Resenha
ROSSETTO, Adriana Marques; REIS, Maria José; SENS BLOEMER, Neusa Maria (Orgs.). Gestão, usos e significados das águas: conflitos e convergências. Florianópolis: UFSC, 2015.
A coletânea é organizada por experientes professoras que têm exercido suas atividades docentes em Instituições de Ensino Superior, Públicas e Comunitárias, de Santa Catarina. Congrega nessa obra pesquisadores nacionais e estrangeiros em torno das relações de apropriação de um dos bens naturais indispensáveis para a reprodução da vida. No caso especifico da água é possível vislumbrar que as relações dos homens e mulheres na natureza estão permeadas pelos significados que constroem sua apropriação.
A questão em torno dos usos da água pode ser compreendida na contemporaneidade no âmbito da crescente pugna pelos recursos naturais, redimensionada na presente fase de reprodução do capital. Para formar uma visão rápida dessa dinâmica, podemos registrar que no inicio deste século tivemos a Guerra da Água, na cidade boliviana de Cochabamba, na qual multitudinários protestos populares se opuseram à privatização do acesso à água potável; assim como o avanço da fronteira agrícola em vários países latino-americanos, alavancado pelo agronegócio; a utilização dos rios para geração de energia elétrica; a interferência e poluição em cursos hídricos subterrâneos e superficiais por conta da atividade extrativista (minérios e petróleo).
Os conflitos decorrentes da apropriação, significados e usos das águas convocam os diversos âmbitos da sociedade organizada. As crescentes tensões entre os usos coletivos e privados dos bens sociais atualizam-se com a mundialização financeira, que provoca transformações do Estado em sua relação com as corporações, desde as transnacionais às locais.
O conjunto de textos que fazem parte da obra abrange uma diversidade de experiências relacionadas com as políticas públicas concernentes à água, implantadas em diversos locais no Sul do Brasil, assim como de práticas de gestão na Argentina. A primeira parte da obra, composta de cinco capítulos, resultantes de pesquisas qualitativas e quantitativas, de campo e documentais, evidencia com ênfase as transformações das políticas públicas concebidas como recursos hídricos. A partir dessas abordagens é possível compreender as dinâmicas da formação histórica das concepções do Estado brasileiro, que desde a metade do século passado, transita de uma visão centralizadora e tecnocrática da gestão estatal para uma descentralização participativa, que assume vasta expressão jurídica e institucional. Nas análises decorrentes desses estudos de casos pode-se verificar uma importante mobilização social pela apropriação e uso das águas, materializados em comitês de bacias hidrográficas. Mormente, as pesquisas analisam as dificuldades persistentes em torno da gestão participativa, pretendida como espaço igualitário e social de tomada de decisões a respeito de um bem social indispensável à existência humana. Nessa primeira parte destaca-se também o estudo das transformações do Estado a partir do último quartil do século passado, materializado na gestão social do público, com instâncias descentralizadas e tripartites (setores estatais, sociedade civil organizada e setor privado), vinculado, no caso do fornecimento de água potável, à privatização - via concessão de serviços - dessas empresas. É possível evidenciar nesses estudos a dinâmica estatal das últimas décadas, de fornecedor com viés desmercantilizador para regulador do acesso mercantilizado das águas, como paradigma neoliberal para o acesso aos bens sociais.
Na segunda seção da coletânea destacam-se a dinâmica histórica, a construção dos significados das águas, assim como o crescente uso para geração de energia e suas consequências para o ambiente. O primeiro destes estudos evidencia os impactos negativos relacionados à suinocultura numa microrregião ao oeste do Estado de Santa Catarina, seja quanto à poluição, quanto à escassez de águas subterrâneas e dos rios na região. Outros capítulos analisam a instalação de usinas hidroelétricas que proliferaram intensamente no presente século, considerando suas nefastas consequências sociais que incluem desde o deslocamento de populações urbanizadas até a desterritorialização de comunidades indígenas e ribeirinhas. Os estudos apontam a carência de diálogo democrático com as comunidades diretamente afetadas pelas usinas hidroelétricas, provocando grandes movimentações populacionais que repercutem em intensas e traumáticas intervenções na territorialização de amplos espaços nacionais e internacionais - sendo comparado com processos semelhantes na Argentina. Entre os silenciamentos de setores avessos à sagacidade e velocidade autocrática de apropriação das águas, o penúltimo capítulo discute a situação das sociedades indígenas. A avassaladora ocupação dos fluxos hídricos pelas atividades produtivas (diminuição de flora e fauna, poluição, redução do caudal e diversificação crescente nos usos dos rios) contribui para a gradativa extinção da diversidade territorial e biótica, o que interfere significativamente no sentido da vida das sociedades tradicionais. Os significados das águas para as diversas sociabilidades indígenas são indissociáveis da sua cosmovisão, portanto, da sua condição de ser vivo. Essas preocupações - quanto a finitude e os usos das águas - assumem outras nuances no último capítulo, ao comparar o uso termal das águas em um município brasileiro e outro argentino, pois neste último a gestão estatal contrasta com a do setor privado; assim como diferenças quanto ao fluxo turístico da sua fruição interfere na própria continuidade.
Os capítulos reunidos, entre tantos assuntos fundamentais, abordam direta ou indiretamente o papel do Estado na gestão da natureza, o qual ressalta a dinâmica de sua transformação, entre tensões e disputas, na utilização pública ou privada desse bem social. A coletânea nos incita a refletir em torno das relações entre as formações sociais e a apropriação da natureza, atentando para uma revisão dos paradigmas epistemológicos que obstruem uma reconciliação tecnológica e social de reconstrução da natureza como corpo vivo.
Assim, evidencia-se como temática essencial para a vida no planeta, o qual preocupa pela persistente ausência na agenda das diretrizes das políticas públicas. Nos países latino-americanos, em particular, a importância pelos significados, apropriação e usos públicos das águas deveriam estar no cerne das políticas estatais na conjuntura contemporânea de neo-extrativismo que caracteriza a divisão internacional do trabalho e da produção e apropriação da riqueza.