Mesas temáticas coordenadas
Recepção: 17/03/16
Aprovação: 06/06/16
Resumo: O presente artigo faz uma caracterização da divisão sexual do trabalho na agricultura familiar, destacando que o caráter produtivo da mão de obra feminina nesse contexto é invisibilizado e destituído de seu reconhecimento social enquanto trabalho. Discute o processo de dominação/exploração no qual as mulheres estão inseridas mediante sua condição de gênero e sua posição socioeconômica desfavorável enquanto agricultoras familiares camponesas. Demonstra, ainda, como as mulheres são especialmente afetadas pelo processo de expropriação da terra e dos demais recursos da agricultura familiar camponesa no domínio da expansão do agronegócio da soja na região.
Palavras-chave: Mulher, divisão sexual do trabalho, agricultura familiar, agronegócio.
Abstract: This article is a characterization of the sexual division of labor on family agriculture where the productive character of female labor is made invisible and stripped of his social recognition as work. Discusses the process of domination/exploitation in which women are incorporated by their gender and their unfavorable socioeconomic position as peasant family farmers. Demonstrating even as women are particularly affected by the land expropriation process and other resources of peasant family agriculture caused by expansion of soy agribusiness in the region.
Keywords: Women, sexual division of labor, family agriculture, agribusiness.
1 INTRODUÇÃO
São múltiplas as temáticas que a condição de mulher trabalhadora rural sugere a problematização, entretanto, ao se compreender a dupla dominação e exploração (articuladas nas dimensões de gênero e classe) que esta mulher sofre, torna-se fundamental tentar investigar de que modo a dominação e a exploração que vivenciam articulam-se não apenas no espaço privado, mas também nas esferas da produção e reprodução da vida social e material, constituindo faces do mesmo fenômeno (SAFFIOTI, 2004) e manifestando-se em relações de poder que regem e organizam a sociedade.
Neste sentido, a categoria relações sociais de gênero é a que melhor se aplica para entendermos a dimensão de subalternidade desta mulher trabalhadora rural, por nos possibilitar a apreensão do modo como ela está inserida em um sistema de dominação e exploração que envolve capitalismo, patriarcado e racismo (SAFFIOTI, 1987). Toma-se como base as relações de trabalho no mundo rural, a divisão sexual do trabalho na agricultura familiar, e mais especificamente a singularidade dos impactos do monocultivo de soja na vida das mulheres, considerando o antes e o depois da implantação dos monocultivos de soja e a participação política das agricultoras familiares nesse contexto.
Os dados aqui apresentados são fruto da vivência com os/as agricultores/as do município de Brejo, do contato direto com a dinâmica produtiva da agricultura familiar e a percepção dos impactos do agronegócio naquele meio, proporcionado pela realização do trabalho de conclusão do curso de graduação em Serviço Social Da casa aos sindicatos e associações: mulheres trabalhadoras rurais de Brejo/MA construindo sua participação política frente à expansão do monocultivo da soja - através do qual foi possível apreender como aspectos socioeconômicos, políticos, e simbólicos articulam- se para reforçar a opressão vivenciada pela mulher trabalhadora rural e como o gênero existe enquanto elemento decisivo em seu processo de organização e resistência -, gerando a constatação de que as mulheres são os indivíduos mais afetados pela questão agrária, sofrendo uma dinâmica dupla de dominação/exploração no campo, decorrente de sua condição de gênero e classe.
2 A SOJA NO MUNICÍPIO DE BREJO: impactos e conflitos diante da expansão do agronegócio
Na década de 1970 o então Governo Militar Brasileiro adere a um modelo de desenvolvimento agrícola baseado na modernização das relações e dos meios de produção no campo através da implementação de um conjunto de novas tecnologias em equipamentos, máquinas e insumos agrícolas, além da intensificação da relação entre a agricultura, a indústria e o comércio em escalas nacional e internacional, ou seja, a chamada Revolução Verde. Movida pelos ditames do capital internacional e pela tentativa de promover o desenvolvimento do mercado interno, tal iniciativa de industrialização da agricultura constituiu-se
[…] na incorporação por parte dos países subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento, da matriz tecnológica dos países desenvolvidos (particularmente dos Estados Unidos) na agricultura, com vistas ao aumento da produtividade […] Nesse período, a agricultura passa a subordinar-se à indústria através do que autores como Silva (1996) denominou da interseção de capitais. A indústria irá comandar o processo a montante e a jusante da agricultura. (GRUPO DE PESQUISA E EXTENSÃO SOBRE RELAÇÕES DE GÊNERO ÉTNICOS, RACIAIS, MULHERES E FEMINISMO GERAMUS, 2010, p. 4).
O que ocorre de contraditório neste processo dito modernizador e de cunho desenvolvimentista, porém, é que ele acaba por promover quase que exclusivamente o aumento da produção agropecuária em grandes escalas, realizada pela grande propriedade rural vinculada ao mercado interno e ao capital internacional representados pelas empresas nacionais e multinacionais que detinham o monopólio da comercialização e industrialização dos insumos e inclusive da própria produção, voltando-se principalmente para o mercado externo (exportação). A pequena e média propriedade agrícola pouco irão se beneficiar da Revolução Verde, pelo contrário, no que diz respeito à pequena unidade de produção, esta irá sofrer, a partir da década de 1970, continuamente com o avanço do monocultivo através da expansão da fronteira agrícola brasileira1 sobre áreas tidas por órgãos oficiais de desenvolvimento como imensas áreas desocupadas e subaproveitadas economicamente; o que implicará na expulsão e na redução das condições de trabalho e sobrevivência no campo para um enorme contingente de trabalhadores rurais.
A partir deste momento o Brasil passa a estar inserido no mercado mundial como um dos maiores produtores de soja do planeta. Diversos fatores, dentre eles a facilidade de financiamento da produção por parte do governo federal, parcerias econômicas internacionais, um aumento do mercado consumidor deste grão a nível internacional, a facilidade na aquisição de terras férteis e a preços baixos por parte dos produtores, além da existência de canais de escoamento da produção, irão contribuir para o continuo avanço da ocupação do espaço do cerrado pela produção da soja.
No que diz respeito ao Maranhão, a sojicultura se concentrará da década de 1970 até o final da década de 1980, praticamente apenas na sua mesorregião Sul nos municípios de Balsas, Tasso Fragoso, Riachão, São Raimundo das Mangabeiras e Sambaíba, para a partir de então se deslocar para a mesorregião Leste, mais especificamente a microrregião de Chapadinha, onde se localiza o município de Brejo.
A chegada da soja nessa microrregião ocorre através do estabelecimento de agricultores provenientes, principalmente, de estados da região Sul e Centro-Oeste do país, que encontram na região uma boa possibilidade de cultivo da soja por motivos semelhantes aos que incentivaram a ocupação do Cerrado em outras regiões do Brasil (GASPAR, 2010) especialmente pela maior facilidade de escoamento da produção, representada pela proximidade da localização da microrregião de Chapadinha com o Porto do Itaqui e do Terminal de Grãos da Companhia Vale do Rio Doce (SCHLESINGER; NUNES; CARNEIRO, 2008), além da facilidade de aquisição de grandes hectares de terras férteis, ocasionado tanto pelo baixo custo a que essas terras eram vendidas pelos proprietários originais, como pela falta de uma regularização fundiária na região:
A soja foi implantada no município de Brejo no final da década de 1990. De acordo com a literatura corrente, os plantadores de soja tiveram, e ainda têm acesso à chapada através da compra de terras dos moradores, ou ainda, através de atos de grilagem identificados em estudos e levantamentos cartoriais realizados sobre a situação fundiária da região (PAULA ANDRADE, 1995, p. 27)
Fato é que a implantação do monocultivo de soja na chapada maranhense e em Brejo irá ocasionar desde prejuízos significativos para o sistema produtivo rural ali existente causando a desestruturação de relações sociais de produção que compõem a agricultura familiar naquele espaço e devastação em grande escala dos recursos ambientais da Chapada, necessários à sobrevivência daquela população.
Os/as trabalhadores/as rurais passam, então, a estar privados do direito básico de acesso aos seus meios de produção e do direito de desfrutarem de um ambiente que possui valor significativo na construção de sua identidade social enquanto agricultor familiar; uma vez que, para aquela população o cerrado é não só o espaço em que realiza a produção de sua existência material, como também o território onde reproduz suas relações sociais, reafirma seus laços de pertencimento e realiza suas práticas culturais.
Na medida em que tais agricultores/as familiares praticam uma agricultura camponesa com base na estreita relação entre homem/mulher e recursos ambientais, onde o elemento humano usufrui da terra enquanto bem coletivo e espaço de construção de sua vivência e reprodução social, inicialmente não atribuem ao território onde vivem uma valoração monetária, fazendo com que os produtores de soja que ali chegam ao início da década de 1990 enxergassem neste fato um facilitador em potencial para aquisição de terras a preços baixos.
As conseqüências socioambientais do agronegócio para a população no campo são negativas e muitas, representadas por um quadro de tensões sociais que afetam sua alimentação e saúde pelo uso indiscriminado de agrotóxicos na água, no solo e no ar, que contamina plantas e animais destinados ao consumo dessa população; além da derrubada da mata, que em um rápido processo de desmatamento faz desaparecer da chapada espécies de plantas medicinais que há até pouco tempo eram elementos indispensáveis no cotidiano das famílias para a fabricação de remédios pelas mulheres; o extrativismo do babaçu, bacuri e pequi, importante fonte de renda nos povoados, torna-se quase que inviabilizado devido ao grau de devastação dessas espécies.
As mulheres são particularmente afetadas neste processo, uma vez que, por encontrarem- se integradas às aos diferentes processos que compõem a agricultura familiar – cultivos tanto da alimentação básica como de ervas e plantas medicinais, criação de animais, extrativismo e cuidado com canteiros - possuem ainda, uma significativa responsabilidade na condução de um processo de desenvolvimento humano local e sustentável, ao demonstrar no cotidiano que são gestoras de recursos, produtoras de alimentos e que contribuem para a manutenção da biodiversidade (TORNQUIST; LISBOA; MONTYSUMA, 2010).
3 AS MULHERES NA AGRICULTURA FAMILIAR: produção e reprodução no cotidiano
A agricultura familiar concebida como forma de agricultura praticada em uma pequena extensão de terra, utilizando-se a mão-de-obra da família e destinada principalmente à alimentação desta própria (autoconsumo), mostra-se [...] como um ciclo contínuo entre produção e reprodução, tanto no que se refere às atividades agrícolas quanto no que se refere à utilização e organização dos espaços e do tempo. (SILVA, 2005, p. 37).
É fortemente marcada por valores ligados à manutenção dos papéis socialmente definidos para os membros da família com base em relações, principalmente, geracionais e de gênero.
As relações de trabalho neste sistema produtivo se dão em um meio permeado de relações de dominação e subordinação baseadas no patriarcado – enquanto um “[...] sistema de relações sociais que garante a subordinação da mulher ao homem.” (SAFFIOTI, 1987, p.16), estruturando as relações de gênero de modo a favorecer e suscitar a superioridade econômica, política e moral do homem sobre a mulher - havendo ainda a desvalorização do caráter economicamente produtivo desta.
O patriarcado atribui ao homem a responsabilidade de realizar tarefas no mundo público, fora do espaço doméstico, considerado mais importante para o sustento e a sobrevivência da família; enquanto que à mulher é estabelecido como espaço legítimo a casa, o mundo privado, o encargo pela reprodução biológica e espiritual do núcleo familiar, a manutenção da moral, das tradições e costumes através da naturalização de seu papel de mãe e esposa (TEDESCHI, 2009) - embora ela também participe das atividades produtivas tidas como masculinas.
A atribuição dos papéis sociais atende, em geral, ao interesse do grupo social dominante, que através de uma correlação de forças impõe sistemas de valores e modelos de comportamento voltados à satisfação de suas necessidades. Neste sentido, o patriarcado, ao atribuir determinados papéis sociais de gênero a homens e mulheres “[...] constrói leituras particulares do mundo, concebendo, para si e para os outros, identidades que atendam a seus interesses.” (TEDESCHI, 2009, p. 156).
Neste sentido, Bourdieu (1999) descreve o poder masculino como um sistema de dominação simbólico manifestado na formulação de regras, estabelecimento de territórios e fronteiras que regem e organizam a sociedade sob diferentes formas segundo variações geográficas, étnicas, de classe, etc. Esse sistema reproduz-se através de
[...] combinações sucessivas [...] de mecanismos estruturais (como os que asseguram a reprodução da divisão sexual do trabalho) e de estratégias que, por meio das instituições e dos agentes singulares, perpetuaram, no curso de uma história bastante longa, e por vezes à custa de mudanças reais ou aparentes, a estrutura das relações de dominação entre os sexos. (BOURDIEU, 1999, p. 101).
A dominação masculina possui, ainda, um caráter histórico, material e ideológico, baseado em hierarquias, desigualdades e dependências, mas também em rupturas, conflitos, tensões e negociações, onde as mulheres ao mesmo tempo em que sofrem a opressão de gênero, atuam como co-reprodutoras dessa opressão.
A organização e a divisão do trabalho no meio rural dão-se, ainda, em uma extensão entre o ambiente doméstico e a unidade produtiva, numa relação de continuidade entre consumo e produção, absorvendo mulheres, homens, crianças e idosos, com base principalmente na divisão sexual do trabalho. A centralidade da figura masculina neste processo de produção coloca homens na esfera produtiva e mulheres na esfera reprodutiva, reafirmando papéis sociais baseados na identidade de gênero socialmente atribuída.
Ademais, nesse sistema são as mulheres os sujeitos mais afetados pelas precárias condições de vida encontradas no campo - causada pela insuficiência ou ausência de serviços públicos importantes para que a mulher alcance sua autonomia socioeconômica e pessoal (como educação, saúde e trabalho) e agravada ainda pela invisibilidade e sobrecarga de trabalho na agricultura familiar.
O cotidiano de trabalho consolida e naturaliza as representações sociais de valoração de homens e mulheres, que passam a estruturarem- se
[…] com base em relações hierárquicas entre homens e mulheres e adultos/as e jovens, tendo na figura do pai o centro das decisões e do poder, a agricultura familiar é lugar de opressão intrafamiliar que, no entanto, é vivenciada de modo naturalizado, como se derivada das relações consangüíneas e completamente apartada do universo do trabalho (SILVA, 2005, p. 45).
O cotidiano é o espaço em que ocorrem as tensões e disputas por poder e recursos entre as diferentes classes, grupos e gêneros. É nele que ocorre, também, a mediação entre produção e reprodução - especialmente no que tange à agricultura familiar - evidenciando como as dimensões pública e privada da vida se articulam e complementam-se reforçando práticas, hábitos, preconceitos e ideologias dominantes.
Assim, a força de trabalho das mulheres é invisibilizada e estas não usufruem do reconhecimento social enquanto trabalhadoras, uma vez que o trabalho que realizam cotidianamente na esfera doméstica é naturalizado e não é devidamente reconhecido como essencial para a reprodução da família e sua participação nas tarefas produtivas é tida como ajuda ou complemento ao trabalho masculino (ainda que seja essencial). Ou seja, os mesmos espaços de trabalho possuem significados diferentes para homens e mulheres conforme Nascimento (2011, p. 182):
Os princípios organizadores da divisão sexual do trabalho tendem a destinar prioritariamente os homens ao trabalho produtivo, voltado ao espaço público, e as mulheres ao trabalho reprodutivo, voltado preponderantemente ao espaço privado. Essa separação faz crer que essas esferas funcionam separadamente. Tal interpretação elimina a percepção de totalidade que as engloba, uma vez que homens e mulheres estão inseridos conjuntamente, embora de formas diferenciadas, na produção e na reprodução.
Nesta perspectiva homens e mulheres são vistos em esferas completamente distintas, à medida em que fica ofuscada a percepção da contribuição que ambos exercem tanto na produção como na reprodução.
3.1 O cotidiano de invisibilidade das mulheres trabalhadoras rurais no município de Brejo/ MA
Nos povoados de Brejo as mulheres inserem-se na reprodução social da agricultura familiar desempenhando atribuições diversas, tidas socialmente como próprias das mulheres, tais como tarefas domésticas (limpeza da casa, dos utensílios e do vestuário, preparação da comida), cuidados pessoais com outros membros da família, criação de pequenos animais, extrativismo e beneficiamento dos produtos, além do artesanato. Essas atribuições se entrelaçam às suas relações familiares, no sentido de que contribuem para manter a mulher dentro do limite do espaço doméstico, articulando em seu cotidiano estas atribuições ao seu papel de natural de mãe e de cuidadora. Este fato retira do trabalho feminino o seu valor enquanto trabalho socialmente reconhecido (NASCIMENTO, 2011).
Entretanto, a mulher participa não só da esfera reprodutiva realizando a manutenção da reprodução física, material e espiritual da família camponesa, mas está presente também na esfera produtiva, através de tarefas vistas em geral, como uma ajuda ao trabalho desenvolvido pelo homem, um trabalho considerado mais leve. É comum, também, que as próprias mulheres rurais não percebam o caráter produtivo que seu trabalho na agricultura familiar possui. Tomando como um exemplo da participação feminina na esfera produtiva da unidade agrícola familiar a roça, descreveríamos da seguinte forma a divisão sexual do trabalho: os homens são responsáveis por desmatar a área destinada ao plantio da roça; fazer a queimada feita para ajudar limpar a área para o plantio; preparar o terreno para semeadura e construção de cercas. Essas atividades exigem um considerável e reconhecido esforço físico e a lida com ferramentas pesadas.
As mulheres, por sua vez, fazem a manutenção constante do plantio limpando da roça; colaboram na limpeza do terreno e na construção de cercas; fazem a semeadura; capinam; regam e colhem, além de fazerem o armazenamento e o beneficiamento da colheita. Estas tarefas exigem esforço e atenção constantes para garantir que a produção não se perca, além de representarem também o outro lado da jornada de trabalho da mulher: o lado produtivo da dupla jornada. Acrescenta-se a essas atividades a produção das refeições para os membros que trabalham na roça que podem levar o almoço pela manhã para comerem no local de trabalho, ou comerem em casa. Ressalta-se que em geral as mulheres fazem sozinhas a comida ao chegarem da roça com o marido e os filhos.
Vê-se que dentre as etapas da roça a mulher não está presente em apenas duas etapas: o desmatamento e a queimada (coivara), por conta da limitação de sua força física comparada à masculina; ainda assim, o trabalho feminino não é reconhecido por seu caráter produtivo, sendo considerado uma ajuda ao trabalho masculino.
O fato de realizarem a maior parte de suas atividades sozinhas, sem a colaboração de filhos (as) e/ou companheiros (as), exceto ao preparar o café e ao molhar os canteiros, quando contam com a colaboração de suas filhas mais novas, uma vez que as filhas mais velhas à medida que se casam saem da casa dos pais - conforme se pôde observar ali -, faz com que na rotina dessa trabalhadora rural haja um enorme desgaste físico por conta do grande número de tarefas que realiza consecutiva e simultaneamente com poucos intervalos para descanso, lazer e convivência comunitária.
Os momentos de descanso ocorrem durante o dia é após o almoço (ainda assim depois de lavarem a louça) e após o jantar, quando podem assistir televisão e sentar à porta de suas casas para conversarem entre si. Logo irão dormir, para no dia seguinte dar início a mais uma jornada de atividades desgastante.
É importante ressaltar que a rotina das mulheres começa antes mesmo dos outros membros da família, cuidando para que estes tenham as condições mínimas para a realização de suas tarefas. É um trabalho de bastidor, invisível, uma vez que está impregnado da identidade de gênero que essas mulheres adquirem desde cedo - e que é repassada às suas filhas e netas. Suas atribuições enquanto donas de casa confundem-se ao seu papel de mãe e esposa, sendo, portanto, naturalizadas pela família e pela comunidade como atribuições inerentes a toda mulher.
Silva (2005) afirma que a secundarização do trabalho feminino na agricultura familiar e na sociedade como um todo é conseqüência de uma tendência a supervalorizar a dimensão produtiva do trabalho, deixando de lado as atividades que não se coloquem nesta perspectiva. De acordo com Hirata e Kergoat (2008), a desigual divisão social do trabalho tem dois princípios organizadores: o princípio de separação (haveria trabalhos de homens e trabalhos de mulheres) e o princípio hierárquico (um trabalho de homem vale mais que um trabalho de mulher).
Deste modo, a mulher ainda é percebida na sociedade como portadora de menor qualificação profissional, onde aufere salários inferiores aos dos homens e corresponde a grande parte da mão-de- obra de profissões menos prestigiadas - seja pela exigência de menos qualificação e utilização de mão-de-obra barata, ou pela estigmatização de serem profissões tipicamente femininas, a exemplo do serviço social, pedagogia, enfermagem, assim como os trabalhos de caráter manual, doméstico e o trabalho no campo.
Fica claro, portanto, que nas comunidades rurais de Brejo as mulheres são os sujeitos que mais sofrem a condição de opressão existente a agricultura familiar. Opressão aqui compreendida como uma relação permeada por dominação e exploração das mulheres conforme Saffioti (2004). Vale lembrar que nessa perspectiva de análise, exploração não é algo determinado unicamente pela extração de mais-valia conforme a teoria econômica marxista, mas como uma produção que se torna invisível para a sociedade. E principalmente: tornar- se invisível porque a produção não é considerada trabalho, logo, as horas de trabalho, o esforço físico empregado, são ignorados na reprodução como parte da unidade de produção agrícola familiar camponesa.
4 CONCLUSÃO
O monocultivo de soja atua em Brejo como um modelo de produção que expropria e explora a população rural, trazendo através de seu processo devastador conseqüências negativas para a agricultura familiar como um todo ao diminuir significantemente os recursos naturais além de sobrecarregar os que restam ao se apropriar ilegalmente de grandes extensões de terra, expor a população e o ambiente a agrotóxicos e outros insumos estranhos àquele meio, além de cooptar como mão-de-obra para as etapas mais degradantes do monocultivo, jovens e adultos que são submetidos a relações de trabalho abusivas.
No caso das mulheres, a soja irá afetar fortemente sua vida, por serem elas as que se encontram mais ligadas aos recursos naturais que fornecem o sustento da família no seu cotidiano. As conseqüências da devastação das chapadas, poluição dos rios, do ar e a perca da propriedade da terra irão impelir homens e jovens a saírem dos povoados na busca de alternativas de sobrevivência relegando as mulheres ao abandono e a obrigação de darem conta, sozinhas, da sua sobrevivência e dos que ficam, agravando a invisibilidade de seu trabalho produtivo e a naturalização do trabalho reprodutivo, visto como não-trabalho ou ajuda.
À medida que o trabalho é fundamental para o reconhecimento da participação social dos indivíduos, a falta de reconhecimento social da mulher rural como trabalhadora a priva de grande parte do seu reconhecimento enquanto sujeito social e sujeito público que participa ativamente na produção e reprodução de seus meios de vida, com capacidade de intervir e transformar as relações de gênero e trabalho que a afetam enquanto mulher e trabalhadora rural na casa, na roça, na horta, no quintal, na comunidade e em espaços representativos de interesses comuns, como sindicatos, conselhos e associações.
Portanto, a emancipação social da classe trabalhadora no campo, materializada no acesso aos meios de produção da agricultura familiar, não prescinde da participação das mulheres neste processo, enquanto trabalhadoras capazes de contribuir com a melhoria da qualidade de vida no campo e com a resistência da agricultura familiar ao processo de expropriação.
A análise da questão de gênero a partir da inserção da mulher trabalhadora rural nas esferas produtivas e reprodutiva da agricultura familiar demonstra que a criação de vias e mecanismos que contribuam com a superação da desigualdade entre os sexos é imprescindível, (principalmente tratando- se de sujeitos que historicamente encontram-se à margem do poder econômico, político e ideológico, como é o caso das agricultoras familiares de Brejo), além de ser determinante para compreendermos de que modo elementos sociais, econômicos e políticos, interferem no acesso da população do campo aos seus direitos.
É primordial conceber a situação de invisibilidade da mulher do campo como um fato decorrente de processos históricos, onde a dominação patriarcal e a exploração capitalista não existem separadamente, uma vez que a subalternidade feminina é elemento imprescindível no processo de acumulação do capital.
As relações de gênero se dão em um contexto de relações desiguais de poder e a transformação dessas relações implica a criação e difusão de mecanismos que permitam aos oprimidos acessarem o poder, tais como potencialização de suas capacidades, ampliação da liberdade de participação social e política e aumento das oportunidades de auto-realização enquanto sujeitos ativos que transformam a si e ao meio em que vivem.
Referências
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Notas