Entrevista

POLÍTICA PÚBLICA DE PREVIDÊNCIA SOCIAL NO BRASIL: impasses contemporâneos. ENTREVISTA ESPECIAL COM EVILÁSIO SALVADOR

Salviana de Maria Pastor Santos Sousa
Universidade Federal do Maranhão (UFMA, Brasil

POLÍTICA PÚBLICA DE PREVIDÊNCIA SOCIAL NO BRASIL: impasses contemporâneos. ENTREVISTA ESPECIAL COM EVILÁSIO SALVADOR

Revista de Políticas Públicas, vol. 20, núm. 2, pp. 715-729, 2016

Universidade Federal do Maranhão

ENTREVISTA

Evilásio Salvador é economista formado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestre e doutor em Política Social pela Universidade de Brasília (UnB) e pós-doutor em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor da UnB, onde atua tanto na graduação em Serviço Social quanto no Programa de Pós-graduação em Política Social (Mestrado/Doutorado).

Autor, entre outras publicações, dos livros: Renúncias Tributárias os Impactos no Financiamento das Políticas Sociais no Brasil; Fundo Público e Seguridade Social no Brasil; Financerização, fundo público e política social em coautoria com Elaine Behring, Ivanete Boschetti e Sara Granemann. Tem também diversos artigos publicados sobre orçamento público, tributação, seguridade social e financiamento das políticas sociais. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Seguridade Social e Trabalho (GESST/UnB), desenvolvendo pesquisas na área de Política Social e finanças públicas, com destaque para os temas seguridade social, previdência social e financiamento das políticas públicas.

Entrevistadora O Dossiê Temático da Revista de Políticas Públicas v. 20 n. 2 (julho/dezembro 2016) traz ao debate público o tema Previdência Social na América Latina: legado histórico e impasses contemporâneos. Trata-se de debate pertinente, dado que a instituição Previdência Social é parte do núcleo central dos ataques engendrados pelo pensamento liberal-conservador ao denominado Estado de Bem-Estar Social.

De fato, posto que para esse pensamento, o mercado é soberano e deve haver prevalência dos interesses individuais em relação aos interesses coletivos, a solidariedade que está na base do campo Seguridade Social, no qual se situa a Previdência Social, parece ir se constituindo, cada vez mais, em ideia ultrapassada e obstáculo às mudanças propugnadas.

Considerando, sua ampla produção nesse campo, que diferenças fundamentais você identifica entre as concepções de Seguro e de Seguridade Social e como se situa a configuração da Previdência Social brasileira nesse contexto?

Evilásio Salvador No Brasil, Seguridade Social é uma das principais conquistas da Constituição Federal (CF) de 1988, designando um conjunto integrado de ações do Estado e da sociedade voltadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. A concretização dessa conquista social passaria, por exemplo, pela efetivação do orçamento da seguridade social com a organização de fundo público redistributivo.

Existem dois modelos básicos que orientaram a implantação da seguridade social no capitalismo: o modelo bismarckiano e o modelo beveridgiano. O modelo bismarckiano tem por objetivo assegurar renda aos trabalhadores em momentos de riscos sociais decorrentes da ausência de trabalho. Ele é identificado como sistema de seguros sociais em função de sua semelhança com seguros privados. Já o modelo beveridgiano tem por objetivo principal o combate à pobreza e se pauta por direitos universais a todos os cidadãos incondicionalmente, sendo garantidos mínimos a todos os que necessitam. O financiamento é proveniente dos tributos e a gestão é pública/ estatal. Trata-se de um modelo baseado na unificação institucional e na uniformização dos benefícios.

No Brasil, estamos a meio do caminho entre seguro e seguridade social: permaneceram muitos princípios bismarckianos e nem todos os princípios do modelo beveridgiano foram incorporados. É o caso específico da Previdência Social que é acessada na modalidade seguro mediante a contribuição direta de trabalhadores e empregadores e sua gestão é centralizada no governo federal.

Em que pese a forte formalização nos últimos 14 anos, ainda 40 milhões dos trabalhadores estão em relações informais de trabalho, sendo que os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2014, indicam que 27,4% da população não é contribuinte ou segurado de qualquer regime previdenciário, o que atinge um contingente de 37 milhões de trabalhadores. Portanto, não há garantia de universalidade de acesso à Previdência Social, permanecendo na lógica de seguro, que foi ainda mais acentuada nos anos de neoliberalismo no Brasil.

Entrevistadora Em texto de 2005 (Implicações da Reforma da Previdência sobre o Mercado de Trabalho) você se refere a uma mudança gradual na Previdência Social brasileira, do modelo de repartição simples para o modelo de capitalização. Como você traduz essa situação para o momento atual?

Evilásio Salvador As reformas realizadas nos sistemas previdenciários da maioria dos países latino-americanos foram inspiradas nas orientações do Banco Mundial (BM), que explicitou suas propostas no estudo Envelhecer Sem Crise. Nesse documento, recomendava-se a substituição do modelo de repartição (redistributiva) por um novo, caracterizado pela implantação de um plano privado e obrigatório de capitalização por cotas definidas individualmente para os trabalhadores. As aposentadorias passam a ser baseadas em contribuições definidas e os benefícios dependem da acumulação dos recursos, sem prévia garantia dos valores a receber.

O sistema recomendado pelo BM é baseado em três pilares. Um primeiro pilar gerenciado pelo governo e financiado a partir dos impostos, que deve ser mínimo e focalizado para os idosos. A fórmula dos benefícios deve ser baseada em um exame da situação financeira e dos ativos dos beneficiários (contribuição ao longo da vida laboral), e neste caso, o Estado pode garantir um benefício previdenciário, desde que seja mínimo. O segundo pilar, considerado como essencial e mais inovador, é gerenciado pelo setor privado e plenamente capitalizado para fins de poupança (fully funded). Trata-se de uma alteração radical no sistema de repartição simples que deve ser substituído por um plano privado de contribuição obrigatória com um vínculo atuarial entre os benefícios e as contribuições; o regime financeiro deve ser de Contribuição Definida (CD). O terceiro pilar é de poupança voluntária para as pessoas que desejam maior poder de consumo na aposentadoria, ou seja, uma renda previdenciária suplementar ao plano do segundo pilar.

No Brasil, os primeiros esforços para a reforma da Previdência Social iniciam-se logo após a regulamentação exigida pela Constituição de 1988 e determinada por meio das Leis nº 8.212 (custeio) e nº 8.213 (benefícios) de 24 de julho de 1991. Com as novas orientações ideológicas, de cunho neoliberal, na América Latina, a previdência social emerge como um dos principais setores candidatos à privatização, graças à sua enorme capacidade de produzir acumulação de capital na área financeira e na ampliação do mercado de capitais, sobretudo de seguros privados.

Cabe destacar a contrarreforma previdenciária realizada no Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), que foi formalizada na Emenda Constitucional (EC) nº 20, de 15 de dezembro de 1998.

A contrarreforma realizada pela EC nº 20/1998 não significou rigorosamente a implantação dos três pilares recomendados pelo BM, mas produziu mudanças significativas e substanciais no modelo da Constituição de 1988. Mesmo com a manutenção da Previdência Social administrada pelo Estado, a sua abrangência e o seu caráter público foram perigosamente abalados com sua estrutura de financiamento e as restrições de acesso aos benefícios sociais, com consequências sociais imprevisíveis para significativos setores da população, sobretudo os mais carentes, que dependem dos benefícios da previdência para a sua subsistência. Além da mudança nas regras de cálculo dos benefícios que adota uma lógica disfarçada de capitalização. Também ocorreram modificações na base de financiamento da seguridade social, ao vincular as receitas oriundas do mercado de trabalho para fim exclusivo do Regime Geral da Previdência Social (RGPS).

O BM, à época, reconheceu avanços na reforma da previdência brasileira, mas considerou inconclusa e mantém críticas ao modelo misto adotado pelo país. Na conjuntura atual esse debate voltou com toda força conduzido por um governo não eleito.

Em um documento do ano 2000, o BM (Brazil: Critical issues in social security) apontava que o Brasil não tem um segundo pilar, ou seja, a previdência privada obrigatória, da qual uma parte dos países latino-americanos já dispõe. Nesse sentido, a instituição tece um conjunto de recomendações ao país que vão no sentido da integração dos funcionários do Regime Jurídico Único (servidores públicos) que têm Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS) com o RGPS, um forte incentivo à previdência complementar compulsória ou voluntária e à separação da previdência de caráter contributivo dos benefícios de natureza assistencial. Chama atenção a orientação para que, após a unificação dos regimes, seja adotada uma administração mais rígida no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), concedendo benefícios menores e mantidos em patamares mínimos.

Ao que tudo indica essa perspectiva vem sendo retomada pelo atual governo brasileiro. O regime de capitalização significará o fim da solidariedade entre gerações de trabalhadores/as no financiamento da previdência social. E, sobretudo, entregará ao setor financeiro o direito social de milhões de brasileiros/as potencializando ainda mais a captura do fundo público pelo Capital Portador de Juros e colocando em risco as aposentadorias desses trabalhadores/as.

Cabe destacar que na época do debate da EC nº 20/1998, apontava-se a inviabilidade do regime puro de capitalização devido ao alto custo de transição. Isso só foi possível no Chile, pois foi implantado durante uma ditadura sanguinária. Na época, o próprio Ministério da Previdência reconhecia que um regime capitalização puro envolveria o pagamento dos atuais aposentados por um período de cerca de 50 anos até a cessação dos seus benefícios, bem como reconhecia as contribuições passadas feitas pelos trabalhadores que desejam formar as suas contas individuais e o subsídio ou pagamento de benefício assistencial a pessoas que não têm a capacidade de acumular fundos para a aposentadoria. O custo dessa transição equivale a mais de duas vezes o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil.

Contudo, a EC nº 20/1998 alterou o art. 202 da CF de 1988, que estabelecia a média aritmética dos últimos 36 salários mensais de contribuição, indexados à inflação, para o cálculo do benefício da aposentadoria por tempo de serviço. A partir da Emenda, os critérios de cálculos dos benefícios de aposentadoria foram retirados da Constituição e remetidos para lei complementar.

Com a desconstitucionalização dos critérios de cálculo dos benefícios, o Congresso Nacional aprovou a Lei 9.876, de 29 de novembro de 1999, que definiu novas regras, criando o chamado Fator Previdenciário. Este determina que o benefício de aposentadoria passa a ser calculado de acordo com o montante de contribuições realizadas pelo segurado, capitalizadas a uma taxa com percentual variável conforme o tempo de contribuição, a idade e a expectativa de gozo do benefício. Na prática, a introdução desse Fator é um incentivo à permanência dos trabalhadores no mercado de trabalho.

Entrevistadora: Como você identifica, no caso brasileiro, relação entre o teto definido para a Previdência pública dos trabalhadores do regime geral e os regimes próprios de previdência do setor público, nesse campo particular?

Evilásio Salvador: Os trabalhadores filiados ao RGPS contribuem com um percentual variável (8% a 11% dos salários) para a Previdência Social. O acesso ao benefício, acima da contribuição, está limitado ao teto R$ 5.189,82 (equivalente a 5,8 SMs). Aliás essa foi uma das mudanças estabelecidas na contrarreforma previdenciária realizada pela EC que estabeleceu um teto nominal para os benefícios e a desvinculação desse teto do valor do salário mínimo (SM).

Apesar de a Constituição estabelecer o reajuste dos benefícios previdenciários de forma a preservar, em caráter permanente, seu valor real (art. 201 § 4º), não são fixadas, contudo, regras operacionais quanto ao índice de preços para o reajuste, nem quanto à sua periodicidade.

Anteriormente, o teto era fixado na legislação infraconstitucional, em geral, o valor era equivalente a dez SMs. Na década de 1980 chegou a ser 20 SMs. A modificação feita pela reforma permitiu que o governo adotasse critérios diferenciados para o reajuste dos benefícios, além da livre escolha do índice de reposição inflacionária. Com efeito, desde dezembro de 1998, o governo federal vem adotando índices diferenciados para correção dos valores dos benefícios acima do piso previdenciário, que prevaleceu atrelado ao salário-mínimo.

A passagem do critério anterior – dez SMs – para um valor nominal vem implicando redução do teto dos benefícios previdenciários, provocando crescente incerteza quanto ao valor efetivo desse teto no futuro, principalmente para parte das pessoas com renda superior ao teto, além de obrigar os trabalhadores a buscar o complemento da renda com a volta ao mercado de trabalho. Essa regra também serve de incentivo à busca de complementação da aposentadoria via fundo de previdência privado, para os trabalhadores de renda mais elevada, conforme critérios recomendados pelo BM.

Essas modificações trazem implicações para o mercado de trabalho, pois o baixo valor dos benefícios de aposentadoria estimula o retorno dos aposentados à ativa. O retorno ao mercado laboral contribui para pressionar a taxa de oferta de trabalho, dificultando a redução da taxa de desemprego, a renovação do mercado, além de pressionar para baixo o valor dos rendimentos dos ocupados.

No tocante aos Servidores Públicos, filiados ao RPP, convém esclarecer que a partir da aprovação da Lei nº 12.618, de 30 de abril de 2012, que criou a Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal (FUNPRESP), os novos servidores tiveram suas aposentadorias limitadas ao RGPS, ou seja, o mesmo teto de benefício dos trabalhadores do setor privado. Qualquer benefício de aposentadoria acima desse valor, somente por meio de contribuição específica à FUNPRESP.

Os servidores públicos que entraram no sistema anteriormente à Lei contribuem mensalmente com o RPP com um desconto de 11% dos seus vencimentos, mas com acessos diferenciados aos benefícios.

Vale lembrar que, em comparação com os segurados do RGPS, os servidores públicos submetem-se a mais regras de contribuição, requisitos e exigências para a aposentadoria. Além da idade mínima exigida para os servidores que ingressaram no setor público, posteriormente a 1998 há determinação de tempos mínimos de efetivo exercício no serviço público (25 anos), na carreira (15 anos) e no cargo (5 anos).

Como resultado desse conjunto de mudanças, em 2014, a idade média dos servidores, ao se aposentarem, foi superior a 61 anos e a das servidoras, de 58 anos, superiores às idades mínimas exigidas pelo texto constitucional, o que deveria ser suficiente para afastar as críticas dos que alegam a existência de privilégios aos beneficiários desse regime.

E, mesmo assim, qualquer servidor contratado posteriormente a 2004 não terá direito à integralidade nem à paridade. O seu benefício será calculado pela média contributiva e corrigido pelos índices aplicáveis ao RGPS.

O grande interesse que move essas críticas é o da privatização da cobertura previdenciária dos servidores. A criação da previdência complementar faz parte desse processo.

Os servidores contratados após a instituição do Fundo de Pensão receberão da União o benefício de aposentadoria limitado ao teto do Regime de Geral da Previdência Social. Com isso, o governo estabelece isonomia entre os trabalhadores do setor público e do setor privado, apesar de todas as diferenciações existentes na Constituição Federal e na legislação.

É oportuno lembrar que a Previdência do setor público é incluída na Constituição no capítulo que discorre sobre a organização do Estado, e não no da Seguridade Social, como ocorre com os demais trabalhadores. Isso porque a carreira pública tem especificidades que a distinguem do setor privado. Ao servidor público cabe agir em nome do Estado, representando-o na aplicação das políticas sociais públicas e no atendimento à população.

Seu regime de contratação não é trabalhista, e sim administrativo, por meio de processos seletivos rigorosos e equitativos, como, aliás, não poderia deixar de ser. Como tal, tem regras fixadas em lei de forma unilateral.

Entre as especificidades do servidor público, destacam-se: não encontra amparo na legislação trabalhista; não tem direito ao FGTS; está sujeito às exigências de dedicação exclusiva ao serviço público e a códigos de conduta que transcendem a própria atividade; a aposentadoria é acessível mediante regras definidas também de forma unilateral, com características diferenciadas das do Regime Previdenciário Geral, que, inclusive, pode ser cassada pela prática de atos passíveis de demissão. O servidor responde pelos seus atos e omissões perante as esferas administrativa, cível e penal.

Nesse sentido, o regime próprio dos servidores deve ser compreendido na lógica da manutenção da estrutura do Estado Nacional, que transcende os interesses momentâneos ou específicos dos grupos que detêm o poder político. O servidor tem de agir com independência e responsabilidade funcionais perante seus superiores hierárquicos, e com isenção e imparcialidade nas suas relações com os contribuintes e os cidadãos em geral.

Salvo melhor juízo, deve ser interesse da sociedade, prioritariamente, assegurar e preservar as condições mais adequadas ao funcionamento da máquina pública.

Entrevistadora: Uma discussão que se adensa no Brasil é a urgência de uma reforma da Previdência Social, justificada por setores conservadores com suporte em dois argumentos centrais: a existência de um déficit que se acentua na área e o envelhecimento da população, o que incidiria na relação entre contribuintes e inativos e, portanto, no desequilíbrio entre receita e despesa. Como você problematiza essa questão?

Evilásio Salvador: Não há nada que justifique a “reforma”, a não ser a intenção de abrir um importante nicho de mercado ao setor financeiro da economia, por meio dos fundos privados de previdência. E abrir espaço para que o Capital Portador Juros abocanhe cada vez mais importantes parcelas de recursos do fundo público brasileiro. Os dois argumentos apresentados (a demografia e o desequilíbrio orçamentário) não têm sustentação nos dados empíricos da realidade brasileira.

Um dos argumentos sempre presentes nas propostas de “reforma” da previdência em todos os países é que o desenvolvimento econômico e social traz progressos na longevidade das populações. Comparações internacionais, contudo, evidenciam que a longevidade no Brasil ainda é muito baixa e com enormes diferenças regionais.

No caso brasileiro, está ocorrendo uma transição importante no padrão demográfico, iniciada em meados da década de 1960, caracterizada pela queda das taxas de fecundidade e pela queda das taxas de mortalidade, o que vem aumentando a esperança de vida ao nascer. Tal transição se dá graças à queda nos indicadores de mortalidade infantil e uma redução nos níveis de fecundidade das mulheres brasileiras. Ocorre um aumento da expectativa de vida e de sobrevida em idades avançadas (como demonstram os dados dos Censos do IBGE) relacionado aos avanços na área de saúde, saneamento e educação. O que deveria ser motivos de comemoração.

Essas mudanças demográficas trazem preocupações para a previdência social no tocante às despesas com benefícios, como a sua relação pelo lado das receitas, pois o envelhecimento da população implicaria a deterioração progressiva da razão de dependênciaentre os idosos (acima de 60 anos) e a população mais jovem (idade entre 15 e 19 anos).

A utilização dessa metodologia vem merecendo críticas por agrupar populações pertencentes a subsistemas diferenciados de previdência: trabalhadores urbanos e trabalhadores rurais. Ainda que a transição demográfica traga consequências para o financiamento do regime de repartição simples na Previdência Social, a situação poderia ser menos grave com a incorporação da parcela de trabalhadores excluída do mercado de trabalho nos últimos anos. Nesse sentido, o regime previdenciário brasileiro deixa (ou) de contar com contingentes importantes de pessoas que ingressam diariamente na População Economicamente Ativa. Isso tudo devido às opções de políticas macroeconômicas neoliberais que não privilegiam a geração de empregos, mas os interesses do capital financeiro, notadamente o pagamento de juros da dívida pública.

A Previdência Social no Brasil tem dificuldades, desde sua origem, de universalizar o direito, pois o acesso a seus benefícios ocorre mediante a contribuição, limitando-se praticamente ao universo dos trabalhadores do mercado formal de trabalho. A exigência da contribuição prévia para o acesso aos benefícios previdenciários, ou seja, a contribuição financeira para fazer jus à proteção social da previdência é um impeditivo da universalização do direito, uma vez que a relação salarial não é uma condição generalizada do mercado de trabalho no país; ao contrário, os postos de trabalho são heterogêneos com inserções precárias e vínculos informais de trabalho-dura realidade para mais da metade dos trabalhadores.

A população brasileira atingiu 202 milhões de pessoas no ano de 2014, estando metade em fase economicamente ativa ou em idade produtiva. Contudo, 27,4% não são contribuintes ou segurados de qualquer regime previdenciário, o que atinge um contingente de 37 milhões de trabalhadores/as.

Assim, menos de 60% dos brasileiros economicamente ativos estão contribuindo ou são segurados em algum Regime Previdenciário. Portanto, um desafio importante verdadeiramente em reforma previdenciária é a inclusão de 40% no sistema da PEA.

Caso os objetivos das políticas macroeconômicas fossem a geração de emprego junto ao mercado formal de trabalho, a atual fase de mudança demográfica da população brasileira estaria criando mais recursos para o financiamento dos benefícios previdenciários.

É bom lembrar que o processo de ampliação da cobertura previdenciária no Brasil, culminado na CF 1988, resolveu, pelo menos de forma parcial, a pobreza entre os idosos no país, comparativamente à incapacidade de nossa política social resolver essa questão nas outras faixas etárias da sociedade.

O que me parece é muito mais o uso ideológico da questão demográfica e do envelhecimento para inculcar uma visão de sacrifício da economia que não apresenta crescimento consistente desde anos 1980 no Brasil. Em um contexto em que as pessoas vivem mais tempo e em boa saúde, a questão da aposentadoria deveria ser tratada como uma questão de repartição e distribuição das riquezas. O ponto crucial para uma previdência construída na lógica do seguro social está no volume de empregos gerados no mercado de trabalho e no comportamento da massa salarial.

O outro argumento falacioso diz respeito ao suposto déficit nas contas previdenciárias. Constitui um elemento importante de justificativa da reforma da previdência o fato de o governo, a imprensa e muitos analistas apontarem o Sistema Previdenciário brasileiro como deficitário e causador do déficit público. Tais alegações se fundamentam nos valores previstos no Orçamento Geral da União nos últimos anos para as despesas previdenciárias, mas são controversos diante dos ditames constitucionais sobre o assunto. Mesmo porque, do ponto de vista orçamentário, a Constituição brasileira definiu no seu artigo 165, para os três níveis de governo, que a Lei Orçamentária Anual (LOA) será composta pelo Orçamento Fiscal, Orçamento de Investimentos das empresas estatais e Orçamento da Seguridade Social. Inexistindo no âmbito constitucional qualquer referência a um orçamento específico para a previdência social.

O que tradicionalmente os dirigentes da previdência social brasileira divulgam é o resultado financeiro do RGPS por meio do contraste entre a arrecadação líquida e as despesas com benefícios previdenciários do INSS.

O legislador, de forma inovadora, determinou a criação de um orçamento com recursos próprios e exclusivos para as políticas da Seguridade Social (saúde, previdência e assistência social) distinto daquele que financia as demais políticas de governo. Contudo, o orçamento da seguridade social no desenho apontado na Constituição não foi implementado, conforme o previsto. Pelo contrário, apropriaram-se das contribuições sociais destinadas para fins da seguridade social, utilizando-as para outras políticas de cunho fiscal, até mesmo o pagamento dos encargos financeiros da União (amortização e juros da dívida), e para realização de “caixa” visando garantir o superávit primário.

A engenharia macroeconômica que assegurou o relativo controle da inflação passou pela elevação do endividamento público, que assegurou a transferência de renda do setor real da economia para os detentores de excedentes financeiros, particularmente o CPJ.

A partir de 1999, por força dos acordos com o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Brasil comprometeu-se a produzir elevados superávits fiscais primários para o pagamento de juros da dívida pública. A viabilidade dessa política foi obtida, no lado das receitas, por meio do aumento da arrecadação de impostos, via modificações na legislação infraconstitucional, tributando fortemente a classe trabalhadora via tributos diretos e indiretos de caráter regressivo, que oneraram proporcionalmente mais a renda dos mais pobres. Paralelamente, um conjunto de medidas foram tomadas para desonerar os mais ricos, como por exemplo, a isenção de imposto de renda sobre lucros e dividendos distribuídos para sócios capitalistas.

Alguns instrumentos foram centrais para garantir a apropriação do fundo público pelo CPJ: a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e a Desvinculação de Receitas da União (DRU). A LRF determinou mudanças no sentido de viabilizar a canalização dos recursos públicos para a esfera financeira da economia, determinando metas fiscais no orçamento público a serem cumpridas por todos os entes da federação.

A DRU tem sua origem em 1993, quando os economistas formuladores do Plano Real criam o Fundo Social de Emergência (FSE), permitindo a desvinculação de 20% dos recursos destinados às políticas da seguridade social. Nos exercícios financeiros seguintes, o propósito permanece, mas o nome muda para Fundo de Estabilização Fiscal (FEF). A partir do ano 2000 passa a vigorar a DRU com sucessivas prorrogações nos mandatos do presidente FHC, Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Vana Rousseff, permitindo a desvinculação de 20% da arrecadação de impostos e contribuições sociais até o fim de 2016. Com a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 87, de 16 de abril de 2015 a DRU foi prorrogada até 31 de dezembro de 2023. Além disso, o texto amplia de 20% para 30% o percentual das receitas de tributos federais que podem ser usadas livremente e altera quais tributos podem ser desvinculados, incluindo os fundos constitucionais (Fundo Constitucional de Financiamento do Centro-Oeste [FCO], Fundo Constitucional de Financiamento do Norte [FNO], Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste [FNE]), taxas e compensações financeiras. Isso implicaria um assalto ainda maior aos recursos da seguridade social.

A DRU cumpre historicamente um papel de uma perversa alquimia de transformar os recursos destinados ao financiamento da seguridade social em recursos fiscais para a composição do superávit primário e, por consequência, os utiliza para pagar juros da dívida, como já apontamos em artigo assinado com Ivanete Boschetti.

Caso fosse de fato colocado em prática, o Orçamento da Seguridade Social em conformidade com a Constituição os dados da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP), apontam para um superávit em 2015, de R$ 11 bilhões.

A recessão econômica com o segundo ano consecutivo de queda no Produto Interno Bruto do Brasil (PIB) decorrente da contração da demanda mundial, liderada pela desaceleração da economia chinesa e a queda nos preços das principais commodities, entre outros fatores, juntamente com a crise política interna que demarcam o fim da coalizão presidencial liderada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), corroboram o acirramento da disputa do fundo público brasileiro.

Além das medidas adotadas pelo Governo Federal de socorro à crise do capital no Brasil, sobretudo, as desonerações tributárias, juntamente com a não renovação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), têm levado a um estrangulamento fiscal do fundo público brasileiro, acirrando as pressões em tempos de crise do capital por contrarreformas sociais para liberar ainda mais recursos ao capital, notadamente ao Capital Portador de Juros (CPJ). Sem contar o fato de não ter sido realizado uma reforma tributária, que onerasse a renda e o patrimônio dos mais ricos, como alternativa de recompor as receitas do fundo público.

O governo, desde 2004, vem divulgando o que chamo de um orçamento virtual da seguridade social, pois não se trata de uma iniciativa planejada dos ministérios das três áreas (aliás o da previdência nem existe mais). Mas, o Governo Federal inclui no orçamento da Seguridade Social tanto na Lei Orçamentária Anual (LOA), como nos resultados divulgados pela Secretaria do Tesouro Nacional, todas as despesas previdenciárias tanto do RGPS, como as do Regime Próprio de Previdência (RPP) do setor público, além de despesas com assistência do servidor e gastos com saúde dos militares. Esses gastos (acertadamente) não são considerados nos resultados apurados pela ANFIP. Esse orçamento subestima as receitas da seguridade social, não considerando a DRU e as renúncias tributárias.

Além disso, as renúncias tributárias vêm praticando um verdadeiro (des)financiamento da Seguridade Social. Destacam-se, sobretudo, as políticas de desonerações tributárias das contribuições sociais e a desoneração da folha de pagamento, que afeta o financiamento do orçamento da seguridade social.

O (des) financiamento da Seguridade Social, com a retirada de recursos por meio da DRU e das renúncias tributárias, alcançou o montante de R$ 246,57, em 2015. Esses valores indicam que a Seguridade Social, mesmo pelas contas oficiais, que estão longe do orçamento determinado pela CF de 1988 (pois, inflam as despesas e subtraem as receitas), é superavitária. O (des) financiamento ocorrido, em 2015, equivale a 38,25% das despesas da Seguridade Social, incluindo todos os gastos e investimentos com saúde, assistência social e benefícios da previdência do RGPS e do RPP. Em 2015, a União destinou à saúde e assistência o montante de R$ 166,33 bilhões. Portanto, os valores surrupiados da Seguridade Social permitiriam pagar todos os gastos públicos diretos com assistência social e saúde, e ainda sobraria um saldo de R$ 80,24 bilhões.

O Governo brasileiro insiste na ladainha da ortodoxia neoliberal, retomada com força pelo governo de plantão, que tem como cartilha na política fiscal envidar todos os esforços para um elevado superávit primário, buscando atender ao sedento capital portador de juros, incluindo uma escorchante taxa de juros.

No atual contexto político e econômico do Brasil está em curso um brutal ataque aos direitos sociais e ao orçamento social. Com um retrocesso sem precedentes na história do país e nas conquistas do frágil Estado Social brasileiro, as propostas em curso visam recompor rapidamente a taxa de lucro, por meio do rebaixamento do custo da força de trabalho, subtraindo e eliminando direitos dos/as trabalhadores/as.

Um dos aspectos centrais no documento uma ponte para o futuro (ou para o passado) é o fim das vinculações orçamentárias dos recursos para saúde e educação e da obrigatoriedade dos gastos mínimos em saúde e educação por parte da União, dos Estados, do DF e dos Municípios.

Trata-se de uma visão neoliberal que defende que o Estado garanta apenas um seguro mínimo e uma previdência privada complementar, regida pelo mercado, para os que possam pagar.

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