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FRONTEIRAS SIMBÓLICAS E (DES)CLASSIFICAÇÃO HIERÁRQUICA DOS “POBRES” NAS MARGENS URBANAS: problematizando versões de moradores(as) de territórios estigmatizados de Fortaleza-CE
SYMBOLIC BORDERS AND HIERARCHICAL (DES)CLASSIFICATION OF "POOR" IN URBAN MARGINS: questioning versions of residents of stigmatized territories of Fortaleza-CE
Revista de Políticas Públicas, vol. Esp, pp. 281-294, 2016
Universidade Federal do Maranhão

Mesas temáticas coordenadas


Recepção: 16/03/16

Aprovação: 06/06/16

Resumo: Este artigo problematiza lutas simbólicas urdidas em torno das re-semantizações de pobreza, com foco em classificações hierárquicas dos “pobres locais” fabricadas por moradores (as) de territórios estigmatizados da região do Grande Bom Jardim, inscritos nas margens de Fortaleza-Ce. Destaco, nesta interpretação crítica, as categorias nativas de “os mais pobres” e “os pobres dos pobres” usadas em suas lutas de classificação e micro táticas de distinção social, demarcatórias de fronteiras simbólicas entre (des)iguais próximos-distantes em seus territórios vividos. A atribuição destas designações-posições entre moradores tangencia a símbolos materiais e imateriais de distinção e/ou reprodução de processos de estigmatizações e segregações sócio espaciais. Consiste em recorte de minha tese de doutorado sobre pobreza e lugar(es) nas margens urbanas, com foco nas lutas simbólicas tecidas territorialmente. Optei pela pesquisa qualitativa, com adoção de recursos teórico-metodológicos da antropologia cultural, articulando observação participante com entrevistas etnográficas, uso de diário de campo e registros fotográficos.

Palavras-chave: Lutas simbólicas, pobreza , margens urbanas.

Abstract: This article questions symbolic struggles woven around the re-semantizations of poverty, focusing on hierarchical classifications of "local poor" made by locals of stigmatized territories of the Greater Bom Jardim, inscribed on the margins of Fortaleza-CE. I highlight in this critical interpretation, the native category of "the poor" and "the poorest of the poor" used in their classification struggles and micro tactics of social distinction, demarcations of symbolic boundaries between (un)equal near-distant in their lived territories. The allocation of these positions between residents-designations touches the material and immaterial symbols of distinction and / or reproduction of stigmatization processes and socio spatial segregation. It consists of trimming my doctoral thesis on poverty and place (s) in the urban margins, focusing on the symbolic struggles woven territorially. I opted for qualitative research, with the adoption of theoretical and methodological tools of cultural anthropology, combining participant observation with ethnographic interviews, daily use of field and photographic records.

Keywords: Symbolic struggles, poverty and urban margins, urban margins.

1 PREÂMBULO: tematizando fronteiras simbólicas entre (des)iguais nas margens de Fortaleza

Este artigo problematiza significações e experiências da pobreza1 e do ser pobre nas margens urbanas2 de Fortaleza-CE, a partir dos esquemas classificatórios de seus moradores. Priorizo, aqui, as categorias nativas os pobres dos pobres e os mais pobres urdidas nas micro-táticas de distinção social e lutas simbólicas3 travadas pelos (as) interlocutores (as) desta pesquisa em seus territórios vividos4. Trata-se de um esforço crítico-interpretativo das fronteiras simbólicas construídas entre residentes das margens desta metrópole, que deliam uma (des) classificação hierárquica dos ditos pobres locais capaz de (re)produzir formas de estigmatizações e/ ou segregações sócio espaciais recorrentes nestes tempos contemporâneos.

Importa salientar que este artigo consiste em recorte específico de minha tese de doutorado em sociologia, que versa sobre pobreza e lugar(es) nas margens urbanas de Fortaleza-CE, com ênfase nas lutas simbólicas travadas entre e intraterritórios constitutivos da região do Grande Bom Jardim5. Para tanto, realizei pesquisa sócio antropológica de natureza qualitativa, mediante o uso de observação participante em complementaridade com entrevistas etnográficas (BEAUD; WEBER, 2007) junto a moradores (as) de territórios estigmatizados6 desta região, reconhecidos socialmente por seus elevados indicadores de pobreza sócio-econômica e de violência urbana7. O trabalho de campo foi realizado entre os anos de 2010 a 2014 em espaços desta cidade projetados no senso comum e na mídia fortalezense como favelas perigosas e de pobres.

Visibilizados como locais de cristalização de pobreza e violência urbanas, o Grande Bom Jardim e seus territórios - na radicalidade das suas reconhecidas áreas de riscos geográficos8, favelas9 e becos - são submetidos a figurações públicas negativadas disseminadas no imaginário fortalezense destes anos 2000 acerca das nossas periferias10. Em perspectiva correlata, também a figura do pobre da periferia tornou-se, mais uma vez na vida brasileira e local, foco de produções discursivas socialmente desqualificadoras e estigmatizantes, seja como encarnação do mito de retorno das classes perigosas (GUIMARÃES, 2008; ZALUAR, 2000, 2004), (re)associando pobreza-violência- criminalidade; seja como símbolo de fracasso social neste capitalismo contemporâneo centrado na mercadorização da vida e no consumismo como forma de existência (BAUMAN, 2008, 2013; BEZERRA, 2015). Tais processos encontram-se travejados por tensões, conflitos, esquivas, recusas e/ou reproduções dos discursos hegemônicos sobre pobreza/ser pobre e lugar(es) fabricados nestas margens, segundo quem as vivencia, as ressignifica e as recria cotidianamente: seus moradores.

As margens urbanas configuram-se em espaços de exceção e de produção de formas de vida qualificada (biós) como possibilidades e potências de existência (AGAMBEN, 2004a, 2004b; TELLES, 2010; CORDEIRO, 2009). São minadas por lutas simbólicas travadas por múltiplos agentes. E, dentre as lutas simbólicas ensejadas nestas periferias, discuto, neste artigo, aquelas urdidas em torno das re-semantizações de pobreza e ser pobre, sob o ponto de vista dos residentes em territórios estigmatizados situados às margens das margens desta região estigmatizada de Fortaleza-CE.

Destaco, em caráter preliminar, que parcela dos (as) interlocutores (as) desta pesquisa reiteram em seus micro contextos de experiência uma versão peculiar de desvalor e inexistência dos pobres da e na periferia, denotativos da naturalização e do silenciamento das desigualdades sócio-econômicas e político-culturais vivenciadas, bem como da correspondente hierarquia valorativa que ainda classifica inferiores e superiores na vida brasileira. As experiências em campo e as narrativas de moradores locais suscitaram-me a problematizar este desvalor e inexistência de certos segmentos sociais considerados inferiores nesta hierarquia valorativa à brasileira - no caso, aqueles em condição de pobreza residentes nas periferias da cidade banalizados, destituídos de direitos, fabricados como suspeitos em potencial, enredando-os em teias materiais e simbólicas, que parecem fragilizar o mútuo reconhecimento, a organização política e o agir coletivo em sua própria defesa.

Em suas micro táticas de desprender- se do desvalor do pobre (SOUZA, 2006) e das estigmatizações sócio territoriais que sobre estes recaem em tempos contemporâneos, residentes das margens das margens do Grande Bom Jardim travam, assim, lutas de classificação entre seus (des) iguais. Além da (re)classificação estabelecida entre quem nega a figura do pobre - nas significações de uma versão da pobreza individualizada11 - outra micro tática distintiva ganha relevância no universo simbólico de meus narradores: uma (des) classificação hierárquica dos pobres em seus territórios vividos. Quando a nomeação de pobre e a situação de pobreza vem admitida como auto referência por uma parcela dos residentes, o recurso às subclassificações - e à comparação a um pior que eu - aparece nos discursos com bastante recorrência. E desdobram-se em práticas sociofóbicas locais de evitação, distanciamentos mútuos e distinções sociais internas, bem como em transferência de estigmas sócio territoriais. As (re) classificações locais assumem, desta feita, a forma de hierarquização social dos pobres, a demarcar fronteiras simbólicas, com implicações reais, entre (des)iguais próximos-distantes em seus territórios vividos e circunvizinhos.

Em suas lutas simbólicas nestas margens urbanas, os (as) interlocutores (as) auto referenciados (as) pobres fabricaram classificações hierárquicas para nomear a si e aos outros residentes. Destaco três categorias nativas recorrentes em seus discursos, que enunciam diferenciadas configurações de pobres em suas experiências da pobreza nos territórios estigmatizados do Grande Bom Jardim, a saber: pobres; pobres dos pobres e pobres que apelam para o pior12. São significadas de forma relacional e hierárquica entre os residentes destes espaços urbanos, demarcando posições morais desiguais, quais sejam: a de superioridade conferida aos pobres; a de liminaridade adjudicada aos pobres dos pobres; e a posição considerada mais desqualificada e inferior imputada aos pobres que apelam para o pior. A atribuição de uma destas designações-posições aos moradores tangencia a símbolos materiais e imateriais de distinção e/ ou de estigmatização sociais tomados no plano individualizado e grupal. A presença e/ou ausência de tais símbolos são usados para fins de classificação, comparação, aproximação e/ou distanciamento social entre os (des)iguais nos micro contextos de seus territórios vividos e/ou circunvizinhos.

As três categorias nativas supracitadas - e suas subclassificações constituídas pelos (a) narradores (as) - circunscrevem uma dupla tarefa: primeiro, permitir os processos correlacionados de identificação e distinção sociais entre residentes nestas margens urbanas; e, segundo, simultaneamente garante, a quem classifica, distanciar-se das figurações públicas negativadas dos ditos pobres das periferias, reproduzidas na vida brasileira destes anos 2000, e em suas conformações em âmbito local. Permite transferi- las para outras pessoas e lugares considerados geograficamente próximos e socialmente distantes. Em ambas, (re)produzem fronteiras simbólicas, com efeitos sociais reais nestas margens urbanas, dentre os quais destaco a agudização de processos de estigmatizações e as segregações sócio-territoriais fabricados entre estes (des)iguais.

No intuito de interpretar criticamente esta dinâmica relacional hierarquizada entre os pobres locais, retomo fragmentos de vidas contadas de interlocutores (as), enfocando, neste artigo, as categorias nativas de mais pobres e pobres dos pobres inscritos em seus esquemas classificatórios estruturantes de uma versão hierarquizada da pobreza urbana neste século XXI na metrópole Fortaleza.

2 DENTRE OS “POBRES”, AS EXPERIÊNCIAS DOS “MAIS POBRES”: resignar-se à “precisão” e o sonho com uma vida para o consumo

A vida narrada de D. Nina13, 43 anos, residente em território estigmatizado do Grande Bom Jardim, a aproxima da subcategoria dos mais pobres, com traços emblemáticos da condição de outros (as) interlocutores (as) desta pesquisa. Ela encarna a figura do pobre autodeclarado, com esperanças de ter uma vida melhor e que projeta sobre o consumo os seus desejos de satisfação no presente. A narrativa de D. Nina ajudou-me a refletir sobre outros sentidos do ser pobre, na peculiaridade dos ditos mais pobres, fabricados nestas margens urbanas de forma relacional.

Em seu ponto de vista, a condição de pobreza material assume perspectiva naturalizada e de destino inevitável, inserindo-se em um lugar de inferioridade na hierarquia social local. Nosso diálogo foi acompanhado por seu filho André, que impôs sua presença vigilante durante toda a entrevista gravada que realizei com D. Nina na casa da família, em 2010. Sua versão singular da pobreza e do ser pobre foi contraponto significativo. Sob óticas distintas, mãe e filho deixaram entrever um sentido comum à figura do pobre: aquele sem acesso aos bens de consumo e símbolo de fracasso social do qual se busca distância. Ainda que somente no nível discursivo. Histórias vividas de precisão e vidas narradas de esperança de ter vida boa enlaçadas neste presente incerto e inseguro inerente às condições de precariedades socioeconômica e civil experienciadas nas periferias de Fortaleza nestes tempos de capitalismo contemporâneo, que entrelaça a acumulação flexível com o projeto político-cultural transnacional neoliberal.

D. Nina, 44 anos, também uma migrante do interior do Ceará, como tantas outras residentes do Grande Bom Jardim, casada, oito filhos (seis sob sua responsabilidade), ensino fundamental incompleto, desempregada, só possui uma única fonte de renda regular: o Programa de Transferência de Renda (PTR) Bolsa Família, do qual é usuária desde 2007. Na estreita casa de três cômodos, residem o casal e quatro filhos, em idades entre oito e dezesseis anos. As outras duas filhas (crianças) estão em colégio interno. Encontram-se longe da família. Entretanto, segundo acredita esta mãe esperançosa, mais próximas de um futuro melhor porque terão estudo e profissão. O companheiro de D. Nina encontra- se em situação de desemprego e faz biscate como reciclador ou outros bicos para ajudar no sustento da família. A renda familiar - inferior a um salário mínimo - resulta da soma do dinheiro do Programa Bolsa Familia com os parcos e incertos recursos financeiros conseguidos pelo companheiro em seus trabalhos precarizados e informais.

Entre 2009-2010, esta senhora participava do curso de corte e costura do Projeto de Inclusão Produtiva para Mulheres do Programa Bolsa Família, operacionalizado pela Prefeitura Municipal de Fortaleza (PMF), nos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS). Não chegou a concluí-lo e nem realizou seu sonho enunciado de “[...] ter a profissão de costureira.” (Informação verbal)14 a partir da qual, idealizava conseguir suprir suas necessidades mínimas de sobrevivência - a alimentação regular é considerada a principal - e poder comprar e pagar pelo que deseja possuir. Enfatizou sua vontade de ter uma profissão e realizar seu maior sonho de ser costureira para sustentar a família. Ao falar da participação neste curso de qualificação profissional e a possível inclusão no mercado de trabalho, deixou entrever seu medo de término do Programa Bolsa Família, já que dele, enfatizou, depende a sobrevivência de sua família.

Em várias passagens de seus relatos, reafirmou a centralidade do Programa Bolsa Família na sua vida, por causa da precisão material. Daí, não negar traços que, segundo D. Nina, são definidores de sua inserção e permanência neste programa social governamental: ser pobre, desempregada, sem profissão e sem estudo, com muitos filhos, muita precisão, baixa renda (com renda inferior a um salário mínimo). Assim, o Programa Bolsa Família seria, segundo ela, uma grande ajuda, que “[...] a Deus e ao Lula.” (Informação verbal)15, em referência ao ex-presidente da república Luís Inácio Lula da Silva, a quem atribui a criação e sua inserção neste programa social. Esta sua única renda regular lhe possibilita comprar alimentação, gás, coisas para as crianças e, quando possível, pagar a água. A energia elétrica é “[...] de gambiara!” (Informação verbal)16. Nesta ótica singular, este programa social vem personalizado e restrito a uma grande ajuda recebida não do Estado, mas do Lula, o único presidente a andar pelas ruas do Grande Bom Jardim. O voto declarado neste ex-presidente e/ou em seus candidatos seria sua maneira de retribuir a ajuda recebida.

Em seu relato, embora minha interlocutora declare-se reiteradamente pobre pela precisão material, enfatizou sua imagem de mãe-responsável pela família e pela casa, mostrando-se uma cumpridora das condicionalidades exigidas pelo Programa Bolsa Família e disposta a trabalhar. D. Nina repunha o discurso da grande precisão, auto afirmando-se uma “[...] pobre mesmo.” (Informação verbal)17, merecedora da ajuda do Estado para sobreviver e cumpridora das regras institucionais exigidas para sua permanência neste programa social. Em consonância, assim, com a tendência mundializada de wokfare18 presente no campo das políticas públicas sociais, com foco nos programas sócio assistenciais destinados àqueles em situação de pobreza (WACQUANT, 2007, 2008). E, em paralelo, tentava afastar qualquer traço de uma abominada pobreza de espírito e da imagem estigmatizada de parasita social criticada em tempos neoliberais associada à figura do pobre que vive, supostamente, às custas de dinheiro público, sem necessidade e sem esforço pessoal para superar aquilo que denominam de sua pobreza material.

Havia sido apresentada à D. Nina por Ariadne - minha interlocutora-chave em um dos territories locus de pesquisa no Grande Bom Jardim - em uma de minhas visitas preliminares a este território. Mas foi esta a primeira ocasião em que visitei sua casa, com o objetivo de realizar a entrevista gravada. D. Nina reside com sua família na fronteira dos bairros Bom Jardim e Granja Portugal faz trinta anos, atualmente, em casa própria construída em terreno invadido. Sua residência localiza-se em área com parca infra- estrutura urbana, em uma rua considerada das mais perigosas do Grande Bom Jardim - em um trecho popularmente chamado de Cotovelo da Morte. Esta família encontra-se enredada no ciclo de homicídios, registrados no período de 2008 a 2012, nesta região.

O filho André, à época, com dezesseis anos, era usuário de drogas e com algumas entradas- saídas na Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA) e em Centros Educacionais de Privação de Liberdade de Fortaleza, cumprindo medidas sócio-educativas por roubos, assaltos, assassinato e tráfico de drogas. Tornou-se um dos bandidos conhecidos na área, nos anos subsequentes à minha chegada a este território. A hospitalidade e postura envergonhada e resignada com que me recebeu D. Nina contrapunham-se à altivez e ao olhar inquisidor, desconfiado e vigilante deste jovem, que se pôs sentado ao nosso lado, logo que me acomodei em uma desgastada cadeira de madeira na mínima saleta de entrada da casa e saquei meu Mp3, após lhe(s) falar de meus objetivos desta pesquisa. Situação de entrevista posta e imposta, que terminou sendo interessante neste desafio de interpretação das experiências da pobreza nestes espaços urbanos.

Ao contrário de interlocutores (as) anteriores, ora nomeados de batalhadores(as)19, os que negaram a existência de certa versão de pobreza/pobre ou admitiram uma pobreza tolerável em seus territórios vividos, os sentidos do ser pobre aparecem para esta senhora como algo colado à sua própria existência. Uma marca identificatória da qual parece não conseguir escapar e tampouco considera abominável, segundo anunciou de ímpeto em determinado momento de seu relato:

Quem é pobre, tem que ser pobre, né? Eu não queria ser pobre, queria ser bem de vida. Mas a gente é pobre. Porque a gente não pode dizer que é rica ou é rica. Tendo a riqueza de Deus, é o que me importa. Eu me considero pobre. É bom ser pobre. Não é ruim não! Eu já nasci pobre! Agora [...] (Informação verbal)20.

As expressões “[...] eu sou pobre, é bom ser pobre, eu já nasci pobre.” (Informação verbal)21 parecem denotar certa conformação, inserção e fixação em um lugar social naturalizado em seu discurso. Identificação íntima com a figura do pobre, que parece inscrita e manifesta em seu corpo extremamente magro e franzino, cabelos desgrenhados, na pele branca queimada de sol, ressecada e envelhecida, na boca desdentada, nas vestimentas (blusa e saia) surradas e puídas, nos chinelos desgastados. Durante a entrevista, manteve uma atitude envergonhada, encarnada no olhar e na cabeça baixos, no corpo curvado para frente quando sentada diante de mim, com as esquálidas e trêmulas mãos postas sobre os joelhos encolhidos, uma expressão facial cansada e desanimada a manifestar, raramente, um meio-sorriso sem dentes. Seu rosto revelava um envelhecimento acelerado, incompatível com seus 43 anos, que ela assume e tenta justificar ao declarar:

[...] eu estou numa certa idade ainda, mas não é por causa da idade não. Pra mim, eu já estou velha. Eu sou assim por causa da gente passar muita preocupação, de filho. Eu sou assim, é meu corpinho mesmo [...] Eu já estou me achando velha! (Informação verbal)22.

Falou da precisão com dificuldade, pausas, silêncios e gaguejos, por mais que repetisse eu sou pobre e não se lamentasse por esta condição. A fisionomia e postura de D. Nina me faziam lembrar a imagem emblemática de uma retirante da seca, recém-chegada do interior do Ceará, nos idos de 1950 a 1980. Mas ela já está em Fortaleza, especificamente neste território do Grande Bom Jardim, faz trinta anos. Imagem identificatória e persistente em sua vida narrada: o pobre em sua versão do necessitado-carente, em sua sina diária para sobreviver na miséria (TELLES, 1999).Aprecisão parece material e imaterial, posto que a antecede e a atravessa como pessoa, fixando-se em sua auto- imagem do ser pobre. Se ter a riqueza de Deus é o que importa, segundo afirmou, a própria precisão, apesar de reconhecida, é sinônimo de vergonha pessoal se posta em público. Por isto, a mantém na esfera privada ou provada e exibida, quando exigida pelo Estado para ter acesso aos serviços sócio-assistenciais, com foco no Programa Bolsa Família. Expor-se ao Estado e às suas instituições sociais é considerada a via menos desonrosa, que expor sua pobreza material diante dos vizinhos. Nos momentos de necessidade, afirmou, “[...] só conta com Deus mesmo.” (Informação verbal)23.

A narrativa de D. Nina denota a vergonha da precisão entrelaçada à vergonha da dependência associada à figura negativada de pobre-necessitado- dependente ainda recorrente no imaginário fortalezense. Se ajudar os outros é vista como uma expressão da riqueza do pobre, ser ajudado por alguém em situação dita superior ou mesmo por um igual pode significar, para quem a recebe, uma humilhação pública a ser evitada. A condição social da pobreza material vem metamorfoseada em condição individualizada de quem a vivencia, creditada à incapacidade e à culpa do indivíduo por não conseguir superá-la por seus próprios méritos. Precisar e recorrer à ajuda de terceiros para sobreviver, poderia denunciar, nesta versão de pobreza, uma condição de fracasso individual e social por não conseguir satisfazer suas necessidades mínimas de sobrevivência e pode despertar suspeita social.

Sua narrativa parece compartilhar da tendência de hiperindividualização ora identificada nestas experiências da pobreza nas margens urbanas. E, de forma contundente, parece anunciar o predomínio da construção simbólica do Eu onipotente e auto-suficiente - imperativos do indivíduo moderno exacerbado – hiperindividualista24 - no cerne de uma tendencialmente cultura narcísica25 contemporânea - que celebra, junto com a exacerbação ressignificada de autonomia/independência/responsabilidade e culpabilização individual, uma vergonha da dependência com relação aos outros e uma irresponsabilidade com relação aos seus destinos comuns que se individualizam.

Afinal, quem hoje se assumiria numa condição de fragilidade, de dependência, de necessidade com relação aos outros plurais, em meio a uma vida cimentada por ideologias de busca desenfreada do sucesso e da fama; e fundada em um sentimento coletivo de inveja social que alimenta o desejo de consumo, os (des)valores de concorrência e competitividade, a fim de ocupar a posição de quem estiver no topo da hierarquia social e do acesso ao hiperconsumo como sua referência? Quem poderia hoje construir uma narrativa partilhada de seus supostos fracassos em meio a relações sociais alicerçadas na ideia de que o vencedor leva tudo e ao perdedor resta a vergonha de seu fracasso e a culpa por uma suposta incompetência frente às oportunidades do livre mercado? Nesse sentido, concordo com Sennett (2000), a vergonha da dependência pode contribuir com o esgarçamento dos vínculos sociais, com a corrosão da confiança mútua e, por conseguinte, das possibilidades de construir saídas coletivizadas, no caso dos ditos pobres, diante da situação comum de pobreza material. Segundo alerta este autor:

Um acentuado fracasso é a experiência pessoal que leva a maioria das pessoas a reconhecer que a longo prazo elas não se bastam [...] Uma visão positiva dos próprios limites e da dependência mútua parece ser mais da área da ética religiosa que da economia política. Mas a vergonha da dependência tem uma consequência prática. Corrói a confiança e o compromisso mútuo, e a ausência desses laços ameaça o funcionamento de qualquer empreendimento coletivo [...] Restaurar a confiança nos outros é um ato reflexo; exige menos medo de vulnerabilidade em nós mesmos. Mas esse ato reflexo tem um contexto social. As organizações que celebram a independência e a autonomia, longe de inspirarem seus empregados, podem despertar esse senso de vulnerabilidade. E as estruturas sociais que não promovem positivamente a dependência dos outros numa crise instilam a mais neutra e vazia falta de confiança. (SENNETT, 2000, p. 168, 169- 170, grifos do autor).

Nas experiências deste viver em territórios estigmatizados do Grande Bom Jardim, meus interlocutores deixam entrever em suas narrativas uma tendência à fragmentação social e reclusão aos seus espaços domésticos - esboçada na máxima do cada um nas suas casas - como espaço privilegiado para lidar com necessidades comuns percebidas e vividas como individuais. E, em meio ao esgarçamento do micro tecido social, apostam em saídas cada vez mais individualizadas e privatistas. Dentre estas, a perspectiva da satisfação das necessidades materiais pela via do consumo se põe no horizonte de sentido destes ditos pobres urbanos na contemporaneidade que desejam ser bem de vida, expressão traduzível na expressão comprar e ter como pagar o que a gente tem vontade.

No meio do relato de D. Nina, momento em que afirmou “[...] não, não é muito ruim não ser pobre. É bom ser pobre. Eu já nasci pobre. Agora [...] (pausa).” (Informação verbal)26, seu filho adolescente (André) interferiu, antecipando-se à fala de sua mãe: “Ser pobre é que você não pode comprar, não pode desejar [...]” (Informação verbal)27. E retornou ao silêncio anterior, mantendo-se na sala a observar e escutar nossa conversa. Após esta interrupção, D. Nina continuou sua narrativa, em suposto contraponto à fala do filho, quase uma forma encontrada, naquele momento, para lhe falar de sua experiência vivida de pobreza, de seu sonho de ser bem de vida e poder comprar o que deseja, enfatizando os caminhos que qualifica moralmente superiores: a ajuda de Deus (um milagre divino) e o trabalho honesto, tendo uma profissão. Mais uma vez, a necessidade material, admitida e tolerada, exige o esforço e o sacrifício individualizado para enfrentá-la e, talvez, superá-la, reforçando a versão individualizada e privada de significar a própria condição de pobreza material. Em contraponto à persistente pobreza e condição de pobre admitida, valorizou a riqueza advinda de Deus e a riqueza dos pobres - a disposição em ajudarem-se mutuamente - as únicas consideradas possíveis e desejáveis para ela.

De fato, a perspectiva de vida para o consumo - o poder comprar, poder pagar, ter crédito e ser, assim, reconhecido socialmente - permeia o imaginário destes dois interlocutores: o filho, a expressa em sua revolta; a mãe demonstra este desejo de maneira velada na sua esperança de ter vida boa e na sua vergonha da pobreza material. A narrativa de D. Nina deixa entrever uma tensão permanente entre a aceitação/resignação desta pobreza e o desejo de ter uma vida boa, mediante o acesso a bens de consumo. Afirmou a pobreza numa dimensão naturalizada e destino inevitável, associada à impossibilidade ou dificuldade de ter acesso ao consumo de bens desejados (comprar/ consumir bens e poder pagar). Neste ponto de vista, ser pobre traduz-se em não poder comprar as mercadorias desejadas. É, sobretudo, estar na posição de quem não pode obtê-las e consumi-las no momento desejado ou de não conseguir pagá- las, tornando-se um endividado e também um socialmente desacreditado (sem crédito).

A intervenção do filho adolescente nesta entrevista abriu a possibilidade de refletir sobre a associação tensa entre pobreza e não acesso ao consumo, que parece recorrente no imaginário de parcela da(s) juventude(s) contemporânea(s) residentes das periferias de nossas cidades. Para este jovem, a pobreza os coloca numa impossibilidade não só de comprar, mas mesmo de desejar (centrado nos bens de consumo), já que não podem consumir os símbolos de distinção social ofertados e estimulados pela sociedade de consumo. Por terem restrições de capital - econômico, cultural e simbólico - permanecem presos a um lugar (BOURDIEU, 1997) - físico e social - e portam símbolos de estigmas visíveis e invisíveis. Dentre estes símbolos, a pobreza material persistente e o local de moradia nas periferias, especificamente em favelas ditas perigosas do Grande Bom Jardim, parecem estruturantes na produção de sua identificação com esta figuração singular do pobre da periferia ou da atitude de dela tentar afastar-se.

A narrativa de vida deste jovem, que associa ser pobre e desejar sem poder consumir, encarna a construção de saídas (táticas) pelas vias ilegais e/ou ilícitas para satisfação dos desejos de consumo: aos dezesseis anos havia praticado furtos, roubos, assaltos e assassinato, encontrando- se envolvido, diretamente, com o narcotráfico local. Posteriormente, afirmou-se, para usar uma expressão nativa, na carreira de bandido, em meio a riscos permanentes e com a possibilidade real de uma vida curta, mas convidativa pela possibilidade de acesso ao mundo do consumo e às suas insígnias de distinção e reconhecimento sociais. Ao refletir sobre os percursos de outros jovens pobres destas periferias - com os quais dialoguei durante o trabalho de campo - arrisco a falar de uma busca de identificação e mimetismo em termos dos padrões de vida das camadas mais elevadas da população, na perspectiva de sair da invisibilidade social e do lugar social de pobre e/ou sentir-se supostamente incluído. Uma inclusão imaginária pela via do consumo (MARTINS, 1999) pode emergir para estes ditos jovens pobres da periferia como a possibilidade ambígua de incluir-se, de forma precária e/ou ilegal/ilícita, numa sociedade marcada pelo acesso ao consumo como registro de seu suposto lugar no mundo social.

Nesse sentido, destaco as formas de inclusão marginal, analisadas por José de Souza Martins (1997), ao referir-se ao narcotráfico e às redes de exploração sexual que arregimentam, sobretudo, jovens das camadas pobres residentes nas periferias das cidades brasileiras. As formas de inclusão precária e marginal colocam-se no contraponto da imagem negativada da pobreza nesta sociedade de consumo e de estímulo ao acesso ao mundo do consumo como algo supostamente ampliado para todas as classes sociais. Para além do direito ao trabalho, as perspectivas de sentir- se parte desta sociedade brasileira dos anos 2000 têm apontado o consumo como via de inserção social (MARTINS, 1997; CASTEL, 2001, 2005). As possibilidades de acesso ao consumo inscrevem- se nas fronteiras líquidas e borradas do legal/ ilegal e/ou do lícito/ilícito, presentes em nossas periferias, conforme as análises fecundas de Telles (2010), encontrando ressonância específica nestes territórios estigmatizados do Grande Bom Jardim.

Ao conversar e entrevistar outros jovens residentes nestas margens urbanas - envolvidos e não envolvidos diretamente com atos criminosos - suas narrativas aproximam-se da perspectiva de André e parecem delinear a busca por conquistar um outro lugar social que os distanciem das imagens estigmatizadas projetadas sobre os pobres da periferia. Se o projeto de integração social pela via dos direitos de cidadania social no campo da política - que se sustentava na possibilidade do direito ao trabalho protegido e ao protagonismo no espaço público - parece ter falhado para a maioria da população residente nas margens, o recurso às práticas ilegais/ilícitas se impõe com força e o uso da violência física manifesta-se como modo recorrente de resolução de conflitos pessoais, sociais e políticos nestes espaços periféricos de Fortaleza.

D. Nina, que teve outras experiências do ser pobre na periferia e tem vivenciado transformações no Bom Jardim desde os anos 1970, considera, de um lado, ser bom ser pobre e destaca a solidariedade (a ajuda prestada a quem precisa) estabelecida por aqueles em uma mesma condição de precisão material. De outro, todavia, falou de sua vergonha da precisão e da dependência, retomando para si a responsabilidade individualizada pelo sucesso ou fracasso social de superar a pobreza material. Em sua vontade declarada de ser bem de vida, esboça as suas saídas individuais: por meio da realização do seu sonho de tornar-se costureira, mais uma vez reiterando a ética do trabalho, e satisfazer as suas necessidades, valorizando a via do consumo; seja por meio da graça de Deus, atribuindo a possibilidade de sair da condição de pobre ou mudar de vida só mesmo por meio de “[...] um milagre da ajuda de Deus” (Informação verbal)28, caso seja uma pobre merecedora.

Em síntese, os pontos de vista de D. Nina e de seu filho André delineiam experiências geracionais diferenciadas de (sobre)viver na ou à pobreza entrecruzada e tensionada pelo desejo fabricado e declarado de consumo em tempos contemporâneos. Apontam para distintas significações dos sentidos do ser pobre e das micro táticas construídas do viver nestas margens urbanas e encontrar um lugar social em meio ao embaralhamento das fronteiras reais e simbólicas entre legal-ilegal/lícito-ilícito (TELLES, 2010). A presença destes mais pobres em nossas periferias talvez encarne a assombração viva a lembrar-nos de que as condições de precariedade estão em toda parte e ultrapassá-las pode depender bem mais do que de escolhas hiperindividualizados e desejos, por vezes, frustrados de hiperconsumo (LIPOVETSKY; SERROY, 2011), que quer nos fazer crer o projeto político-cultural neoliberal transnacionalizado e sua versão à brasileira.

3 SOBRE O “POBRE DOS POBRES”: expressão máxima do “fracasso” e da “nulidade” em tempos contemporâneos?

Nesta perspectiva da (des)classificação hierárquica dos pobres nas margens urbanas, identificada nas narrativas de alguns dos meus interlocutores, há recorrência a um mais pobre do que eu com quem se comparar, demonstrar sua pretensa superioridade moral e material e tentar aliviar, simbolicamente,a experiência cotidiana de sobreviver na pobreza em suas dimensões atuais de inseguranças, incertezas e riscos generalizados e permanentes. Produzem, portanto, outros (des) iguais sobre os quais gestam suas possibilidades de limpeza moral e transferência dos estigmas atribuídos aos pobres. Assim tecendo suas fronteiras simbólicas, estes (as) moradores (as) fortalecem e (re)produzem hierarquias sociais e isolamentos das margens sobre as margens.

Abaixo do pobre estaria, nesta lógica hierárquica, o pobre dos pobres. Constitui-se em figura negativada, símbolo do fracasso e da nulidade absoluta ora atribuído à responsabilidade individual, expressivo de uma pobreza de espírito, dos desgraçados da sorte, dos sem esperança e sem as graças de Deus; ora reportado à dimensão social dos excluídos de tudo e dos sem lugar no mundo, dos doentes a precisar de tratamento especializado, segundo os termos nativos. A categoria pobre dos pobres expressa as duas dimensões abominadas da pobreza nestas margens: a material absoluta e a de espírito. Versões negadas tanto pelos auto referenciados pobres, como pelos que não admitem esta autoimagem, os que se nomeiam trabalhadores- batalhadores, os humildes e/ou os de classe média baixa. A rigor, encontrei variações internas desta categoria nativa que delineiam tentativas de distinções social e moral estabelecidas por parcela dos (as) narradores (as) desta pesquisa.

Primeiro, o pobre dos pobres encarna a nulidade extrema, sendo designado ainda de pobre demais, verdadeiro pobre, pobre, pobre, pobre e o pobre mesmo. Nomeações locais usadas como sinônimas e que se reportam à figura dos mendigos, aos moradores de rua e/ou ainda aos catadores de materiais recicláveis (os recicladores). Nesta variação, o pobre dos pobres caracteriza-se pela pobreza material absoluta traduzida na falta/ privação naturalizada de elementos qualificados indispensáveis à sobrevivência mínima satisfatória: a alimentação, a moradia, o trabalho. Do ponto de vista de quem assim os classifica, estes pobres dos pobres estariam sujeitados a situações limites e degradantes de existência, quais sejam: a fome sistemática; a moradia de rua; a mendicância e/ou a reciclagem para sobreviver. São alvo de sentimentos de comiseração e considerados merecedores de ajuda de terceiros: os pobrezinhos ou pobres coitados na linguagem nativa. Encarnam a figura moralmente inferiorizada do pobre-necessitado- dependente da ajuda de outrem para sobreviver na miséria e a rua é o espaço que lhe resta.

A segunda variação da classificação de pobre dos pobres agrega os ditos pobres demais ou pior pobre que usam drogas ilícitas (narcóticos) ou lícitas (bebida alcóolica). Estes tipos compõem uma franja menor da população residente em seus territórios vividos. Diz respeito àqueles que se desfazem de seus bens materiais, mediante a venda ou troca por mais drogas, com vistas a pagar suas dívidas com os donos das bocas de fumo29 e garantir a manutenção de seu vício. É fato conhecido que deixar de pagar dívidas de drogas, sobretudo nestas margens urbanas, pode resultar em cobranças violentas para o devedor, dentre as quais destaco: espancamentos; expulsões do local de moradia; se tiver casa própria, pode ser apropriada pelo traficante como pagamento da dívida ou vê-la criminosamente incendiada; ou mesmo o extermínio sumário do devedor e/ou de algum familiar em seu lugar, caso não seja encontrado. Estes pobres dos pobres sucumbem à situação não só de necessidade material, mas de dependência em relação aos outros para sobreviver. Inclui-se, aqui, tanto o recurso à atividade da mendicância, como a necessária obediência às regras do narcotráfico local, dentre as quais o pagamento de suas dívidas pela droga consumida.

Nesta mesma categoria, os (as) interlocutores (as) inserem os (as) alcoólatras, que também desfizeram-se de seus bens materiais e/ ou perderam oportunidades de trabalho em função do alcoolismo. Trata-se de uma situação limite atribuída, reiteradamente, ao próprio indivíduo, que se tornou ou se acha em vias de tornar-se um pior pobre ou pobre demais por sucumbir ao uso de drogas lícitas e/ou ilícitas. Situação que nomeiam como cair nas drogas, ora indicativa de um declínio em sua posição social local. Não obstante as situações em que interlocutores (as) admitem a drogadição e/ou o alcoolismo como doenças e os usuários de drogas lícitas ou ilícitas como doentes, a merecerem tratamento especializado, as marcas da desqualificação social sobre estes projetadas não desaparecem.

A mais recursiva marca de descrédito social e moral projetada sobre o pior pobre/o pobre demais diz respeito à pobreza material absoluta emergir entrelaçada e creditada à sua pobreza de espírito. Assim, ora são culpabilizados por sua situação vivencial, ora considerados necessitados de comiseração e ajuda de terceiros. Os traços que caracterizam tal posição liminar de declínio e inferioridade relacional destes pobres dos pobres locais são, desta forma, materiais e imateriais, a saber: além de passarem privação material, faltam- lhes a fé em Deus, a esperança, a expectativa de uma vida melhor no futuro, a força de vontade para lutar, sentido de vida, perda do domínio sobre si, conforme salientaram os (as) narradores (as).

Na versão demoradores(as) de território estigmatizado do Grande Bom Jardim não envolvidos(as) diretamente com o mundo do crime30, o fato dos pobres dos pobres não recorrerem a atividades criminosas (ilegais/ilícitas) diante de suas condições de necessidade material e de vícios parece ser um dos elementos centrais para não serem incluídos na categoria nativa vagabundo/ perigoso. Vale salientar que os usuários de drogas não envolvidos diretamente com o crime também emergiram em algumas falas como uma categoria à parte, concebidos mais próximos do tipo cidadão quando agrega valores significativos em seu universo relacional - trabalho, família, casa própria e não envolvimento direto com o mundo do crime - sendo considerado um doente, pessoas que têm seus vícios ou pobre de outro tipo, a merecer um tratamento especializado. E, pelos mesmos motivos, são percebidos em posição moralmente superior na hierarquia local, em comparação a quem recorre a práticas criminosas relacionadas ou não ao uso de drogas lícitas e/ou ilícitas.

Todavia, não os resguarda integralmente de tornarem-se alvo de desconfianças, acusações, fofocas, descrédito social e moral por parte daqueles que tentam estabelecer fronteiras simbólicas em seus territórios vividos e, portanto, distinguem-se como socialmente superiores. Refiro-me aos auto nomeados de espírito batalhador, um trabalhador- batalhador, ou de classe média baixa, bem como os que se consideram pobres e ainda afirmam a ética do trabalho e a esperança de uma vida melhor no futuro. Sem desconsiderar que tal nomeação de pobre dos pobres vem creditada, via de regra, à pobreza material entrecruzada à pobreza de espírito. Mais uma vez, tentam distanciar-se com relação aos nomeados pobres de espíritos, estes símbolos de fracasso social e individualmente culpabilizados por sua pobreza material.

De fato, nenhum de meus quarenta e dois (42) interlocutores de pesquisa residentes em territórios estigmatizados do Grande Bom Jardim auto nomearam-se pobres dos pobres em quaisquer de suas variações ora enunciadas. Em seus lugares vividos, apenas duas moradoras foram classificadas de pobre dos pobres por mais de um (a) interlocutor (a). Todavia, estas duas moradoras, quando entrevistadas, auto nomearam-se distintamente: uma classificou-se humilde; a outra negou mesmo a alcunha de pobre, declarando sua fé em Deus, seu barraquinho de taipa e o não passar fome como suas marcas distintivas fundantes. Suas referências de comparação e de distinção social são tanto os pobres dos pobres - nas variações de privação absoluta e/ou de uso de drogas ilícitas - como os pobres que apelam para o pior, considerados aqueles diretamente inscritos no mundo do crime. A distinção, aqui, parece reiteradamente menos material do que moral.

Importa salientar que a busca pela distinção e discriminação sociais locais parece mais densa no caso das mulheres identificadas como pior pobre. Além da inserção no mundo do trabalho (formal/ informal/precarizado), a casa e a família são valores recorrentemente reafirmados pelas interlocutoras e, nestes moldes,constituem-se em símbolos de sua distinção social. Esta designação-posição envolve a centralidade atribuída às mulheres-mães-avós nestes territórios, responsabilizadas pelo cuidado com a casa e os (as) filhos (as), sobretudo, os jovens do sexo masculino, a fim de impedir que incorram na drogadição e/ou na criminalidade. Vigiá-los, mantê-los trancados em casa, conhecer e conversar com quem eles mantém relações de amizade e proximidade - para identificar quem são e até que ponto seriam más ou boas companhias para seus filhos - são micro táticas adotadas por estas mulheres na tentativa, por vezes frustradas, de evitar os envolvimentos diretos de seus filhos (as) com o mundo do crime. Fracassar, nesta tarefa, contribui para processos de discriminação local projetados sobre a mulher-mãe-avó e sobre sua família. Sobre a família pode recair a imagem considerada mais desqualificante nesta classificação hierárquica dos pobres locais do que a de pobre dos pobres: a dos pobres que apelam para o pior.

Em posição estigmatizada similar encontram-se as mulheres-mães-avós que, supostamente devido à drogadição, negam casa e família como valores, seja por negligenciá-los, em especial aos filhos nas fases da infância e/ou adolescência, seja por abandoná-los integralmente ao deixar a residência familiar e passar a habitar em outro local fixo ou nas ruas, (sobre)vivendo da mendicância e/ou da reciclagem.

Nesta perspectiva nativa, os pobres dos pobres locais ditos toleráveis - aqueles que ratificam a ética do trabalho e tornam-se merecedores de ajuda de terceiros - constroem fronteiras simbólicas tênues e flexíveis com relação aos pobres que apelam para o pior, havendo o risco anunciado de recorrerem a práticas ilícitas/ilegais para garantirem sua sobrevivência e/ou o acesso às drogas. Em posição de liminaridade estruturante, estes pobres dos pobres teriam que evitar misturar-se com os pobres que apelam para o pior, a fim de não ultrapassar as fronteiras simbólicas (e reais) e tornar-se um igual. A categoria nativa da mistura expressa-se na intimidade de convivência, com ênfase nas práticas de frequentar mutuamente suas residências e/ou saírem juntos; na cumplicidade na execução de suas práticas criminosas ou adotá-las como estratégia de sobrevivência e/ou acesso às drogas; no declinar no uso de drogas a ponto de abandonar integralmente a via do trabalho, suas famílias e/ou suas casas, adotando também as práticas criminosas de furtos, roubos, assaltos e/ou a comercialização de drogas ilícitas.

Envolver-se em práticas criminosas pode ser identificado como expressão da pobreza de espírito destes indivíduos outrossim considerados pobres de espírito baixo, condições negadas pela maioria de meus interlocutores que buscam assumir as imagens positivadas de trabalhador-batalhador, de humilde, de classe média baixa e/ou, mesmo, de pobre, todavia honesto, “[...] trabalhador, com fé em Deus e esperança no futuro”. No olhar destes (as) narradores (as), os inscritos nesta variação categorial de pior pobre encontram-se em ambígua proximidade relacional com os pobres que apelam para o pior em virtude do abandono e/ou flexibilização de seus vínculos com o trabalho como via fundante para escapar/sobreviver à pobreza material e sua vulnerabilidade de envolvimento possível com o mundo do crime, em especial, vinculando-o à dependência de drogas ilícitas.

Para sobreviver, garantindo seu sustento individual, de sua família e/ou o acesso às drogas, o pobre dos pobres pode recorrer a alternativas consideradas, moralmente inferiores e socialmente desonrosas, segundo esta hierarquia decrescente local, a saber: além de trabalhar de catador ou reciclador (de materiais recicláveis) e/ou pedir esmolas, inserir-se no mundo do crime. Ao incorrer nesta última situação - tornando-se um envolvido com o mundo do crime - o indivíduo resvala para a categoria nativa dos pobres que apelam para o pior, situada em posição considerada a mais inferior nesta classificação hierarquizada dos pobres locais, segundo as produções discursivas e experiências destes residentes nas margens de Fortaleza-CE. Eis outro aspecto significativo das dimensões sócio simbólicas da pobreza urbana contemporânea a ser abordada em momento posterior, para fins de deciframento crítico das mutações sócio antropológicas em curso em nossas margens e da (re)produção das desigualdades sociais neste modo de vida capitalista do século XXI e em suas particularidades brasileiras.

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Notas

1 Vale esclarecer que a pobreza urbana vem aqui reconhecida como expressão-limite da questão social, produzida e reproduzida na sociedade capitalista: fenômeno sócio histórico, portanto, vinculado originalmente à lógica exploratória e opressora do capital em termos do modo de produção e reprodução da vida social. Conforme salienta Ianni (1989), a mesma lógica produtora de desenvolvimento econômico constrói desigualdades constitutivas da questão social, que admite distintas configurações nas particularidades das formações sócio históricas e culturais. Nesta perspectiva analítica, compreendo que a pobreza ganha novas configurações e visibilidade pública nos anos 1990 e 2000, em meio ao seu adensamento no cerne do capitalismo contemporâneo em seus processos de mundialização. Acumulação flexível, reestruturação produtiva, reforma do Estado, desmonte dos sistemas de proteção social, destituição real e simbólica dos direitos sociais. Essas transformações do capitalismo contemporâneo remetem a uma ampla bibliografia, trabalhando eixos analíticos do debate atual: as metamorfoses do processo de acumulação do capital e seus rebatimentos no mundo do trabalho; a crise do Welfare State, as correlatas reformas do Estado e o desmonte dos sistemas de proteção social, assim como a destituição dos direitos sociais (HARVEY, 1994; MARX, 1997; SENNETT, 2000; TELLES, 1999; CARVALHO,2012a, 2012b). São transformações na civilização do capital que implicaram em complexificações e globalização da pobreza. Assim, a pobreza assume múltiplas configurações e representações presentes nos discursos midiáticos, políticos e acadêmicos. E caracteriza-se por sua pluridimensionalidade, portanto, considero indispensável apreendê-la a partir das significações e experiências de quem a vivencia cotidianamente em seus territórios vividos nas margens da metrópole Fortaleza-CE.
2 Adoto o termo margens urbanas por alusão às reflexões de Vera Telles (2010) para melhor explicitar os espaços produzidos pelos modos como as forças da ordem operam nesses lugares ditos periféricos, em práticas produtoras da figura do homo sacer em situações imbricadas nas circunstâncias de vida e trabalho dos que habitam esses lugares. A noção de margens torna-se relevante ainda porque possibilita a (re)construção do campo de pesquisa, o critério de pertinência etnográfica e o modo como se produz a trama descritiva da cidade que permita discutir a exceção que se tornou regra (AGAMBEN, 2004) e que, segundo Telles (2010), está posta nas dobras do legal- ilegal e das suas fronteiras borradas e embaralhadas que atravessam e ultrapassam as margens de distintas cidades contemporâneas.
3 Segundo Bourdieu (1996), as lutas simbólicas (lutas entre classificações ou lutas pela definição da identidade) traduzem uma dimensão singular das lutas de classe exercidas em propósito dos sentidos do mundo social e da definição dos princípios de divisão desta realidade. Consistem em “[...] lutas pelo monopólio de fazer ver e de fazer crer, de fazer conhecer e de fazer reconhecer, de impor a definição legítima das divisões do mundo social e, por essa via, de fazer e desfazer os grupos. O móvel de todas essas lutas é o poder de impor uma visão do mundo social através de princípios de divisão que tão logo se impõe ao conjunto de um grupo, estabelecem o sentido e o consenso sobre o sentido, em particular sobre a identidade e a unidade do grupo, que está na raiz da unidade e da identidade do grupo.” (BOURDIEU, 1996, p. 108, grifo nosso).
4 Assumo a noção de território vivido – também referenciado por lugar e espaço (SANTOS, 2008), para enfatizar a relação entre espaço e pessoas, território e população, no sentido de apreender a própria dinâmica do cotidiano vivido pelas pessoas, pelos moradores de um lugar e o uso/apropriação cotidiana e heterogênea que dele fazem, numa percepção da realidade complexa e indissociável entre objetos e sujeitos. As maneiras singulares de apropriação/uso do território pelos indivíduos criam distintas territorialidades, ou seja, encarnam a multidimensionalidade das vivências territoriais, as significações e ressignificações construídas pelos sujeitos em torno de suas experiências de vida em dado território. O território diz respeito, assim, não só aos aspectos objetivos da realidade vivida pelos indivíduos, mas engloba sua dimensão subjetiva, manifesta em seus sentimentos/emoções, desejos, expectativas, dimensões imaginárias e significações construídas na dinâmica complexa e heterogêneas das tramas das relações sociais nas quais se manifesta a possibilidade e imprevisibilidade do evento e, talvez, da reinvenção da vida cotidiana (SANTOS, 2008; KOGA, 2003; MAGNANI, 2002, 2008).
5 A região do Grande Bom Jardim - situada na zona sudoeste de Fortaleza-CE - é formada pelos seguintes bairros oficiais: Granja Portugal, Bom Jardim, Canindezinho, Granja Lisboa e Siqueira. Situada na Secretaria Executiva Regional V (SER V). É uma das áreas urbanas reconhecidas na cidade por seus elevados indicadores de violência urbana e com concentração de pobreza e extrema pobreza de Fortaleza-CE. Cabe salientar que os (as) moradores (as) desta região encontram-se submetidos (as) a processos de estigmatizações e segregações sócio- espaciais nesta metrópole.
6 Segundo Wacquant (2005), a estigmatização territorial consiste em uma modalidade específica de descrédito coletivo projetada sobre os locais de residência do novo precariado urbano, na fase atual da marginalidade avançada do capitalismo contemporâneo. Expressa uma das propriedades distintivas desta marginalidade avançada ora traduzida, segundo Wacquant (2005), em um novo regime de pobreza urbana e demarca novas formas de encerramento social excludente e de marginalização emergentes na cidade pós-fordista. O autor salienta o crescimento nos países avançados de bairros ou localidades publicamente reconhecidas como “[...] poços de perdição social e moral que inspiram medo e desprezo.” (WACQUANT, 2005, p. 172), diretamente projetados sobre os segmentos pauperizados neles residentes. O aviltamento do local de residência tem se transformado, recorrentemente, em aviltamento e descrédito de seus moradores. (WACQUANT, 2005; 2008).
7 Concebo a violência urbana na acepção desenvolvida por Machado da Silva (2008, 2009), ou seja, um conjunto de práticas sociais que adquirem sentido para os atores em suas experiências vividas na cidade, cujo núcleo de sentido consensual é o uso da força física no crime. Nas palavras do autor, a representação da violência urbana “[...] indica um complexo de práticas legal e administrativamente definidas como crime, selecionadas pelo aspecto da força física presente em todas elas, que ameaça duas condições básicas do sentimento de segurança existencial que costumava acompanhar a vida cotidiana rotineira: a integridade física e a garantia patrimonial.” (MACHADO DA SILVA, 2008, p. 36). A violência urbana, como representação coletiva, aponta agentes que são modelos de conduta violenta e uma vasta gama de práticas de violência. Saliento a existência de outras expressões da violência que atravessam o cotidiano dos moradores da região do Grande Bom Jardim e são tomadas por referência pelo Estado para demarcar os territórios de vulnerabilidade e riscos sociais (BEZERRA, 2010).
8 Áreas de risco geográfico são definidas segundo critérios físico-geográficos, a saber: inundações, alagamento, deslizamentos e desmoronamento. Nos três bairros escolhidos – Genibaú, Granja Portugal e Bom Jardim – destaco as seguintes áreas de risco com seus respectivos quantitativos de famílias atingidas: Comunidade do Capim (407), Maranguapinho II (1.516), Canal de Moçambique (107); Maranguapinho I (990); Canal Leste (784), Mela-Mela (Novo Mundo - 205) e Pantanal do Parque Santo Amaro (188). Dados relativos a novembro de 2008 fornecidos pela Guarda Municipal e Defesa Civil de Fortaleza – Coordenadoria Municipal de Fortaleza (BEZERRA, 2009).
9 Kowarick (2009) define favelas como ocupação de terra alheia, pública ou privada, cujas unidades habitacionais, barracos de madeira ou casas de alvenaria, estão presentes nas cidades brasileiras, muitas situadas nas chamadas áreas de risco geográfico ou áreas insalubres. Para Leite (2008), favelas envolvem distintos territórios de pobreza, tais como os conjuntos habitacionais, loteamento clandestinos e irregulares (as invasões), bairros pobres e periféricos. Sua tematização relacionada diretamente à violência, insegurança e medo iniciou-se nos anos 1980/1990, tomando por referência o Rio de Janeiro, mas extensivas a outras cidades brasileiras.
10 Apesar das limitações do uso do termo periferia, sobretudo em termos das estigmatizações sociais a que remete, optei por adotá-la como categoria relativizada, a partir da qual se torna possível falar da região do Grande Bom Jardim como margens urbanas de Fortaleza-CE situadas no tempo e no espaço. Periferia, aqui, é apreendida como configuração singular das margens da cidade, podendo ser tomada como fronteiras móveis, fluidas e deslocantes. Compreendo, assim, a necessidade de explicitar sinteticamente a gênese e significações da expressão periferia usual nos discursos cotidianos e recorrente na linguagem nativa de meus interlocutores de pesquisa para referir-se aos seus espaços de moradia, localizados na Região do Grande Bom Jardim. Periferia originou- se na América Latina e tornou-se mais usual a partir dos anos 1960 e 1970, sobrepondo-se e encarnando a complexidade de sentidos inscritos nas expressões subúrbio – de gênese norte-americana significativa do que cerca a cidade – e arrabal ou bairros degradados, com forte conteúdo negativo correspondentes a lugares empobrecidos, perigosos e considerados fora/externos das cidades. A noção de periferia, conforme salienta Lindón (2006), reportava inicialmente à dicotomia estanque entre centro/periferia, remetendo a linhas divisórias de espaços supostamente pertencentes a dois mundos sociais separados. A periferia emergia como a circunferência externa da cidade na qual estavam os pobres, os dominados, os despojados em distintas versões interpretativas. A partir dos anos 1970, a periferia tem sido assimilada como o lugar de residência dos segmentos populares, em especial com o processo de urbanização periférica, resultante da intensa migração da população rural para a área urbana e seu deslocamento sistemático do centro para as margens das cidades. A palavra periferia tem emergido nos discursos correntes por referência aos espaços situados no entorno ou na circunferência das cidades, marcadas pela miséria/pobreza e elevação dos indicadores de violência urbana, caracterizados por constituírem-se em ocupação ilegal de terra, precariedade dos serviços públicos ou de infraestrutura urbana, urbanização fora dos padrões vigentes, vinculado à noção de favela, traduzidos na definição oficial como aglomerados subnormais, conforme utilizado pelo IBGE. No presente texto, embora a categoria adotada seja margens da cidade, será utilizada a expressão periferia em referência aos relatos de seus moradores e às representações produzidas sobre seus espaços de moradia e sua localização na cidade. Saliento ainda que periferia é apreendida, aqui, como categoria relacional e móvel em relação ao centro, redefinindo-se nos contextos de experiência aos quais são remetidos (LINDÓN; HIERNAUX, 2004; LINDÓN 2007a, 2007b; 2008; TELLES, 2010; FELTRAN, 2011a; 2011b).
11 A versão individualizada e privatista de pobreza foi identificada no trabalho de campo junto a moradores de territórios estigmatizados da região do Grande Bom Jardim. Portanto, interpretar as experiências de pobreza neste século XXI exigiu apreender seus enraizamentos nos lugares praticados pelos (as) narradores (as) socialmente classificados (as) como pobres urbanos. Caminhei ao encontro das narrativas e experiências destes citadinos em suas lutas simbólicas e construções de micro táticas individualizadas e/ou grupais de distinção social em relação às produções discursivas estigmatizantes projetadas sobre os ditos pobres urbanos e seus territórios vividos. Dentre estas micro táticas, assinalo aqui uma versão individualizada e privatista de pobreza que se expressa nas diferenciações enunciadas nas categorias nativas de pobreza-precisão/necessidade material e pobreza de espírito. Versão que parece indicar tendências (neo) liberais de hiperindividualização e culpabilização do pobre por sua condição social, descompromisso com os assuntos públicos e descrédito na política, fortalecendo a perspectiva das saídas individualizadas versus as saídas coletivas nas tentativas cotidianas destes narradores para (sobre)viver nas margens urbanas nos anos 2000. Para melhor compreensão desta categoria (BEZERRA, 2015).
12 Os ditos pobres que apelam para o pior, por referência ao envolvimento direto com o mundo do crime nestes territórios estigmatizados, recebem outras nomeações específicas, dentre as quais destaco vagabundo e bandido, a serem abordadas na tese de doutoramento no item sobre as classificações hierarquizadas da pobreza urbana em territórios estigmatizados do Grande Bom Jardim em Fortaleza-CE.
13 Em consonância com a ética de pesquisa social, o anonimato e o sigilo das informações para fins estritos de pesquisa foram preservados. Nesta perspectiva, todos os nomes dos (as) interlocutores (as) foram substituídos por codinomes e todas as gravações em áudio foram realizadas mediante a conivência e autorização destes. No caso dos territórios nos quais realizei o trabalho de campo, optei por manter os nomes originais na versão tese. Todavia, evitando quaisquer possíveis localização dos interlocutores e somente em condições que resguardasse sua ampla segurança. Neste artigo, preferi omiti-los porque necessitariam ser melhor situados.
14 Depoimento da entrevista etnográfica de Dona Nina.
15 Depoimento da entrevista etnográfica de Dona Nina.
16 Depoimento da entrevista etnográfica de Dona Nina.
17 Depoimento da entrevista etnográfica de Dona Nina.
18 Segundo Wacquant (2008), o Estado neoliberal em tempos contemporâneos aciona dois dispositivos complementares e combinados de disciplinamento e controle do precariado urbano e seguimentos pauperizados residentes nas margens urbanas, a saber: de um lado, o workfare que consiste na configuração e implementação de programas assistenciais aos pobres, que fazem do recebimento um benefício pessoal condicional, que implica na aceitação de trabalhos mal remunerados e precarizados, ou se submetem às estratégias orientadas para o trabalho (qualificação profissional e moralização); de outro lado, a prisonfare, em analogia à workfare, designa programas de penalização da pobreza via o direcionamento preferencial e o emprego ativo da polícia, dos tribunais e das prisões (e suas extensões) no interior e nas proximidades dos bairros ditos marginalizados, nos quais residem o precariado urbano, ou seja, o proletariado pós-industrial em condições de precarização da existência. Workfare e prisonfare constituem-se em dois arranjos convergentes e complementares direcionados à regulação punitiva racializada dos seguimentos pauperizados e de seus territórios vividos. Conferir Wacquant (2008), e Bezerra e Carvalho (2015).
19 A categoria nativa de batalhador(a) traduz-se, na versão de meus interlocutores, na figura do indivíduo que tenta superar, por seus próprios méritos e pela via do trabalho, a situação de pobreza material e obtenção do acesso ao universo do consumo de mercadorias, esta expressão da promessa de felicidade e ascensão social no Brasil contemporâneo. Em seus discursos e práticas reiteram a ética do trabalho, o esforço individual e a visão prospectiva (a esperança no futuro), contando com a família como um suporte afetivo e financeiro nesta busca de ascensão pretendida. Na batalha da vida, estes interlocutores buscam tornarem- se vencedores sintonizado com o atual contexto político e cultural dos tempos de capitalismo flexível. Importa salientar que, guardadas as possíveis proximidades com as discussões de Souza e outros (2010) acerca de uma nova classe trabalhadora brasileira à qual nomeia de batalhadores, a categoria trabalhador/batalhador adotada nesta tese consiste em conceito de experiência próxima (GEERTZ, 2000) de meus interlocutores no micro contexto do trabalho de campo.
20 Depoimento da entrevista etnográfica de Dona Nina.
21 Depoimento da entrevista etnográfica de Dona Nina.
22 Depoimento da entrevista etnográfica de Dona Nina.
23 Depoimento da entrevista etnográfica de Dona Nina.
24 Segundo Lipovetsky e Serroy (2011), o individualismo traduz-se em um sistema de valores que põe o indivíduo livre e igual como valor central da cultura ocidental, fundamento da ordem social e política, referencial último da vida democrática. Afirmou-se a partir do século XVIII e ascendeu a princípio primeiro da ordem pluralista e liberal na Modernidade, consagrando os princípios da liberdade individual e da igualdade de todos perante a lei. Para os autores: “[...] enquanto o poder deve emanar da livre escolha de cada um e de todos, ninguém deve ser mais coagido a adotar esta ou aquela doutrina e submeter-se a regras de vida ditadas pela tradição. Direito de eleger seus governantes, direito de se opor ao poder estabelecido, direito de buscar por si mesmo a verdade, direito de conduzir a vida segundo a sua própria vontade: o individualismo aparece como código genético das sociedades democráticas modernas.” (LIPOVETSK; SERROY, 2011, p. 47). Concebem que vivenciamos, nas últimas décadas de desregulamentação econômico-política no capitalismo flexível, uma segunda revolução individualista demarcatória de um hiperindividualismo. Traduz um neoindividualismo de tipo opcional, desregulado, descompartimentado centrado na primazia da realização de si. Vivemos, nesta perspectiva, a época da vida à la carte de fabricação do homo individualis desenquadrado, supostamente liberto das imposições coletivas e comunitárias. Ser interpelado enquanto ser ativo de cuja ações poderão resultar o seu sucesso (um vencedor) ou o seu fracasso (um fracassado) na contemporaneidade.
25 Para Lasch (1990), a cultura do narcismo inaugura uma modalidade cultural na qual a subjetividade se concebe de maneira autocentrada, sem considerar a densidade da existência do Outro. O indivíduo narciso importa- se com o engrandecimento do Eu às custas do outro. Esse Outro é impelido à posição de objeto de gozo do narcísico. A concepção do desejo narcisista constitui-se fora da referência à alteridade, esvaziando a relação de responsabilidade do sujeito com o outro falante: este ser capaz de expressar, na esfera pública, suas aspirações, desejos e cultura.
26 Depoimento da entrevista etnográfica de Dona Nina.
27 Depoimento da entrevista etnográfica de Dona Nina.
28 Depoimento da entrevista etnográfica de Dona Nina.
29 As bocas de fumo são locais de comercialização direta de drogas ilícitas, chamadas, localmente, de bocadas.
30 Ao usar o termo mundo do crime, sigo a perspectiva adotada por Gabriel Feltran (2011a, p. 19) conforme a apreendeu em seu uso nas periferias da cidade de São Paulo: “[...] o conjunto de códigos sociais, sociabilidades, relações objetivas e discursivas que se estabelecem, prioritariamente, no âmbito local, em torno dos negócios ilícitos do narcotráfico, dos roubos, assaltos e furtos.”


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