clássicas de assistência, previstas nos sistemas de proteção social mais universalistas, tais políticas não têm mais como foco apenas as populações dispensadas do trabalho por razões legítimas, mas, principalmente, os trabalhadores vitimados pelo desemprego, cuja dificuldade de integração não decorre de fatores individuais de inadaptação. Trata-se dos válidos invalidados pela atual conjuntura de transformações regressivas no mundo do trabalho, dentre as quais se destacam o agravamento do desemprego e a crescente precariza- ção das relações de trabalho.
Na América Latina, em particular, a crise da dívida externa e a presença de vigorosos desequilíbrios macroeconômicos na região, na década de 1980, impuseram, sob a regência dos países centrais e de agências multilaterais, a adoção de novas medidas de gestão da política econômica por parte dos países periféricos inspiradas no Consenso de Washington. Os objetivos centrais do ajuste estrutural podem ser assim sintetizados: legar maior importância ao papel dos mecanismos de mercado e, por consequência, do setor privado; redefinir o papel do Estado na sua ação interventora; integrar os países periféricos, nesse caso, os da América Latina na economia mundial. (LIMA et al., 2014).
Tais objetivos, no plano macroeconômico, implicaram na implementação de um conjunto de políticas de austeridade fiscal e disciplina monetária, articuladas a um programa de corte nos gas- tos públicos, além de reformas administrativas, previdenciárias e fiscais. Já no plano microeconômico, destacaram-se as políticas de desoneração do capital, com vistas a aumentar a competitividade em um mercado internacional aberto e desregulado, consubstanciadas na diminuição dos encargos sociais e na racionalização das interven- ções nos sistemas de crédito público e fiscal. Todas essas políticas situadas em um contexto de mudança radical no modelo de industrialização pautado na substituição de importações. (LIMA et al., 2014).
Esse ajuste estrutural impactou fortemente nos sistemas de proteção social latino-americanos. Com efeito, os sistemas de pro- teção social configurados nos marcos do modelo de substituição de importações, predominantemente centralizados, setorializados, com aspiração de universalidade e administrados estatalmente, que ins- titucionalizavam garantias e direitos aos segmentos de trabalhado- res organizados e formalizados foram substituídos por sistemas de proteção social descentralizados, focalizados e com a ampliação de processos de privatização, segundo uma perspectiva residual-liberal, centrados em intervir na pobreza e nos pobres.
Especificamente no tocante à previdência social essa contra- reforma operou mudanças estruturais nos sistemas de aposentadorias e pensões, com a introdução do sistema de capitalização individual, em substituição ao sistema de repartição até então predominante, também conhecido como solidariedade entre gerações.
Nesse contexto, destacaram-se três tipos de reformas estruturais: um modelo substitutivo, que substituiu o modelo de repartição simples, gerido por sistemas públicos, pelo modelo de capitalização individual, gerido por fundos privados, tendo-se como principais exemplos Chile, Bolívia, México, El Salvador e Nicarágua; um mo- delo paralelo que não eliminou o sistema público, porém introduziu um sistema de capitalização individual que concorre e compete com o sistema público de repartição, situando-se neste modelo as experiências do Peru e da Colômbia; um modelo misto que agrega um sistema público, o qual assegura benefícios compulsórios básicos sob o regime de repartição e gestão pública, com um sistema pri- vado complementar, regido pelo sistema de capitalização individual, como foi o caso da Argentina, Uruguai e Costa Rica. Por fim, ocorreram as chamadas reformas não estruturais ou paramétricas, que não eliminaram o sistema público e nem introduziram um sis- tema privado como sistema geral, mas modificaram a abrangência e a estrutura dos benefícios e, ainda que não tenham substituído o sistema de repartição pelo de capitalização, abriram amplo merca- do para os planos privados de previdência, em geral geridos pelos bancos. É neste último modelo que se situa a experiência do Brasil, cuja contrareforma da previdência atingiu com maior impacto os trabalhadores regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e inseridos no Regime Geral de Previdência Social (RGPS), sobretudo aqueles do setor privado. (BOSCHETTI, 2009).
Cabe aqui salientar que, no Brasil, a lógica do seguro estrutu- rou e estabeleceu os critérios de acesso tanto da previdência quanto da saúde, enquanto a lógica do favor presidiu os critérios de acesso à assistência, desde a década de 1920 até a Constituição de 1988. Após a Constituição de 1988, que instituiu o tripé da Seguridade Social, a Previdência permaneceu condicionada a uma contribuição prévia, enquanto a Saúde passou a se constituir em uma política social universal e a Assistência em uma política não-contributiva, destinada a quem dela necessitar, conforme preconiza a LOAS.
Portanto, a Seguridade Social, após a contrareforma, longe de incorporar alternativas para incluir os milhões de trabalhadores informais e precarizados, restringiu os benefícios para aqueles que ainda possuem trabalho estável e acesso à previdência social.
Assim sendo, os principais efeitos perversos da contrarefor- ma foram aqueda na cobertura baseada nos contribuintes ativos, a crescente informalização da força de trabalho, uma concorrência inadequada das administradoras, o aumento significativo da acumu- lação de capital e o elevado custo fiscal. E, como solução buscada para minorar tais efeitos sobressaiu a expansão dos benefícios não-contribuintes, de natureza assistencial, focalizados em situações de extrema pobreza, cujos montantes são bastantes reduzidos.
Nesse contexto já tão adverso se reascende, hoje, sob a égide do governo não eleito do presidente Temer, em uma conjuntura de grave crise econômica, política e institucional, o debate em torno de nova ofensiva contra o sistema público de previdência social no Brasil. Tal ofensiva se orienta em direção à institucionalização do regime de capitalização, que nas palavras do Professor Drº. Evilásio Salvador, em entrevista concedida a este número da revista, significará “[...] o fim da solidariedade entre gerações de trabalhadores (as) no financiamento da previdência social [...], potencializando ainda mais a captura do fundo público pelo Capital Portador de Juros e colocando em risco as aposentadorias desses trabalhadores (as).”
É, portanto, em meio a esse acirrado debate que convido o leitor a mergulhar nessa temática, mediante o acesso ao rico material que compõe o volume 20, número 2 da RPP.
O presente volume abre, em caráter excepcional, com um balanço histórico do percurso da RPP no período de 1995 a 2015, motivado pela celebração dos 20 anos de existência desta revista e pela inauguração, neste volume, de sua condição, exclusivamente, como periódico eletrônico.
Dentre os artigos que constituem o dossiê temático desta edição, um primeiro grupo discute mais diretamente e em termos mais gerais os fundamentos das propostas de contrarreforma da previdência, assim como a disputa pelo fundo público implícita em tais propostas no atual contexto de mundialização do capital. Inserem-se neste grupo os artigos intitulados: “A aristocracia operária e a previdência complementar”, “A disputa do fundo público da previdência social no contexto da mundialização do capital” e “Tendências e impasses da seguridade social e o futuro da previdência no Brasil contemporâneo”.
Há um segundo conjunto de artigos, que se mostra predominante, voltado para a discussão de temas mais específicos situados no âmbito da política de previdência social. Neste conjunto enquadram-se os seguintes artigos: “A previdência social como determinante da distribuição de renda no Estado do Ceará”, “As alterações na legis- lação do benefício da pensão por morte e seus reflexos”, “Mercantilização da previdência social e a criação do regime complementar dos servidores públicos federais”, “Os servidores públicos estão aderindo a FUNPRESP?: um estudo em uma instituição federal de ensino”, “Seguridade social e participação: considerações sobre a política previdenciária no Brasil”, “Seguridade social, mínimo existencial e ativismo judicial”, “Superexploração da força de trabalho e previdência social na Amazônia”, “Trajetória da regulamentação dos benefícios eventuais: da previdência ao SUAS”.
Por último, um terceiro bloco de artigos que compõem o dossiê temático aborda de forma indireta o tema proposto tangenciando-o através da análise da destinação dos recursos tributários do fundo público nos governos Lula e Dilma e da nova gestão do social no Uruguai no contexto de avanço do neoliberalismo. Estes são os casos dos artigos: “Capital x Trabalho: destinação dos recursos tributários do fundo público federal nos governos LULA-DILMA” e “La nueva gestión de lo social em Uruguai: um avance de la ideologia neoliberal”.
O presente volume da revista contém ainda, na sessão destinada a temas livres, um artigo de cunho biográfico intitulado “A vida de Marx no tempo dos Grundrisse: notas biográficas entre 1857 e 1858” e um conjunto de artigos voltados para os mais diversos campos de intervenção das políticas públicas quais sejam: “As redes de políticas sociais e a política de educação”, “Determinantes da participação feminina no esporte no Nordeste do Brasil”, “Fomento federal ao etanol de segunda geração no Brasil: um exame da atuação da FINEP e do BNDES”, “La ‘inversión de la deuda’ em las políticas de assistência: ‘debt investment’ in aid policies”, “Para onde caminha a formação docente?”, “Pescadores artesanais e a expansão portuária na praia do Boqueirão, ilha de São Luís-MA”, “Residência multiprofissional em saúde: o olhar dos preceptores sobre o processo de ensino-aprendizagem”, “Revisitando a teoria e compreendendo a prática: análise de casos de pagamento por serviços ambientais” e “Serviços de saúde da Zona Leste de Teresina-PI: mecanismos de uso e gestão de territórios”.
Finalmente, brindamos o leitor com uma instigante e valiosa entrevista realizada pela Profª. Drª. Salviana de Maria Pastor Santos Sousa, do Programa de Pós-Graduação e Políticas Públicas (PPGPP) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), com o Profº. Drº. Evilásio Salvador, Economista, Doutor em Política Social pela Uni- versidade de Brasília (UnB), Pós-Doutor em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Professor do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-graduação em Política Social (PPGPS) da UnB, o qual assume uma postura claramente crítica em relação às atuais propostas de contrarrefor- ma da previdência. E ainda, para enriquecer o debate aqui proposto, complementamos o presente volume com a resenha do livro “Pre- vidência Social no Brasil: desestruturação do trabalho e condições para sua universalização”, publicado pela Cortez Editora, de autoria de Maria Lúcia Lopes da Silva, elaborada pela Profa. Dra. Cleonice Correia Araújo, Doutora em Políticas Públicas e Professora do Departamento de Serviço Social da UFMA.
Com este conjunto de trabalhos, a RPP espera contribuir para o debate acerca do legado histórico e impasses contemporâneos da previdência social na América Latina, que se constitui no foco do presente volume, bem como de outros temas atuais e relevantes afe- tos às políticas públicas na contemporaneidade.
Boa leitura!
REFERÊNCIAS
BOSCHETTI, I. Seguridade Social na América Latina. In: BOSCHETTI, I. et al. (Orgs.). Política social no capitalismo: tendências contemporâneas. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2009.
CASTEL, R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
LIMA, V. F. S. de A. et al. Contextualização socioeconômica e política dos PTRC na América Latina e Caribe. In: SILVA, M. O. da S. e (Coord.). Programas de Transferência de Renda na América Latina e Caribe. São Paulo: Cortez, 2014.