Resumo: O estudo é sobre o processo ensino-aprendizagem na Residência Multiprofissional em Saúde (RMS) a partir da análise dos relatos de preceptores das áreas de Psicologia, Serviço Social e Enfermagem. Os Programas de Residência Multiprofissional em Saúde fazem parte das estratégias da Política de Formação de Recursos Humanos da Saúde no Brasil e afirmam ter como objetivo contribuir com a revisão do modelo assistencial através da formação de um novo perfil profissional na saúde. Tem como objetivo aproximar-se dos relatos e percepções dos preceptores sobre o processo de formação na RMS. Tal pesquisa envolveu as seguintes estratégias metodológicas: revisão bibliográfica; análise documental; observação de campo e entrevista semiestruturada. Para a análise dos dados utiliza análise de Conteúdo Temática. Nos resultados, observa fragilidades em relação à participação dos preceptores na construção e revisão do Projeto Político Pedagógico bem como aos processos de planejamento do ensino e avaliação do curso, em especial a perspectiva multiprofissional.
Palavras-chave:SaúdeSaúde, residência residência, educação educação.
Abstract: The study is about the teaching-learning process in the Multidisciplinary Residency in Health (RMS) from the analysis of preceptors reports from the fields of psychology, social work and nursing. The Multidisciplinary Residency Program in Health are part of the strategies of the Health Human Resources Training Policy in Brazil and say they aim to contribute to the review of the care model through the formation of a new professional profile on health. It aims to approach the reports and perceptions of tutors on the training process in RMS. Such research involved the following methodological strategies: literature review, document analysis; field observation and semi-structured interview. For data analysis we used analysis of thematic content. The results observed weaknesses in relation to the participation of tutors in the construction and revision of the Pedagogical Political Project as well as to educational planning and evaluation processes of the course particularly the multidisciplinary perspective
Keywords: Health, residency, education.
Temas Livres
RESIDÊNCIA MULTIPROFISSIONAL EM SAÚDE: o olhar dos preceptores sobre o processo de ensino-aprendizagem
MULTIPROFESSIONAL RESIDENCY IN HEALTH: the look of the preceptors on the teaching-learning processes
O exercício da preceptoria, a partir da supervisão da prática, mostra-se como estratégia principal deste processo. Esta mediação exige do preceptor conhecimento, bom senso, criatividade e formação continuada. Implica, ainda, em compreensão da dinâmica do processo ensino-aprendizagem a partir da prática, das especificidades que caracterizam o trabalho em saúde e do entendimento da complexidade do trabalho multiprofissional. Muito importante também é a compreensão acerca das transformações do mundo do trabalho e das políticas sociais públicas e do exercício profissional na saúde. (SANTOS, 2010).
Assim, elencou-se como questão norteadora dessa pesquisa: como tem sido a contribuição dos preceptores para a formação multiprofissional em saúde dos residentes, por meio do processo de ensino no e pelo trabalho e que objetiva a construção de uma formação crítica para o SUS?
Dessa forma, o tema deste trabalho é a formação em saúde na Residência Multiprofissional em Saúde da Mulher (RMSM), do Instituto São Francisco de Assis (HESFA)/Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a partir da análise que os preceptores possuem a respeito do processo ensino-aprendizagem, interesse de investigação construído a partir da inserção como residente nesta universidade.
Os objetivos do trabalho foram: identificar as características de formação cultural, social e profissional dos profissionais preceptores e concepções teóricas na saúde; destacar as contribuições dos preceptores para a construção do Projeto Político Pedagógico da RMSM.
Assim, considera-se importante pesquisar aspectos relacionados à formação em saúde na modalidade de RMS a fim de compreender seus limites e possibilidades para o fortalecimento do SUS dentro de uma realidade que se contradiz com o modelo proposto por esse sistema e, que privatiza os serviços e focaliza as necessidades sociais da população.
A metodologia do estudo foi a pesquisa qualitativa e realizou-se a partir dos relatos dos preceptores do HESFA/UFRJ que pertencem às seguintes áreas de conhecimento: Serviço Social, Psicologia e Enfermagem. Segundo Minayo (2010), a relevância de dados qualitativos está na amostra de pelo menos 30% de um universo. Assim, do total de 41 preceptores, 12 foram entrevistados, dos quais: 4 assistentes sociais, 4 enfermeiros e 4 psicólogos. O critério de escolha foi o sorteio aleatório. Utilizou-se o Roteiro de Entrevista Semiestruturada e a Análise de Conteúdo Temática para a coleta e tratamento dos dados.
O estudo está de acordo com a Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS) que traz diretrizes e normas regulamentadoras que devem ser cumpridas nos projetos de pesquisa envolvendo seres humanos. Esta pesquisa foi submetida em 02/10/2014 no Comitê de Ética da Escola de Enfermagem Anna Nery da UFRJ e aprovada com numeração 069850/2014.
Mudanças contemporâneas como a contrarreforma do Estado, a reestruturação produtiva e a financeirização do capital – têm péssimos impactos nas condições cotidianas de trabalho inclusive na saúde. (DRAIBE, 1993). A mundialização do capital (CHESNAIS, 1996) tem profundas repercussões na órbita das políticas públicas, com suas diretrizes de focalização, descentralização, desfinanciamento e regressão dos direitos do trabalho. Conforme estudo de Behring (2003) o Brasil a partir da década de 1990 vive período de crescente contrarreforma do Estado com perda de direitos sociais conquistados pelos trabalhadores na reforma constitucional de 1988 e precarização das políticas sociais. A precarização também se reflete nas relações de trabalho refletindo na falta de reajuste salarial e, principalmente, nas diversas formas de contratos, que muitas vezes são temporários e sem garantias trabalhistas - o que inviabiliza a construção e continuidade de um projeto de atuação e a participação em formação (BRAVO, 2006).
O processo de implementação da reforma sanitária brasileira, dos direitos sociais na Constituição de 1988 e do Sistema Único de Saúde (SUS) através do qual se vincula a proposta de fortalecimento de uma formação em saúde que seja pautada nos princípios e diretrizes desse sistema de universalidade, integralidade, interdisciplinaridade, intersetorialidade, dentre outros – apesar de estabelecer significativos avanços, também é acompanhado por uma realidade de contradições, próprias da sociedade capitalista.
Neste contexto, o início da década de 1990 foi marcado pela discussão sobre Recursos Humanos e formação profissional nas Conferências e Conselhos de Saúde. Assim, encaminhou-se como direcionamento a realização da II Conferência de Recursos Humanos em Saúde, em 1993. No entanto, o cenário político caracterizava-se por uma crise instalada no país, a partir do Governo Collor/Itamar, e as intervenções de viés neoliberal se refletiu consideravelmente a área de recursos humanos, inclusive na saúde pública - o que impediu a efetivação de uma política de recursos humanos compatível com a concepção da Reforma Sanitária Brasileira (PINTO et al., 2012).
A partir dos anos 2000 tem início a proposição de um debate nacional entre gestores, trabalhadores e formadores de recursos humanos, para implementar, aperfeiçoar e adequar a Norma Operacional Básica/Recursos Humanos (NOB)– SUS. A área de Recursos Humanos ganha o status de Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES), no Ministério da Saúde, objetivando implementar uma política de valorização do trabalho no SUS. A partir disso, a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS) torna-se uma estratégia do SUS para a formação e o desenvolvimento de seus trabalhadores. Isto permitiu uma interlocução do setor saúde na formulação de projetos político-pedagógicos para a formação dos trabalhadores, condizente com os princípios do SUS. (BRASIL, 2004). Nesse cenário, uma das políticas desenvolvidas pela SGTES é a de fomento das Residências Multiprofissionais em Saúde com o objetivo de ser uma pós-graduação para formar profissionais em campos de atuação estratégicos para SUS e em regiões prioritárias do país (SILVA, 2013).
Os Programas de Residência Multiprofissional em Saúde (RMS) foram pensados para formar um novo perfil de profissional de saúde, apto a responder às reais necessidades de saúde dos usuários, família e comunidade. Assim, há uma demanda por um perfil profissional diferente do que tem sido formado nas graduações, geralmente, muito especializadas, o que induz a um investimento governamental na formação de profissionais mais capacitados quanto à atuação multiprofissional (RAMOS et al., 2006). A multiprofissionalidade é o termo utilizado pelo Programa de Residência Multiprofissional em Saúde e se constitui a principal diretriz para a formação do residente. Sobre a prática multiprofissional, utilizamos o conceito apontado por Minayo (2010, p. 436), “[...] multiprofissionalidade diz respeito à múltipla articulação, agora, de áreas profissionais. Ela acontece, geralmente quando, para solucionar um problema complexo da prática, são necessários conhecimentos de vários especialistas.”
De acordo com Vasconcelos (2006), tão importante quanto apreender as profissões, no contexto da contraditória sociedade do capital, é deixar claro que é na própria contradição de interesses entre capital/trabalho que está a possibilidade de uma prática social - a prática dos profissionais como sua parte e expressão - que fortaleça os interesses da saúde da população.
Contudo, Iamamoto (2008) aponta que a condição de venda e compra da força de trabalho restringe, em graus variados, a autonomia profissional na direção social desse exercício, com incidências na sua configuração técnico-profissional. Assim, as exigências impostas pelos distintos empregadores também incidem nas requisições feitas ao profissional e estabelecem limites e possibilidades à realização dos propósitos profissionais. Segundo Paulo Netto (2006), os projetos profissionais são projetos societários que, em sociedades como a nossa, são necessariamente projetos de classe, mesmo que o sujeito da ação não tenha consciência.
Diante do enfrentamento de uma política de contrarreformas, a afirmação de um projeto profissional e político-pedagógico voltado para uma formação crítica, reflexiva, teórico-metodológica, técnico-operativa e ético-política é de extrema importância para a formação dos profissionais e fortalecimento do SUS.
Nesse sentido, discutir questões conjunturais, pedagógicas e políticas do programa de RMS é importante, principalmente quando se considera a ótica dos preceptores - profissional de saúde que também é formador. Portanto, acredita-se que uma melhor compreensão desse processo poderá contribuir para a formação de profissionais críticos e consonantes com os princípios e diretrizes do SUS.
A interlocução com profissionais preceptores nos permitem algumas considerações. A maioria dos preceptores é do sexo feminino (92%), contra 8% do sexo masculino. Segundo Pierantoni (2012), um dos traços estruturais do setor de serviços de saúde é a preponderância da força de trabalho feminino principalmente as que envolvem o cuidado um fenômeno observado em todos os países. O processo de feminilização e feminização (YANNOULAS, 2011) é um aspecto a ser considerado neste trabalho, apesar de não ser aprofundado, tendo em vista que a questão do gênero, nos seus aspectos sociais e culturais, tais como a carga de trabalho exigido da mulher e a própria desvalorização do trabalho na saúde, vêm sendo observados na área. Assim, as realidades do mundo do trabalho e das relações de gênero vão interferir, também, no processo de ensino e de formação na residência, tendo em vista que a feminização da força de trabalho é acompanhada pela desvalorização econômica e social da atividade.
Observou-se que a maioria dos profissionais preceptores possui mais de 40 anos de idade, trabalham há mais de 20 anos na instituição, e estão inseridos na RMSM desde o início e tem vínculo estatutário com Carga horária de 40 horas semanais.
Quanto à categoria de análise sobre as referências teórico-metodológicas e posicionamento político ideológico dos preceptores, verificou-se que 50% dos preceptores citaram a concepção da
Organização Mundial da Saúde e, assim, percebem a saúde como bem-estar físico, mental e social, distanciando-se dos determinantes assegurados na Constituição Brasileira de 1988. De qualquer forma, 25% compreendem a concepção da Reforma Sanitária Brasileira (RBS) que abarca os determinantes concretos na saúde. No entanto,17% têm concepção eclética citando várias teorias sobre saúde, em contraponto a outros 8% que apontaram a saúde apenas como ausência de doença concepção considerada mais defasada na saúde, por estar mais voltada às compreensões biologicista e curativista.
É fato a existência de diversas concepções de saúde, isto porque decorrem de diversos aspectos da conjuntura social, política e econômica. Desta forma, cada concepção de saúde decorre da maneira que o sujeito social vê o mundo. Neste trabalho, essas concepções foram de três tipos: (1) a de modelo Flexneriano (biomédico) – que centra o estudo na doença individual e concretamente, no qual as relações sociais vivenciadas pela sociedade não contam para o ensino médico e não são consideradas no processo de saúde-doença;
(2) a da Organização Mundial da Saúde (OMS) – que coloca a saúde como um completo bem-estar físico, mental, e social e não apenas ausência de doença. Este conceito é bastante avançado devido ao período histórico de pós-Segunda Guerra Mundial, contudo, ainda é um conceito idealista que coloca a saúde como algo a ser alcançado e (3) a concepção do Movimento de RBS que apresenta um conceito ampliado de saúde e assegurado na Constituição Federal de 1988, tornando-se base teórico-metodológica da Saúde Coletiva brasileira.
Quanto à visão que os preceptores têm sobre o SUS, os dados revelam que 35% destacam a importância da Descentralização/ Regionalização; 20% consideram o SUS um instrumento formal, mas que não se efetiva na realidade; 15% destacam um programa ou política atual (Clínica da Família, Centro de Atenção Psicossocial [CAPS]); 15% defendem, mas apontam dificuldades; outros 10% destacam o avanço em relação à Integralidade/Universalidade/Acessibilidade; e, por fim, 5% não acreditam na viabilidade do SUS.
Procurou-se verificar como o SUS é visto pelos sujeitos que podem transformá-lo em realidade, tal como está definido nas legislações de saúde e diante dos desafios postos pela sociedade capitalista e as intervenções neoliberais. Uma postura de entendimento sobre a importância da construção do SUS e sua defesa crítica é essencial para o profissional formador. É importante que estes profissionais consigam apreender a grandeza e o significado que a criação do sistema representou quanto à extensão de direitos à saúde dos cidadãos, uniformização do atendimento, universalização e integralidade.
Referente à defesa e posicionamento do Projeto de Universidade que os preceptores defendem, verificou-se que 67% são favoráveis à Universidade Pública; 17% apontaram a qualidade da pública em relação à privada e 16% defenderam a Universidade Pública e Universal. Quando indagados sobre a privatização na saúde, 83% dos preceptores foram contrários à Gestão Privada na Universidade Pública, 9% se disseram contra a gestão privada, mas criticam a estabilidade do servidor público e 8% se disseram a favor da privatização em algumas instituições de saúde.
Considera-se que os preceptores têm um espaço de trabalho privilegiado, visto que é no Hospital Universitário (HU) que podem surgir questões importantes da Saúde Coletiva, com a possibilidade de produção do conhecimento, de críticas às práticas vigentes e de formação de multiplicadores na busca da implementação e ampliação do SUS. Assim, é importante que estes profissionais defendam um projeto de Universidade Pública e sem a interferência da gestão privada, tal como os dados apresentados neste trabalho. Isto é muito relevante quanto ao tipo de referência de formação e crítica que a residência possibilitará. (VASCONCELOS, 2010).
Outra variável foi a produção e sistematização de Relatos de Experiência, em que 33% não produzem relatos; 25% produzem relatos e publicam; 17% publicavam, mas atualmente não publicam e 25% produziram conhecimento relacionado à pesquisas e/ou resultados de mestrado. Ou seja, 50%, atualmente, não produzem relatos de experiência, ainda que vinculado a um curso de pós-graduação. Isto pode mostrar como os diferentes profissionais de saúde pensam e agem diante dos principais instrumentos existentes para dirigir uma ação contra-hegemônica na instituição; seu lugar de trabalho. Ao produzir relatos e publicizar suas dinâmicas de atuação, os sujeitos podem ter produções que mostram a realidade da saúde pública e aprofundar a dimensão investigativa e teórica no processo de ensino-aprendizagem na residência. Além de, dependendo da direção ética da produção, poder ser um instrumento com teor ético-político e teórico contrário ao pensamento e às práticas neoliberais na saúde destacando também que os HU’s são campos privilegiados de assistência e investigação.
No que diz respeito ao conhecimento dos profissionais sobre a importância dos conselhos de política e de direitos na atenção à saúde da população, observou-se um distanciamento dos profissionais com estes espaços, já que 42% nunca participaram dos conselhos e 25% não participam mais. Apenas 33% afirmaram participar ativamente. Quando perguntados se participam de outros espaços coletivos, 50% afirmam que não participam atualmente, mas já participaram; 42% nunca participaram e apenas 8% participam ativamente. Indagou-se sobre a importância dos espaços coletivos, fóruns e conselhos para a formação do Residente do SUS e a maioria (83%) reconhece que sim. Porém, 9% desconhecem esses espaços e ainda tiveram aqueles que criticaram esses espaços (8%), cujo debate merece ser ampliado. De qualquer forma, mesmo os que não incorporaram a participação nesses espaços em sua prática social na saúde, a maioria reconhece a relevância da inserção dos residentes nesses espaços políticos.
Na categoria de análise sobre formação e trabalho multiprofissional buscou-se apreender como os preceptores pensam e articulam o multiprofissional na formação dos residentes. Sobre a organização do exercício multiprofissional na unidade, 54% dos profissionais consideraram positivo e exitoso e 50% afirmaram que a forma como está organizada esta prática no setor contribui para a efetivação dos objetivos de formação multiprofissional da RMSM. Entretanto, ao serem indagados sobre o planejamento multiprofissional do ensino na preceptoria, 6% dos profissionais afirmaram que não percebem esta ação nos setores. Sobre a prática multiprofissional na unidade, verificou-se que os preceptores encontram dificuldades (25%) por questões estruturais; outros afirmaram que não há integração multiprofissional (25%) e outros não conseguiram avaliar (25%) tendo em vista que não conheciam todos os setores do HESFA/UFRJ. Esses dados demonstram que apesar dos preceptores considerarem a existência de avanços na projeção e nas práticas multiprofissionais do Instituto, também demarcam que há dificuldades em integrar essas práticas ao cotidiano, bem como a efetivação de uma maior integração aos demais setores do HESFA.
A respeito das dificuldades e das vantagens que os profissionais percebem na preceptoria multiprofissional, especialmente quando recebem residentes de outras profissões, foram citadas dificuldades em compartilhar o conhecimento de outras áreas (42%), destacando-se limitações de comunicação e na compreensão sobre as competências de outras profissões. Porém, 50% afirmam que não sentem dificuldades e 8% destacam a falta de treinamento e conhecimento ampliado da proposta da residência. Em relação às vantagens percebidas na preceptoria de outras profissões, destaca-se que os profissionais consideraram importante a oportunidade de integração e trocas de saberes com outras profissões (50%), 42% não responderam sobre as vantagens, considerando mais importante destacar as dificuldades. Outros 8% afirmaram que é a oportunidade de ir além da sua especialidade.
Sobre estes itens os preceptores sinalizaram que a maior preocupação não é a invasão do núcleo de atuação de outras profissões, mas sim, compartilhar ações de saúde entre estas profissões. Assim, é possível refletir que a compreensão desses preceptores sobre as práticas multiprofissionais pode estar oportunizando se colocarem no lugar das fronteiras com as outras profissões e oportunizando que seus lugares sejam partilhados com responsabilidade para que a troca de saberes seja consolidada, tal como aponta Ceccim (2010). Ainda nesse sentido, esta compreensão pode contribuir para a multidisciplinaridade, tal como diz Luz (2009), redefinindo saberes disciplinares e suas lógicas de aplicação política ou de intervenção na ordem da vida coletiva. Pode ainda resultar em soma de olhares e métodos ancorados pelos profissionais de diferentes disciplinas ou práticas e reforçar a interdisciplinaridade neste serviço de saúde.
É importante refletir que a formação e reforço de práticas multiprofissionais será um desafio para preceptores e também residentes, visto a proposta da Residência Multiprofissional ser diferenciada do que é hegemônico nas formações. Porém, a formação multiprofissional tem um papel importante na construção do SUS, pois pode produzir impacto na maneira de pensar e de agir dos profissionais de saúde, potencializando a reflexão nos processos de trabalho, bem como na viabilização de uma atenção integral em saúde aos usuários do sistema. Conforme diz Ceccim (2005, p. 163) “[...] sempre seremos poucos, sempre estaremos desatualizados, nunca dominaremos tudo o que se requer em situações complexas de necessidades em/ direitos à saúde.” Por isso a importância da constituição de equipes multiprofissionais e profissionais conhecedores e executores de práticas de saúde multidisciplinares, proposta de formação evidente nos programas das RMS.
Os resultados seguintes referem-se à categoria Ensino e Formação da RMSM. Indagou-se aos preceptores, profissionais formadores, sobre seu envolvimento no Projeto Político Pedagógico da RMSM. Verificou-se que 67% desconheciam seu conteúdo e outros 33% afirmam conhecer. Deste conjunto, 42% não participaram da construção do projeto, outros 42% tiveram uma participação não substancial e 17% afirmaram ter uma participação substancial. Estes dados sobre a participação são instigantes, considerando que 67% dos preceptores entrevistados estão inseridos desde o início da residência no HESFA. Sobre isto, é importante refletir que as possibilidades de materialização de uma formação multiprofissional devem ser expressas pelos projetos político-pedagógicos dos programas, com o objetivo de formar sujeitos capazes de compreender os desafios colocados pelo SUS e intervir diante destas questões com autonomia (SANTOS, 2010). Pelos dados, muitos profissionais atuam na condição de preceptores, mas sequer compreendem a estrutura da proposta na qual estão envolvidos.
Nesse sentido, concorda-se com Santos (2010) sobre o fato de que o Projeto Político-pedagógico não se resume a um conjunto de planos de capacitação e nem deve simplesmente ser arquivado depois de pronto ou encaminhado às autoridades interessadas, como prova de cumprimento de uma atribuição. Deve ser visto como uma construção coletiva, a ser vivenciada em todo o processo educativo e por todos os sujeitos nele inseridos. A construção de uma proposta pedagógica não é uma questão meramente formal, mas é, essencialmente, uma questão política e ideológica, na qual são confrontados valores, objetivos e concepções sobre educação e sociedade.
Além do caráter pedagógico, todo Projeto de Ensino é político, na medida em que exibe um compromisso com a formação de um cidadão, constituído de determinados valores e conceitos, pactuados por um grupo majoritário, concretizados como prática pedagógica. As dimensões política e pedagógica possuem um significado indissociável, definido como um processo permanente de reflexão em busca da efetivação das intenções do Projeto. A exigência de revisão de suas escolhas de avaliação, registro e reformulação dos planos traçados, provoca o movimento constante e desejável de transformação das relações de poder estabelecidas, podendo conduzir a instituição à busca de identificação política externa, ou por meio de relações com outros espaços educativos formais. Quando construído coletivamente, o projeto é capaz de alimentar e amadurecer a discussão sobre a democracia no cotidiano institucional, dando voz ativa aos sujeitos envolvidos.
Em relação ao processo de avaliação, destacamos o instrumento utilizado pelos preceptores para avaliar os residentes; observou-se que a maioria não participou da construção do instrumento de avaliação (92%). Quanto às críticas ou sugestões a respeito do instrumento avaliativo, apareceram respostas relacionadas a: intervalo de tempo de avaliação que deveria ser maior (13%); critérios do instrumento que não conseguem avaliar (13%); sugestões de questões mais abertas e qualitativas (19%); aqueles que consideram o instrumento satisfatório (19%); e os profissionais que afirmam nunca terem utilizado o instrumento avaliativo (13%). Destacam-se, ainda, algumas propostas dos preceptores quanto a estratégias mais coletivas de avaliação que envolvessem mais os sujeitos preceptores e residentes (6%).
A possibilidade de realização de avaliações em intervalos de tempo maiores é visto por muitos preceptores promissora, ao possibilitar que se conjugue tempo necessário para avaliar questões solicitadas pelo instrumento de avaliação e consideradas importantes pelos preceptores e que muitas vezes não são avaliadas ou são negligenciadas por não ser possível considerá-las no tempo de vivência do residente no espaço de aprendizagem e prática. Essa dissonância entre o solicitado na avaliação e as possibilidades de avaliação dos preceptores (ou mesmo a dificuldade de compreensão do que é solicitado pelo instrumento de avaliação) pode ser resultado da pouca participação destes na elaboração e planejamento do seu instrumento formal de avaliação da RMSM, como podemos observar nos dados. Outro aspecto relevante é que o processo de avaliação também é um espaço que se mostra pouco multiprofissional, resultado de uma organização e planejamento de ensino também pouco multiprofissional, muitas vezes deixando a cargo de um único profissional preceptor a avaliação que por vezes é realizada sem discussão com o residente – sujeito envolvido no processo de formação.
Neste trabalho, considerou-se o sistema de avaliação como a gama de recursos disponíveis para o planejamento, execução e análise dos processos avaliativos implementados (SILVA, 2013). Não se pretendeu, somente, conhecer os instrumentos formais de avaliação criados, mas, principalmente, compreender a concepção dos preceptores acerca da residência, da avaliação e do esforço institucional e pessoal direcionado às ações desta ordem. Porém, ao serem perguntados sobre como é o processo de avaliação, os entrevistados se remeteram com mais frequência aos instrumentos formais de avaliação.
Neste trabalho verificou-se que os preceptores possuem algumas dificuldades para potencializar a formação multiprofissional crítica em saúde dos residentes, por meio do processo de ensino no e pelo trabalho. Assim, os dados sugerem que os preceptores encontram dificuldades para desenvolver, planejar e protagonizar um trabalho que venha a contribuir para um processo ensino-aprendizagem condizente com uma formação profissional voltada aos objetivos propostos pela Residência Multiprofissional. Isto pode estar acontecendo devido à falta de participação mais efetiva dos preceptores na construção e discussão do projeto Político Pedagógico do curso; pela organização do trabalho que se desenvolve - distanciada do molde multiprofissional - assim como pela inexistência e fragmentação do planejamento das atividades de ensino.
A falta de protagonismo dos formadores preceptores na construção do Projeto Político Pedagógico aponta para uma possibilidade de se repensar a participação mais satisfatória destes profissionais no planejamento pedagógico do curso, tendo em vista que são centrais na formação com ênfase prática. Destaca-se que a maior parte do processo de ensino-aprendizagem se realizará nos cenários de prática, com a supervisão profissional dos preceptores.
Percebeu-se, também, que os profissionais não conseguem planejar e definir objetivos claros para a ação profissional, o que pode estar impedindo a utilização de sua relativa autonomia para sustentarem princípios éticos-políticos progressistas nos atendimentos, direcionando os instrumentos utilizados a partir de seu referencial e dos objetivos propostos. Outra tendência observada é de que os profissionais, por não planejarem e nem refletirem coletivamente sobre o exercício profissional, acabam por não destacarem as prioridades de atendimento para a formação dos residentes, reiterando, dessa forma, o que o cotidiano impõe como prioridade. Vale salientar que este cotidiano apresenta hegemonia das práticas meramente curativas e fragmentadas na saúde, além de uma defesa cada vez maior da privatização do setor. Como consolidar uma formação multiprofissional, se os formadores não planejam em conjunto com sua equipe multiprofissional o trabalho de ensino?
Desta forma, ressalta-se a necessidade do planejamento individual e coletivo da prática assistencial, destacando-se as ações relacionadas à preparação para a realização das atividades, tendo em vista os fins desejados – o planejamento. Na sociedade capitalista, o planejamento é um instrumento que pode ser utilizado para diversos fins. Entretanto, ao profissional que opta por um projeto de profissão voltado para fortalecer a saúde coletiva na perspectiva da Reforma Sanitária, coloca-se a exigência de planejamento do exercício profissional. Sem planejamento, as demandas dos usuários são abordadas como problemas a serem resolvidos de modo pontual, sem que sejam apreendidas como expressões da dinâmica da sociedade capitalista. Desta forma, o planejamento torna-se um instrumento essencial que permite estabelecer metas, prioridades e ações necessárias, tendo em vista assegurar uma prática institucional que se reverta em ganhos para a população (VASCONCELOS, 2010). A falta de planejamento dificulta, ainda, a avaliação da prática profissional e a avaliação dos alunos residentes, uma vez que não se estabeleceram parâmetros, metas e prioridades.
Outra constatação refere-se ao fato de que há ainda a prevalência de uma concepção abstrata sobre saúde e falta de participação dos preceptores nos espaços coletivos e políticos do SUS. Essa falta de participação pode ser parte e expressão da não apreensão do significado da concepção ampliada e política de saúde do Movimento de Reforma Sanitária, apesar da alta qualificação dos preceptores (especialistas, sendo alguns já mestres), vinculado a serviços de referência, a maioria em uma Universidade Federal e estando há mais de três anos envolvidos na formação de um curso de residência multiprofissional. Este fato possibilita perceber que a RMSM poderia potencializar sua possibilidade como espaço de Educação Permanente para estes profissionais. Também se associa a constatação, acima descrita, aos processos de vida ligada à feminização do trabalho em saúde e exploração da força de trabalho feminino na sociedade, o que pode afastá-las da participação, motivadas pela falta de tempo e cultura de inserção da mulher nas atividades públicas – ao que também se associa a pouca cultura de participação política do brasileiro.
Neste trabalho, concorda-se com Ceccim (2005) quando este se posiciona a favor da Residência como escolha pedagógica importante para a consolidação do SUS e acrescenta que tal modelo deve dialogar, permanentemente, com o controle social, a integralidade e o trabalho em equipe. Nesta mesma ótica, segundo Santos (2010), a Residência Multiprofissional tem sido vista por aqueles que a consideram uma estratégia de formação promissora, desde as primeiras discussões acerca de sua regulamentação, como um dispositivo de Educação Permanente para os profissionais do SUS. Sob essa ótica, o objetivo da Residência Multiprofissional não é o de preencher espaços vazios deixados pelas etapas anteriores de formação, mas sim promover a continuidade do processo. A Residência em Saúde não só se articula aos saberes anteriormente construídos, como depende de boas bases formativas para obter êxito, compreendendo que a proposta da Residência é promover a aquisição de competências de outra ordem que, quando incorporadas, se aliarão ao conhecimento específico de cada área profissional.