Resumo: Este artigo aborda a violência letal dando visibilidade aos modos de inscrição (Bruno Latour) produzidos por banco de dados da Polícia Militar de Santa Catarina, do Sistema de Informação de Mortalidade, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e reportagens publicadas em jornal de circulação regional. Realiza procedimentos de métodos mistos. Situa os homicídios entre outras violências e criminalidades no espaço urbano de Chapecó (SC), destacando- -se pelo crescimento no período analisado, efetuados predominantemente com arma de fogo, afetando especialmente jovens do sexo masculino, entre 20 e 29 anos. No processo de produção e circulação das inscrições, analisa que: a nomenclatura das categorias de classificação incide sobre os cálculos, podendo tornar índices visíveis ou invisíveis; quando as práticas violentas são transformadas em inscrições, suas singularidades desaparecem, mas outras nuances são produzidas nas distribuições e combinações entre elas, permitindo classificar e comparar tipologias e obter indicativos para pensar políticas de segurança.
Palavras-chave:ViolênciaViolência,homicídiohomicídio,segurança públicasegurança pública,políticas públicaspolíticas públicas.
Abstract: This article discusses the lethal violence by giving visibility to the inscription modes (Bruno Latour) produced by the Military Police of Santa Catarina database, by the Mortality Information System of the Brazilian Public Security Forum and by articles published in regional newspapers. Mixed methods procedures were performed. The homicides were situated between other violence and criminalities in the urban space of Chapecó (SC), which were notable for the growth in the analyzed period, made predominantly with firearms, affecting especially young males between 20 and 29 years. In the process of production and circulation of the registrations, it was examined that: the nomenclature of classification categories focuses on the calculations and can become either visible or invisible indexes; when violent practices are transformed into inscriptions, their singularities disappear but other shades are produced in distributions and combinations between them allowing to sort and to compare typologies and to get indicative to think security policies.
Keywords: Violence, homicide, public safety, public policies.
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HOMICÍDIOS: das práticas às inscrições das violências letais
HOMICIDES: from the practices to the inscriptions of lethal violence
O presente artigo foca os homicídios dando visibilidade aos seus modos de inscrição, ou seja, as formas como são registradas as violências letais provocadas intencionalmente por outrem e sua veiculação nos boletins de ocorrência, relatórios e reportagens publicadas pela mídia1. Inscrição é o “[...] termo geral referente a todos os tipos de transformação que materializam uma entidade num signo, num arquivo, num documento, num pedaço de papel, num traço.” (LATOUR, 2001, p. 350). As inscrições possibilitam registrar práticas e relações advindas de diversas realidades, transformam-nas em fatos possíveis de serem mensurados, classificados, acumulados, combinados, desdobrados e que se pode examinar com o olhar, como por exemplo, as tipologias e estatísticas referentes aos homicídios.
A singularidade de cada situação de violência letal, quandotransformada em informação, torna-se um veículo que pode circularem uma rede sociotécnica e constituir outras combinações eclassificações. Para Latour (2006), rede sociotécnica é uma estruturacomposta por elementos heterogêneos em interação, híbridosde natureza-cultura. Assim, as informações circulam na rede entreum centro e uma periferia. Os centros recebem inscrições vindasde outros pontos da rede, acumulam, agregam e recombinam essesregistros e os colocam novamente em circulação. Essas centrais, denominadasde centrais de cálculo, constituem-se como nós da rede,como pontos de passagem obrigatória, e a circulação constante dasinscrições estabelece uma relação de dominação, do tipo centro--periferia com os demais pontos da rede. Para Latour (2004, p. 56),a trama que se estabelece entre o centro de cálculo e outros pontosda rede, “[...] funciona como um verdadeiro laboratório, deslocandoas propriedades dos fenômenos, redistribuindo o espaço-tempo”. Ainscrição, mesmo estando distante do lugar onde o evento aconteceu,mantém ligação pela série reversível de transformações, agregandotambém as informações de outras inscrições.
Nessa direção, este artigo analisa inscrições produzidas pelos seguintes centros de cálculo (banco de dados): tipologias criminais dos boletins de ocorrência da Polícia Militar (PM) de Chapecó; mortalidade por causas externas do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde (MS); homicídios do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e jornal de circulação regional.
Na atualidade, a sensação de medo e insegurança acomete os mais distintos grupos e classes sociais. A violência letal – suas práticas e inscrições – torna-se um problema social que, por um lado, promove ampla mobilização da opinião pública, orientando-a para organização de ações coletivas de protesto e à adoção de mecanismos de autoproteção e, por outro, emerge como fator de peso nas decisões sobre investimentos de recursos e implantação de políticas no campo da segurança pública.
Os indicadores da violência, em suas múltiplas expressões, parecem orquestrar o desenho cotidiano da convivência urbana. Esses indicadores inscrevem diferentes práticas violentas por meio de sua classificação em tipologias e mensuração de seus números, desde os crimes concretizados sem a presença da pessoa vitimada até aqueles em que as violações ficam estritamente na órbita física da vítima. No Brasil, o processo de inscrição das mortes que abrangem as categorias acidente de transporte, homicídio, suicídio, no ano de 2014, produziram índices que, para além de revelar o aumento geral de mortes classificadas nas categorias acima definidas, alertam para a escalada da violência fundada na deliberação prévia por parte de quem provoca a morte e no contexto súbito, aperiódico ou não, por parte de quem é vitimado de morte.
A circulação dessas inscrições contribui para a produção das sensações de medo e insegurança. A apreensão coletiva de tais sensações, em especial da letiferolidade – traço instrumental típico da categoria homicídio –, não está circunscrita mais aos grandes aglomerados urbanos (onde impera o desemprego, a fome e outras formas de desigualdades sociais) e, tampouco nas áreas de conflitos rurais (onde a desigualdade persistente medeia as relações socioeconômicas) flui por todos os rincões e é vivenciada por muitas pessoas. Segundo Bonamigo e Chaves (2014, p. 458), “[...] essa dinâmica contraditória atribui à categoria violência um caráter plural, difuso e sistemático que perpassa todas as dimensões da vida contemporânea”. Nesse sentido, é percebido a busca pela formulação e implementação de políticas públicas de segurança e justiça, uma vez que as práticas violentas se espraiam do contexto social geral para o específico e impõem desafios generalizados aos arcabouços, político, cultural e socioadministrativo que conformam o campo da segurança.
As análises de Adorno (2002) inferem que esse cenário parece aprofundar-se na medida em que os problemas relacionados à ineficiência pública na contenção das violências e da criminalidade passam a exercer forte influência sobre o senso crítico dos cidadãos. Dessa maneira, a coletividade é impulsionada à busca de soluções privadas para conflitos nascidos nas relações sociais e nas relações intersubjetivas, potencializando processos de violências e criminalidade que infligem novas dinâmicas aos espaços urbanos.
Em Santa Catarina essa realidade mostra-se cada vez mais acentuada. Considerado um dos estados menos violento do Brasil, desde meados da década de 1990 enfrenta graves problemas de violência e criminalidade. (WAISELFISZ, 2014). Essa problemática que historicamente foi atribuída a espaços específicos como a capital Florianópolis e a maior cidade do estado, Joinville, hoje está presente em outros municípios do território estadual, como Chapecó, foco deste estudo, que se destaca pela quantidade de homicídios registrados em Santa Catarina, nos últimos dois anos.
A pesquisa interdisciplinar utilizou os métodos básicos quantitativos e qualitativos articulados de modo complementar. (CRESWELL, 2007). Na primeira fase da pesquisa, foi realizada uma análise epidemiológica descritiva dos dados de mortalidade por causas externas ocorridas no município de Chapecó no período de 2009 a 2013, anos mais recentes para os quais as informações estão disponíveis. As informações sobre mortalidade se referiram aos óbitos por causas externas (V01-Y98 da Classificação Internacional de Doenças CID 10), que foram extraídas do SIM fornecidas pelo Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS)/ MS. Desse modo, na pesquisa foram utilizadas as classificações da CID-10ª revisão para os grupos de causas de mortes, mais especificamente os códigos da CID–BR–10. Para uma análise comparativa entre os municípios do estado e do Brasil, foram utilizados os códigos do SIM para a identificação destes e a população residente, estimados pelo Tribunal de contas da União (TCU) de Santa Catarina, publicados pelo DATASUS/MS. Os dados estão disponíveis, sem nenhuma restrição de acesso, no sítio do MS. A análise dos dados foi realizada utilizando-se proporções e taxas de mortalidade por 100.000 habitantes com relação ao grupo de causas externas, segundo os subgrupos específicos (acidentes, suicídios e homicídios) e porcentagens para os sexos, faixas etárias e meios utilizados.
Na segunda fase da pesquisa, com procedimentos quantitativos, foram levantados os registros sobre as ocorrências criminais existentes nos arquivos da PM de Chapecó, no período de 2009 a 2014. A categorização, descrição e o tratamento dos dados foram realizados com base nas categorias descritivas utilizadas pela PM. Como no ano de 2013 houve modificação das categorias de registro, foram realizadas tabelas separadas, mesmo assim obtiveram-se algumas análises gerais que perpassaram todo o período. A análise dos dados quantitativos foi feita com o auxílio do programa Microsoft Office Excel.
Na terceira fase de desenvolvimento da pesquisa, ocorreu, por meio de pesquisa hemerográfica, a coleta e sistematização dos atos criminais que ganharam notoriedade em uma mídia impressa de Chapecó, o Jornal Diário do Iguaçu. A coleta das reportagens aconteceu durante os anos de 2013 e 2014, uma semana em cada um dos seguintes meses: janeiro, fevereiro, março, abril, agosto, setembro, outubro, novembro e dezembro. Além disso, foram coletadas todas as reportagens nos meses de maio, junho e julho em 2013 e maio e junho de 2014. A escolha por analisar todas as edições desses meses foi baseada em indicativos que sugeriam aumento de crimes nesse período. Ao final, foi coletado e analisado o total de 121 matérias (68 no ano de 2013 e 53 em 2014) publicadas em 155 diferentes dias.
Na quarta fase da pesquisa foram realizadas leituras, cruzamentos e análise dos dados produzidos e sistematizados, construídas tabelas para apresentação e realizadas discussões com base nos referenciais adotados e indicados no decorrer do texto.
Em relação às tipologias criminais e às formas de registros realizadas pela PM, foram identificadas as 19 ocorrências de maior destaque quantitativo mais o homicídio (questão central deste estudo) que, do ponto de vista da quantidade, historicamente ocupa o rodapé das estatísticas oficiais, da PM, de onde se tem uma forma de tipificação dos atos violentos ocorridos em Chapecó. Desse modo, a inclusão da categoria homicídio, classificada como a 20ª ocorrência em repetição no ranking dos atendimentos realizados pela PM na área jurisdicional do município, decorre de um procedimento metodológico dos autores e não propriamente da posição real da referidacategoria no cômputo numérico dos atendimentos realizados pela instituição.
As tabelas abaixo dispõem o enquadramento das tipologias criminais que mais se repetiram em Chapecó na sequência histórica 2009 a 2014. Com o aprofundamento da pesquisa e por meio do método comparativo, evidenciou-se que desde 2013 a PM passou a adotar uma nova metodologia para a definição e tipificação das ocorrências atendidas, alterando a nomenclatura de algumas das categorias registradas entre 2009 e 2012. Para melhor apreensão dessa mudança, apresentamos série histórica proposta em dois quadros.
No que diz respeito às tipologias criminais e às formas de registros realizadas pela PM de Chapecó, como se pode visualizar, na Tabela 1, foram identificas as categorizações das 19 ações violentas que mais se repetiram e a sequência da violência letífera – materializada pela prática do homicídio.
Como panorama geral, percebe-se que as categorias acidente de veículo com danos materiais e acidente de veículo com lesões corporais destacam-se, ocupando duas das três primeiras posições mais atendidas pela PM. Pode-se visualizar, em uma análise comparativa com o período 2013-2014, apresentado na Tabela 2, que apesar da mudança das categorias classificatórias (que passam a ser denominadas de acidente de trânsito e lesão corporal culposa na direção de veículo automotor), as ocorrências mantêm-se nas mesmas posições de primeiro e terceiro lugares. No entanto, no período de 2009 a 2012 há um aumento entre o início e o final do período e no período 2013-2014 há uma pequena diminuição. Assim, velho dilema e novos números, essa constância ascendente efetiva-se a cada nova mensuração concretizada.
Os acidentes de veículos envolvendo danos materiais e lesões aos atingidos têm se constituído em um problema à vida urbana em Chapecó. Em que pese o avanço da engenharia de trânsito, da circulação de veículos com novas tecnologias de segurança e o aprimoramento da prestação de serviços públicos de fiscalização, gestão e orientação por parte das instituições responsáveis, os índices pouco diminuem. Mesmo com a efetivação da Guarda Municipal, desde 2009, e sua atuação ostensiva somando-se à ação da PM, tanto os danos materiais, quanto as lesões derivadas de acidentes automotivos, mantém altos índices. Isso impõe à coletividade, aos aparelhos públicos e aos condutores uma mudança comportamental.
A ameaça classifica-se em segundo lugar nos anos de 2009 a 2012 e, em quarto lugar, nos anos de 2013 e 2014, como pode ser percebida na Tabela 2. Nesse último período, o furto qualificado sobe para o segundo lugar, mas deve ser considerado que no período anterior as ocorrências abrangidas por esta categoria estavam subdivididas nas nomenclaturas furto de veículo, furto à residência e furto a estabelecimento comercial.
A categoria vias de fato, que se situava entre os anos de 2009 a 2012, com diminuição entre o início e o final do período, cai para o 19º lugar nos anos de 2013 e 2014 com declínio considerável na taxa por 100 mil habitantes, que pode estar associada à extinção/junção de nomenclaturas correlatas.
As demais categorias que complementam o grupo das dezenove tipologias criminais mais atendidas pela PM, entre 2009 e 2012, tomadas em seu conjunto, não apresentam um quadro numérico e processual de elevação. Desse conjunto, duas categorias chamam a atenção pela insistência da curva ascendente, o roubo ou assalto em estabelecimento comercial, no primeiro período, principalmente em 2011, e a tentativa de homicídio, que apresenta aumento significativo ao longo dos dois períodos analisados. O disparo de arma de fogo (variável importante para a compreensão da maioria dos homicídios) mostra um comportamento instável na Tabela 1 e não mais aparece na Tabela 2. De forma geral, percebe-se que houve uma diminuição das ocorrências no período 2013-2014, exceto o furto qualificado que teve seu número aumentado.
Com relação às inscrições, pode-se analisar que o banco de dados produzido pela PM permite algumas análises gerais que tornam possível classificar e comparar as tipologias criminais entre si, fornecendo alguns indicativos para se pensar políticas públicas de segurança. Esse banco de dados também é base para a circulação de notícias pela mídia local, tanto escrita quanto televisiva e eletrônica, colocando as informações em circulação, estimulando ou dirimindo debates e controvérsias sobre criminalidade, problemáticas e possíveis soluções. Por meio da mudança de terminologia que aconteceu no período analisado, percebe-se também o quanto a nomenclatura utilizada incide sobre os cálculos, podendo ser utilizada como estratégia para tornar índices visíveis ou invisíveis.
A produção de novas inscrições, a partir de outras fontes, contribui para o levantamento de novas informações e cruzamento entre elas, dando maior amplitude e confiabilidade às análises decorrentes. Podem-se citar, como exemplo, as pesquisas sobre vitimização que “[...] fornecem uma valiosa fonte para formular políticas públicas e podem ser usadas para compreender o nível e a natureza da criminalidade, do local, assim como as percepções das pessoas sobre a segurança.” (CARDOSO et al., 2013, p. 145).
A pesquisa sobre mortalidade por causas externas para o município de Chapecó, no banco de dados do SIM, fornecido pelo DATASUS/MS, no período de 2009 a 2013, possibilita ampliar a análise das práticas violentas, sua inscrição por meio de novas tipologias de classificação e fontes de informação. A denominação causas externas é utilizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para se referir à mortalidade provocada por um conjunto de eventos que engloba todas as formas de acidentes, suicídios, homicídios, as mortes ocorridas nas guerras e aquelas advindas do confronto com a polícia.
A Tabela 3 discrimina as taxas referentes às causas externas, que se destacam entre 2009 e 2014.
Na análise dos índices de mortes provocadas por causas externas, os dados apontam que em primeiro lugar classificam-se os acidentes de transporte, em segundo lugar os homicídios e em terceiro os suicídios. Mesmo com uma leve variação entre os anos que integram o período estudado, registra-se um aumento da mortalidade provocada por homicídios e suicídios e uma diminuição de mortes por acidentes de transporte.
Em relação aos acidentes motivados pela atividade do transporte, quando se compara com os dados de pesquisa realizada no período de1998 a 2008 (BONAMIGO et al., 2011), percebe-se uma constância, pois este setor destaca-se como a causa externa que mais mata. No entanto, percebe-se uma queda principalmente em 2012 e 2013, voltando a subir em 2014, mas ainda se mantendo abaixo das taxas de 2009 e 2010. Das mortes ocorridas em 2014, ano mais recente das informações disponibilizadas, 71,19% foram do sexo masculino e 28,81% do sexo feminino. Quando se analisam as circunstâncias das mortes, nesse mesmo ano, destacam-se em primeiro lugar os traumas em acidentes de automóveis, com 40,97 % no período, em segundo lugar os traumas com acidentes de motos, com 26,93% e em terceiro os traumas dos pedestres com 18,05%.
Com relação aos suicídios, houve uma variabilidade entre os diversos anos do período, com aumento entre o início e o final do período, sendo o meio mais utilizado para sua realização o enforcamento, estrangulamento e sufocação. Com relação às mortes que aconteceram em 2014, 85,19% foram do sexo masculino e 14,81% do sexo feminino.
A Tabela 4 apresenta os óbitos por homicídio em número absoluto e taxas por 100 mil habitantes, comparando os índices provenientes do SIM com os da Polícia Militar.
Com relação aos homicídios registrados pela PM, eles se situaram em posição inferior nos dois períodos analisados, quando comparados em relação aos índices quantitativos do SIM-MS. Sobre essa divergência, uma das hipóteses explicativas é dada pelo fato de a Polícia Militar registrar o ato em si, homicídio ou tentativa de homicídio. Nesse caso, não se contabiliza a probabilidade, pois quando a vítima é ferida pode ocorrer o falecimento em consequência e, assim acontecendo, será alcançado pela metodologia de registro do SIM-MS. No entanto, os dois bancos de dados apontam uma regularidade na linha ascendente da questão. Independente da divergência, os dados empíricos acima demonstrados, destacam Chapecó como uma cidade que convive com cifras crescentes de assassinatos: 15,5 em 2009 para 31,68 mortos por 100 mil habitantes em 2014. Este índice é superior à média global, que segundo Relatório Mundial de prevenção da Violência 2014, foi de 6,7 por 100 mil habitantes. (WORLD HEALTH ORGANIZATION; UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME; UNITED NATIONS DEVELOPMENTS PROGRAMME, 2014).
As inscrições do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ao publicizar os índices de crimes letais intencionais em Santa Catarina e no Brasil mostram, nesse aspecto, a situação de Chapecó contornada por uma realidade caótica. Todos os índices totais para Chapecó, levantados nos anos pesquisados, são maiores que os apresentados pelo estado e país, tomado em seu conjunto, como se pode visualizar na Tabela 5.
O cruzamento dos índices de Chapecó com os índices gerais do Brasil, conforme pode ser visto na Tabela 6, mostra que apenas nos anos de 2009 e 2010 os homicídios por 100 mil habitantes foram menores em Chapecó que no país, e, contudo, em um patamar acima das recomendações internacionais. Nos anos de 2011 e 2012 percebe-se uma paridade com cifras variantes entre 23 e 25 homicídios por 100 mil habitantes, ao passo que em 2013 e 2014 Chapecó situa-se acima da média nacional. No ano de 2014, em Chapecó, foram mortas por crimes letais intencionais 4,89 pessoas a mais, por 100 mil habitantes, do que no Brasil.
Em uma análise comparativa entre os municípios de Santa Catarina com mais de 100 mil habitantes, no ano de 2014, Chapecó é classificada na indesejável posição de primeiro lugar, como se pode ver na Tabela 6.
O aprofundamento analítico sobre esse dado mostra com precisão a impotência da sociedade civil, da política e das agências instituídas no campo da segurança pública de Chapecó frente às práticas homicidas. Assim como, reforça a realidade contraditória vivida pela cidade, pois, se por um lado, no aspecto do desenvolvimento econômico Chapecó vive o maior apogeu desde sua criação e supera a maioria dos índices de excelência da região oeste do estado, por outro, na questão da violência intencional letal, mesmo com uma população duas vezes menor que Florianópolis, e quase três vezes menor que Joinville, supera essas metrópoles em números de homicídios por 100 mil habitantes. Quais são os fatores que configuram esse cenário?
Quando centrada a análise na porcentagem por sexo, no período de 2009 a 2014, percebemos que a grande maioria de mortos é composta pelo sexo masculino e varia entre a taxa de 87,23 a 94,64, como se pode visualizar na Tabela 7.
Além dos homens, a letiferolidade em Chapecó envolve também o contingente da juventude, a qual é amplamente atingida e envolvida nessa dinâmica. A Tabela 8 mostra a participação de todas as faixas etárias.
Ao analisar-se a tábua-vida, compreendendo todas as idades, destaca-se em primeiro lugar a morte de jovens de 20 a 24 anos, em segundo lugar de jovens de 25 a 29 anos e em terceiro lugar de jovens de 15 a 19 anos. Assim, parece não haver possibilidades para a generalização da convivência integralmente não violenta que tenha a preservação da vida como finalidade comum. Para melhor explicitação desse cenário é necessário o aprofundamento da discussão pública sobre a questão, não obstante isso, o desvelamento de quem são os jovens que morrem e os que matam? Que lugar lhes é proporcionado pelo escopo social? Como a cidade os acolhe? A apreensão e a reflexão sobre essas variáveis expressas na forma de indagação podem trazer luz e potencialidade resolutiva à questão. O desenvolvimento de políticas públicas de lazer, cultura, educação, segurança e ocupação podem inviabilizar o dinamismo da letiferolidade que faz circular as armas de fogo, por exemplo, como pode ser percebido na Tabela 9.
Destacaram-se em primeiro lugar as armas de fogo, indicando se configurarem importantes atores não humanos na configuração dos homicídios. Nessa direção, estudos apontam evidências empíricas de que o “[...] desarmamento da população é uma medida eficaz contra o crime.” (SANTOS; KASSOUF, 2012, p. 319). Apesar disso, há um movimento atual para facilitar o acesso às armas, como a aprovação pela Comissão Especial do Desarmamento, em outubro deste ano (2015) da revogação do Estatuto do Desarmamento, em vigor desde 2003. O novo texto permite que todos os cidadãos que cumprirem os requisitos mínimos exigidos em lei possam portar armas de fogo e reduz de 25 para 21 anos a idade mínima para a compra de armas no país. O renomeado Estatuto de Controle de Armas de Fogo será ainda analisado pelo Plenário da Câmara dos Deputados. Assim, em vez de fiscalização, do controle da venda e da circulação de armas, está sendo promovido o acesso ao instrumento por meio do qual é efetivado o maior número de mortes na cidade de Chapecó. Quais serão os efeitos dessas decisões nos índices de homicídios na maior cidade do Oeste de Santa Catarina?
As chamadas armas brancas (facas, canivetes, facões) são instrumentos que também têm contribuído significativamente com o cenário de mortes intencionais em Chapecó, com índices próximos ao das armas de fogo. O que se pode fazer com essas inscrições reveladoras da ação de humanos e não humanos na rede (LATOUR, 2001) e das incapacidades resultantes dos agenciamentos que levam à ineficiência das instituições públicas vigentes?
A produção da pesquisa hemerográfica, com a coleta e a sistematização das reportagens publicadas no Jornal Diário do Iguaçu, nos anos de 2013 e 2014, sobre os atos criminais que ganharam notoriedade na mídia impressa de Chapecó, mostram que o foco principal das notícias são os homicídios e latrocínios, mesmo que os maiores índices de mortes sejam de acidentes de trânsito. Há um acompanhamento por parte do jornal dos casos de homicídios em dias consecutivos com detalhamento das investigações, com base nos bancos de dados e índices oficiais divulgados pela Polícia Militar e Polícia Civil.
Das reportagens coletadas sobre homicídios em Chapecó, em 58 delas constava o espaço geográfico onde aconteceu o crime. Os bairros com maior número de ocorrência foram: Efapi (14), São Pedro (7), Bom Pastor (5), Centro (5), Seminário (5), Universitário (4), Cristo Rei (2) Marechal Bormann (2), Maria Goretti (2) e Sede Trentin (2). Ainda foram citados outros bairros onde aconteceram homicídios (uma ocorrência cada): Bela vista, Boa vista, Cristo Rei, Eldorado, Santo Antônio, Pinheirinho, Saic, Jardim Itália e Vila Real.
A pesquisa hemerográfica fornece pistas importantes que contribuem para análise dos homicídios, identificando que, em 2013 e 2014, a maioria das vítimas mortas por ação deliberadamente homicida ocorreu com maior frequência em seis bairros, principalmente em duas regiões – Efapi e São Pedro – que estão localizados em zonas periféricas. A região da Efapi, segundo Ceolin e outros (2011), é o bairro mais populoso de Chapecó, com grande desenvolvimento econômico resultante de atrativos como agroindústrias e universidades (Universidade Comunitária da Região de Chapecó Unochapecó e Universidade Federal da Fronteira Sul - UFFS), com ocupação de áreas irregulares ou loteamentos com falta de estrutura. A região São Pedro, onde se localizam os bairros São Pedro e Bom Pastor, é marcada pelo fenômeno da migração interna forçada. Essas duas localidades abrigaram a maioria daqueles que viviam na área central da cidade e foram removidos para a região. (TOMASINI, 1999). A migração externa também marca a formação e a organização das relações nesses espaços, uma vez que esses bairros também acolheram e seguem acolhendo moradores vindos da zona rural e de outras localidades da região, que procuram em Chapecó oportunidade de emprego, principalmente nos frigoríficos. São desempregados, agregados e pequenos proprietários de terra em busca de melhores condições de vida.
Pensar que essas regiões são os principais cenários de homicídios significa pensar que há nesses territórios tanto autores quanto vítimas de violências. Tais localidades são transformadas em grandes palcos onde a arte da ficção é substituída pela complexa realidade de convivência mediada pela desigualdade social, por meio da qual esses atores se misturam, se constroem e se destroem. Estaria Chapecó defronte à indagação de Ulrich Beck (2003), sobre a necessidade de escolher entre o capitalismo ou a liberdade? Será esse processo de dissolver pessoas parte do modelo de desenvolvimento adotado pela cidade?
É importante também analisar as implicações da visibilização das mortes decorrentes de homicídio no jornal pesquisado, para o incremento de medidas punitivas, controladoras e belicistas. Nesse sentido, a referida comissão que analisava a revogação do Estatuto do Desarmamento realizou concorrida e polêmica audiência pública em Chapecó no dia 7 de agosto de 2015, dando a entender que esta seria uma resposta ao problema dos óbitos por homicídio. Os argumentos dos deputados federais presentes associaram a defesa do acesso às armas com a diminuição da criminalidade, sugerindo a ação do armamento pessoal para aplacar a ineficácia do Estado.
Os homicídios em Chapecó situam-se no rodapé das principais ocorrências criminais, contrastando com a maioria das outras tipologias registradas pela PM de Santa Catarina. No entanto, há um fluxo processual crescente dos homicídios, apontado pelos bancos de dados do SIM e do Fórum de Segurança Pública, que transcende o senso da razoabilidade, ultrapassa os limites considerados aceitáveis pelas convenções internacionais (análise por 100 mil habitantes) e, nessa especificidade, mostra a cidade como sendo a mais violenta do estado.
Na relação com o Brasil, mantendo a observação ao princípio da proporcionalidade populacional e análise por série histórica, embora Santa Catarina tenha sido identificada pelo Diagnóstico dos Homicídios no Brasil (BRASIL, 2015), do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (Sinesp), como o estado federativo com menor índice de homicídios, Chapecó figura entre as cidades do estado com maiores taxas de homicídios por 100 mil habitantes e com um índice próximo aos maiores do país.
Esses indicativos sugerem (re)pensar o modelo de desenvolvimento urbano adotado e as formas de gestão da Segurança Pública. Uma das possibilidades de enfrentamento à questão está na construção de políticas públicas que incluam a não violência como um aspecto condicionante para o desenvolvimento urbano sustentável e equilibrado, não só do ponto de vista econômico.
As inscrições produzidas por várias centrais de cálculos possibilitam pensar os homicídios por diferentes ângulos e permitem dar visibilidade às diferentes possibilidades de conexão, tanto para as divulgações que são feitas sobre violências e segurança pública quanto para a busca de soluções para as problemáticas que são vinculadas aos temas. Quando as práticas são transformadas em inscrições, suas singularidades desaparecem, no entanto, outras nuances são produzidas nas categorizações, distribuições e combinações.
No sentido de continuar a produzir subsídios que contribuam para a compreensão da realidade em foco, uma possibilidade seria aprofundar a investigação por meio da identificação e qualificação das variáveis multicausais que conformam de forma direta e indireta a processualidade da letiferolidade, fenômeno socialmente inscrito como homicídio.