Editorial
EDITORIAL
A formulação do tema “Poder Político e Gestão Pública: questões e debates contemporâneos”, para a composição do Dossiê Temático do v. 21, n. 1, janeiro/julho 2017 da Revista de Políticas Públicas (RPP), foi efetivada na perspectiva de contribuir para estudos e debates sobre questões pertinentes ao desenvolvimento da gestão pública, que, na nossa visão, se mostram, no presente, como urgentes e desafiadoras. Acontece que, além das contradições já acumuladas historicamente, esse desenvolvimento vem sendo coagido por discursos e práticas que se articulam e se influenciam mutuamente. Tome-se como exemplo o “discurso satanizador do público” (BORÓN, 1996, p. 78), tendente à exacerbação do fortalecimento das relações Estado-sociedade-mercado e do controle político-estatal pelas classes dominantes.
A compreensão das cruciais relações e antinomias entre poder político e gestão democrática, com seus contornos particulares em formações sociais concretas, exige retraçar a crise que, na década de 1970, atingiu o denominado Welfare State Keynesiano que congregava, sob o capitalismo, certo consenso de classes em relação aos benefícios resultantes da crescente regulação e intervenção estatal na vida cotidiana. No modelo que o substitui, a lógica do Mercado é introduzida, com grande acuidade, nos domínios públicos. Passa então a predominar a linguagem dos contratos, da competição, da escolha individual.
Conforme Santana e Sousa (2012), a necessidade de fazer prevalecer, sob a função de provedor, a função de comprador de serviços, exige do Estado a conformação de um corpo ideológico-político centrado em duas balizas principais, as mesmas que passam a orientar a onda reformista dos anos subsequentes.
A primeira baliza tem como suporte uma racionalidade instrumental e fiscalista, que supervaloriza a relação custo-benefício das ações governamentais e a eficiência (relação habilidade produtividade) dos trabalhadores responsáveis pelos processos de gestão. Trata-se de visão comprometida com a redução das funções do Estado, com políticas públicas de perfil ex-post e focalista e o repasse das ações de solidariedade para a comunidade, mediante a refuncionalização das ações voluntárias. No caso brasileiro, dois movimentos podem ser apreendidos como expressões particulares desse balizamento.
De um lado, tem-se a articulação entre mercado e trabalhadores em torno do neodesenvolvimentismo. (BOITO JR., 2012). Instituído a partir dos anos 2003, tal projeto tema atual e bastante controvertido no meio acadêmico1 comporta: o mercado valorizado, sobretudo, pela abertura comercial, pela proteção do Estado na concorrência com o capital estrangeiro e pela redução de direitos trabalhistas e os trabalhadores beneficiados com melhorias reais no emprego, salário, política de assistência social e, no caso dos pequenos proprietários rurais, no crédito agrícola. De todo modo, cabe observar que, na nossa visão, a despeito do caráter agregador que especifica tal processo, este não conseguiu imprimir alterações nos fundamentos que referenciam a regulação econômica e social própria ao capitalismo no atual estágio do seu desenvolvimento.
De outro lado, manifesta-se o movimento de contraposição às dimensões agregadoras do projeto neodesenvovimentista. Trata-se do crescimento do não-Estado (NOGUEIRA, 2003, 2005), quer sob a forma de novas iniciativas do mercado e da sociedade civil, quer sob a forma de Estados paralelos (criminalidade, tráfico, lavagem de dinheiro, corrupção), substantivando a violência em uma trama social ainda pouco conhecida e onde se processam as fraturas, os bloqueios e reavivam os elos enviesados da política, consequentemente, determina a gestão do social e a forma de administração das urgências. (TELLES, 2007).
A segunda baliza, capaz de elucidar relações e antinomias entre poder político e gestão democrática, concerne ao aumento progressivo de demandas por democratização nas distintas esferas estatais. São proposições e ações que passam a exigir, dos sistemas tradicionais de autoridade, maior complexidade decisória e mais ampla abertura aos conflitos, dilatando a tensão histórica entre democracia, burocracia e participação popular.
A solução apontada tem fulcro em uma racionalidade utilitarista que busca mais eficiência e participação e aponta para a criação de organismos públicos que se pretendem voltados à melhoria da qualidade dos serviços oferecidos. Para isso, passa-se a incrementar o desempenho estatal com a introdução de formas de gestão e iniciativas destinadas a romper a rigidez do modelo burocrático, descentralizar os controles gerenciais, flexibilizar normas, estruturas e procedimentos2.
No atual contexto histórico, encontra-se em marcha um projeto ultraliberal, com retorno de velhos nacionalismos, que, respeitando-se as expressões históricas particulares, alcança países dos vários continentes. Nesse sentido, no complexo campo da gestão pública, tende a se reproduzir e acentuar a característica autoritária e centralizadora do poder político, condição que tem como desiderato, de um lado, a restrição da participação dos chamados cidadãos no processo decisório, mesmo quando esta se encontra prevista em documentos jurídico-estatais. De outro lado, a assimilação pelo setor público de práticas de gestão empresarial privada cuja prevalência indica a falência da concepção originária da coisa pública, como resultado do esforço coletivo, que deve fluir para usufruto de todos os cidadãos, partícipes de sociedades concretas.
Em relação ao Brasil, essas observações de ordem teórico-analítica aumentam sua complexidade ao serem pensadas ou cotejadas em face da atual grave crise econômica, política e institucional que o país atravessa. Nesse quadro, três sujeitos fundamentais destacam-se na conformação de um modo particularmente conservador e regressivo de gestão pública: o núcleo do Governo do Presidente não eleito, Michel Temer, o Poder Judiciário e a Mídia.
Em relação à relevância da mídia na configuração da agenda pública, o entrevistado deste número da RPP, Prof. Geraldo Di Giovanni (2017, p.4) refere que
A mídia impõe uma agenda que leva grande parte da sociedade a acreditar que contempla o interesse geral. Por exemplo, hoje no Brasil, a mídia impõe parte importante de uma agenda que comporta temas como previdência, terceirização, reforma política que passam a ser tratados como problemas nacionais relevantes [...] É claro que a agenda de políticas públicas nunca vai depender exclusivamente da mídia e nem se desvincular de vieses ideológicos, mas as grandes questões vão se tornando objeto de políticas na medida em que vão sendo depuradas em agendas diversas, que fluem e são sintetizadas no âmbito do Estado.
Os autores e autoras que se dedicaram a refletir sobre o tema “Poder Político e Gestão Pública: questões e debates contemporâneos”, o fizeram sob diferentes óticas e objetos. Foram selecionados, fundamentalmente, pelo mérito acadêmico dos seus escritos atestado pelos avaliadores, mas também visando envolver a diversidade regional, institucional e a presença internacional.
A unidade identificada no material selecionado foi a capacidade de os autores e autoras em lidar com o tema da chamada, a partir de situações concretas que conformam e desafiam o processo de gestão. Tal diretiva pode ser visualizada já nos títulos dos quinze artigos que compõem o Dossiê Temático da Revista, apresentados em ordem alfabética. São eles: “A gestão em redes no contexto neoliberal: o exemplo da Política de Assistência Social brasileira”; “A indústria paranaense e o Programa Paraná Competitivo: descentralização e o desenvolvimento”; “Análise da evolução do imposto sobre serviços na arrecadação tributária no município de Campinas-SP”; “Análise do gasto público ambiental nas dez maiores economias regionais do Paraná”; “A influência das auditorias operacionais do Tribunal de Contas da União no desenho do Programa Universidade Para Todos (Prouni)”; “Avaliação do Programa Um Milhão de Cisternas Rurais (P1MC): eficácia, eficiência e efetividade nos territórios do Rio Grande do Norte 2003-2015”; “Conselhos de Direitos: tensões, limites e contradições da participação potencial à participação de fato”; “Construção de políticas para melhoria do processo de internacionalização da arquitetura no Brasil: Caso Apex-Brasil”; “Contingenciamento orçamentário e autonomia nas agências reguladoras: o caso da Agência Nacional de Telecomunicações”; “Distri-
buição espacial e acesso a serviços públicos essenciais em Políticas de Habitação de Interesse Social”; “Gestão pública e Política de Mobilidade E Arborização: conflitos de interesses governo dos algoritmos”; “Instrumentos de gestão da Assistência Social: uma análise da realidade dos municípios brasileiros”; “Law 1.261/2015: obstacles to implement new public policies for tourism in São Paulo – Brazil”; “Políticas de participación ciudadana en ámbitos locales de Argentina: alcances en términos políticos y de gestión pública”; “Questões contemporâneas na gestão pública de resíduos sólidos: análise dos princípios da Política Nacional de Resíduos Sólidos a partir de seus objetivos e instrumentos”.
O Dossiê Temático é encerrado com uma entrevista e uma resenha. A entrevista feita pela Profa. Dra. Maria Carmelita Yazbek, da PUC-SP, com o Prof. Dr. Geraldo Di Giovanni, da UNICAMP, trata do tema com profunda acuidade analítica apresentando elementos de estudos e debates sobre a questão da gestão pública e do poder político no atual contexto histórico. A resenha é feita pelo prof. Dr. Guillermo Alfredo Johnson da UFGD sobre o livro “Gestão, usos e significados das águas: conflitos e convergências. Florianópolis: UFSC, 2015 organizado por ROSSETTO, Adriana Marques; REIS, Maria José; SENS BLOEMER, Neusa Maria”.
Completando o v. 21, n. 1 da RPP, são apresentados oito artigos que versam sobre diferentes temas relacionados ao amplo campo das Políticas Públicas. São eles: “A institucionalização da Política de Saude Mental no Paraguai: antecedentes, conteúdos e desafíos atuais”; “Atenção primária à saúde na agenda pública brasileira: dilemas entre focalização e universalidade”; “Homicídios: das práticas às inscrições das violências letais”; “Política Pública de Assistência Social e sustentabilidade em municípios do Baixo Amazonas: a Proteção Social Básica em questão”; “Public broadcasting services in the united states and brazil: history, funding an new Technologies”; “Seletividade e/ou democratização da educação superior em tempos do Sisu”; “Urbanização extensiva na Amazônia brasileira e formação do movimento indígena”; “Utopia da segurança e da paz em meio ao medo e ao terror alimentados pela sociedade do capital”.
Esperamos, enfim, que o rico material disponível neste número da RPP contribua para o aprofundamento de estudos e debates sobre o tema “Gestão Pública e Poder Político”, além de outros afeitos ao amplo campo das Políticas Públicas, em um momento de crise do capitalismo e avanço do conservadorismo e que, no Brasil, ameaça direitos sociais fundamentais.
Referências
BORÓN, A. A sociedade civil depois do dilúvio neoliberal. In: SADER, E.; GENTILI, P. (Orgs.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
BOITO JR, A. A economia capitalista está em crise e as contradições tendem a se aguçar. Brasil de Fato, São Paulo, n. 475, p. 5, abr. 2012.
NOGUEIRA, M. A. Sociedade civil, entre o político-estatal e o universo gerencial. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 18, n. 52, p. 185-202, jun. 2003. Disponível em:<http://www.scielo. br/pdf/rbcsoc/v18n52/18072.pdf>. Acesso em: 1 jun. 2017.
NOGUEIRA, M. A. Um Estado para a sociedade civil: temas éticos e políticos da gestão democrática. São Paulo: Cortez. 2005.
SANTANA, R. N. do N.; SOUSA, S. de M. P. S. Gestão pública e racionalidade administrativa: sobre gestão ambiental urbana no Brasil. Argumentum, Vitória, ES, v. 4, n.2, p. 189-207, jul./dez. 2012. Disponível em:<http://www.publicacoes.ufes.br/argumentum/article/viewFile/3076/3611>. Acesso em: 1 jun. 2017.
TELLES, V. Transitando na linha de sombra, tecendo as tramas da cidade (anotações inconclusas de uma pesquisa). In: OLIVERIA, F.; RIZEK, C. S. (Orgs.). A era da indeterminação. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 195-220.
Notas