Mesas temáticas coordenadas
Recepção: 21/01/16
Aprovação: 06/06/16
Resumo: O texto analisa o significado histórico, social e econômico dos 10 anos da ocupação militar do Haiti pelas tropas da Organização das Nações Unidas (ONU) em relação às condições de vida e soberania do povo haitiano. Para isso, recorre a aspectos que marcaram a história desse país, que, no ano de 1793, se levantou contra opressão e a exploração livrando-se da escravidão e, posteriormente, em 1891, contra o domínio francês. Demarca que, sob a liderança de ToussaintL’Ouverture e Dessalines, os jacobinos negros realizaram a primeira revolução negra de escravizados vitoriosa na história da humanidade. Apresenta a trajetória política de motins, golpes e assassinatos de lideranças no contexto da situação econômica e de constituição das classes sociais, que dificultou, no Haiti, a construção de um Estado democrático, ressaltando o papel dos Duvalier. Destaca ainda o papel mais recente das lutas que colocaram Aristide e Préval no poder, mas, que permaneceram com políticas subservientes aos EUA, que invadiram o país em vários momentos de sua história. Por fim, o texto busca compreender o significado da ocupação militar pelas tropas da Minustah, comandada pelo exercito brasileiro, que respondendo a interesses econômicos imperialistas, acirrou as condições sociais de pauperismo, aprofundadas com o terremoto de 2010.
Palavras-chave: Haiti, ONU, Brasil, ocupação militar, superexploração.
Abstract: The paper analyzes the historical, social and economic significance of 10 years of military occupation of Haiti by the troops of the United Nations - UN, to living conditions and sovereignty of the Haitian people. For this, it uses the historical aspects that marked the history of this country, which in 1793 rose against oppression and getting rid of exploitation of slavery and, later, in 1891, against French rule. Mark that, under the leadership of Toussaint L'Ouverture and Dessalines, the Black Jacobins held the first black enslaved victorious revolution of the history. It brings political trajectory of riots, coups and assassinations of leaders that Haiti faced in the context of the economic situation and constitution of social classes, which hindered the establishment of a democratic state, stressing the role of Duvalier. Also highlights the more recent role of the struggles that put Aristide and Preval in power, but who remained subservient to US policies that have invaded the country for several moments in its history. Finally, seeks to understand the meaning of military occupation by the troops of MINUSTAH, headed by the Brazilian army, responding to imperialist economic interests, which incited social conditions of pauperism, deepened with the 2010 earthquake.
Keywords: Haiti, UN, Brazil, occupation military, superexploração.
1 INTRODUÇÃO
Em 1º de junho de 2004 aportaram em Porto Príncipe as tropas da MINUSTAH (United Nations Stabilization Mission in Haiti), coordenadas pelo Exército Brasileiro. Em 2014 completou dez anos de ocupação militar e em 15 de outubro o Brasil renovou o mandato da MINUSTAH na ONU. Nesses 10 anos o que prosperou? Qual a colaboração para a melhoria das condições de vida do povo haitiano? Após o terremoto que matou cerca de 300 mil pessoas em 2010, qual a situação da população? Quais os interesses em torno da ocupação militar no Haiti? Qual o significado histórico? Esse debate se impõe pela necessidade de o mundo refletir e analisar, do ponto de vista da soberania nacional, da solidariedade internacional ao povo haitiano que, realizou a primeira revolução de escravizados vitoriosa, e atualmente é o povo mais empobrecido das Américas.
2 HAITI: significado histórico, lutas e perspectivas
Épica ou trágica como reflete Gorender (2004), símbolo do racismo da civilização occidental como afirma Galeano (2010) ou insígnia de resistência da população negra como sustenta o movimento negro brasileiro, a história do Haiti é emblemática do processo histórico de conquista, exploração e escravização dos povos dos países latino-americanos por parte das potências econômicas mundiais, bem como da luta contra essas ações de dominação. Por isso, a história do Haiti é tão representativa para a história do Brasil e suas conexões são mais íntimas do que a maior parte da população brasileira a concebe.
Além disso, como informa Grondin (1985) o Haiti é um país negro e africano por excelência, o país do vodu, do tambor, do créole, mas essencialmente o país da primeira revolução nas colônias do Sul e a primeira república negra do mundo.
Tratando-se de uma das primeiras regiões conquistada e colonizada na era moderna, pelos europeus, o Haiti - integrante das ilhas caribenhas - desde cedo experimentou o genocídio e o etnocídio das populações autóctones e, também, após o extermínio destas, a escravização dos africanos. Como afirma Gruzinski (1999, p. 19), em relação às Antilhas:
[...] é conhecida a série de desgraças que enfraquecem e depois dizimam os autóctones: epidemias e subalimentação, massacres e maus- tratos, exploração desenfreada dos sobreviventes, destruição do meio ambiente e dos modos de vida tradicionais, deportações maciças. A passagem de um século a outro será nas ilhas um inferno que jogará no nada civilizações e gerações indígenas. Arauaques, tainos, caraíbas, sociedadesinteiras pagaram por aventura atroz.
A busca pelo lucro, por rotas comerciais vantajosas na África e na Ásia, a cristianização de povos não-europeus marcou decisivamente a conquista da América. Motivos econômicos e religiosos se misturavam com muita desenvoltura e sem estranhamento.
O desejo do lucro, a cobiça, foi sem dúvida um dos motores da expansão: o dinheiro é o nervo das empresas, constatou, já no século XVI, o texto português Jornada del rei D. Sebastião às partes da África. (AMADO; FIGUEIREDO, 1999, p. 14).
Gruzinski (1999) diz que esse período marca o nascimento da Globalização.
Marx (2013, p. 820) não tergiversa sobre a função da conquista da América e do tráfico de escravizados e afirma o seguinte:
A descoberta das terras auríferas e argentíferas na América, o extermínio, a escravização e o soterramento da população nativa nas minas, o começo da conquista e saqueio das Índias Orientais, a transformação da África numa reserva para a caça comercial de peles-negras que caracterizam a aurora da era da produção capitalista. Esses processos idílicos constituem momentos fundamentais da acumulação primitiva. [...] na Inglaterra, no fim do século XVII, esses momentos foram combinados de modo sistêmico, dando origem ao sistema colonial, ao sistema da dívida pública, ao moderno sistema tributário e ao sistema protecionista. Tais métodos, como por exemplo, o sistema colonial, baseiam-se, em parte, na violência mais brutal.
No Capital, Marx (2013, p. 823) deixa claro que o tratamento dispensado aos povos americanos e africanos após a conquista dos europeus:
[...] era, naturalmente, o mais terrível nas plantações destinadas exclusivamente à exportação, como nas Índias Ocidentais e nos países ricos e densamente povoados, entregues à matança e ao saqueio, como o México e as Índias Orientais.
E continua ironizando a ética cristã e puritana que discursava sobre o amor a Deus ao mesmo tempo em que, na sua contribuição ao processo de dominação colonial, matava índios - homens, mulheres e crianças, indiscriminadamente.
Mais a frente diz:
Com o desenvolvimento da produção capitalista durante o período manufatureiro, a opinião pública europeia perdeu o que ainda lhe restava de pudor e consciência. As nações se jactavam cinicamente de toda a infâmia que constituísse um meio para a acumulação de capital. [...] (MARX, 2013, p. 824).
Não resta dúvida que após a chegada de Cristovão Colombo na ilha denominada por ele de Hispaniola (Ilha de São Domingo, composta pelo Haiti e pela República Dominicana) no que hoje conhecemos como Caribe, em 1492, uma nova etapa na história mundial se iniciava. A partir daí uma série de contatos e confrontos envolveram povos de praticamente todas as regiões do mundo: europeus, indígenas americanos, africanos, asiáticos todos em suas especificidades participaram desse teatro composto de tragédias, comédias e lutas épicas em torno da conquista, exploração, mas, por outro lado, da resistência em busca de liberdade e emancipação política e humana. Nesse teatro o Haiti sempre ocupou um papel de destaque e continua ocupando até os nossos dias. Que papel é esse? Vamos a ele.
A partir de 1492 inicia-se o processo de ocupação e exploração das terras da ilha de Hispaniola e em pouco tempo a população da ilha já se encontra praticamente exterminada. No que se refere às ilhas caribenhas de uma população de aproximadamente um milhão de habitantes foi reduzida a pouco mais de cinco mil, redução essa ocasionada pela implantação dos engenhos de açúcar, da escravização indígena e africana e dos processos de povoamento da América por parte dos europeus. A escravidão haitiana foi uma das mais violentas do mundo. Nada distante da história do Brasil (GRUZINSKI, 1999; GORENDER, 2004; GRONDIN, 1985). Em sintonia com as transformações que propiciaram o alvorecer do novo sistema de produção na Europa, na verdade de um modo de vida, a partir de 1505, foi introduzido o cultivo da cana de açúcar garantido pela força de trabalho africana. Isso ocorreu no Haiti, mas a partir de um movimento combinado que deslocou para diversas partes do mundo homens e mulheres escravizados, da forma mais bárbara, conhecido como diáspora africana. C. L. R. James (2010, p. 21) relata esse processo:
No século XVI, a África Central era um território de paz e as suas civilizações eram felizes. Os comerciantes viajavam milhares de quilômetros de um lado a outro do continente sem serem molestados. As guerras tribais, das quais os piratas europeus afirmavam liberar as pessoas, eram meros simulacros; sobre um campesinato, em muitos aspectos, superior ao uma grande batalha significava meia dúzia de mortos. Foi dos servos em amplas áreas da Europa, que o comércio de escravos recaiu. A interminável destruição da colheita resultou no canibalismo; as mulheres cativas se tornavam concubinas e degradavam a condição de esposa. As tribos tinham de suprir o comércio de escravos, ou então elas mesmas seriam vendidas como escravas. A violência e a ferocidade tornaram-se a necessidade para a sobrevivência, e foram a violência e a ferocidade que sobreviveram. Os crânios sorridentes na ponta de estacas, os sacrifícios humanos, a venda dos próprios filhos como escravos: esses horrores foram produto de uma intolerável pressão sobre os povos africanos, que se tornavam mais ferozes, no decorrer dos séculos, à medida que a exigência da indústria aumentava e os métodos de coerção eram aperfeiçoados.
O Haiti, como toda a América Latina, desde seus primórdios, se constituiu a partir dessas relações de subordinação e pilhagem.
A Europa necessitava de ouro e prata. Os meios de pagamentos em circulação se multiplicavam sem cessar e era preciso alimentar os movimentos do capitalismo na hora do parto: os burgueses se apoderavam das cidades e fundavam os bancos, produziam e trocavam mercadorias, conquistavam novos mercados. Ouro, prata, açúcar: a economia colonial mais abastecedora que consumidora, estruturou-se em função das necessidades do mercado europeu, e a seu serviço. O valor das exportações latino americanas de metais preciosos foi, durante prolongados períodos do século XVI, quatro vezes maior que as importações, composta por escravos, sal e artigos de luxo. Os recursos fluíam para que os acumulassem as nações europeias emergentes do outro lado do mar. Esta era a missão fundamental que trouxe os pioneiros, embora, além disso, aplicassem o evangelho quase tão frequentemente como o chicote, aos índios agonizantes. A estrutura das colônias ibéricas nasceu subordinada ao mercado externo e, em consequência, centralizada em torno do setor exportador que concentrava renda e poder. (GALEANO, 1968, p. 22).
Essa era a intenção dos colonizadores: explorar as riquezas naturais desde os minérios (ouro, prata, etc.), especiarias, borracha etc. passando pela monocultura do algodão, açúcar, café, recorrendo à força de trabalho escravizada indígena e africana. Moura (1994, p. 25), analisando a situação dos escravizados destaca as condições opressivas, de não ser dono do seu próprio corpo, portanto, de não poder locomover-se livremente, e agir como agente produtor, que criava mercadoria, colocando nela valor,
[...] o escravo circulava como mercadoria, idêntica àquela a qual ele próprio produzia. E é nesse nível de relações econômicas que o escravo é socialmente coisificado.
Em 1697 a parte ocidental da Ilha - o Haiti - que era controlada pela Espanha por meio do processo de conquista foi passada para o domínio francês, tornando-se, no século XVIII e início do XIX, a colônia francesa mais próspera economicamente, produzindo e exportando açúcar, anil, café, cacau, algodão, entre outros produtos; com uma população escravizada de mais de quinhentos mil escravizados, a maioria africanos. O controle do Haiti, nesse período, era realizado por apenas alguns milhares de proprietários brancos e seus capatazes.
No entanto, enquanto eclodia a Revolução Francesa de 1789 na Europa, no Haiti os escravizados iniciavam um grande movimento em busca de sua liberdade e da fundação de um país livre e independente. Sob a liderança de Toussaint L’Ouverture, a partir de 1791, os escravizados abandonam as plantations e matam os seus proprietários iniciando o processo de independência da França.
Nas palavras de C. L. R. James (2010, p.15):
Em agosto de 1971, passados dois anos da Revolução Francesa e dos seus reflexos em São Domingos, os escravos se revoltaram. Em uma luta que se estendeu por doze anos, eles derrotaram, por sua vez, os brancos locais e os soldados da monarquia francesa de semelhantes dimensões comandada pelo cunhado de Bonaparte. A derrota da expedição de Bonaparte, em 1803, resultou no estabelecimento de Estado negro do Haiti, que permanece até os dias de hoje.
Essa foi a única revolta de escravos bem sucedida da História, e as dificuldades que tiveram de superar colocam em evidência a magnitude dos interesses envolvidos. A transformação dos escravos, que mesmo às centenas, tremiam diante de um único homem branco, em um povo capaz de organizar e derrotar as mais poderosas nações europeias daqueles tempos é um dos grandes épicos da luta revolucionária e uma verdadeira façanha.
Em 1803-1804, derrotando as tropas de Napoleão Bonaparte, os haitianos formaram a primeira nação livre das Américas, pois apesar de os EUA terem conquistado sua independência antes, ainda conviviam com a escravidão em boa parte do seu território. Para os europeus a Revolução Haitiana representou uma humilhação imperdoável. Os ex- escravizados da colônia francesa demonstraram na prática o que era apenas o discurso de liberdade, igualdade e fraternidade da burguesia da França.
Enquanto, em Paris, a guilhotina decepava as cabeças do jacobinos, em São Domingos Dessalines e seus companheiros continuavam a defender, de armas na mão, o ideal jacobino da liberdade e igualdade de todos os homens. Eles, os jacobinos negros, permaneciam fiéis ao espírito revolucionário da Convenção de 1789. A 29 de novembro de 1803, os revolucionários negros divulgaram uma declaração preliminar de Independência. A 31 de dezembro, foi lida a Declaração de Independência definitiva. O novo Estado recebeu, no batismo, a denominação indígena de Haiti. (GORENDER, 2004, p. 300).
Acerca dos líderes revolucionários, os jacobinos negros, C. L. R. James (2010, p. 12) afirma
[...] fiquei convencido de que nenhum comandante miliar, ou estrategista, afora o próprio Napoleão, entre os anos de 1793 e 1815, superou Toussaint L’Ouverture e Dessalines.
Não obstante, após 1789, os revolucionários franceses terem decretado o fim da escravidão em seus territórios, não teve validade para a sua colônia nas Antilhas. No decorrer do conflito contra a França a terra foi arrasada e um terço da população aniquilada. Após a guerra, não por acaso empreendeu-se um bloqueio sanguinário ao mais recente país autônomo e livre da América que não foi poupado nem por Simón Bolívar. Destruído pela guerra, com a população drasticamente reduzida, a economia absolutamente desestruturada, a primeira República negra da América teve muitas dificuldades em manter a estabilidade política e, dessa forma, foi palco de uma série de ocupações e golpes militares que contribuíram para fazer do Haiti um dos países mais pobres do mundo (GALEANO, 2010, 1989; GORENDER, 2004).
Várias potências europeias e os Estados Unidos da América (EUA) passaram a disputar o controle da ex-colônia francesa e que enquanto país independente não conseguia se livra da dependência econômica e dos conflitos internos pelo poder. Dessa forma, de 1915 até 1934 os EUA ocuparam e governaram o Haiti com o intuito de fazer valer o controle das plantations e do canal do Panamá nas mãos do grande capital. Um alto funcionário do governo americano não exitou em justificar essa dominação por meio do discurso racista segundo o qual a população negra não estaria preparada para se autogovernar, pois prevaleceria a incapacidade para a civilização (GALEANO, 2010).
De certa forma, como devir histórico, a revolução negra haitiana vingou o infortúnio africano, dos que foram levados à da miséria do tráfico negreiro e da escravidão. E isso a história dos escravocratas não podia suportar. O Haiti paga até hoje pela ousadia. A represália econômica dos países onde ainda vigia a escravidão, a pesada dívida externa imposta pela França, a devastação das florestas, empobrecimento do solo pela monocultura levaram o país a uma situação ao enfraquecimento e grandes dificuldades. As lutas internas e guerras civis geraram situações de grande estabilidade, com motins e golpes de Estado. Após a revolução e ainda no século XX, o Haiti conviveu constantemente com golpes e assassinatos de governantes.
No século XX os protagonistas mudaram, mas não a realidade de pilhagem e miséria. Em plena ascensão imperialista, os EUA passaram a considerar a América Central e o Caribe como o seu “quintal” através da implementação da politica do “Big Stick” (grande tacão), sintetizada numa frase do presidente Monroe: “A América para os americanos” e concretizada através da invasão de vários países da região. (ALMEIDA, 2011, p. 27, grifo do autor).
Como território sob o domínio e influência norte-americana o Haiti foi palco de uma série de governos autoritários que teve em Jean François Duvalier (o Papa Doc) o seu mais célebre representante.
Para se manter no poder, Duvalier submeteu o país à hegemonia norte- americana no Caribe: fez do Haiti um satélite incondicional do país do Norte, chegando inclusive a vender- lhe seu voto – decisivo – na reunião da Organização dos Estados Americanos (1961) que excluiria Cuba da OEA, [...]. E com o apoio do governo americano, instalou no país um regime de terror. (GRONDIN, 1985, p. 48).
Após a queda da ditadura Duvalier, as lutas por democratização se seguiram e em 1990, elegeram, Jean-Bertrand Aristide, com 67% dos votos, ex-padre defensor da Teologia da Libertação. Entretanto, Aristide foi deposto sete meses depois por um golpe militar que resultou na morte de cinco mil pessoas. O imperialismo estadunidense, através do presidente Bill Clinton, propôs acordo para derrubar a ditadura, com o retorno de Aristide à presidência, e invade o país novamente em 1994, sob a condição da aplicação do neoliberalismo.
René Préval, eleito e apoiado por Aristide, foi o responsável por conduzir o processo, realizando privatização de estatais, derrubando as barreiras alfandegárias e elaborando um projeto com 18 zonas francas no país. Em 2006 anunciou a privatização de portos, aeroportos, saúde e telefonia. Aí encontra- se as justificativas para a ocupação militar de 2004 pelas tropas da Organização das nações Unidas (ONU), aprovada pelo Conselho de Segurança.
Em meio à crise estrutural do capital e às sucessivas crises conjunturais, em tempos cada vez mais curtos, a estratégia dos capitalistas através das novas formas de gestão e organização do trabalho (reestruturação produtiva), do neoliberalismo, é vital para o sistema a superexploração do trabalho, inclusive a descentralização da produção e da exploração da força de trabalho em níveis de semiescravidão. Nesse sentido é que se pode compreender a conjuntura atual do Haiti. Almeida (2014) denuncia as consequências dessa política dos EUA para o Haiti.
Atualmente o domínio ianque da economia haitiana é quase absoluto: 89% das importações e 65% das exportações se realizaram com os EUA que, aliado com uma pequena oligarquia mestiça (menos de 5% da população) e branca (pouco menos de 1%) oprimem e exploram a imensa maioria negra.
Nas ultimas décadas, à tradicional produção de café, rum e tabaco, foram agregadas também indústrias de vestido e de brinquedos para exportação, como maquiladoras nas chamadas “zonas livres” de Porto Príncipe. Nelas as empresas multinacionais pagam salários de fome e ganham fortunas. O que está em curso é a implementação de um plano econômico no Haiti, que pagam salários de fome e ganham fortunas. Para isso foi, foi aplicado um acordo de livre comercio por meio por meio da lei HOPE (Haitian Opportunity for Economic Enhancement), aprovada pelo congresso dos EUA. A lei abre todas as barreiras para que os dois países possam realizar intercâmbios comerciais livres sem pagar taxas alfandegárias, ou mesmo qualquer taxa que o Estado possa cobrar sobre as mercadorias ou que trave sua livre circulação. (ALMEIDA, 2011, p.26, grifo do autor).
Descortinando a cena, revela-se a perversidade da missão: diante da crise estrutural do capitalismo, na qual há uma guerra encarniçada por mercados, as tropas asseguram a segurança das empresas multinacionais que se instalam no país, para garantir a superexploração da força de trabalho mais barata das Américas, principalmente nas 18 zonas francas que estão sendo instaladas, que tem como principais norte-americanas. Condições ideais para os capitalistas, péssimas condições de trabalho e de salários. Salário mínimo menos de 110 dólares por mês, jornada de trabalho de até 12h/dia, sem nenhum direito respeitado, como por exemplo pagamento de rescisões de contratos. Nesse sentido que em 2009 houve uma importante luta pelo salário mínimo de 200 gourds. A pobreza é lucrativa para os imperialistas. Por seu turno, Préval cumpre o papel de um governo títere dos EUA, aceitando incondicionalmente os ditames neoliberais. Almeida (2014) analisa a exploração do trabalho no Haiti com a implantação das multinacionais.
Essas multinacionais podem produzir no Haiti, pagando duas vezes menos aos trabalhadores que na China, a uma distância da costa dos EUA doze vezes menor. Podem pagar três vezes menos que aos trabalhadores brasileiros, a uma distância quase seis vezes menor da costa dos EUA.
Nas fábricas existe uma organização do trabalho moderna, os módulos. Grupos de trabalhadores fazem, por exemplo, uma camisa, com cada um fazendo uma parte. Como ganham por tarefa, se impõe a disciplina do patrão pelos próprios trabalhadores, que cobram qualquer um que se atrase.
As fábricas têxteis têm pequena exigência de capacitação tecnológica para a mão de obra, o que torna desnecessário investir em educação pública e formação técnica. As empresas não pagam um salário que corresponda ao valor necessário para reprodução normal da mão de obra. Os haitianos podem morrer jovens, como os escravos, porque são mão de obra barata e abundante, fácil de ser substituída. As empresas têm a sua disposição um exército industrial de reserva de 80% de desempregados. Se um trabalhador ficar doente, não ganha nada. Se morrer, pode ser substituído de imediato por outro haitiano faminto.
As multinacionais não pagam nenhuma das conquistas dos séculos XIX e XX, como férias, décimo terceiro salário, aposentadoria. Não pagam praticamente nenhum imposto ao estado, que por sua vez não precisa assegurar saúde nem educação ao povo. Os trabalhadores moram ao lado das empresas, podendo ir a pé para o trabalho. Se alguém morar longe, vai a pé assim mesmo. Os bairros não têm rede de esgotos ou água potável, menos ainda energia elétrica. A situação do proletariado haitiano pode ser comparada a dos antigos escravos. Na verdade, em termos econômicos tem aspectos ainda piores. Um estudioso haitiano fez uma comparação incrível: estudou os gastos que os fazendeiros tinham com os escravos no passado e os que os burgueses têm com os operários no Haiti hoje. Chegou à conclusão que os escravos custavam mais.
Ainda que de forma brutal, a classe dominante do passado tinha que se fazer responsável da moradia, alimentação e saúde dos escravos, o que hoje não é cobrado das multinacionais no Haiti. A burguesia no Haiti não têm sequer os gastos mínimos dos donos de escravos do passado, em pleno século XXI. (ALMEIDA, 2011, p. 28).
Em meio a sucessivas crises intra- burguesas, mobilizações e pressões populares contra as medidas neoliberais, o Haiti foi invadido por tropas de vários países sob a bandeira da ONU e devido à situação internacional, das guerras no Oriente Médio conduzidas pelo governo Bush, o comando da MINUSTAH coube ao Brasil.
Nesse aspecto, cabe de início um questionamento quanto ao papel que cumpre o Brasil nesta ocupação militar. Em primeiro lugar, a subserviência do país aos interesses e ditames estadunidense, aceitando colocar tropas militares num país empobrecido. Em segundo lugar, o papel que um governo oriundo da tradição da esquerda brasileira aceita cumprir esse papel abjeto, passando por cima da soberania daquele país. Utilizando- se das relações amistosas Brasil/Haiti, levando o futebol brasileiro, através da seleção, amada pelos haitianos, escondem os reais objetivos, nada nobres. No Brasil, a ideia divulgada é que está em missão de paz, solidariedade e desenvolvem ações humanitárias.
Do total dos recursos destinados à missão militar, 85% é consumido pelos militares e polícias. Há denúncias até de comandantes brasileiros da missão sobre a opressão e repressão ao povo haitiano, a exemplo, as denúncias de massacres em Cité Soleil, os assédios, prostituição e estupros às mulheres, inclusive menores etc. Em 2007, 108 soldados das tropas do Sri Lanka foram expulsos do país, o que deu visibilidade à questão, porém, nada garante as punições.
Esse processo histórico de dominação imperialista na formação do Haiti conduziu o país a situação econômica, política e social dramática. Com 8,1 milhões de habitantes, 80% vivem abaixo da linha da pobreza, 75% das moradias não possuem saneamento básico (esgoto, coleta de lixo, água potável), 80% estão desempregados, 58% da população é subnutrida, 45% analfabetos, renda per capta 15% da média dos países latino americanos. Correu o mundo as imagens das bolachas de terra (manteiga, açúcar, água e terra), demonstrando a situação da fome que vivem. O país ocupa o 161º no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), num total de 186 países (dados de 2015).
Não obstante essa situação, em 2010 o Haiti foi atingido por um terremoto de magnitude 7 na escala Richter que matou 300 mil pessoas, 400 mil feridos e 1 milhão de desabrigados, deixando o país devastado.
3 CONCLUSÃO
Após 10 anos de ocupação militar e 5 anos após o terremoto no Haiti que aprofundou ainda mais a miséria no país, no momento em que debate- se a renovação da permanência da MINUSTAH no país, é necessário que os brasileiros, entidades, movimentos, reflitam e opinem sobre as tropas brasileiras no Haiti. A miséria ali estabelecida construída pelo sistema do capital, que se internaliza, mas não aceita a internacionalização do trabalho. Atualmente, haitianos fogem da miséria e buscam se refugiar em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, assim como africanos, e são permanentemente humilhados e superexplorados.
A estratégia do imperialismo é controlar as fontes de riquezas em todas as partes do planeta. Conforme Welmovick (2002, p. 9, grifos do autor)
[...] há “uma ofensiva recolonizadora nos moldes dos velhos impérios” cuja expressão se verifica na expansão das áreas de livre comércio, que significam a abertura de mercados e a queda em uma série de países com invasão comercial e industrial das transnacionais; a outra, ofensiva exploradora sobre os trabalhadores, com a imposição de ritmos exaustivos de trabalho e uma extração de mais-valia ainda mais brutal; ataque à legislação trabalhista e conquistas sociais, conduzindo ao aniquilamento de fontes de trabalho e a uma elevação espantosa do desemprego. Por fim, a destruição da natureza em função da necessidade do lucro capitalista. “Esta é a expressão mais visível desse longo processo de espoliação que deixa a maioria do restante da população sujeita a graves níveis de pobreza, chegando ao estado de indigência em muitas regiões do planeta”.
Cumpre que também os explorados e oprimidos busquem unificar pautas e lutas que coloquem as possibilidades de destruição das desigualdades, da fome, da miséria, do racismo mundial e a construção de uma sociabilidade emancipada, como reivindica o povo haitiano: um Haiti Livre e Soberano que possa reconstruir sua história de Liberdade!
Referências
ALMEIDA, E. Haiti: dez anos de ocupação militar e serviço do imperialismo. São Paulo: PSTU, 2014. Não paginado. Disponível em:. Acesso em: 1 jan. 2016.
ALMEIDA, E. Haiti Ocupado! Fora as tropas militares da ONU! Revista Raça e Classe, São Paulo, n. 2, 2011.
AMADO, J.; FIGUEIREDO, L. C. A formação do império português (1415-1580). São Paulo: Editora Atual, 1999.
GALEANO, E. As veias abertas da América Latina. 29. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
GALEANO, E. Os pecados do Haiti. Rio de Janeiro: Correio da cidadania, 2010. Disponível em: http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&irew=article&id=4240:submanchete200110&c atid=30:americalatina-&itemid=187>. Acesso em: 20 jun. 2015.
GORENDER, J. O épico e o trágico na história do Haiti. Estudos Avançados, São Paulo, v. 18, n. 50, p. 295-302, abr. 2004 . Disponível em:. Acesso: 18 jun. 2015.
GRONDIN, M. Haiti: cultura, poder e desenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1985.
GRUZINSKI, S. 1480-1520: a passagem do século. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
JAMES, C. J. R. Os jacobinos negros: ToussaintL’Ouverture e a Revolução de São Domingos. Tradução Afonso Teixeira Filho. 1. ed. rev. São Paulo: Boitempo, 2010.
MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro I - o processo de produção do capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.
MOURA, C. Dialética Radical do Brasil Negro. São Paulo: Editora Anita, 1994.
WELMOVICK, J. Situação mundial: o cabo de guerra se tensiona. Marxismo Vivo: Revista de Teoria e política Internacional, n. 5, 2002.