Mesas temáticas coordenadas
Recepção: 04/04/16
Aprovação: 06/06/16
Resumo: O estudo é parte das discussões realizadas durante processo de doutoramento e objetiva analisar olhares de trabalhadores rurais maranhenses, que foram submetidos a regimes de trabalho escravo contemporâneo, acerca das representações midiáticas sobre a temática. Apresentamos aqui alguns caminhos percorridos para compreendermos a constituição das representações para os sujeitos a partir da mídia, e mais propriamente a partir do texto jornalístico televisivo. Neste sentido, situamos neste artigo os conceitos de trabalho escravo utilizados pela televisão na percepção do grupo de trabalhadores investigados.
Palavras-chave: Mídia, trabalho escravo, recepção.
Abstract: The study is part of the discussions held during the doctoral process and objective analysis, it aims to analyze looks of Maranhão's rural workers that have undergone contemporary slave labor schemes, about media representations on the subject. Here we present some paths taken to understand the constitution of representations for the subjects from the media, and more specifically from television news text. In that sense, we situate this article slave labor concepts used on television in the perception of the group of workers investigated.
Keywords: Media, slave labor, reception.
1 INTRODUÇÃO
O estudo é parte das discussões realizadas durante o processo de doutoramento1 e objetiva analisar olhares de trabalhadores rurais maranhenses que foram submetidos a regimes de trabalho escravo contemporâneo acerca das representações midiáticas sobre a temática. Apresentamos aqui alguns caminhos percorridos para compreendermos a constituição das representações para os sujeitos a partir da mídia, e mais propriamente a partir do texto jornalístico televisivo. Neste sentido, situamos neste artigo os conceitos de trabalho escravo utilizados pela televisão na percepção do grupo de trabalhadores investigados.
Neste contexto, percebemos as representações midiáticas constituídas por vários outros discursos institucionais e organizadas por uma racionalidade normativa, característica da própria mídia. Não excluímos, num primeiro momento, que as representações dos sujeitos também possam influenciar a mídia ou ainda se distanciar dela em alguns momentos, embora tenhamos o entendimento de que há discursos dominantes que podem suprimi- las, apagá-las ou, ainda, ressignificá-las.
Entendemos que as narrativas midiáticas constituem e desenvolvem um rico repertório de objetos, estímulos, sugestões, para a atividade de elaboração de imagens sobre si mesmo e sobre o mundo, já reconhecida como parte essencial dos modernos processos de construção da identidade (LOPES, 2002). Assim, como se reconhece o papel de instituições sociais, como família, escola e igreja, da nação, do pertencimento de classe, etc., na conformação de identidades, é mister que também se perceba e se investigue o papel da mídia nesse processo. E este é o nosso esforço neste trabalho, embora tenhamos o entendimento de que os sujeitos aqui investigados também possam operar com representações de outras instâncias sociais que ora se aproximam, ora se distanciam das representações midiáticas sobre trabalho escravo.
Vale destacar que os trabalhadores foram entrevistados durante trabalho de campo, realizado em Açailândia (MA), nas dependências do Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos de Açailândia (CDVDH/CB), em entrevistas individuais e coletivas (grupos de discussão), entre 2013 e 2014, período do trabalho de campo. Suas identidades são preservadas por questões éticas e de segurança para os sujeitos; portanto eles não são identificados nos relatos da pesquisa.
2 TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO
As terminologias trabalho escravo, escravidão contemporânea, trabalho degradante, trabalho forçado, servidão por dívida e ainda condição análoga à de escravo têm suas origens e histórias sociais2, embora se refiram a uma mesma situação, todavia, distinta da escravidão do período colonial e do contexto do tráfico negreiro no Brasil.
Tratamos aqui desta situação contemporânea de superexploração do trabalho e não temos a preocupação de aprofundar as nomenclaturas utilizadas pela Sociologia do Trabalho, uma vez que este estudo não se preocupa em discutir essa categoria de forma analítica. Chamamos, em geral, de trabalho escravo, podendo utilizar outras nomenclaturas para dizer a mesma coisa por questões de coesão textual no decorrer da escrita.
O trabalho escravo contemporâneo é datado no Brasil. A chamada escravidão contemporânea torna-se visível no Brasil ao final da década de 60, momento em que o país vivia o início do seu milagre econômico e a região amazônica tornava-se alvo de vultosos projetos de infraestrutura, visando à implantação de empreendimentos econômicos assentados na utilização predatória dos recursos naturais e da força de trabalho. José de Souza Martins (1994) considera a escravidão por dívida uma variação do trabalho assalariado, ocorrendo em situação de superexploração da força de trabalho, isto é, em condições em que a exploração do trabalhador é levada ao limite, colocando em questão a sua própria sobrevivência; e que se dá especialmente quando mecanismos de acumulação primitiva são incorporados no processo de reprodução ampliada do capital.
Neide Esterci (1994) chama a atenção para a constituição da dívida que adquire uma relevância singular no processo do referido trabalho escravo, visto que é utilizada como uma das ferramentas para manter o trabalhador preso ao seu local de trabalho. Neste sentido, a autora denomina como peonagem esta forma de subordinação do trabalho, distinta do assalariamento tipicamente capitalista. A categoria peão também é utilizada para designar trabalhadores que são contratados pelos intermediários, também chamados de empreiteiros ou gatos, e submetidos a trabalhos temporários em fazendas ou demais estabelecimentos. (MOURA, 2009).
A cobertura sobre o trabalho escravo contemporâneo na televisão brasileira também é datada. Embora o tema possa ter aparecido no telejornalismo nos anos 70 e 80, foi a partir dos anos 90, e mais propriamente a partir de 1994, quando o então presidente Fernando Henrique Cardoso reconhece publicamente que no Brasil, ainda havia trabalho escravo, que a mídia, e principalmente a televisão, se interessa em noticiar e acompanhar mais de perto este assunto. Este fato é visível quando buscamos essas notícias em arquivos de jornais impressos e das principais emissoras de televisão de canal aberto no Brasil. Nos anos 70 e 80, o assunto é abordado esporadicamente, e principalmente pautado pelo movimento social, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e as demais entidades do movimento social que atuam na temática dos direitos humanos. Mas a declaração do então presidente da República, nos anos 90, aliado ao fato de o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) formar um grupo móvel rural de fiscalização a partir de denúncias de trabalho escravo em 1995, começa a pautar a mídia de forma mais sistemática. Esse processo se fortalece nos anos 2000, e principalmente a partir de 2003, quando é lançado no início da primeira gestão do governo Lula, o 1º Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo e o tema do trabalho escravo contemporâneo passa a fazer parte das políticas públicas de governo. Neste momento, o tema também passa a ser noticiado com mais periodicidade na televisão.
De acordo com o MTE, desde 1995, em duas décadas de grupo móvel de fiscalização, foram resgatados quase 50 mil trabalhadores em condições análogas a de escravos no Brasil. De acordo com dados da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE), publicados pela Agência Brasil em janeiro de 2015, desde 1995, quando o país reformulou seu sistema de combate ao trabalho escravo contemporâneo, foram realizadas 1.724 operações em 3.995 propriedades e aplicadas multas indenizatórias cujo valor supera os R$ 92 milhões (RICHARD, 2015).
3 MÍDIA E SUJEITOS
Partimos do entendimento de Hall (2013) sobre o conceito de identificação, entendido como um processo de articulação; uma suturação sujeita ao jogo da diferença. Percebemos este movimento nas conversas com os entrevistados. Em vários momentos das falas, algo que lhes chamava a atenção nas reportagens tinha relação ou com alguma falta ou algum excesso nas representações percebidas por eles durante a assistência do material midiático exibido.
Às vezes a situação é mais precária do que as que passam aí. Eu mesmo já passei por essa situação e é difícil. Eu mesmo já fiz foi desmaiar de fome lá em carvoaria que eu fui parar em hospital. Essa situação é difícil de fazenda, carvoaria, um monte de lugar que às vezes a pessoa conta pra pessoa e quando chega naquela cidade, é outra. Oferece um valor pra pessoa e quando chega lá no serviço é outro valor. Aí te deixa sem água, sem comida, às vezes diz pro cara que vai dormir na rua, quando chega, dorme no meio do mato coberto de palha mesmo. É uma situação difícil, difícil demais o trabalho escravo. (Informação verbal)3.
No relato acima, o trabalhador se identificou com o que foi mostrado nas reportagens com relação à falta de infraestrutura dos locais de trabalho, mas afirmou que sua experiência foi ainda pior, com condições mais precárias do que as visualizadas. Esta afirmativa se referia a uma reportagem exibida pelo Fantástico, em 18 de março de 2009, e principalmente ao trecho em que o repórter descreve as situações encontradas nas fazendas fiscalizadas, mostrando imagens e conversas com alguns trabalhadores, como podemos acompanhar a seguir alguns trechos das entrevistas:
Repórter: Tem banheiro aqui? O banheiro é aquele que vocês podem filmar. (Imagens de banheiro improvisado com palhas de buriti, palmeira encontrada na região) [...] Repórter: E o que vocês comiam? A gente comia um feijãozinho meio-dia. À tarde, arroz branco e aí misturava com molho de pimenta [...] (Imagens da alimentação) (Informação verbal)4.
Notamos aqui a identificação operando por meio da diferença e envolvendo um trabalho discursivo ao retratar o fechamento e a marcação de fronteiras simbólicas; o que Hall (2013) chama de produção de efeitos de fronteira. Identificamos em vários momentos das entrevistas esses efeitos de fronteira; situações chamadas pelos trabalhadores de representações da realidade.
[...] acho que a reportagem mostra sim bastante a nossa realidade. Primeiro, o reconhecimento da gente. Eu não tinha assistido essa matéria, mas o Brasil todo assistiu. Foi um espanto pra mim. Eu cheguei onde me criei, dia 14 de dezembro de 2012, 33 anos depois que eu tinha saído de lá, num povoadinho do município de Grajaú (MA). Lá, todos os amigos, os compadre, primo, a família toda me reconheceram na televisão. Eles perguntaram o que eu tava fazendo lá [...] “eu conheci você no Jornal Nacional [...] o que foi aquilo?” Aí eu anunciei pra eles [...] e eles botaram fé. (Informação verbal, grifo nosso)5.
Neste caso, houve o reconhecimento do discurso midiático como algo que legitimou a experiência vivida pelo trabalhador, que foi submetido ao trabalho escravo e concedeu entrevista à mídia, sendo reconhecido pelos seus familiares e amigos como alguém que passou por aquilo mesmo, tanto que saiu na televisão; é verdade, é real.
Outro entrevistado reconheceu o trabalho como similar ao que ele já havia feito, mas questionou alguns detalhes exibidos na reportagem acerca do processo de produção do carvão vegetal mostrado na reportagem numa carvoaria do estado do Pará.
Com certeza, ali mostra todo o trabalho escravo que a pessoa, numa situação de trabalho escravo, passa. O serviço que você mostrou eu também já fiz muito esse serviço ali, encher forno, tirar forno. Só que assim, eu trabalhava um pouco diferente dessas fases aí que ela (a repórter) mostrou [...] aliás era trabalho escravo, mas eu sabia que era trabalho escravo, trabalhava porque precisava [...] Eu me considerava como trabalho escravo porque eu não podia sair e não tinha a liberdade pra sair pra lado nenhum porque a gente é vigiado. Então a gente se sente como se tivesse relembrando todo aquele tempo que não é bom, eu, pelo menos não gosto de relembrar tempo de escravidão, é como se eu tivesse sofrendo duas vezes. (Informação verbal)6.
O comentário refere-se à reportagem exibida no programa A Liga, que foi ao ar no dia 16 de agosto de 2011, pela Rede Bandeirantes. Na ocasião, a equipe de reportagem acompanhou uma fiscalização numa carvoaria no município de Goianésia, no Pará. O trecho em que o trabalhador ser referiu narrava o passo a passo do trabalho para a feitura do carvão - cortar a madeira, colocar no forno para queimar, lacrar o forno e após algum tempo, abrir para retirar o carvão. Como o entrevistado já havia trabalhado de forma similar em carvoaria no Maranhão, fez comentários sobre algumas diferenças entre o que ele fazia e o que viu relatado na reportagem.
Ao assistir o material exibido durante trabalho de campo, o trabalhador identificou-se com a falta de equipamentos de segurança bem como a facilidade de acontecer um acidente. No grupo de discussão, também estava presente outro trabalhador que já havia sofrido acidente em carvoaria e, por isso, tem dificuldades de andar, sentindo dores constantes nas pernas. Os trabalhadores também questionaram o tempo de queima do carvão mostrado pela televisão (de quatro a seis dias no inverno e numa média de três dias no verão), mas afirmaram que realmente, neste caso, varia de região e também em cada época do ano, no caso se é inverno ou verão7, ficando mais úmido ou seco, interferindo diretamente na queima.
A consolidação do processo de identificação requer dos sujeitos, na maioria das vezes, aquilo o que é deixado de fora, isto é, o exterior que a constitui. Percebemos este fato no relato que segue:
[...] Onde eu trabalhava teve um caso que devia ser tratado aí nas reportagens. Teve algum que falou que ia denunciar, aí ele soube, quando ele chegou com um 38 assim no punhal e disse assim: aqui eu tô sabendo que vão "dar parte", mas se sair pra "dar parte" não passa um ali pela cancela. Aí ficou com ameaça, aí um bocado de gente ficou logo com medo. Aí foi a vez que o menino saiu, eles procuram todo meio de intimidar a pessoa. (Informação verbal, grifos nosso)8.
O relato acima traduz mais um aspecto da falta que os entrevistados, em geral, sentiram nas reportagens por não tratarem como deveriam, segundo eles, da questão da violência dentro e fora das fazendas, envolvendo os atores que compõe a rede de aliciamento e denúncia no contexto do trabalho escravo. Mas o que queremos chamar a atenção e trazer para a reflexão é o fato de um trabalhador, ao assistir a um conjunto de reportagens selecionadas sobre a temática, ter lembrado um fato ocorrido quando ele estava envolvido na questão do trabalho escravo, que é muito grave e sério, na sua concepção, e que não é tratado, em geral, em materiais midiáticos do seu conhecimento: o medo de denunciar em decorrência de ameaças nos locais de trabalho bem como nas regiões onde ocorre o aliciamento para o trabalho escravo, como é o caso estudado de Açailândia (MA).
Notamos que os processos de identificação entre sujeitos e mídia perpassam, em alguns casos, a presença de outros mediadores, como é o caso dos agentes do movimento social. Esta presença está marcada na fala de um dos entrevistados, como podemos observar a seguir:
Acredito sim, que a gente já foi escravo. Hoje, graças a Deus, eu tenho o privilégio em dizer que não me encaro mais em uma situação daquela, totalmente, desde esse período que eu vim do resgate pra Açailândia. Eu fui várias vezes na minha cidade e voltei porque eu me adaptei com a cidade através do pessoal, eu sou muito agradecido ao pessoal do Centro de Defesa e, desse dia em diante, eu resolvi morar em Açailândia. Hoje, eu tenho família, tenho casa, graças a Deus e o que eu vejo assim, através da sua primeira pergunta sobre o que a gente vê, quando fala sobre a reportagem. A gente se sente triste por saber que ainda existe gente que comete esse tipo de infração, de trabalho escravo. A gente se sente triste por isso e por ter passado pelo Centro de Defesa a gente se sente alegre, porque o nosso depoimento é um reforço para que isso possa ter um basta, sobre esse trabalho escravo. (Informação verbal)9.
O contexto social das representações, neste caso, se dá principalmente pelo contato dos trabalhadores com os mediadores tanto da equipe de fiscalização (órgãos governamentais) quanto das entidades sociais responsáveis pela denúncia e pelo acompanhamento dos processos administrativos e até mesmo judiciais (no caso estudado, representados pelos agentes do Centro de Defesa de Açailândia).
As relações de mediação perpassam as identificações que os sujeitos investigados apontam com relação ao material midiático exibido durante trabalho de campo. No texto jornalístico televisivo escolhido, as falas dos mediadores também compõem o conjunto de fatores de identificação apontados pelos trabalhadores. Um exemplo disso é quando, no ato da assistência das reportagens, os trabalhadores reconhecem alguns agentes do movimento social ou mesmo governamentais (no caso, auditores fiscais do trabalho) e depois conversam, entre si, sobre a familiaridade despertada durante este reconhecimento com comentários do tipo: “Viu fulano de tal lá? Ele defende nóis em qualquer lugar mesmo [...]” ou ainda “Esse cabra foi longe atrás de peão.” (Informações verbais)10, quando se referia a um auditor fiscal do trabalho acompanhado por uma equipe de reportagem numa carvoaria, no Pará.
Dessa forma, entendemos que além do estranhamento com o outro; com o diferente, os sujeitos também constituem suas identificações com o mundo no reconhecimento de algo familiar; comum, portanto com algo que eles se identificam pelas similaridades. Portanto, este jogo entre as representações da realidade dos entrevistados; da vida vivida, e as representações do trabalho escravo apresentadas pela mídia (no caso pelas reportagens televisivas) nos ajuda a compreender os processos de identificação dos sujeitos com a mídia, na busca de suas apropriações do texto midiático para a constituição de suas representações.
4 CONCLUSÃO
O esforço deste estudo nos deu acesso a diversos olhares dos trabalhadores sobre o trabalho escravo a partir da mídia. A investigação de trajetórias de vida e de trabalho dos sujeitos entrevistados foi fundante para compreendermos as formas de participação de materiais midiáticos na constituição de suas representações sobre a temática.
O grupo de trabalhadores entrevistados tem uma origem comum, que é rural. Em geral, são filhos ou netos de pequenos produtores rurais que sofreram processos históricos de expulsão dos seus locais de origem por conta de projetos de desenvolvimento (principalmente a partir dos anos 60), o que acarretou uma consequência comum: migração do campo para a cidade com precarização da mão de obra, uma vez que não há formação profissional para o trabalho urbano. Em geral, os trabalhadores são rurais, com baixa escolaridade e residem nas periferias da cidade, tendo de se submeter aos chamados bicos, ou subempregos, sempre intercalados com o serviço na roça, seja o de subsistência da família, seja em demais atividades rurais em grandes propriedades, como é o caso de fazendas de gado e carvoarias, principais atividades econômicas onde é caracterizado o trabalho escravo contemporâneo.
A origem rural dos trabalhadores foi levada em consideração durante o desenvolvimento do estudo, uma vez que a relação entre este grupo social e a mídia (e aqui mais propriamente a televisão), apresenta-se com algumas especificidades. Neste sentido, levamos em consideração que não há uma periodicidade definida de assistência de televisão pelo grupo de trabalhadores devido à sazonalidade de suas atividades laborais. Quando estão em período intenso de trabalho na zona rural, por exemplo, é possível que esses sujeitos recebam as informações da mídia de forma indireta, ou seja, relatada para eles por intermédio de outros membros da família (em geral, esposas ou filhos) ou ainda de amigos ou vizinhos.
Concordamos com Orozco Gomes (1991, p. 136)11, quando trata da importância de se reconhecer que a
[...] recepção televisiva é um ‘processo mediado’ que antecede e prossegue ao mero momento de estar frente à televisão [...] Um processo que se mescla com a vida cotidiana e no qual intervêm distintos agentes e instituições sociais.
O fato é que quando o assunto trabalho escravo aparece na televisão, tendo ou não assistência direta, os trabalhadores em geral acabam tendo acesso às informações que foram veiculadas a partir de comentários do próprio grupo social. E aí, compreendemos que já estão em jogo a pluralidade de interpretações e as produções de sentido acerca das representações sobre o tema.
Entendemos que esses sujeitos que vivem nesta transitoriedade entre o mundo rural (de origem e do qual eles buscam a sobrevivência) e o mundo urbano (onde residem e, de alguma forma, apresentam uma sociabilidade) têm apropriações distintas em relação à temporalidade e à cotidianidade, o que vai refletir diretamente em suas relações de consumo do fluxo midiático, deste continnum de imagens e de narrativas, característico da televisão. Desta forma, as trajetórias de vida de cada sujeito demarcam lugares distintos de fala, no que diz respeito as suas relações com a televisão.
Uma vez que compreendemos a televisão como parte de um processo histórico, social, econômico e tecnológico próprio da cidade (mundo urbano), encontramos algumas especificidades na relação entre esses sujeitos (que são oriundos da zona rural e trazem marcas significativas deste universo, mas residem e transitam na zona urbana) com a mídia, que opera prioritariamente pelas lógicas da cidade e, sobretudo, fala com os sujeitos da cidade, nesta temporalidade e neste fluxo, próprios da televisão.
Para Martín-Barbero e Rey (2001), o fluxo televisivo constitui a metáfora mais real do fim dos grandes relatos pela equivalência de todos os discursos, como informação, drama, publicidade, entre outros.
[...] a mediação estratégica introduzida pelo fluxo televisivo remete, acima da experiência estética, aos novos “modos de estar juntos” na cidade; às sociabilidades cotidianas que o caos urbano suscita, uma vez que, ao mesmo tempo em que desagrega a experiência coletiva, impossibilitando o encontro e dissolvendo o indivíduo no mais opaco dos anonimatos, introduz uma nova continuidade [...] dos circuitos. (MARTÍN-BARBERO; REY, 2001, p. 36, grifo dos autores).
Embora não haja consenso entre os sujeitos entrevistados sobre as escolhas de viver a vida rural ou a vida urbana12 (e isso se revela no trabalho na roça passado de pais para filhos, por um lado; paralelamente ao consumo de elementos que constituem as lógicas da cidade, como por exemplo, aparelhos de som e de televisão, motocicletas, roupas e sapatos de marcas, celulares e demais produtos da chamada indústria cultural), partimos do pressuposto deque a televisão ocupa um lugar na vida desses sujeitos e, neste sentido, participa de suas representações. E durante o contato com eles, durante o trabalho de campo, e posteriormente, na análise do material empírico, tivemos a confirmação desta hipótese.
A origem rural dos entrevistados demarca uma noção sobre trabalho arraigada à lavoura. Segundo eles, a primeira noção de trabalho é a do trabalho de roça, em plantações de subsistência. Neste sentido, eles qualificam como trabalho bom aquele em que são donos do seu próprio negócio e, por isso, não precisam se submeter a mandos de patrões. Em contrapartida, o trabalho ruim é aquele em que são empregados em situações precárias e, portanto, estão vulneráveis ao desrespeito e à humilhação.
Neste contexto é que a noção de trabalho escravo se apresenta para o grupo entrevistado; no qual os indivíduos são subjugados e submetidos à violência (física e psicológica) e à desonra. Quando se posicionaram sobre o que significa o trabalho escravo para eles, em geral, apareceu a violação da dignidade humana como um fator preponderante.
Quando introduzimos os materiais midiáticos, a fim de compreendermos a sua participação nas representações sobre o trabalho escravo junto a esses sujeitos, apareceram fatores interessantes de serem observados e analisados. Primeiramente, a identificação junto às reportagens se dá sempre de forma relacional. Ao mesmo tempo em que algumas características do texto jornalístico televisivo chamam a atenção dos sujeitos e demostram a realidade da vida vivida; eles apontam ausências e excessos desta representação midiática acerca da temática. E, neste sentido, encontramos pontos relevantes de nossa análise, que nos ajudam a compor esses olhares aos quais nos propomos problematizar e entender neste estudo.
Em geral, há identificação dos sujeitos investigados referente a aspectos de infraestrutura precária como, por exemplo, a falta de dormitório adequado nos locais de trabalho como questões de higiene e alimentação, levantadas em algumas reportagens. Quando os entrevistados se posicionaram sobre este aspecto, concordaram com as precariedades apontadas e, em alguns casos, acrescentaram outros fatores que não haviam sido levantados, como foi o caso de um comentário de um entrevistado que contou que só comeu carne em uma fazenda quando o gado morreu no pasto, doente. Questões relacionadas à ausência de sanitários e de água potável também foram recorrentes nas falas.
Mas para além da precariedade na infraestrutura dos locais de trabalho, os trabalhadores entrevistados levantaram outras questões, das quais eles sentiram falta ao assistirem às reportagens e que, para eles, determinam as condições de trabalho escravo na atualidade. E estes aspectos fazem parte de nossas descobertas de pesquisa. São eles: (1) a questão da violência (física e psicológica) dentro e fora dos locais de trabalho; (2) o medo e a humilhação e (3) as causas e consequências do trabalho escravo.
Identificamos essas questões como norteadoras das representações dos sujeitos sobre o trabalho escravo, uma vez que extrapola o âmbito midiático; isto é, vai além da mídia, embora tenham sido discursos que partiram da assistência das reportagens escolhidas. Sabemos que essas questões se relacionam e têm como base a violação da dignidade humana. Dessa forma, mais do que falta de infraestrutura, precárias condições de higiene e alimentação ou jornadas exaustivas de trabalho sem o pagamento devido, o trabalho escravo para esses sujeitos está relacionado à violação de sua dignidade humana, antes de qualquer outra situação.
Referências
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Notas