Secciones
Referencias
Resumen
Servicios
Descargas
HTML
ePub
PDF
Buscar
Fuente


A POBREZA ENQUANTO CATEGORIA TEÓRICA DE FUNDAMENTAÇÃO E FOCO DE INTERVENÇÃO DOS PROGRAMAS DE TRANSFERÊNCIA DE RENDA NA AMÉRICA LATINA1
POVERTY AS THEORETICAL CATEGORY OF FOUNDATION AND INTERVENTION FOCUS OF INCOME TRANSFER PROGRAMS IN LATIN AMERICA
Revista de Políticas Públicas, vol. Esp, pp. 193-200, 2016
Universidade Federal do Maranhão

Mesas temáticas coordenadas


Recepção: 22/01/16

Aprovação: 06/06/16

Resumo: O artigo, referenciado em estudo exploratório, bibliográfico e documental, tem como foco de discussão a pobreza enquanto categoria teórica determinante na formulação e implementação dos Programas de Transferência de Renda Condicionada (PTRC) na América Latina. A pobreza é apresentada e problematizada tendo como principal determinação a estrutura social, sendo também considerado seu caráter multidimensional. Segue destacando conteúdos e significados que a categoria pobreza, representa no contexto desses programas para fundamentar concepções e orientar sua implementação. É destacada a atribuição de conteúdos individualizantes e discriminatórios à população beneficiária e sua responsabilização pela superação da pobreza intergeracional na qual está imersa.

Palavras-chave: Programas de Transferência de Renda, pobreza, América Latina.

Abstract: The article, based on a survey, bibliographic and documental research, has as subject a discuss about poverty as main theoretical category in the formulation and implementation of the Conditional Income Transfer Programs in Latin America. The poverty is presented and problematized considering the social structure as its main determination. It is also considered its multidimensional character. Following, it highlights contents and meanings that the poverty category, represents in the context of these programs to support ideas and guide their implementations. It is highlighted the allocation of individualizing contents and discriminatory to the beneficiary population and their accountability for overcoming intergenerational poverty in which it is immersed.

Keywords: Income Transfer Programs, poverty, Latin America.

1 INTRODUÇÃO

O presente texto tem como referência central o entendimento de que a América Latina é uma região continental que apresenta traços da

[...] longa história que a condiciona: colonização, lutas pela independência, modos de produção, formas de dependência, planos de desenvolvimento, tipos de Estado, políticas sociais etc. (WANDERLEY, 2011, p. 56).

Essa referência coloca a necessidade de cuidados para evitar à formulação de hipóteses e generalizações devendo considerar a diversidade de espaços, tempos e forças sociais em cada Estado-Nação (WANDERLEY, 2011).

O pressuposto é que a América Latina é, ao mesmo tempo, una e diversa, por poder-se identificar características homogêneas e heterogêneas que decorrem de diferenciações de fatores territoriais, étnicos, demográficos, ao mesmo tempo em que apresenta traço unificador representado pela elevada desigualdade e pela pobreza de grande contingente de sua população, em decorrência das relações de exploração econômica e dominação política. Isto é, torna-se necessário que cada país da América Latina seja considerado uma formação social específica.

É no âmbito dessa realidade, una e diversa, que nos anos 1990 surgem e se ampliam Programas de Transferência de Renda Condicionada (PTRC) que vêm integrando os Sistemas de Proteção Social da grande maioria dos países da América Latina.

Os PTRC vêm sendo denominados de Rede de Proteção Social, composta por um conjunto de intervenções compensatórias de natureza focalizada na pobreza e na extrema pobreza. Essas intervenções constituem o principal mecanismo para combater a denominada pobreza intergeracional no Continente. Portanto, a população beneficiária é proveniente de famílias qualificadas como pobres e extremamente pobres, selecionadas mediante complexos e sofisticados sistemas de identificação, seleção e acompanhamento, com largo emprego de modernas tecnologias da informação, conduzindo a uma ampla tecnificação do campo assistencial. Assim, sob a justificativa de objetividade, o público alvo é submetido a diversificados testes de meios próprios das políticas sociais focalizadas. São famílias e pessoas que recebem transferência monetária sob a condição de cumprirem certos requisitos (condicionalidades) para desenvolver certas qualificações e melhorar seu nível educacional, de saúde e nutricional. Para isso, os PTRC da América Latina propõem- se a oferecer proteção social aos ciclos iniciais da vida, mediante a oferta de valores variados de transferência monetária, ao mesmo tempo que se propõem a oferecer atendimento à saúde e a incluir crianças e adolescentes no sistema escolar, com o objetivo de elevar seus níveis de escolaridade. Programas de alguns países incluem também pessoas idosas, pessoas com deficiências e adultos pobres em idade de trabalho (SILVA, 2014).

Por conseguinte, os PTRC são programas que materializam a dimensão não contributiva da proteção social na América Latina, situando-se no campo assistencial, cujo foco é o enfrentamento à pobreza, o que requer compreendê-los não só nos seus significados explícitos e implícitos e nas contradições reveladoras de limites e potencialidades (SILVA, 2014).

O corte de análise do presente texto é voltado para a compreensão e problematização da pobreza enquanto categoria teórica central de fundamentação dos PTRC na América Latina e enquanto foco de intervenção e proteção assistencial dos segmentos da população que vivenciam a pobreza estrutural e geracional. Nesse aspecto, a pobreza é apresentada e problemetizada considerando a concepção construída pela autora, e pela indicação de conteúdos e significados da categoria pobreza, conforme identificado em vários estudos sobre a realidade dos PTRC na América Latina e, especificamente, no Brasil (SILVA; YAZBEK; DI GIOVANNI, 2012; SILVA, 2013; 2014; SILVA; YAZBEK: COUTO, 2015).

2 OS PROGRAMAS DE TRANSFERÊNCIA DE RENDA CONDICIONADA NA AMÉRICA LATINA

Os PTRC da América Latina apresentam diversos qualificadores que representam elementos comuns que os transforma na estratégia prevalente de proteção social adotada a partir de 1990 para enfrentar sequelas dos processos de ajuste econômico representadas pela elevação dos índices de pobreza, de indigência e de diferentes modalidades de trabalhos precarizados, instáveis e de baixos salarios. Entre esses qualificadores, destacam-se: focalização na pobreza e na extrema pobreza; famílias como os principais beneficiários dos programas; adoção de condicionalidades, com destaque à saúde e à educação, tendo como pressuposto a elevação do capital humano e do capital social em relação às novas gerações e às formas de organização societária. Além do benefício monetário transferido para satisfação de necessidades imediatas, a maioria dos PTRC da América Latina disponibiliza diversas ações complementares, consideradas oferta de oportunidades para ultrapassagem da pobreza intergeracional (SILVA, 2015). Todavia, esses programas não constituem um modelo único de proteção social. São adaptados às realidades sociopolíticas e institucionais de cada país, atribuindo-lhes perfis próprios. Entre as especificificidades identificadas têm-se diversos níveis de cobertura da população e orçamentos diferenciados de recursos que são transferidos aos pobres. Aquí tem-se uma situação contraditória: são os países que apresentam o menor nível de desenvolvimento humano, consequentemente com uma população constituída por um contingente relativamente maior de pobres, que apresentam menos possibilidades de investir nesses programas. Em consequência, têm menor cobertura e efeitos mais modestos, de modo que as transferências monetárias, que já se situam num patamar de sobrevivencia minimalista, pouco têm conseguido contribuir para que grande parte das famílias consigam ultrapassar as linhas de pobreza de seus países. O mais que têm alcançado é superar níveis de indigência, limitando-se à mera funcionalidade do atendimento de necessidades básicas de sobrevivência das famílias beneficiárias (SILVA, 2014).

Os PTRC são programas apresentados como incentivo da demanda e da oferta de serviços sociais, com registro de significativo crescimento em número de programas e em cobertura da população beneficiária na primeira década do século XXI, ocorrendo significativa ampliação de recursos a eles destinados. Em 2010, já eram implementados em 18 países, voltando-se largamente para a inclusão da população pobre, constituindo-se na principal política do campo assistencial. Portanto, são programas não contributivos, direcionados para o enfrentamento da pobreza e da extrema pobreza na agenda pública dos países da Região (COMISSÃO ECONÔMICA PARA AMÉRICA LATINA E O CARIBE, 2012). Segundo dados também da CEPAL, considerado a população total de 19 países da América Latina e Caribe onde esses programas eram implementado, a cobertura dos PTRC, cresceu de 5,7%, em 2000, para 19,3%, em 2010. Em termos de inversão do Produto Interno Bruto (PIB), foi registrado um incremento de 0,19%, em 2000, para 0,40%, em 2010. (CECCHINI; MADARIAGA, 2011). Esses dados revelam o destaque desses programas no Continente como forma de proteção social dos extremamente pobres, embora os recursos a eles destinados não venham acompanhando a ampliação da cobertura da população.

Mais recentemente, uma equipe de pesquisadores de universidades brasileiras, do Uruguai e da Argentina2 desenvolveram em 2011/2012 um levantamento sobre os PTRC em implementação na América Latina e Caribe, tendo como principais fontes de informações os sites e documentos dos respectivos programas. Esse levantamento permitiu a elaboração do Quadro 1, cujo critério de exposição é o ano de criação de cada programa.

Quadro 1
Programas de transferência de renda condicionada em implementação na América Latina e Caribe, 20123

SILVA, Maria Ozanira da Silva e. Caracterização e Problematização dos Programas de Transferência de Renda Condicionada (PTRC) na América Latina e Caribe. In: SILVA, Maria Ozanira da Silva e. Programas de Transferência de Renda na América Latina e Caribe. São Paulo: Cortez, 2014. p. 85- 232.

Em termos contextuais, os PTRC são assumidos enquanto resposta a um conjunto de transformações experimentadas pelo sistema capitalista em âmbito mundial e em especial no Continente latino-americano, com destaque às transformações no padrão de regulação econômica e social do Capitalismo, cuja centralidade é focada na garantia de condições de flexibilidade das formas de reorganização capitalista para enfrentamento dos efeitos perversos da globalização, da busca da eficiência e de competitividade da economia. Essa realidade da conjuntura mundial recente tem impactado diretamente no padrão dominante de Política Social, adotando políticas residuais e focalizados em substituição a políticas universalistas. Nesse redimensionamento do padrão de políticas sociais, os PTRC são assumidos como a principal estratégia de enfrentamento à pobreza e às desigualdades sociais na América Latina. Estas são mudanças, inspiradas no Consenso de Washington e impostas pelos Organismos Financeiros Internacionais, com vistas a favorecer a inserção das economias da Região à nova ordem mundial globalizada (SILVA, 2014).Assim, os PTRC passaram a constituir as denominadas Redes de Proteção Social, cujo foco de intervenções compensatórias e focalizadas é as famílias em situação de pobreza e extrema pobreza intergeracional. Nesse contexto, os pobres são selecionados mediante complexos testes de meios para sua identificação e separação dos não pobres. A partir do ingresso nos programas, os beneficiários passam a ser submetidos a processos de acompanhamento e controle, com emprego de modernas tecnologias da informação. Esse nova forma de gestão dos programas sociais tem submetido o campo assistencial a um amplo processo de tecnificação, considerado pelos idealizadores e gestores dos programas forma de garantir objetividade e eficiência para separar os pobres dos não pobres. Por conseguinte, os beneficiários são submetidos ao controle de suas vidas e de seus ambientes, além da exigência do cumprimento de condicionalidades, sob a justificativa de elevação dos níveis de escolaridade, principalmente de crianças e jovens e o nível de saúde e nutricional das famílias.

Como vêm sendo elaborados e implementados os PTRC na América Latina, de acordo com o estudo referenciado, vem sendo possível a identificação de categorias teóricas de fundamentação na elaboração dos programas e com rebatimentos diretos nas estratégias de gestão e implementação. Entre essas categorias, merecessem destaque: pobreza, focalização, capital humano e capital social que se apresentam devidamente articuladas (SILVA, 2015). Entre essas categorias, destaco a pobreza enquanto categoria fundante e modeladora das demais categorias, conforme apresentação e problematização a seguir.

3 POBREZA: foco da intervenção dos programas de transferência de renda

A pobreza, enquanto categoria teórica apresenta concepções diferenciadas conforme a corrente teórica que a inspira. No censo comum e no ideário dominante, a concepção de pobreza é expressa pela presença de um atributo negativo, ou seja, significa carência ou ausência de alguma coisa, principalmente da renda, sendo restrita a uma concepção monetarista. A tendência dos estudos mais recentes é ampliar a concepção de pobreza para uma perspectiva multidimensional. Passa, então, a ser concebida como um fenômeno dinâmico e heterogêneo. Nesse aspecto, abrange elementos quantitativos e qualitativos, significando acúmulo de deficiências socioeconômicas e culturais, com inclusão, para além da renda, de deficiências de saúde, educação, moradia, desemprego, direitos econômicos e sociais, igualdade entre os sexos, liberdade e participação política. Tem-se, portanto, a inclusão de um conjunto de situações abrangentes, de caráter múltiplo e cumulativo, referindo-se, por conseguinte, a aspectos materiais e subjetivos, a dimensões políticas e sociais (CODES, 2008).

Para Euzeby (1991), a pobreza é uma situação intensiva, extensiva e duradoura de não ter, não saber e de não poder. É também um problema político, por decorrer de escolha de estratégias, quer por deficiência de recursos ou de possibilidades (MILANO, 1988).

No presente texto, a concepção de pobreza é percebida na sua historicidade, portanto é relativa e tem como sua principal determinação a forma como a sociedade se organiza para produzir e distribuir o produto do trabalho, ou seja sua determinação maior é de natureza estrutural. Assim, a concepção de pobreza não pode ser considerada estável, no tempo nem no espaço. Não se pode, também falar de uma definição científica, objetiva e universal, por ser um fenômeno ou situação construída historicamente, reproduzindo-se com marcas das especificidades históricas de cada formação social. Ou seja, embora seja um fenômeno percebido numa perspectiva multidimensional, tem como determinação primeira a dimensão estrutural, que considera os fatores externos geradores da pobreza. Fatores que se colocam sobre o ambiente dos pobres, sem que individualmente, possam deles se livrar, sendo o comportamento do pobre consequência e não a causa da pobreza (SILVA, 2014). Essa é uma concepção de pobreza orientada pelo pressuposto de que a exploração é uma dimensão constitutiva do sistema de produção capitalista, decorrente da separação do trabalhador dos meios de produção, da concentração da propriedade nas mãos de poucos (os capitalistas). Esse é um sistema gerador de mais valia, que permite a apropriação do excedente do trabalho pelos capitalistas, proprietários dos meios de produção, base da exploração social. Por conseguinte,

[...] O entendimento é de que o sistema de produção capitalista, centrado na expropriação e na exploração para garantir a mais valia, e a repartição injusta e desigual da renda nacional entre as classes sociais são responsáveis pela instituição de um processo excludente, gerador e reprodutor da pobreza, entendida enquanto fenômeno estrutural, complexo, de natureza multidimensional, relativo, não podendo ser considerado como mera insuficiência de renda; é também desigualdade na distribuição da riqueza socialmente produzida; é não acesso a serviços básicos; à informação; ao trabalho e a uma renda digna; é não participação social e política. (SILVA, 2010, p. 157).

No âmbito do presente texto, atribui-se à concepção de pobreza formulada por Sen (1978, 1988, 1992, 2000) uma discussão mais ampliada por ser este o principal autor que vem inspirando e fundamentando a concepção de pobreza que orienta as propostas e a implementação dos PTRC na América Latina. Para este autor, a pobreza é concebida na sua multifuncionalidade, constituindo- se num fenômeno social complexo, decorrente de privações de necessidades materiais, de bem estar e de negações de oportunidades de acesso a padrões aceitáveis socialmente. Essa concepção pode ser identificada nos critérios de elegibilidade das famílias e pessoas, nos objetivos dos programas, na fixação das condicionalidades e na oferta de benefícios não monetários e ações complementares (SILVA; YAZBEK; COUTO, 2015).

Os estudos que tenho realizado sobre os PTRC na América Latina permitem verificar que os PTRC implementados no Continente se referenciam na concepção de multifuncionalidade da pobreza, identificado tanto no discurso oficial como na implementação dos programas. Todavia, a dimensão estrutural da pobreza é desconsiderado, o que termina instituindo um processo de individualização e de responsabilização dos pobres por sua situação de pobreza e pela sua superação (SILVA, 2014). Em decorrência, a intervenção, mediada pela transferência monetária às famílias pobres e extremamente pobres e pela oferta de ações complementares, é reduzida ao que se pode considerar a mitigação da pobreza, mediante ações focalizadas e meramente compensatórias. Assim, considero que a insuficiência da concepção de pobreza adotada, mesmo considerando uma perspectiva multidimensional, ao desconsiderar sua determinação estrutural, termina por restringir a intervenção desenvolvida por esses programas a melhorias imediatas das condições de vida dos pobres, visto, segundo a concepção de pobreza formulada por Sen como criação de oportunidades para gerar capacidades, transferindo aos próprios pobres a responsabilidade pela superação da pobreza intergeracional a que são submetidos.

O exposto sugere, que, ao considerar a pobreza numa perspectiva de privação de necessidades materiais e de bem estar e de negação de oportunidades, os PTRC da América Latina se colocam enquanto mecanismos capazes de criar as oportunidades e de satisfazer as necessidades negadas, mediante transferências monetárias e a oferta de serviços de educação, proteção básica à saúde e por um conjunto amplo de ações complementares disponibilizados por alguns programas, o que tenho denominado de benefícios não monetários. Por conseguinte, o entendimento, fundamentado na concepção de pobreza formulada por Sen é que a superação de privações, pela concessão de uma transferência monetária, e da criação de oportunidades, estas mediante a disponibilização de ações complementares de serviços de educação, saúde e outras ações, são mecanismos que habilitam os indivíduos a romper com o ciclo vicioso da pobreza intergeracional, principal objetivo dos PTRC (SILVA, 2014).

As condicionalidades, componente fundamental dos PTRC na América Latina, majoritariamente fixadas no campo da educação: matrícula e frequência de crianças e adolescentes no sistema escolar e na saúde: frequência a atendimento básico e vacinação de crianças e adolescentes e realização de pré-natal, no caso de mulheres grávidas, são diretamente relacionadas com a concepção de pobreza, conforme formulações de Sen. Isto porque é o estabelecimento de condicionalidades no campo da educação, saúde, nutrição, capacitação profissional, etc. que representam as oportunidades para superação da pobreza, cabendo ao estado disponibilizar os serviços e os beneficiários utilizá-los. A ideia é a capacitação dos indivíduos para alcançar a tal inclusão e emancipação para superação da pobreza intergeracional. Nesse processo não é considerado qualquer intervenção sobre as determinações estruturais geradoras e mantenedoras da pobreza e de sua reprodução (SILVA; YAZBEK; COUTO, 2015).

Nesses termos, a pobreza intergeracional é naturalizada e vista como uma condição inerente às sociedades humanas. Decorre de déficit de liberdade e de oportunidades, só sendo reduzida de modo sustentável mediante inversão na criação de condições de oportunidades para aumentar os recursos dos pobres, de modo a desenvolver suas capacidades para inserção no mercado de trabalho, única forma de integração social. Essa é Missão dos PTRC em implementação em diversos países da América Latina e Caribe com apoio e recomendação dos Organismos Multilaterais de Desenvolvimento, com destaque ao Banco Mundial (BM) e ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) (SILVA, 2015).

As análises desenvolvidas permitem considerar que o enfrentamento à pobreza, à inclusão social e à ultrapassagem da vulnerabilidade das famílias beneficiárias, propostos nos objetivos dos PTRC em implementação na América Latina, reduz- se ao atendimento de situações de indigência, muito pouco favorecedoras da pretendida superação da pobre intergeracional, que é, sobretudo, de natureza estrutural. O público beneficiário é transformado em indivíduos consumidores marginais, inseridos no mercado informal de trabalho, situados em nível de sobrevivência, sem que a organização da sociedade capitalista seja alterada nos seus mecanismos de produção e distribuição da riqueza socialmente produzida. Ou seja, a dimensão estrutural, principal determinante da pobreza, não é considerada (SILVA, 2014).

Se a dimensão estrutural da pobreza não é considerada, o indivíduo passa a ser o responsável pelo seu estado de pobreza, havendo fértil espaço para a ideologia da responsabilização e da estigmatização. Mais que isso, o que passa a importar não é superar ou erradicar a exploração e, consequentemente, a pobreza, mas mitigar situações extremas, com melhorias imediatas nas condições de vida do pobre que é transformado num consumidor marginal, com consequente redução do seu potencial de sujeito perigoso à estabilidade da ordem social. (SILVA; COUTO; YAZBEK, 2015).

Em síntese, os PTRC em desenvolvimento na América Latina tem os seus fundamentos teóricos e suas orientações interventivas fundamentados num conceito de pobreza focado no indivíduo, tendo suas capacidades desenvolvidas numa relação com as estruturas de oportunidades disponibilizadas, quer pelo Estado, quer pela sociedade. Orientam- se por uma concepção multidimensional da pobreza, originada no Enfoque do Desenvolvimento Humano, construído pelo Programa das Nações Unidas para

o Desenvolvimento (PNUD), cuja referência maior é o enfoque de capacidades formulado por Sen, sendo as oportunidades capazes de criar possibilidades que garantam a liberdade para que os indivíduos, por si, possam superar sua situação de pobreza (SILVA, 2015).

4 CONCLUSÃO

Pelas análises desenvolvidas, conclui-se que os PTRC em implementação na América Latina são fundamentados numa concepção de pobreza multidimensional que é identificada no discurso oficial, na gestão, na formulação dos objetivos, nos critérios de inserção, na fixação de condicionalidades e de beneficios não monetários, materializados pela disponibilização de ações complementares disponibilizdas aos integrantes das famílias beneficiárias. A multifuncionalidade identificada na concepção de pobreza que fundamenta os PTRC é expressa por um conjunto de deficiências, carências, ausências, sendo a deficiência de renda considerada o determinante principal, o que qualifica a pobreza, em última análise, numa perspectiva economicista e individualista do pobre (SILVA, 2014).

Conforme demonstrado, o autor de maior influência na construção da base de fundamentação dos PTRC é Amartya Sen, que nas suas formulações sobre pobreza, a considera resultante da falta de oportunidades para inserção no mercado de trabalho e de liberdade para usufruir das condições de bem estar, situando, nessa formulação, os PTRC como posibilidades concretas de superação da pobreza, por transferir renda e por disponibilizar oportunidades, gerando, portanto, liberdade para o bem estar.

Na base teórica dos PTRC não foi identificada qualquer indicação à dimensão estrutural da pobreza, sendo desconsideradas as condições geradoras da pobreza na sociedade capitalista, produto da forma como se organiza para produzir e distribuir a riqueza gerada socialmente, mediante um processo de geração de mais valia fundado na exploração dos detentores do trabalho pelos que monopolizam os meios de produção. Ao desconsiderar as determinações estruturais da pobreza, esta é reduzida a um atributo negativo dos individuos e de suas famílias, estigmatizados e responsabilizados pelo seu estado de pobreza, ficando a superação da pobreza intergeracional, sob a responsabilidade dos indivíduos. O resultado desse processo não é a superação da pobreza, limitando seu alcance na redução de situações de indigência, com melhorias imediatas nas condições de vida do pobre, que tem seu potencial de sujeito perigoso minimizado, ao transformar-se num consumidor marginal para que a estabilidade da ordem social seja garantida, em certo nível.

As análises desenvolvidas situam os PTRC na América Latina enquanto resposta eficiente do Estado Motivador, Estado Incentivador, Estado Promotor que se volta para mitigação das necessidades imediatas dos pobres, mediante uma transferência monetária mínima para complementar a sobrevivência dos pobres. Igualmente, as oportunidades para desenvolvimento de capacidades, à médio e longo prazo, são criadas pela oferta de serviços de educação, saúde, nutrição e outros. Por conseguinte, as condicionalidades no campo da educação e da saúde, representam estratégias dinamizadoras do capital social dos pobres. São as oportunidades que devem ser ofertadas pelo Estado e devidamente aproveitadas e maximizadas pelos beneficiários dos PTRC, para que se instrumentalizem e se capacitem para superação da pobreza intergeracional. Por conseguinte, a pobreza é desenraizada das estruturas, é individualizada, naturalizada e transformada em responsabilidade dos indivíduos e de suas famílias, ocultando as determinações estruturais geradoras da pobreza e, consequentemente, da riqueza (SILVA; YAZBEK; COUTO, 2015).

Referências

CECCHINI, S.; MADARIAGA, A. Programas de Transferência Condicionadas: balance de la experiência reciente em América Latina y el Caribe. Santiago: Naciones Unidas, 2011. (Cuadernos de la CEPAL, 95).

CODES, L. M. de. A trajetória do pensamento científico sobre a pobreza: em direção a uma visão complexa. Texto para Discussão, Niterói, n. 1332, 2008.

COMISSÃO ECONÔMICA PARA AMÉRICA LATINA E O CARIBE. Panorama Social de América Latina 2012: documento informativo. Santiago de Chile, 2012

EUZEBY, C. Le revenu minimum garanti. Paris: La Decouvert, 1991.

MILANO, S. La pauvreté absolute. Paris: Hachete, 1988.

SEN, A. Desenvolvimento com liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

SEN, A. Hunger and entithements: research for action. Filand: World Institute for Development Economics Research: United Nation University, 1988.

SEN, A. Sobre conceptos y medidas de pobreza. Comércio Exterior, México, v. 42, n. 4, p. 310-322, abr. 1992.

SEN, A. Three notes on the concept of poverty, income distribution and employment programme. Working Paper, Genebra, n. 65, 1978.

SILVA, M. O. da S. e (Coord.) (Coord.). O Bolsa Família no enfrentamento à pobreza no Maranhão e Piauí. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2013.

SILVA, M. O. da. Caracterização e Problematização dos Programas de Transferência de Renda Condicionada (PTRC) na América Latina e Caribe. In: ______. Programas de Transferência de Renda na América Latina e Caribe. São Paulo: Cortez, 2014. p. 85-232.

SILVA, M. O. S. e. Pobreza, desigualdade e política públicas: caracterizando e problematizando a realidade brasileira. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 13, n. 2, p. 155-163, jul./dez. 2010.

SILVA, M. O. S. e. Aportes teóricos de fundamentação dos programas de transferência de renda na américa latina e caribe: pobreza, focalização, capital humano e capital social. In: CONGRESS OF THE LATIN AMERICAN STUDIES ASSOCIATION, 33., 2015, San Juan. Programa final... San Juan: LASA, 2015. Disponível em:<http://lasa-4.lasa.pitt.edu/ auth/prot/congress-papers/lasa2015/>. Acesso em: 9 jun. 2015.

SILVA, M. O. S. e; YAZBEK, M. C.; COUTO, B. R. A pobreza enquanto categoria teórica e sua expressão no desenho e na implementação dos PTRC Bolsa Família (BF Brasil); Nuevo Régimen Asignaciones Familiares (AFAM-PE Uruguay) e Asignación por Hijo para la Protección Social (AUH Argentina). São Luís: GAEPP, 2015. Mimeo.

SILVA, M. O. S. e; YAZBEK, M. C.; DI GIOVANNI, G. A política social brasileira no século XXI: a prevalência dos programas de transferência de renda. 6. ed. rev. e ampl. São Paulo: Cortez, 2012.

WANDERLEY, L. E. A questão social no contexto da globalização. In: ______, Mariangela Belfiore; BÓGUS, L; YAZBEK, M. C. (Orgs.). Desigualdade e questão social. São Paulo: EDUC, 2011.

Notas

1 Esse artigo, apresentado na VII Jornada Internacional de Políticas Públicas (JOINPP), São Luís, 25 a 28 de agosto de 2015, contém resultados parciais de estudos desenvolvidos com o apoio da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), entidades do Governo brasileiro, voltadas para a formação dos recursos humanos e a pesquisa.
2 Trata-se do Projeto: Programas de Transferência de Renda Condicionada na América Latina: estudo comparado - Bolsa Família (Brasil), Nuevo Régimen de Asignaciones Familiares (AFAM-PE) (Uruguay) y Asignación Universal por Hijo para la Protección Social (Argentina), financiado pela CAPES (Edital CGCI no. 072/2010) e pelo CNPq (Edital Universal – CNPq no. 14/2011), contando com pesquisadores das seguintes instituições: PPGPP/UFMA/Brasil; PPGPP/PUC-SP/ Brasil; PPGPP/PUC-RS/Brasil; Programa de Doctorado en Ciencias Sociales de la FCS/Udelar/Uruguay e Mestrado en Ciencias Sociales de la FCH/UNICEN da Argentina.
3 O quadro acima apresenta PTRC distribuídos em 18 países da América Latina e Caribe, em implementação em 2012. Todavia, é importante considerar que alguns desses programas são formados de mais de um componente, às vezes, considerados programas independentes. Não consta da lista de países a Nicarágua que manteve o RPS, implementado de 2000 a 2006. Também o programa da Guatemala mais conhecido foi o MIFAPRO, implementado de 2008 a 2011, substituído em 2012 pelo Mi Bono Seguro. Ademais, a relação de programas é restrita a programas que mantêm condicionalidades para sua implementação, deixando de incluir alguns programas importantes, mesmo que de transferência de renda, como o BPC do Brasil, direcionado a idosos a pessoas com deficiências. Dada a complexidade, em razão de criação, desativação e programas às vezes com diferentes componentes, possivelmente, não foi possível, nesse estudo exploratório, terem sido incorporados todos os aspectos presentes nesses programas.
4 2002, o Programa Oportunidades foi a designação substituta do Programa de Educación, Salud y Alimentación (PROGRESO) instituído em 1997 em substituição ao Programa Nacional de Solidaridad (PRONASOL) 1989-1994. Os três programas foram direcionados para a população pobre e indigente no contexto da notoriedade e inclusão da pobreza na agenda governamental, a partir da década dos anos 1980.


Buscar:
Ir a la Página
IR
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por