Resenha
SILVA, Maria Lucia Lopes da. Previdência Social no Brasil: desestruturação do trabalho e condições para sua universalização. São Paulo: Cortez Editora. 2012.
SILVA, Maria Lucia Lopes da. Previdência Social no Brasil: desestruturação do trabalho e condições para sua universalização. São Paulo: Cortez Editora. 2012.
Revista de Políticas Públicas, vol. 20, núm. 2, pp. 731-738, 2016
Universidade Federal do Maranhão
Maria Lucia Lopes da Silva é Assistente Social, natural do Maranhão, onde iniciou sua formação acadêmica no Curso de Serviço Social da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), mestre e doutora em Política Social pela Universidade de Brasília (UNB). Possui importante trajetória profissional marcada pelo engajamento acadêmico e político na luta pelos direitos sociais. É autora de referência no campo das políticas sociais com relevantes contribuições ao debate crítico e propositivo nessa área. Dentre os trabalhos publicados destacam-se: Previdência Social, um direito conquistado e Trabalho e população em situação de rua. Atualmente, aposentada do serviço público federal, exerce a docência na Universidade de Brasília.
A presente resenha refere-se ao livro Previdência Social no Brasil: desestruturação e condições para sua universalização, publicado no ano de 2012 pela Cortez Editora. O livro, originalmente tese de doutorado, traz a público o necessário e urgente debate sobre a Seguridade Social brasileira, mais especificamente a Previdência Social na sua histórica relação com o trabalho. A análise apresentada é densa, rigorosa, combina elementos da teoria e da empiria como resultado de exponencial articulação entre investigação científica, competência profissional e militância política. Essas dimensões se refletem na propriedade e profundidade com que a autora desvela as regras e desdobramentos complexos que conformam a Previdência Social no Brasil. Esta é apreendida para além da sua dimensão técnica e fenomênica, mas como um processo histórico, político, instituída jurídica e socialmente como um direito social construído a partir das lutas da classe trabalhadora.
As análises desenvolvidas pela autora ao longo do livro expressam a firmeza, a coerência e o posicionamento crítico que referenciam a sua trajetória. Valendo-se da matriz dialético-materialista, Lúcia Lopes submete amplo volume de dados empíricos a rigorosa análise crítica para justificar sua hipótese da possibilidade de universalização da cobertura da Previdência Social no Brasil. O contexto adverso de desestruturação do trabalho, a corrosão do significado de Seguridade Social concebido na Constituição Federal (CF) de 1988 e o elevado quantitativo de trabalhadores, dependentes do trabalho assalariado estável, desvinculados do atual modelo de previdência social, apontam para um aprofundamento dos limites à universalização da cobertura da Previdência Social no país. Como lembra a autora
Entretanto, com base nos fundamentos que sustentam a previdência social, como um contrato social, solidário e democrático, em um contexto de luta de classes e de uma correlação de forças favorável aos trabalhadores, é possível vislumbrar possibilidades de avanços na direção de sua universalização. (p. 45, grifos da autora).
Para dar sustentação à sua hipótese Lúcia Lopes reconstitui nas suas análises o processo sócio-histórico de construção e desenvolvimento da seguridade social, empreendendo um debate profundo e reflexivo sobre categorias centrais desse processo. Com maestria, articula essas categorias que balizam a organização e análise dos dados e informações apresentadas à dinâmica de implementação da Seguridade Social, especificamente a Previdência Social, apreendendo a sua complexidade como objeto de disputas, identificando os limites e as possibilidades para a sua universalização.
A categoria trabalho assume centralidade nas análises de Lúcia Lopes. A autora recupera com profunda revisão de literatura a relação trabalho e proteção social em diferentes contextos sócio-históricos e padrões de acumulação de capital, ressaltando o significado do trabalho na estruturação da proteção social e como condição e meio de acesso a esta. Tendo como suporte teórico a visão marxiana, a autora dialoga com o próprio Marx e autores vinculados a essa visão, com destaque para Ricardo Antunes, Istívan Meszáros, José Paulo Netto, Ian Gough e Elaine Behring, Ana Elizabete Mota, Sara Granemann e Ivanete Boschetti e reforça a centralidade do trabalho no capitalismo como determinante das relações sociais e eixo das sociabilidades a despeito das investidas dos processos de desestruturação do trabalho assalariado em curso a partir dos anos 1970.
Para Lúcia Lopes
[...] A fonte de riqueza no capitalismo contemporâneo continua sendo o trabalho não pago. [...] é flagrante que a desestruturação do trabalho, a partir da década de 1970, influenciou o desmantelamento dos sistemas de proteção social e que vários condicionantes da formação e sustentação do Estado social mudaram. Isso não significa, porém que o trabalho tenha perdido centralidade nas sociedades capitalistas nem que tenha deixado de ser condição fundamental de acesso à proteção social. (p. 77).
A concepção e financiamento da Previdência Social no contexto da Seguridade Social brasileira se destacam na sustentação da hipótese de Lúcia Lopes. A autora reconstitui a história da construção e significado da Previdência Social no Brasil, desde a sua origem até sua instituição como política de Seguridade Social. Denuncia o seu processo de dilapidação, desconstrução e inconclusão, mostrando que em um cenário adverso ao avanço das pressões populares e descompromisso governamental com a consolidação da Previdência Social, esta se mantém como campo de disputas, imersa em permanente correlação de forças. Neste sentido, reforça a relevante intervenção da Previdência Social na redução das desigualdades sociais, configurando-se, portanto, como “[...] a espinha dorsal do sistema de proteção social no Brasil [...]” (p. 143).
Nessa lógica, Lúcia Lopes avança nas reflexões acerca da concepção de Previdência Social como política integrante da Seguridade Social, configurada como contrato social. Busca compreender e analisar o que qualifica a Previdência Social como contrato social e a que tipo de contrato se refere.
Assim, mediante diálogo com filósofos da teoria clássica do Estado, em que se destaca a visão rousseauniana, Lúcia Lopes afirma, sob esta perspectiva de contrato social baseada na defesa da liberdade, igualdade e democracia radical em que os poderes do Estado são limitados e a supremacia da sociedade civil é assegurada, é possível impulsionar o processo de universalização da Seguridade Social e, consequentemente, da Previdência Social no âmbito do sistema capitalista.
Considerando os limites da política social no contexto do capitalismo e o contrato social como um instrumento viável no âmbito deste sistema, Lúcia Lopes assinala que a concepção de previdência social como um contrato social na lógica rousseauniana, pautada na defesa da democracia radical, se constitui a mais aceitável como referência transitória para a luta da classe trabalhadora. Nessa lógica, como bem pontua a autora “[...] a seguridade social no país, como um direito desigual, deve ter como horizonte que cada um participe do fundo social que a financia, conforme sua capacidade, e tenha assegurada a proteção social de que necessitar para uma vida segura sem carências.” (p. 177). Certamente essa lógica se contrapõe ao discurso oficial dos dirigentes da Previdência Social brasileira que a concebem como um contrato social na ótica liberal que preconiza o direito conforme a contribuição. Na contramão dessa ótica, Lúcia Lopes insiste na possibilidade de efetivação da previdência social como um contrato social radicalmente democrático e aponta o modelo de financiamento previsto da Constituição de 1988 como um elemento concreto dessa possibilidade.
O formato de financiamento da Seguridade Social previsto na CF em vigor expressa uma inovação, segundo Lúcia Lopes, visto que se apoia em um padrão diversificado quanto à base de financiamento, possibilitando equidade na participação do custeio, inibindo assim a sobrecarga para determinados segmentos e tornando o sistema menos vulnerável às crises econômicas. A autora contrapõe os preceitos constitucionais referentes aos gastos e financiamento com um permanente processo de corrosão e desgaste da concepção e financiamento da seguridade social viabilizado por um conjunto de emendas constitucionais afinadas com os objetivos de uma política econômica comprometida com o capital financeiro. É nessa direção que as alterações dos textos constitucionais se dissociam dos princípios da seguridade social pautados em uma perspectiva solidária e plural de financiamento em favor da denominada austeridade fiscal que preconiza constantes reformas restritivas à universalização da cobertura da seguridade social.
A autora analisa rigorosa e profundamente dados referentes aos gastos e financiamentos desconstruindo argumentos, em geral oficiais, que afirmam e justificam déficits na Previdência Social e necessidade de reformas. Lúcia Lopes expõe e fundamenta que a Previdência Social brasileira não é deficitária, de forma que “[...] o avanço rumo à universalização da seguridade social e de suas políticas constitutivas exige que algumas condições objetivas sejam asseguradas, como a plena execução do modelo de financiamento previsto constitucionalmente.” (p. 208), o que requer ampla mobilização e pressão dos trabalhadores e movimentos sociais organizados.
Lúcia Lopes dá prosseguimento às suas análises sobre a relação trabalho e previdência, remontando aos primórdios da formação do mercado de trabalho no Brasil e ao complexo percurso de estruturação da previdência e a ampliação da cobertura mediante a incorporação de categorias. Nesse percurso, destaca os rebatimentos históricos da dinâmica dos processos econômicos e do mercado de trabalho sobre a cobertura previdenciária. É neste sentido que, no contexto da reestruturação produtiva, a relação trabalho e previdência social sofre alterações substanciais com efeitos devastadores na cobertura da previdência social no Brasil, sobretudo a partir dos anos 1980.
Para aprofundar essa análise, a autora se apropria da discussão acerca dos processos de reestruturação produtiva e seu rebatimento na relação trabalho e previdência social e desvela movimentos que se constituem desafios à universalização da cobertura da previdência social no Brasil. Dentre os desafios arrolados, destacam-se o desemprego estrutural prolongado, permanente e naturalizado; a precarização cada vez mais crescente das relações de trabalho; a expansão da informalidade e as estratégias igualmente informais de seu enfrentamento, e a redução do poder de pressão e resistência do movimento sindical, o que para Lúcia Lopes contribui para inibir ou estagnar processos relacionados à universalização da previdência social considerando a centralidade histórica das lutas e pressões da classe trabalhadora na conquista da proteção social. Esses desafios se agravam, tendo presente o contexto de financeirização do capital. O capital financeiro na disputa pelos recursos públicos vem impelindo estratégias, impostas mediante reformas (ou contrarreformas) no sentido de restringir ou mesmo destituir direitos previdenciários a fim de que estes sejam privatizados. Em decorrência, aprofunda-se a não cobertura de amplos segmentos da classe trabalhadora sem acesso ao direito a qualquer regime previdenciário, sobretudo no primeiro decênio do século XXI.
As reflexões acerca da (des) estruturação do trabalho na primeira década do século XXI e seu rebatimento na cobertura da previdência, e articuladas aos dados e informações acerca do perfil dos segurados e dos que não tiveram acesso a qualquer regime previdenciário desvelam a profunda desigualdade no acesso à previdência social, o que confere a esta um caráter
[...] excludente e legitimador das desigualdades sociais. Recepciona preponderantemente os que possuem maior renda e escolaridade mais elevada. Os que são vítimas das políticas sociais de emprego, sustentadas na rotatividade, e de baixos rendimentos, predominantemente, durante a década, ficam á margem dessa proteção. (p. 362).
Ante um contexto de dilapidação e corrosão do significado da previdência como um contrato social nos moldes rousseaunianos e da consolidação de processos que corroboram a incompatibilidade de sua universalização, Lúcia Lopes vislumbra condições para a universalização da cobertura apesar de significativos limites como a dificuldade de generalização do acesso ao trabalho assalariado, apesar da relação histórica entre a previdência social e o trabalho, a generalização deste último é inviável no capitalismo visto que o desemprego é estrutural a esse modo de produção; as perdas e defasagens do salário mínimo; as funções das políticas sociais e o papel do Estado e sua regulação na sociedade e no trabalho. Esses limites se agravam no âmbito do atual modelo de organização da economia que impõe, na sua dinâmica e desenvolvimento, a regressão de direitos com impactos devastadores nas condições de vida da classe trabalhadora. O desmonte das políticas de proteção social e a legitimação das formas precarizadas de trabalho refletem essa devastação cada vez mais naturalizada das condições de vida e trabalho de amplos segmentos da classe trabalhadora no Brasil.
Com relação aos limites à universalização da cobertura da proteção social no Brasil para desempregados e subempregados, a autora aponta o Programa Seguro Desemprego e o Programa Bolsa Família (PBF) e reflete acerca desses programas, submetendo-os a revisão crítica, assinalando que
[...] Essas medidas, ainda que importantes para as pessoas às quais se destinam, quando analisadas sob a ótica das orientações macroeconômicas vigentes, reforçam a tendência de atribuir à assistência social papel central no processo de “naturalização” do desemprego, das desigualdades sociais e do crescimento exponencial da pobreza, na medida em que tais medidas e ações não apontam para a superação das causas geradoras das situações, mas para a “suavização” de seus efeitos. (p. 392, grifos da autora).
Nesse sentido, Lúcia Lopes estende a crítica às estratégias governamentais para ampliar a cobertura da previdência social brasileira, advertindo que a ampliação da seguridade social vem se dando via programas de assistência social direcionados à extrema pobreza, a exemplo do PBF. As medidas na área da previdência social têm sido orientadas pela via da restrição ou mesmo extinção do acesso. Ademais, as medidas governamentais no campo da previdência social, em geral, são desvinculadas das diretrizes macroeconômicas em curso. Consoante a autora
[...] essa aparente desvinculação apenas favorece a não explicitação de que os programas relativos à previdência social são funcionais à política econômica adotada, pois atuam exatamente no reforço á “naturalização” das consequências dela, como a rotatividade no emprego, precarização do trabalho etc. Por outro lado, são programas, projetos e ações que não refletem as demandas e reclamações da população, visto que são desenvolvidos por técnicos que não mantém qualquer interlocução com a sociedade. (p. 411, grifo da autora).
Ao apresentar como possibilidades de expansão da cobertura da previdência social proposições construídas pelos movimentos sociais direcionadas ao poder público abre um espaço de interlocução com estes movimentos. Trata-se de propostas que têm como eixo o caráter universal da seguridade social e o reconhecimento da diversidade das formas de trabalho desenvolvidas por diferentes segmentos de trabalhadores. Caracterizam-se como propostas de discriminações positivas visando a ampliação do acesso à previdência social, viável tanto econômica como legalmente, conforme Lúcia Lopes atesta mediante exame acurado dos preceitos constitucionais que respaldam a efetivação das propostas.
Por fim, a autora apresenta suas proposições tendo como horizonte a universalização da previdência social e, como referência central, o trabalho. Assim, para Lúcia Lopes, avanços na direção da universalização da previdência social brasileira no contexto do capitalismo implicam a reorientação política das diretrizes macroeconômicas, o que sugere uma política direcionada ao crescimento econômico, orientada pela desconcentração de renda e propriedade. Destaca a necessidade de reconfiguração da política de emprego a ser orientada para a geração de novos postos de trabalho tendo asseguradas por meios legais e efetivos a estabilidade e a elevação da renda oriunda do trabalho. O fortalecimento dos objetivos da seguridade social também é destacado como indicativo para a expansão da cobertura em especial “[...] a equidade na participação do custeio; a diversidade da base de financiamento e o caráter democrático e descentralizado da administração [...]” (p. 459), conforme previsto nos textos constitucionais. Como último, e não menos importante indicativo, a autora aponta a necessidade de ampliação do ingresso dos trabalhadores que se encontram nas relações informais de trabalho ao Regime Geral da Previdência Social (RGPS) mediante a criação de medidas que considerem as demandas das diferentes categorias ocupacionais e dos movimentos dos trabalhadores.
O livro de Lúcia Lopes coloca claramente os limites e as possibilidades para a universalização da previdência social nos marcos do capitalismo e reforça a indicação da construção de um novo projeto societário. Neste sentido é veemente ao assinalar que
[...] O contraponto da perspectiva rousseauniana, apontado no debate, não implica que adotemos a opção do contrato social e da social-democracia como alternativa ao capitalismo. Mas que acreditamos nas possibilidades de avanços na direção da universalização da previdência social, ainda sob a égide do sistema capitalista, a partir de mudanças no modelo adotado (p. 464, grifos da autora).
Assim Lúcia Lopes em coerência com a inspiração marxiana finaliza suas análises reforçando a possibilidade histórica de supressão do capitalismo e instituição do socialismo como via única para a emancipação humana. Na Introdução do livro, a autora traz importante referência de István Meszáros (2007) em que este denuncia um mundo mantido sob as rédeas do capital numa era de promessas e esperanças frustradas que se sustentam por uma teimosa esperança. Em tempos de frustrações e incertezas, o livro ora resenhado é fundamental e necessário àqueles que, a exemplo de Lúcia Lopes, são movidos e sustentados por essa teimosa esperança de que uma nova ordem societária que assegure a plenitude da realização humana é possível.
REFERÊNCIAS
MESZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. 3. reimpr. Tradução de Paulo César Castanheira e Sérgio Lessa. São Paulo: Boitempo, 2007.