Mesas temáticas coordenadas
Recepção: 17/03/16
Aprovação: 06/06/16
Resumo: A intenção do estudo é perscrutar, no trajeto histórico da formação cultural ocidental, o espaço social das mulheres na esfera do trabalho, mediante a influência de mitos e simbolismos na sociedade patriarcal. Recorre-se à apresentação do significado do mito e à conceituação de gênero estabelecida por Joan Scott. Utiliza-se a pesquisa bibliográfica e situações clássicas sobre o tema para fazer o trajeto histórico do trabalho das mulheres.
Palavras-chave: Trabalho das mulheres, mitos, gênero.
Abstract: The intent of the study is to peer into a historical course of western cultural formation, the social space of the woman in the sphere of work, by the influence of myths and symbolisms of patriarchal society. Refers to the presentation of the meaning of myth and gender concepts established by Joan Scott. The literature of authors and classic situations about the theme are used to make the historical path of the work of women.
Keywords: Work of women, myths, gender.
1 INTRODUÇÃO
Para a compreensão de determinadas influências é preciso mergulhar nas situações que a história e a literatura preservaram, em particular na construção dos mitos e simbolismos, para se alcançar a percepção do contemporâneo. O antigo, o ancestral, dá pistas inegáveis sobre o presente. Assim, neste trabalho, estabeleci como objetivo perscrutar no trajeto histórico da formação cultural do ocidente o espaço social das mulheres na esfera do trabalho, mediante a influência de mitos e simbolismos da sociedade patriarcal.
Considerei necessário recorrer à explanação sobre o significado do mito, de modo a possibilitar o entendimento da sua amplitude na cultura que partilhamos.
A humanidade encontra no mito modos de explicar a própria existência e validar construtos de identidades atribuídas aos personagens da trama histórica. O mito é dotado de propriedades justificadoras de concepções que se expressam repetidamente com o propósito de comunicar a experiência humana e afirmar valores culturais, ideológicos, políticos e morais. O sentido do mito, por meio da mitologia, iniciado pelos filósofos neoplatônicos tem em Paul Ricoeur, na contemporaneidade, um dos mais destacados seguidores. Nessa visão,
[...] o mito contém um elemento indizível que o discurso racional não pode enunciar, e, por isso, ela é também conhecida como ‘interpretação simbólica ou ‘metafórica do mito’. (PERINE, 2002, p.18, grifo do autor).
Com intenção pedagógica, abordei a conceituação de gênero de Joan Scott (1991) para compreender, ainda que sem esmiuçar, os quatro elementos situados como integrantes da concepção da autora que pretendem enumerar os fatores incidentes nas relações sociais de gênero. Foi preciso, nesse exercício, reiterar a multiplicidade de fatores inferentes em tais relações e o trabalho é a esfera problemática posta em questão que sofre implicações de variada ordem além do econômico, o cultural e o político.
Posta desse modo, a presente reflexão teve como tônica a incompletude, uma questão inacabada a exigir respostas, cujo aspecto desconcertante é que apesar da caminhada exitosa da humanidade na conquista dos bens da ciência e da técnica, por que persistem velhos esquemas patriarcais de comportamento (SAFFIOTI, 2002) a sonegar direitos das mulheres, em especial, na esfera do trabalho? Utilizei pesquisa bibliográfica sobre a questão de maneira a percorrer de modo pontual, mas significativo, a trajetória histórico-cultural e situações exemplificadoras sobre as desigualdades enfrentadas pelas mulheres. Tratei de problematizar elementos emblemáticos da questão do trabalho das mulheres como meio de provocar a reflexão que deve avançar aprofundada, noutros trabalhos, para o espaço contemporâneo.
2 REFLEXÕES SOBRE GÊNERO A PARTIR DO OLHAR DE JOAN SCOTT
Acreditar que o desenvolvimento científico e tecnológico metamorfoseado em acesso à informação, com enorme rapidez, como capaz de traduzir mudança de convicções e comportamentos fundados no patriarcado, no tangente às conquistas das mulheres, é um equívoco. A aparente modernidade vivida pela civilização atual é, sobretudo, isso: aparência. Significa persistirem sob a superfície dos valores socioculturais vigentes as arcaicas formas encarquilhadas das relações de gênero nas quais as expressões patriarcais se encontram presentes e atuantes.
Assim, a complexidade da tarefa torna indispensável a aproximação conceitual da
[...] categoria gênero, elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, uma forma primeira de significar as relações de poder. (SCOTT, 1991, p. 21).
A compreensão da categoria gênero envolve quatro elementos relacionados entre si: primeiro são os símbolos culturais apreensíveis por culturas distintas, no caso a civilização cristã ocidental, com as conhecidas figuras de Maria e Eva, citadas pela autora para ilustrar a ideia de representação simbólica. Tais mulheres contêm ambivalências, aspecto duplo marcado pela persistência do bem e do mal e suas expressões, postos como duas faces nas contradições das relações humanas. A índole paradoxal contida nos símbolos comparece reiteradamente, de modo dual, numa classificação de mulheres: santa, de família, boa mãe, frágil em contraposição à pecadora, dissimulada, perigosa e outros tantos epítetos classificatórios.
O significado simbólico é notável na Idade Média quando se forjaram pela via do folclore, fortes mitos sobre identidades femininas. Segundo discorre Franco Júnior (1996), a abadia de Saint- Savin, no final do século XI, apresenta uma clássica cena bíblica da apresentação de Eva a Adão. Dentre os quadros temáticos chama à atenção a figura de “Eva apresentada a Adão tendo barba.” (FRANCO JÚNIOR, 1996, p. 178). Não há consenso para explicar tal representação. As cogitações sugerem falha do artista ao realizar a obra, androginização feminina como forma de negar a sexualidade ou referência a santas cristãs que assumiram personagens masculinos no seu serviço a Deus.
Há, também, alusão a textos apócrifos atribuídos a Tomás e Paulo os quais sugerem, o primeiro, que “[...] toda mulher que se fizer homem entrará no Reino de Deus.” e o segundo apontava para a mulher que se disfarçava de homem para “[...] levar uma vida espiritualmente superior.” (FRANCO JÚNIOR, 1996, p. 181). Tais estereótipos atuaram profundamente na formulação das desigualdades abissais entre homens e mulheres, na criação e manutenção de processos discriminatórios.
O segundo elemento é formado
[...] por conceitos normativos que colocam em evidência interpretações do sentido dos símbolos que tentam limitar e conter as suas possibilidades metafóricas. (SCOTT, 1991, p. 21).
A normatização como estatuto social se constitui em ferramenta estratégica de controle, direção, isto é, exercício de domínio e poder que justifica a norma a partir de determinada convenção socialmente aceita. Assim, [...] esses conceitos são expressos nas doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas e tipicamente tomam a forma de uma oposição binária que afirma de forma categórica e sem equívoco o sentido do masculino e do feminino. (SCOTT, 1991, p. 22).
A formação de elementos normativos recebe influências afirmativas de convicções estabelecidas mediante tradições e conteúdos mitificados reconhecidos como válidos. Se uma determinada convenção é assimilada como verdadeira o regramento que a valida passa a ter caráter de incontestabilidade, sedimenta a conduta social e não questiona a desigualdade entre homens e mulheres. Historicamente, os papéis sociais atribuídos a ambos respondem aos requisitos doutrinários prescritos como próprio desse ou daquele sexo, sem que haja justificativa ponderável para as discrepâncias, a não serem aquelas determinadas por imposição cultural que visam à regulação.
Scott (1991, p. 22) aponta “[...] a noção do político, tanto quanto uma referência às instituições e organizações.”, terceiro aspecto das relações de gênero, como possibilidade de discussão do percurso predeterminado por tais agentes, cuja diligência tem sido orientada para a subordinação das mulheres, inclusive no que tange ao Estado, histórico representante do poder masculino. A irrelevância das mulheres situa-se tanto no âmbito das ações do Estado quanto no acesso à cidadania. Exemplar é o episódio da Revolução Francesa com a influência das mulheres, mas em seguida limitada quanto aos direitos dos(as) cidadãos(ãs) e excluídas da vida pública (HOBSBAWM, 1977). Michelet (1989) observara ter havido a vanguarda e a participação exercida pelas mulheres na Revolução as quais, premidas pela miséria, enfrentaram o poder do Antigo Regime ao gritarem em Versalhes por pão, o que pode ser traduzido em luta por direitos mais amplos.
O quarto aspecto do gênero é a identidade subjetiva. Conferências estabelecem distribuições de poder, um controle ou um acesso diferencial aos recursos materiais e simbólicos, o gênero torna-se implicado na concepção e na construção do poder em si. (SCOTT, 1991, p. 23).
Homens e mulheres ao fazerem a história produzem objetivações nas práticas sociais realizadas e, ao mesmo tempo, apropriam-se dos seus resultados, ou seja, reapropriam-se subjetivamente da história construída (SAFFIOTI, 1997). Desse modo, o sexo passa a ter uma significação dada pelos interesses dominantes de determinada sociedade, mediante formas regulatórias é controlado. Por exemplo, mulheres que tratavam e curavam doentes na Idade Média passaram a ser apontadas como bruxas, feiticeiras capazes de produzir o mal com as práticas curativas que realizavam. Conhecedoras de ervas medicinais e parteiras diligentes eram agentes de saúde itinerantes a movimentarem-se entre povoados e aldeias. Tornaram-se um perigo para o poder político vigente ao constituírem comunidades e confrarias para a troca de experiências. Em etapa futura, estiveram à frente das revoltas camponesas antecedentes à centralização dos feudos, germe da nacionalização dos territórios (MURARO, 1991).
Como o domínio político exige a eliminação dos elementos que ganham espaço para a contestação e rebeldia contra as opressões, as mulheres que ousassem praticar quaisquer atos tidos como suspeitos eram caçadas pela Inquisição. Dentre as teses produzidas pelos inquisidores para facilitar a identificação das bruxas lê-se:
[...] e como as mulheres estão essencialmente ligadas à sexualidade, elas se tornam por excelência agentes do demônio (as feiticeiras). E as mulheres têm mais conivência com o demônio ‘porque Eva nasceu de uma costela torta de Adão, portanto nenhuma mulher pode ser reta’. (MURARO, 1991, p. 15, grifo da autora).
O texto extemporâneo demonstra a influência exercida pelas concepções medievais misóginas na construção subjetivada das identidades das mulheres ao corroborar aspectos simbólicos que, pelo caráter maligno demarcado, exigem o rigor do controle normativo das instituições sociais. Como na ilustração, as mulheres têm sido historicamente colocadas em situações de inferioridade, mediante ajuizamentos construídos segundo determinações das relações de poder nas quais a prevalência é masculina. Essas conformações estereotipadas concorrem para manutenção de desigualdades atuantes nos diversos espaços da vida social e tais não se limitaram à época medieval e nem se restringiram aos aspectos específicos investigados pela igreja. Espraiaram-se na amplitude da vida social no sentido de policiar a vida das mulheres, as quais pela índole identificada, ou seja, tendência para as ações torpes, fracas de caráter, requerem vigilância e condução dos atos dadas pelos homens, com fortes e prolongados desdobramentos no âmbito da divisão sexual do trabalho.
3 O TRABALHO DAS MULHERES E OS PERCURSOS DE DESIGUALDADES
O desafio diário da sobrevivência concorreu para o desenvolvimento da capacidade criativa humana e invenção do trabalho, utilização dos recursos da natureza por meio da transformação a matéria em bem de uso, consumo e produção de riqueza. Pode-se anuir que a produção de bens absorve o trabalho das mulheres há milênios.
Enquanto a família existiu como uma unidade de produção, as mulheres e as crianças desempenharam um papel econômico fundamental. (SAFFIOTI, 2013, p. 62).
Entretanto, a presença das mulheres no trabalho foi obscurecida na medida em que a sua importância social e política declinava.
As mulheres eram ativas na coleta, nas primeiras atividades agrícolas, na produção de objetos e artefatos, mas, gradualmente, perderam o seu espaço de reconhecimento social para os homens que expandiam seus poderes com o domínio da técnica que se aplicava tanto à fabricação de armas quanto a equipamentos para a ampliação das atividades de plantio.
Para poder arar a terra, os grupamentos humanos deixam de ser nômades. São obrigados a se tornar sedentários. Dividem a terra e for¬mam as primeiras plantações. Começam a se estabelecer as primeiras aldeias, depois as cidades, as cidades-estado, os primeiros Estados e os impérios, no sentido antigo do termo. As sociedades, então, se tor¬nam patriarcais, isto é, os portadores dos valores e da sua transmissão são os homens. Já não são mais os princípios feminino e masculino que governam juntos o mundo, mas, sim, a lei do mais forte (MURARO, 1991, p. 5).
Paralelo ao progresso tecnológico, com conquistas significativas para a melhoria das condições de vida, os grupos humanos mais prósperos tornaram-se ambiciosos em termos de poder econômico e político. Guerras e butins se tornaram, também, meios de aumento de riqueza ao lado da posse da terra e da vida, notadamente de mulheres e crianças dos povos vencidos.
Na idade das trevas da Grécia, o Oikos, unidade econômica de produção para o autoconsumo e casa da família (BRUGNERA, 1998), é servível à situação a qual se busca compreender. É a ilha de Ítaca, morada de Odisseu (Ulisses para os Romanos), um dos espaços mostrados no épico de Homero, na Odisseia, obra na qual se pode fazer a leitura da condição das mulheres frente às relações sociais, econômicas e políticas de então. Penélope, esposa e rainha, na ausência do chefe e guerreiro seu marido Odisseu, assume, temporariamente, até a presumível volta do líder, o comando do reino. Embora a obra homérica enalteça os predicados da personagem como fidelidade, coragem e capacidade de gerir, centraliza-se no episódio o fato de que para a sociedade da época a substituição de um homem por uma mulher na liderança, em caráter permanente, era inaceitável. Em nome do costume, o direito da mulher à propriedade e aos bens do próprio grupo familiar era negado. Teria ela de casar- se compulsoriamente e obedecer ao novo esposo para quem prestaria serviços como responsável pela economia doméstica ao reassumir a condição subalterna. Daí o célebre tapete de Penélope tecido de dia e desmanchado à noite, pois que a heroína prometera escolher o substituto de Ulisses após o término da tessitura da peça, dentre os muitos pretendentes que a assediavam.
A cultura grega, base da construção do ocidente, manteve nos distintos períodos pelos quais transitou a secundarização das mulheres. Os escritores gregos deixaram registros merecedores de atenção quanto ao papel da mulher na sociedade grega.
Em Eurípides, a mulher é designada como oikurema, isto é, algo destinado a cuidar da casa (a palavra é neutra) e, além da procriação dos filhos, não passava de criada principal para o ateniense. (ENGELS, 2002, p. 17-18).
Noutros termos, as mulheres do lar estavam alijadas da vida pública, do espaço político, do exercício cívico da cidadania, da possibilidade de crescimento intelectual, dos potenciais artísticos, das expressões elevadas possibilitadas pelas atividades criativas. O papel principal da mulher limitava-a ao gineceu e cabia-lhe a reprodução dos filhos legítimos, os herdeiros do cidadão.
Em Roma, a situação das mulheres respondia a sua condição histórica de subalternidade advinda do estabelecimento da sociedade de classes, da família monogâmica, da propriedade privada (ENGELS, 2002) e do poder do pater famílias, praticamente ilimitado. Naquela configuração social na qual o patriarca, chefe do grupo, detém o poder de vida e morte sobre os próprios filhos, mulheres continuam tão somente a ser as reprodutoras dos descendentes. A ausência de possibilidade da participação no âmbito da produção, do trabalho socialmente reconhecido, está visível nas Leis das Doze Tábuas, célebre ordenamento jurídico romano cuja influência orientou a formulação das Leis no ocidente moderno e contemporâneo:
Tábua V - Da tutela hereditária: as mulheres não podiam gerir os negócios civis, permanecendo em tutela perpétua. Não se podia fazer Usucapião de coisas que estivessem sob a tutela da mulher (ela era absolutamente incapaz no início do período republicano). (VÉRAS NETO, 2006, p. 103-104).
A sujeição como condição permanente de tutela sob o poder masculino configurada em sociedades diferentes, em períodos históricos distintos, conservou o distanciamento dos direitos das mulheres em relação aos homens. Na antiguidade greco-romana, a família
[...] traduzia o tipo de uma organização política cujo princípio básico era a autoridade, e esta abrangia todos quantos a ela estavam submetidos [...] (NOGUEIRA, 2006, p.78).
E, na etapa seguinte, a medieval, manteve o mesmo caráter de centralidade decisória no homem. Além de ser o grupo, por excelência, da manutenção e transmissão de valores e normas sociais dominantes a família patriarcal era a base econômica no período pré-capitalista. Assim, o trabalho das mulheres das camadas menos privilegiadas tinha caráter fundamental, apesar da submissão incapacitante no âmbito decisório.
Mulheres sempre trabalharam
[...] nos campos, manufaturas, minas, lojas; nos mercados e nas oficinas, tecia e fiava, fermentava a cerveja e realizava outras tarefas domésticas. (SAFFIOTI, 2013, p. 62).
Na Inglaterra do período medievo, a mulher casada podia exercer atividades comerciais, ingressar na guilda mercante pela via do casamento com um integrante daquela organização. Entretanto, tal status só era permitido às casadas, escreve Saffioti (2013, p. 62) que informa também ter havido, no século XVII, esposas que partilhavam os afazeres comerciais dos maridos “[...] agiotas, proprietários de papelarias e navios, fornecedores de roupas para o exército e a marinha.” Contudo, a participação na economia pelas mulheres burguesas, também na
França anterior à Revolução Francesa, restringiu-se à esfera das negociantes.
O que realmente tinha significado, por se ter estabelecido há séculos, é a verdade vinculada à vocação natural das mulheres: o casamento e a maternidade e, por conseguinte, a vida doméstica e seus serviços. Nenhuma mulher seria completamente feliz, realizada, se não casasse. A completude da mulher consistia na obtenção de um marido. As que ficavam solteiras, por escolha ou circunstâncias, eram ainda mais inferiorizadas do que as casadas, sujeitas à discriminação. Tornar- se solteirona na sociedade patriarcal era visto como forma de rejeição difícil de suportar. Comenta Perrot (2009, p. 276) “[...] a mulher sozinha desperta desconfiança, reprovação e zombaria [...]” ao se referir à discriminação sofrida pelas mulheres solteiras.
Tradicionalmente, o casamento sempre fora um contrato de interesses recíprocos dos grupos familiares dos nubentes. Para as mulheres representava cumprir um papel social como esposa e assumir os encargos dele decorrentes. Historicamente secundarizada, posto que a escolha do marido não passava pela sua vontade, era compulsório assumir o trabalho doméstico familiar, como administradora da casa ou, quando as condições exigiam, na realização direta das tarefas. Entretanto, o labor das mulheres na atuação da economia de autoconsumo, na pequena economia de mercado e no trabalho do lar destinado a prover condições de sobrevivência para os trabalhadores, quando não invisibilizado, era secundarizado. Pode-se ver em tal desvalorização uma coerência desintegradora da identidade das mulheres, de forma a mantê-las no patamar edificado na base do patriarcado mediante a subalternidade, a dependência, a opressão e a exploração.
É indispensável para entender as relações de trabalho trazer o pensamento de Saffioti (2013) como contribuição, quando do nascente capitalismo. Explica a autora que na economia pré-capitalista a mulher integrava o sistema produtivo, apesar da sua inferioridade política e social. Por força da tradição das sociedades patriarcais o seu papel como trabalhadora era considerado menos relevante do que o do homem, visto como complementar, embora necessário para garantir a vida de privilégios dos grupos elitizados. Ressalta
[...] que o processo de sua expulsão do sistema produtivo já está esboçado na forma subsidiária assumida pelo seu trabalho.Tanto na economia feudal quanto na economia de burgo, e sobretudo nessa última que se prepara
o advento da economia urbana, fabril, o emprego da força de trabalho feminina encontra sérias barreiras. (SAFFIOTI, 2013, p. 65).
À medida que os progressos da técnica na produção e no mercado se materializavam sob a forma de riqueza, a burguesia patriarcal distanciava as mulheres dos processos de comando e decisão. Se a necessidade do trabalho feminino deixava de ser imprescindível nem por isso era dispensável. Tão somente se estabelecia mecanismos para manter as trabalhadoras sob o controle rígido da obediência e demarcar-se que o trabalho do homem, fosse frente à direção dos negócios ou na execução das ações, como operário, tinha maior valor.
No período de expansão capitalista, no século XIX, a divisão sexual do trabalho distancia as mulheres dos negócios dos quais antes participava. O enriquecimento da burguesia fizera a separação entre a casa da família e a loja comercial. Se num período menos próspero o burguês compartilhava os afazeres nos negócios com a mulher por necessidade e até por que residiam no mesmo local do trabalho, ao aumentar a fortuna estabelecia a residência separada da empresa. Reforça-se, de forma clara, o papel das mulheres responsáveis pelas tarefas domésticas necessárias à sobrevivência e bem- estar do conjunto dos membros da família, cuidados e primeira etapa da educação dos filhos. Confinadas ao ambiente de casa, o mundo feminino familiar passou a ser, mais uma vez na história, um agente limitador de possíveis emancipações.
Desde o começo do século XIX foram fundadas muitas escolas, que formaram rapazes e os iniciaram no futuro papel de “capitães de indústria”. As moças, por sua vez, eram sempre educadas em casa. (HALL, 2009, p. 59, grifo da autora).
Nesse período os avanços do capitalismo demandaram novas práticas comerciais e financeiras marcadas pela especialização desses espaços profissionais. Para as mulheres burguesas tais ambientes foram qualificados como inadequados o que, de fato, significaria a impossibilidade de ir além das práticas do lar e ganhar espaço profissional, reconhecimento social e direitos políticos.
Se as mulheres burguesas deviam ser senhoras do lar as esposas dos operários precisavam ser dotadas de habilidades suficientes para realizar as atividades domésticas. Cobbett (apud HALL, 2009, p. 69, grifo da autora), afirmava a importância da mulher do trabalhador na vida doméstica, pois “[...] saber fazer o pão e cerveja, desnatar o leite e fazer manteiga é que permitia que uma mulher fosse uma ‘pessoa digna de respeito’ [...]”. Caberia ao homem sustentar mulher e filhos enquanto socialmente códigos de conduta severos mantinham-nas submissas, exploradas e dependentes. Entretanto, isso não significava dispensar o trabalho feminino remunerado quando o homem estava desempregado, conquanto se considerasse indignidade a atividade laborativa da mulher fora do lar.
Essa forma particular da divisão social do trabalho tem dois princípios organizadores: o princípio de separação (existem trabalhos de homens e trabalhos de mulheres) e o princípio hierárquico (um trabalho de homem “vale” mais que um trabalho de mulher). Esses princípios são válidos para todas as sociedades conhecidas, no tempo e no espaço. Podem ser aplicados mediante um processo específico de legitimação, a ideologia naturalista. Esta rebaixa o gênero ao sexo biológico, reduz as práticas sociais a “papéis sociais” sexuados que remetem ao destino natural da espécie. (HIRATA; KERGOAT. 2007, p. 559, grifos das autoras).
Que a divisão sexual do trabalho como necessidade de sobrevivência socialmente construída tem situado a produção para os homens e a reprodução para as mulheres, há muito é sabido. Ocorreu, mediante as influências econômicas, históricas, culturais e políticas agregar-se valor social às ações efetuadas pelos homens e secundarizar o que fora atribuído às mulheres sem que a instauração do sistema capitalista combinado com os avanços científicos e tecnológicos modificasse, de modo significativo, a situação. Ao contrário, apoiado na exploração do trabalho, o capitalismo tem buscado múltiplas estratégias para assegurar o processo de acumulação e superar as crises cíclicas próprias do modelo. Na esteira de expropriações, de precarização, flexibilização, terceirizações, o trabalho das mulheres transita em dupla órbita ora com a possibilidade de acesso e ascensão, ora na permanência dos salários inferiores e desemprego em períodos críticos. No quadro multidimensional de implicações nas relações sociais, reinventam- se as velhas concepções eivadas de rotulações produzidas por mitos adequadas, então, ao modelo de sociedade capitalista patriarcal contemporânea. Assim, às mulheres é requisitada a incumbência da vida doméstica.
Na sociedade europeia desenvolvida, há uma questão presente reveladora da permanência e conflito em relação a antigos preceitos. Trata-se da divisão do trabalho social tratada como vínculo social, justificadora da política europeia na cúpula de Luxemburgo, em 1997, a qual afirma a
[...] “conciliação” vida familiar/vida profissional – política fortemente sexuada, visto que define implicitamente um único ator (ou atriz) dessa “conciliação”: as mulheres, e consagra
o status quo segundo o qual homens e mulheres não são iguais perante o trabalho profissional. Na própria essência dessa política há um paradoxo: a vontade de chegar à igualdade pela promoção da conciliação. (HIRATA; KERGOAT, 2007, p.603, grifo das autoras).
O debate acerca do trabalho das mulheres continua vivo, intenso, a requerer alternativas para resolver antigas e novas questões relativas à vida doméstica versus trabalho assalariado. O fato a destacar é a manutenção dos dilemas que sempre envolveram a dimensão doméstica do trabalho, pois as mulheres, ainda, sob o peso histórico das construções estereotipadas, sentem-se afetiva e emocionalmente como as grandes responsáveis pelos encargos da vida familiar.
Referências
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