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CONSELHOS DE DIREITOS: tensões, limites e contradições da partipação potencial à partipação de fato
COUNCILS OF RIGHTS: tensions, limits and contradictions of potential participation to real participation
Revista de Políticas Públicas, vol. 21, núm. 1, pp. 159-175, 2017
Universidade Federal do Maranhão

Artigos - Dossiê Temático


Resumo: O trabalho busca compartilhar reflexões acerca dos Conselhos de Direitos e de políticas sociais, considerando sua conceituação e finalidade. Contrasta a referência legal proposta para estes espaços à experiência obtida, pelas auto- ras, enquanto participantes como conselheiras, no Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do estado do Rio de Janeiro. Toma por fundamentos as diretrizes de controle e participação social e gestão demo- crática, buscando refletir sobre as contradições que permeiam estes espaços, considerando sua composição, mas, em especial, as visões de mundo que neles concorrem. Em se tratando da formulação e gestão de políticas públicas volta- das para crianças e adolescentes, sobretudo aos pobres que vivenciam histórias de vida marcada por expressões da questão social, conclui que essa experiência revela que as ações empreendidas reportavam o esforço pela defesa e promoção de direitos, mas, paradoxalmente, referiam a vigência da ideologia menorista.

Palavras-chave: Conselhos de direitos, controle social e gestão democrática.

Abstract: The work that follows seeks to share reflections on the Councils of Rights and social policies, considering its conceptualization and purpose. It seeks to con- trast, the legal reference proposed for these spaces to the experience obtained by us, in the participation as advisors in the State Council for the Defense of the Rights of Children and Adolescents of the state of Rio de Janeiro. Taking as basis the guidelines of control and social participation and democratic ma- nagement, seeking to reflect on the contradictions that permeate these spaces considering their composition, but especially the worldviews that compete in it. In the formulation and management of public policies aimed at children and adolescents, especially the poor, who experience life histories marked by ex- pressions of the social question, the experience obtained revealed to us that the actions undertaken reported the effort for defense And promotion of rights, but paradoxically referred to the validity of the ideology of the minority.

Keywords: Rights councils, social control and democratic management.

1 INTRODUÇÃO

As reflexões aqui propostas, bem como a experiência a qual buscamos compartilhar, se inscrevem na trajetória enquanto profissionais atuantes junto à temática da criança e do adolescente, na incansável, ainda que às vezes fadigada militância nesta área, mas em especial, em nossa participação entre os anos 2014/2015, como Conselheiras de Direitos no Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente no Estado do Rio de Janeiro (CEDCA/RJ).

Ao ocuparmos o referido espaço como representantes do Conselho Regional de Serviço Social do Rio de Janeiro (CRESS - 7ª Região) foi possível compreender a importância dessa participação, sobretudo no que se refere à dimensão ético-política, considerando os diferentes discursos que falam em nome dos direitos de crianças e adolescentes.

Na experiência vivenciada, muitas indagações e reflexões surgiram no cotidiano de nossa participação em debates, reuniões e assembleias, no que se refere às limitações deste espaço, em cumprir seu efetivo papel, no que tange ao controle, participação social e gestão democrática da política pública destinada às crianças e adolescentes do estado do Rio de Janeiro.

Nas elaborações aqui destacadas, buscamos ressaltar que a composição e os interesses vigentes no espaço do CEDCA, ainda que convergissem para a promoção e defesa de direitos deste grupo, vinculavam-se a interesses pessoais, institucionais e a relações sociais que, a nosso ver, reduziam a potencialidade deste espaço em se constituir, de fato, como promotor de políticas públicas de caráter amplo.

Este processo demonstrou o quanto se faz necessário avançar na perspectiva que se destina a concretizar o âmbito do conselho de direitos, como verdadeiramente de proposição e controle das políticas sociais, rompendo, por um lado, com o histórico processo de verticalização das ações e do poder, e, por outro, superando a proposição de ações pautadas no controle coercitivo de crianças e adolescentes, em especial, dos pobres, processo este que nega a perspectiva democrática e de direitos prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990.

Em se tratando do Serviço Social, entendemos que a relevância das reflexões que constam no presente trabalho inscreve-se na dimensão ético-política apropriada pela profissão objetivada nas normativas que materializam o projeto profissional. O posicionamento em favor da equidade e justiça social, que assegure universalidade de acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais, bem como sua gestão democrática, a ampliação e consolidação da cidadania e a defesa intransigente dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do autoritarismo, princípios fundamentais destacados no Código de Ética Profissional tomam, aqui, sentido objetivo.

Na experiência vivenciada, fora possível compreender que o caráter coletivo da defesa e promoção de direitos se contradiz na condução de interesses particulares, e que, mesmo entre os que discursam em nome dos direitos de crianças e adolescentes, podemos verificar permanências da visão menorista fundamentada por inspirações voltadas ao esforço de manutenção do status quo embasadas pelo conservadorismo, que encontra na proposição, gestão e execução de políticas sociais, sobretudo, quando destinadas às crianças e adolescentes pobres, formas concretas de se perpetuar.

2 PREMISSAS PARA ANÁLISE: controle e participação social e gestão democrática

A Constituição Federal (CF) de 1988 instituiu oficialmente, como diretrizes destinadas à elaboração e gestão de políticas sociais públicas, a gestão democrática e, nesta, a participação e o controle social. A Carta Magna, ao apontar as referidas diretrizes, investira na superação das características que marcaram historicamente a formação social brasileira, entre estas: a centralização e as decisões pelo alto, conforme referido por Florestan Fernandes (2006).

A reivindicação pelo atendimento das necessidades sociais, mas igualmente, de participação na elaboração e gestão das políticas públicas, passa a constar no texto legal, sendo ponto culminante de um processo histórico de luta por direitos e cidadania, radicalizado, sobretudo, na década de 1980, no Brasil.

A partir de Coutinho (1997), compreendemos o acesso a direitos e à cidadania, como a capacidade conquistada por alguns indivíduos e/ou por todos de se apropriarem dos bens socialmente criados, como um movimento que resulta de uma luta permanente, quase sempre, a partir dos de baixo, das classes subalternas, vindo a implicar um processo de longa duração. As diretrizes de participação, gestão democrática e controle social tomam, nas elaborações que seguem, um sentido essencialmente político, ainda que não unívoco.

Tomando como ponto de partida o conceito de controle social, faz-se necessário apontar que seu debate não é consensual, havendo diferentes perspectivas que se propõem a analisá-lo, e, ainda, expressões diferenciadas assumidas em diferentes momentos histórico-sociais e, particularmente, em meio à sociedade brasileira.

Este conceito, sendo apropriado por diferentes inspirações teóricas, abordagens e perspectivas, fora utilizado historicamente, sobretudo pela vertente sociológica, para referir as ações coercitivas desenvolvidas pelo Estado, através das instituições destinadas a garantir o ordenamento social, voltadas, sobretudo, à classe trabalhadora, e, nesta, ao segmento mais empobrecido.

No Brasil, para além da apropriação desta vertente, o conceito de controle social toma novas bases, ao ser apropriado como elemento político presente no contexto sociopolítico, que emerge da participação da população expressa como sociedade civil, na realidade brasileira, ao final da década de 1980. Este conceito fora objetivado, através do modelo de gestão descentralizada das políticas sociais, proposto no texto constitucional.

Para a análise que segue, partimos do conceito de controle social em sentido amplo, considerando-o como elemento mediador das relações sociais, que não se limita a um único período histórico ou a um modelo único de sociedade, mas que está contido historicamente nas relações sociais dos seres humanos. Silva (2011) oferece importantes contribuições para reflexão acerca do conceito de controle social, tendo sua análise fundamentada pelas obras de Karl Marx e Instván Mészáros, os quais analisam o controle social em sentido ontológico, como elemento mediador da relação homem natureza, sendo próprio da ação humana e fruto de sua sociabilidade.

A referida autora, tendo por base a obra de Mészáros (2002), demonstra que o controle social é imanente à condição ontológica do ser social, em qualquer forma de organização social, na medida em que possibilita a produção e reprodução das relações sociais. Neste sentido, a perspectiva proposta por Mészáros (2002) refere que os tipos históricos de controle social são definidos na luta pela hegemonia, a partir do confronto homem natureza e dos homens entre si, este último balizado pelo elemento da classe social.

Tomando como premissa o solo histórico da sociedade capitalista e a desigualdade de classe que a particulariza, verificamos que a partir deste modelo de organização produtiva e social algumas instituições se ocuparam de mediar as relações sociais entre os homens que compõem as diferentes classes, exercendo, assim, o controle social entre estes.

Considerando o contexto no qual a burguesia emerge como classe dominante, evidenciando sua expressão conservadora, verifica-se que as instituições inscritas no modelo de sociedade capitalista, a exemplo da grande indústria e do Estado, desenvolveram recursos de controle social, inscritos na relação capital X trabalho. Sob este modelo de sociedade, o Estado, através de um conjunto diferenciado de instituições e ações, representadas por Gramsci (2000) como aparelhos coercitivos, utilizará de recursos de controle e coerção, com vistas a manter a ordem social vigente e a reprodução das classes sociais.

Mas é também a análise gramsciana que nos permite refletir sobre uma visão ampliada acerca do Estado, para além de sua evidência como comitê político da burguesia, conforme referido por Karl Marx. Gramsci (2000), ao compreender o Estado como ampliado, irá localizá-lo na interseção entre a sociedade política, em meio à qual se gestam os aparelhos coercitivos e a sociedade civil, lócus da disputa pela hegemonia e pela correlação de forças entre as classes sociais.

Assim, o controle social estaria em eterna disputa dependendo do elemento da correlação de forças e de sua radicalização e tensionamento pelas classes sociais. O controle social na análise gramsciana está, assim, localizado no âmbito da busca pela hegemonia, ou seja, na busca pela direção social, conforme refere Gruppi (1978).

Para a análise que segue tomamos como premissa a compreensão de controle social em sentido amplo, como instrumento de tensionamento da direção impressa pela classe dominante à direção social, por meio da potencialização da participação social da população, no controle das ações do Estado, tal como referido na CF de 1988.

Quanto ao conceito de participação social, é importante assinalar que, sendo este apropriado por diferentes áreas, como a sociologia, a administração, a psicologia e as ciências sociais, por exemplo, este será pautado por compreensões diferenciadas, tendo por fundamento referencias que vão desde questões coletivas e objetivas, àquelas pautadas em meio a individualizações e a aportes subjetivos.

Nas reflexões que aqui propomos, o conceito de participação social refere-se à possibilidade de tensionamento do poder socialmente estabelecido, tal como referimos nos parágrafos anteriores, sendo concebido como a capacidade potencial ou de fato, de os sujeitos sociais interferirem na direção social. O caráter central deste processo encontra-se, pois, em uma relação dialética entre a intencionalidade e a prática social.

Entre potencialidades e sua efetivação de fato, os ideais de controle e participação social demandam uma esfera de governo e de gestão pautada pelo fundamento de democracia, sendo esta compreendida não em sentido ideal como espaço de condições plenas à realização e emancipação dos indivíduos, haja vista que as experiências de democracia e democratização do poder são desenvolvidas no bojo da sociedade capitalista, particularizada pela divisão de classes.

Desse modo, no que concerne ao aporte de democratização e gestão democrática, partimos da compreensão de Paulo Netto (1990), que o compreende como um processo, um momento de transição, uma condição estratégica para a construção de um outro modelo de sociedade e de relações sociais, voltado efetivamente à emancipação humana e política dos sujeitos sociais que a sustentam.

A gestão democrática assumiria, assim, o conteúdo de inversão da ordem socialmente estabelecida, pautada por princípios e valores éticos e políticos que apontam para os direitos da coletividade. Sendo assim, a exemplo do destacado por Souza Filho e Gurgel (2016, p. 72-73), entendemos que a finalidade da gestão democrática:

Deve ser transformar as condições de vida das classes subalternas, aprofundando e universalizando direitos civis, políticos e sociais, visando contribuir com a supressão da ordem do capital. Uma finalidade que aponta para uma intervenção imediata visando à expansão da emancipação política, na perspectiva de contribuir com a luta pela construção da emancipação humana.

A possibilidade de interferir nas decisões políticas e gerenciais que sustentam a formulação, gestão, monitoramento e avalição das políticas públicas e sociais brasileiras, fora sem dúvida uma conquista dos movimentos sociais, categoriais, profissionais, estudiosos e pesquisadores, e dos próprios usuários das políticas, que ao menos legalmente, buscou romper com a centralização e verticalização impressas historicamente.

No entanto, a inscrição leal destes ideais como diretrizes a serem obedecidas para a gestão e execução de políticas públicas e sociais, desenvolve-se, a nosso ver, em meio à correlação de forças que ora revela sua apropriação de fato, possibilitando a interferência da população na direção das ações, ora mantém tais aportes apenas na esfera positiva da lei, suprimindo seu real sentido.

A partir dessas reflexões, buscamos afirmar que a inscrição legal da gestão democrática, do controle e da participação social como diretrizes direcionadas à constituição das políticas públicas e sociais no Brasil, apesar de inscritas legalmente, em contextos determinados encontram-se, em muito, como potenciais. Tal particularidade pode ser observada quando analisamos espaços preciso de operacionalização destas diretrizes, a exemplo dos Conselhos de Direitos e de Políticas Públicas.

Neste espaço de proposição, fiscalização e monitoramento de políticas públicas, a heterogeneidade de composição, interesses e visões de mundo aponta desafios cotidianos para a objetivação dos ideais que se destacam enquanto potenciais. Em se tratando do CEDCA, espaço que estimula as reflexões que aqui buscamos compartilhar, tais desafios se colocam de forma ainda mais acentuada, haja vista que os sujeitos-alvos das ações, crianças e adolescentes, apresentam limites efetivos em se fazer ouvir e representar, sendo este movimento desenvolvido por representações que, ainda que discursem em prol dos direitos de crianças e adolescentes, reportam ações punitivas, que ao invés da proteção e promoção, referem processos de violação de seus direitos.

3 CONSELHO DE DIREITOS E GESTÃO DEMOCRÁTICA

No contexto dos acontecimentos político-sociais que emergem no Brasil, sobretudo na década de 1980, momento em que as lutas pela abertura política tomam maior proporção no país, evidenciando esforços pela constituição democrática de Estado e da sociedade civil, podemos compreender que, sobretudo na luta pelo avanço de direitos e na constituição de políticas sociais, os preceitos contidos na teoria gramsciana se fizeram presentes.

O processo constituinte fora permeado por intensas disputas e negociações possíveis, que tiveram como produto a Constituição de 1988, a qual representou ao menos no plano jurídico, um instrumento potencial de extensão e afirmação de direitos. No que tange às políticas sociais, o texto constituinte ao apontar como uma de suas diretrizes a descentralização político-administrativa, rompe, ao menos legal e gerencialmente, com a centralização histórica que marcou o planejamento, gestão e execução das políticas sociais no Brasil.

Efetivando as bases federativas expressas na carta magna, a descentralização aponta a defesa da autonomia político-financeira aos entes federativos, União, Estados, Distrito Federal e Municípios, tendo como uma de suas fortes justificativas a necessidade de pensar ações destinadas a lidar com as particularidades regionais.

Acerca da descentralização, ainda que tomemos por referência os avanços possibilitados pelo emprego desta diretriz na elaboração, gestão e execução das políticas públicas e sociais no Brasil, compreendemos, segundo Arretche (1996), que ao final da década de 1980 e início de 1990, uma suposta análise consensual fora revelada sobre o tema, evidenciando-o como recurso garantidor da eficiência das políticas sociais setoriais. Buscando relativizar o suposto consenso, a referida autora, no ensaio que busca analisar o mito da descentralização, aponta algumas provocações destinadas a problematizar as expectativas quanto às virtudes da descentralização e de que esta implicasse, necessariamente, em maior democratização das ações, em especial, destinadas à constituição de políticas públicas e sociais:

Com relação ao primeiro argumento examinado aquele que diz respeito à expectativa de que a descentralização seria condição necessária à democratização do processo decisório, penso que, qualquer que seja o conteúdo da proposta de democracia ao qual se esteja filiado, os princípios e valores que o sustentam devem se encarnar em instituições concretas, as quais têm variado ao longo do tempo. Dado que permanecerão existindo questões que devem ser processadas pelos distintos níveis de governo, o caráter democrático do processo decisório depende menos do âmbito no qual se tomam decisões e mais da natureza das instituições delas encarregadas. Além disso, a associação entre centralismo e autoritarismo pode ser mais bem explicada pelo exame da forma pela qual se associaram historicamente, no processo de formação dos distintos Estados nacionais, estruturas administrativas do governo central e elites locais e/ ou regionais. É a maior ou menor capacidade de absorção/cooptação/integração dessas elites no Estado centralizado que estimularia essas mesmas elites a identificar descentralização e democratização em suas demandas por maior participação no processo político. (ARRETCHE, 1996, p. 62).

Se a partir da análise proposta pela autora acima citada, podemos compreender que a diretriz de descentralização não fora capaz de superar instantaneamente os pontos particularmente criticados vinculados à centralização, tais como ausência de participação nas decisões, autoritarismo e clientelismo, entendemos que não podemos creditar igualmente, de forma instantânea, a apropriação do controle e participação social à existência e funcionamento dos Conselhos de Direitos e de Políticas Sociais Setoriais.

Estipulados como condição para a formulação e gestão de políticas Públicas e sociais, os Conselhos de Direitos são destacados como condição essencial para a estruturação destas ações, nos três níveis de governos (estados, municípios e União), evidenciados como espaços potenciais à participação e ao controle social.

No entanto, é válido ressaltar, com base nos estudos de Raichellis (2011), que a experiência de Conselhos, apesar de particularizada, a partir do período sob o qual nos debruçamos, não representara uma iniciativa necessariamente inovadora. A autora destaca, na obra em que se propõe a analisar a relação entre esfera pública e os Conselhos de Assistência Social, a existência de ao menos dois outros modelos de conselhos anteriores ao proposto na Carta Magna: os Conselhos Populares, criados pelos próprios movimentos sociais e os Conselhos Comunitários, criados diretamente pelo governo, para servir de mediação com os movimentos e organizações populares.

Mas ainda que não se tratasse de uma iniciativa dotada de ineditismo, no que tange às relações intergovernamentais, direcionadas pela diretriz de descentralização, o condicionante da existência e funcionamento dos Conselhos de Direitos, bem como a proposição dos Planos destinados ao planejamento das ações e Fundos, destinados a concentrar os recursos previstos para as diferentes políticas sociais setoriais, enquanto exigências legais, possibilitaram a reconfiguração do desenho e forma de funcionamento impressos historicamente à gestão e execução das políticas sociais no Brasil.

O que particulariza a experiência dos Conselhos de Direitos e de Políticas Públicas é a institucionalidade a que foram submetidos. Estes passam a ser condição para o planejamento, gestão, execução e fiscalização das políticas sociais, nas diversas esferas de governo, sendo instituições essenciais para a construção democrática das políticas sociais.

Em se tratando dos Conselhos de Direitos e políticas sociais inscritos na CF de 1988, como instituições formais e legais destinadas à deliberação da política pública, através da diretriz de participação, estes se constituíram como órgãos autônomos de composição paritária entre representantes da sociedade civil e governo, com direito a voz e voto. Representaram e representam caráter deliberativo, no que concerne ao planejamento e elaboração das políticas sociais e, ao mesmo tempo, fiscalizador desta, no que tange ao financiamento, qualidade de execução dos serviços, programas e das instituições.

Bravo (1996), ao analisar a participação social na saúde, ressalta que a participação é concebida como a gestão nas políticas através do planejamento e fiscalização pela sociedade civil organizada. Sendo assim, considera-se que a participação e interferência da sociedade civil nas decisões tomadas pelo Estado, na elaboração, execução e fiscalização de políticas sociais setoriais, através dos Conselhos de direitos e de políticas públicas, buscam estabelecer novas bases de relação entre Estado e Sociedade.

Neste sentido, é no âmbito da fiscalização e da participação, inscrito na dinâmica dos Conselhos, que podemos apontar sua interseção com o princípio do Controle Social, este compreendido de forma ampliada, no sentido inscrito na CF, como recurso a ser apropriado pela população, sobretudo a usuária dos serviços e programas vinculados às políticas sociais setoriais, como forma de controle das ações do Estado e de inscrição legal de reivindicações e direitos aos usuários das políticas públicas, conforme destaca Raichellis (2008).

Estes Conselhos significam o desenho de uma nova institucionalidade nas ações públicas, que envolvem distintos sujeitos nos âmbitos estatal e societal. [...] Sob diferentes ângulos é possível reconhecer a importância desse fenômeno, o que não quer dizer que se desenvolva sem ambiguidades e contradições. Ao contrário, a polêmica em torno do significado político dos Conselhos e as consequências da sua institucionalização continuam despertando questionamentos quanto à oportunidade e efeitos políticos da participação popular neste espaço. (RAICHELLIS, 2008, p. 82).

A consideração do espaço dos Conselhos de Direitos, como contraditório, direciona as reflexões que aqui propomos. Ao mesmo tempo em que consideramos que sua institucionalização refere um recurso potencial à participação e ao controle social das políticas públicas e sociais, pela população, e nesta, pela sociedade civil organizada, compreendemos igualmente que sua composição e o cotidiano de funcionamento e organização são balizados por correlação de forças e tensionamentos que referem projetos societários, visões de mundo de direitos e de políticas sociais que, por vezes, contrastam entre si.

Neste contexto, chamamos a atenção para o fato de que ainda que considerado como instrumento potencial à participação social, esta não pode ser reduzida ao âmbito dos Conselhos, pois, do potencial participativo à participação de fato, muitos limites e contradições se revelam.

4 DO POTENCIAL PARTICIPATIVO À PARTICIPAÇÃO DE FATO: reflexões sobre a experiência no CEDCA/RJ

Conforme já destacado nas linhas iniciais deste trabalho, nossa aproximação e integração como Conselheiras, ao CEDCA/RJ, se deu por meio do assento ocupado pelo CRESS - 7ª Região, no período de 2014 e 2015, momento em que se destacava como debate em torno das ações destinadas às crianças e adolescentes, no estado, o atendimento socioeducativo.

As denúncias recorrentes de maus-tratos e violência no interior das unidades de privação e restrição de liberdade, as noticias constantemente divulgadas pela mídia, acerca da autoria de atos infracionais cometidos por grupos de adolescentes, sobretudo no Centro da cidade do Rio de Janeiro, e, ainda, a demanda legal pela construção do Plano Estadual de Atendimento Socioeducativo ofereciam, a esta matéria, destaque entre as ações encampadas pelo Conselho.

Sendo assim, visando se debruçar sobre o tema e a oferecer respostas ao contexto aludido, a atuação do CEDCA/RJ sobre o atendimento socioeducativo no referido período fora sistematizada por meio da formação de dois grupos; um destinado à comissão voltada para a elaboração do Plano Decenal de Atendimento Socioeducativo1 e outro destinado à composição de um grupo de trabalho voltado a debater, analisar e propor ações contra as denúncias de violência2, presentes nas instituições socioeducativas de privação e restrição de liberdade, geridas pelo Departamento Geral de Ações Socioeducativas (NOVO DEGASE).

Pela experiência profissional obtida, e considerando ser esta nossa área de estudo e pesquisa, enquanto docentes do magistério superior e discentes de cursos de pós-graduação, em nível de doutorado, participamos ativamente dos trabalhos encampados por ambos os grupos, sendo estes compostos por representantes de diversas instituições. No entanto, é significativo compartilhar que, contradizendo a diretriz de participação, nenhum dos dois grupos contava com a presença de adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas, nem de seus responsáveis e familiares.

É essencial destacar que, ainda que compreendamos o comprometimento dos Conselheiros que compunham o grupo e a comissão que aqui destacamos, a ausência dos adolescentes e de seus responsáveis fora questão exaustivamente debatida e sentida por nós, e que, por muitas vezes, nos fez questionar o principio de participação social, sendo esta objetivada na realidade que aqui destacamos como potencial, e não de fato.

O grupo e a comissão de trabalho eram integrados pelos Conselheiros que compunham o CEDCA/RJ, sendo estes profissionais técnicos e de gestão oriundos de instituições governamentais, da sociedade civil e autárquicas, como é a especificidade do CRESS/RJ, vinculados às políticas sociais setoriais e, entre estas, à Segurança Pública. O grupo contava ainda com representantes do Ministério Público, da Defensoria Pública, e dos órgãos executores do atendimento socioeducativo em nível estadual, como o DEGASE e Secretaria Municipal de Assistência Social da cidade do Rio de Janeiro.

É importante ressaltar que, apesar de essencial, no período em que estivemos vinculados ao CEDCA/RJ não presenciamos em nenhuma das atividades encampadas pelo Conselho, a presença de representantes do Poder Judiciário, especificamente das Varas da Infância e Juventude, fato que oferecia dificuldades objetivas às ações propostas, considerando que um importante ator integrante do sistema de garantia de direitos estava alheio aos debates e pactuações realizadas.

Nesse sentido, o debate sobre as diretrizes e ações a serem propostas para o atendimento socioeducativo no estado do Rio de Janeiro fora permeado por dissensos, considerando que, a nosso ver, posicionamentos e propostas particulares estavam direcionadas muito mais ao reforço de um dado discurso institucional e à manutenção do status quo, do que à defesa e promoção do grupo de adolescentes sentenciados pela autoria de atos infracionais, em cumprimento de medidas socioeducativas.

No que concerne à participação que cerca os Conselhos, entendemos, a exemplo do que destaca Bravo (1996), que há um confronto entre formas de cooptação políticas motivadas por interesses individuais e/ou privatistas e a proposição e defesa de direitos em sentido amplo, fato que, muitas vezes, mina a possibilidade de construção do espaço público e de políticas de fato universais.

Nossa participação no CEDCA/RJ, no âmbito da militância, revelou um cenário de tensões profundas e a expressão de interesses diversos, apesar dos discursos se afinarem de forma generalizada, sob o signo da garantia e defesa de direitos a crianças e adolescentes.

A partir desta experiência, fora possível compreender que este espaço de controle social democrático é repleto de contradições, lutas e disputas, que nem sempre se debruçam sobre a finalidade a que se destinam. Por vezes, fora possível perceber que a razão burocrática que historicamente fundamentou a elaboração, gestão e execução das políticas sociais, e nestas, das ações voltadas para crianças e adolescentes, ainda vigoravam, diluindo, assim, as recentes conquistas que destacam a gestão democrática e a participação social. Compreendemos que em questões de caráter eminente, a burocracia por vezes se sobrepôs às necessidades sociais de crianças e adolescentes.

Nessa experiência, foi possível constatar as contradições da política para a área da criança e do adolescente e do controle social, as quais repercutem na não concretização de direitos e no não enfrentamento da lógica punitiva. É importante destacar que o controle social democrático, através dos Conselhos de Direitos, passa a ser central, no sentido de pressionar, fiscalizar e direcionar a política em questão, voltando-a para a proteção e não para a punição. Conforme Duriguetto (2012, p. 67), os Conselhos de Direitos são:

[...] campo da legalidade; possibilidade do debate e da interferência dos segmentos organizados da sociedade civil (diferentes interesses de classes), mecanismos de gestão, formulação e fiscalização das políticas e dos serviços – dependendo da direção política que se coloque pelas organizações e movimentos sociais que defendem os interesses das classes subalternas no campo da sociedade civil, podem fomentar e induzir debates e ações denunciadoras da histórica não constituição das políticas sociais universalistas de qualidade que incorporem dimensões participativas e democráticas na sua gestão e execução.

Fora possível notar, também, que quanto à participação social dos sujeitos aos que a política pública se destina, esta se configurava como extremamente limitada, mas não de fato inexistente, considerando os períodos particulares de preparação e execução da Conferência Estadual de Direitos da Criança e do Adolescente, quando de fato fora possível verificar a representação deste segmento.

Mas o fator que despertou nossa atenção, quando da experiência aqui compartilhada, revelou-se na triste constatação de que entre os atores que se faziam representar nas assembleias, fóruns e reuniões do Conselho de Defesa, o posicionamento voltado à proteção e garantia de direitos era sutilmente tensionado por discursos que reafirmavam processos punitivos, sobretudo quando relacionados às crianças e adolescentes supostamente inadaptados, objetivados pelo grupo que vivencia processos de circulação e estadia nas ruas, bem como, aos sentenciados pela prática de atos infracionais.

Desse modo, apesar de reconhecermos o CEDCA/RJ como entidade de luta em prol da defesa e garantia de direitos, compreendemos que este se destaca como espaço de contradições e tensões que rebatem a possibilidade de objetivação dos princípios de controle e participação social, mas, de forma considerável, a possibilidade real de garantia de direitos de crianças e adolescentes.

5 CONCLUSÃO

Entendemos que a Gestão Democrática está ancorada na noção de democracia representativa, ou seja, na possibilidade dos sujeitos políticos se fazerem representar, participar e interferir não só na gestão das políticas sociais, como também em sua elaboração e fiscalização.

Bravo (1996), ao relacionar democracia à soberania popular, considera a democracia representativa como uma vitória dos movimentos sociais organizados e da sociedade civil, no entanto, refere ser uma vitória parcial, uma vez que na sociedade capitalista vigora a hegemonia da classe capitalista dominante. Sendo assim, a perspectiva de controle social, o papel dos Conselhos e a gestão democrática, ainda que constituídos formal e legalmente como avanços, possuem limites objetivos para ultrapassar o âmbito das possibilidades e se constituírem em recursos reais.

O Estado brasileiro, em seus momentos de transformações, medeia conflitos e cria políticas no sentido da manutenção da ordem para a permanência do poder dominante, pois em “[...] face de situações críticas, é levado a exercer atividades destinadas a eliminar focos de crise ou levá-la a desenvolvimentos ordenados. O status quo não suporta comoções violentas.” (IANNI, 2004, p. 50). E no que se refere à política para crianças e adolescentes, ao longo da história não foi diferente.

Na contemporaneidade, a aprovação da CF em 1988, sendo um marco da redemocratização do País, carrega em partes estes processos históricos, sofre influência de uma formação social que não rompeu com os interesses dos grupos e classes dominantes, acirrando-se, assim, a criminalização e violações de direitos na lógica contemporânea.

Portanto, compreendemos que a inspiração para a proposição de políticas públicas e a defesa dos direitos de crianças e adolescentes no Brasil, referenciadas na experiência do estado do Rio de Janeiro, ancoram-se nos preceitos democráticos direcionados pela CF de 1988 e pela Lei nº 8.069/1990 (ECA), no entanto, tais princípios são rebatidos pelo espectro de centralização, hierarquização e burocratização, no que tange à elaboração, gestão e execução das ações destinadas a crianças e adolescentes, processo do qual os sujeitos-alvos ainda são coadjuvantes.

Para além de secundários na elaboração e proposição da política pública, a um grupo determinado de adolescentes, considerados perigosos, fora possível entender que discursos que fundamentam as ações a estes destinadas, não são homogêneos e, ainda que de forma sutil e camuflada, alguns atores com os quais fora possível a aproximação revelam, que ainda se fazem presentes, para o público aqui determinado, inspirações criminalizantes e punitivas.

Referências

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Notas

1 Vide documento na integra em:arquivos.proderj.rj.gov.br/cedca_imagens/Admin/.../ planodecenalsocioeducativo.pdf>.
2 É válido ressaltar que o referido grupo de trabalho encontra vigência até o momento presente.


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