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REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA: uma análise comparativa legal para o nascimento da propriedade social em São Luís
REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA: uma análise comparativa legal para o nascimento da propriedade social em São Luís
Revista de Políticas Públicas, vol. 21, núm. 2, pp. 1085-1102, 2017
Universidade Federal do Maranhão
Recepção: 20 Março 2016
Aprovação: 20 Fevereiro 2017
Resumo: O presente trabalho pretende fornecer subsídio jurídico ao problema social de posses ilegais no Município de São Luís. Faz uma análise comparativa da regularização fundiária prevista nas Leis Federais n. 11.977/09 e 13.465/17, to- mando como referência o Município de São Luís. Contudo, antes de utilizá-la, é necessário conhecer os proprietários na área objeto de regularização fundiária para definição dos procedimentos da lei mais recente. Propõe duas soluções para resolver os problemas sociais de moradia: a primeira é a conversão direta de posse em propriedade, sem esperar o tempo de 05 (cinco) anos, contado do registro do título da legitimação de posse e, a segunda, a possibilidade de esse título servir como garantia de financiamento imobiliário, antes da sua conver- são em propriedade.
Palavras-chave: Posse, propriedade, regularização fundiária, financiamento.
Abstract: The present work intends to provide legal support to the social problem of ille- gal possessions in the Municipality of São Luís. It makes a comparative analy- sis of land regularization foreseen in Federal Laws no. 11.977 / 09 and 13.465 / 17, taking as reference the Municipality of São Luís. However, before using it, it is necessary to know the owners in the land subject to land regularization to define the procedures of the most recent law. Two solutions were proposed to solve the social problems of housing: the first is the direct conversion of tenure into property, without waiting for the time of 05 (five) years, counting from the registration of the title of possession´s legitimation, and the second, the possibility of such title serving as real estate financing guarantee, prior to its conversion into property.
Keywords: Possession, property, land regularization, bank financing.
1 INTRODUÇÃO
Este artigo analisa um problema específico das cidades brasileiras: como resolver as ocupações urbanas ilegais sem esperar pelo longo resultado do processo judicial de usucapião? Como é possí- vel oferecer áreas possessórias como garantia imobiliária ao financiamento bancário? Eram perguntas com respostas insolúveis até a publicação da Lei Federal n° 11.977, de 9 de julho de 2009, que, posteriormente, foi substituída pela Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017, as quais tratam sobre a regularização fundiária de assentamen- tos localizados em áreas urbanas.
Ademais, a nova Lei que trata sobre regularização fundiária urbana, por si só, não tem o condão de resguardar o direito à mora- dia. É preciso conhecer, primeiro, cada localidade, para definir o tipo de procedimento jurídico adequado. Além disso, a experiência prática, no interior do Estado, demonstrou que o prévio conhecimento dos problemas sociais implica, geralmente, soluções diversas.
Na cidade de São Luís, os problemas de moradia são observados em decorrência da urbanização desorganizada, cujas soluções jurídicas serão diferenciadas para uma mesma localidade como, por exemplo, no bairro Alemanha, onde uma parte pertence à União, por ser terreno de marinha, enquanto a outra se divide em uma área privada registrada no cartório de imóvel, onde se localiza o Conjunto Newton Bello, outra grande área ocupada ilegalmente há décadas.
De fato, no Município de São Luís, o óbice não é a informação sobre as dificuldades em cada bairro, mas sim a falta de prudência aos operadores do direito na aplicação da norma jurídica. Nou- tros termos, a questão não é a ciência jurídica enquanto saber, e sim a falta de adequação da Lei Federal n° 11.977/2009 e, posteriormente, da Lei nº 13.465/2017 à realidade social.
Sendo assim, o presente trabalho busca fazer uma análise comparativa entre a Lei Federal n° 11.977/2009 e a Lei n° 13.465/2017, assim como a aplicação desta última para minimizar os problemas sociais do Município de São Luís, na medida em que se propõe estabelecer um procedimento básico de regularização fundiária urbana de São Luís a partir da Lei Federal mais recente, tais como a inicia- tiva do seu procedimento, a necessidade de abertura de matrícula imobiliária e os tipos de regularização fundiária urbana. Em seguida, far-se-á uma sugestão à Lei n° 11.465/2017, adequada a usucapião extraordinária da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil - CC), com a emissão de título de legitimação de posse conver- tido direto em propriedade, sem necessidade de declaração judicial. Por fim, será demonstrado como a legitimação de posse pode ser utilizada como garantia de financiamento bancário.
2 A LEI FEDERAL 11.977/2009 E AS INOVAÇÕES TRAZIDAS PELA LEI 13.465/2017
A Lei Federal n° 11.977/2009 instituiu a chamada regularização fundiária urbana, que pretendia não apenas a transformação de posses ilegais em propriedades válidas, mas também fornecer quali- dade de vida urbana e ambiental à sua população.
Em substituição à Lei supra, a Lei nº 13.465/2017 criou o termo Reurb para conceituar a regularização fundiária urbana comoo conjunto de “[...] medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes.”, conforme art. 9º da referida Lei. (BRASIL, 2017).
Essa Lei estabeleceu novos objetivos para regularização fundiária urbana; destacam-se, entre eles, conforme descrito no art. 10º: criar unidades imobiliárias compatíveis com o ordenamento territorial urbano e constituir sobre elas direitos reais em favor dos seus ocupantes (inciso II); concretizar o princípio constitucional da eficiência na ocupação e no uso do solo (inciso IX); prevenir e desestimular a formação de novos núcleos urbanos informais (inciso X); e franquear participação dos interessados nas etapas do processo de regularização fundiária (inciso XII).
A Reurb compreende duas modalidades: a Reurb de Interesse Social (Reurb-S), que corresponde à regularização fundiária aplicável aos núcleos urbanos informais ocupados predominantemente por população de baixa renda, assim declarados em ato do Poder Executivo Municipal; e a Reurb de Interesse Específico (Reurb-E), aplicável aos núcleos urbanos informais ocupados por população não qualificada na primeira modalidade. (BRASIL, 2017, art. 13, incisos I e II).
Segundo a Lei nº 13.465/2017, a classificação do interesse visa exclusivamente identificar responsáveis pela implantação ou adequação das obras de infraestrutura essencial e reconhecer o direito à gratuidade das custas e emolumentos notariais e registrais em favor daqueles a quem for atribuído o domínio das unidades imobiliárias regularizadas.
Ademais, a regularização fundiária é de responsabilidade de todos os entes políticos da Federação (direta e indireta), e estes formularão e desenvolverão no espaço urbano as políticas de suas com- petências de acordo com os princípios de sustentabilidade econômica, social e ambiental e ordenação territorial, buscando a ocupação do solo de forma eficiente, combinando seu uso de forma funcional.
Nesse contexto, convém salientar que, tanto a Lei nº 11.977/2009 (revogada parcialmente) como a Lei nº 13.465/2017 estabeleceram que qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, pode ser uma empreendedora desse projeto de regularização fundiária urbana, inclusive as serventias extrajudiciais do Maranhão. Com efeito, as pessoas físicas ou jurídicas, públicas ou privadas, serão agentes multiplicadores da regularização fundiária urbana, trabalhando em parceria com os órgãos públicos (Município de São Luís, o Ministério Público e o Poder Judiciário do Maranhão).
No caso em apreço, o Município de São Luís tem a maior concentração de núcleos habitacionais de posseiros, cujas áreas estão desvalorizadas, entre outros fatores, por falta de políticas públicas, aumento da violência social e ausência de inscrição no fólio real.
O benefício trazido pela Lei n° 11.977/2009 (art. 58º) e man- tido pela Lei nº 13.465/2017 (art. 25º) foi a conversão da posse em propriedade, com a emissão de documento emitido pelo Município, chamado de título de legitimação de posse, registrável no fólio real. (BRASIL, 1973b, art. 167º, I-41).
Pela Lei nº 11.977/2009, a legitimação de posse devidamente registrada constitui direito em favor do detentor da posse direta para fins de moradia (BRASIL, 2009, caput do art. 59º), cuja conversão em propriedade dar-se-á após cinco anos do seu registro na serventia imobiliária (BRASIL, 2009, caput do art. 60º), para áreas até 250 m² (duzentos e cinquenta metros quadrados).
Do contrário, diz o seu § 3° do art. 60º dessa Lei Federal: “No caso de área urbana de mais de 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados), o prazo para requerimento da conversão do título de le- gitimação de posse em propriedade será o estabelecido na legislação pertinente sobre usucapião.” (BRASIL, 2009).
Contudo, a Lei nº 13.465/2017 dispôs que a expedição do título de legitimação de posse constitui direito em favor do detentor da posse direta para fins de moradia, após cinco anos do seu registro, cuja conversão em propriedade dar-se-á de forma automática, desde que atendidos os termos e as condições do art. 183º, da Constituição Federal de 1988, independentemente de prévia provocação ou práti- ca de ato registral (BRASIL, 2017, caput do art. 26º).
Além disso, a referida Lei, em seu § 1° do art. 26º, dispõe que:
Nos casos não contemplados pelo art. 183, da Constituição Federal, o título de legitimação de posse poderá ser conver- tido em título de propriedade, desde que satisfeitos os requi- sitos de usucapião estabelecidos na legislação em vigor, a requerimento do interessado, perante o registro de imóveis competente. (BRASIL, 2017).
Assim, observa-se que a Lei n° 13.465/2017 buscou facilitar a conversão posse, para fins de moradia, em propriedade, determi- nando que ela se dará de forma automática, desde que obedecidos os requisitos do art. 183º, da Constituição Federal (CF).
Ressalta-se que a Lei nº 11.977/2009, ao conceituar legitimação de posse (art. 47, inciso IV), dispôs que é “[...] ato do poder público destinado a conferir título de reconhecimento de posse de imóvel objeto de demarcação urbanística, com a identificação do ocupante e do tempo e natureza da posse.” (BRASIL, 2009).
Nesse caso, nos termos da referida Lei, o título de legitimação de posse não decorria somente do auto de demarcação urbanística1, mas também de outros procedimentos não previstos legalmente, tais como na legitimação fundiária2 (prevista na Lei n° 13.465/2017). Ressalta-se que, quando o beneficiário individual inicia o procedimento de regularização de sua posse (BRASIL, 2009, art. 50º), não há exigência legal de auto de demarcação para emissão de título de legitimação de posse, bem como esse procedimento administrativo tornar-se-á burocrático e financeiramente inacessível à população de baixa renda.
Aliás, o art. 288º-D da Lei n° 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos), que atualmente se encontra revogada pela Lei n° 13.465/2017, somente obrigava ao Município que fizesse o requerimento ao registro de imóveis para averbar a de- marcação urbanística, sem qualquer obrigação símil ao beneficiário individual.
Já a Lei nº 13.465/2017, em seu art. 11º, inciso VI, conceituou a legitimação de posse como um “[...] ato do poder público destinado a conferir título, por meio do qual fica reconhecida a posse de imóvel objeto da Reurb, conversível em aquisição de direito real de propriedade na forma desta Lei, com a identificação de seus ocupantes, do tempo da ocupação e da natureza da posse.” (BRASIL, 2017).
Ademais, a nova Lei de regularização fundiária não manteve o dispositivo legal que exigia o auto de demarcação urbanística para concessão do título de legitimação de posse do detentor.
Sendo assim, basta que o beneficiário (ocupante) prepare a documentação de regularização fundiária urbana de sua área, passe pelo crivo do Município e, ato contínuo, receba deste órgão o título de legitimação de posse, a fim de o beneficiário levá-lo ao registro de imóvel competente.
Desse modo, o que se propõe é a divulgação de um procedimento básico de regularização fundiária urbana para o Município de São Luís, que poderá ser elaborado em parceria com órgãos públicos (União, Estado, Ministério Público e Poder Judiciário), conforme a área objeto de regularização fundiária seja pública ou privada, tais como no bairro do João Paulo e Alemanha, onde também coexistem propriedades pública e privada
É conveniente, portanto, seguir as seguintes etapas propostas ao procedimento de regularização fundiária urbana, tais como: (i) conhecer e delimitar as áreas públicas, separando-as das privadas por exclusão; (ii) delimitar, por estimativa, dentro das áreas privadas, as que são iguais ou superiores a 250 m², bem como as áreas iguais ou inferiores a 250 m²; (iii) em seguida, estabelecer proce- dimento de regularização fundiária urbana de interesse social ou de interesse específico e, por fim, (iv) fixar os critérios de análise do projeto de regularização fundiária pela Município de São Luís/MA.
3 PROPOSTA DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA DE SÃO LUÍS
Por ser uma Ilha costeira marítima, a maior parte das áreas do Município de São Luís pertence à União, especificamente nos chamados terrenos de marinha, os quais não foram alcançados pelo inciso IV do art. 20 da Constituição Federal, alterada pela Emenda Constitucional n° 46, de 5 de maio de 2005, a saber: IV - as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países; as praias marítimas; as ilhas oceânicas e as costeiras, excluídas, destas, as que contenham a sede de Municípios, exceto aquelas áreas afetadas ao serviço público e a unidade ambiental federal, e as referidas no art. 26, II; (BRASIL, 2005).
Sendo assim, é necessário recorrer à Secretária de Patrimônio da União (SPU) e, eventualmente, às 1ª e 2ª Zonas de Registro de Imóveis de São Luís para obter informações precisas da localização de propriedades da União, notadamente dos terrenos de marinha. Ademais, as áreas ambientais de mangues e de praias também deverão ser separadas das áreas privadas.
Quanto aos bens ambientais, são públicos de uso comum do povo, e não de uso especial ou dominicais, isto é, os bens ambientais são patrimônio nacional, ainda que não estejam dentro das áreas delimitadas pelo § 4° do art. 225º da CF de 1988, in verbis:
A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais. (BRASIL, 1988, grifo nosso).
Noutros termos, são bens administrativos que contêm limitação administrativa oriunda da própria Constituição Federal, prescindível de inscrição no acervo de registro de imóvel (fólio real).
Quanto aos demais entes estatais (Estado e Município), as informações serão obtidas respectivamente no Instituto de Terras do Estado do Maranhão (ITERMA) e no órgão municipal específico sobre urbanização de São Luís, sem prejuízo de outros dados constantes nos órgãos da administração pública ou em instituições privadas.
No que se refere às áreas devolutas, não se considera que a ausência de registro de imóveis resulte automaticamente em um bem público, consoante entendimento pacificado no Supremo Tribunal Federal, in verbis:
Com efeito, não se pode desconhecer que a mera ausência de registro imobiliário não é suficiente, só por si, para configurar a existência de domínio público, mesmo porque tal circunstância não induz à presunção, ainda que “juris tantum”, de que as terras destituídas de inscrição no Registro de Imóveis sejam necessariamente devolutas, consoante tem proclamado a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que exige, do Estado, a prova inequívoca de que lhe pertence à titularidade dominial do bem imóvel. (BRASIL, 2012, grifos nossos).
Por outro lado, também é necessário conhecer quais são as áreas em conflitos judiciais dentro do Município de São Luís, a fim de excluí-las do procedimento de regularização fundiária urbana, ex- ceto se houver previamente extinção do feito judicial.
Eis aí, portanto, um procedimento básico para que qualquer pessoa (pública ou privada) possa desenvolver ou adequá-lo à sua necessidade específica de regularização fundiária urbana no Municí- pio de São Luís/MA.
3.1 Da Regularização Fundiária pela Lei nº 13.465/2017
O art. 14º da Lei n° 13.465/2017 conferiu legitimidade aos proprietários de imóveis ou de terrenos, loteadores ou incorporado- res, assim como a Defensoria Pública, em nome dos beneficiários hipossuficientes e o Ministério Público, para requerer a regularização fundiária urbana.
Contudo, o requerimento de instauração da Reurb por proprietários de terreno, loteadores e incorporadores que tenham dado causa à formação de núcleos urbanos informais, ou os seus suces- sores, não os eximirá de responsabilidades administrativa, civil ou criminal, nos termos do art. 14º, § 10, da Lei nº 13.465/2017. (BRASIL, 2017).
No caso, estima-se que há muitas áreas devolutas no Município de São Luís, seja porque não têm registro imobiliário, seja porque não se encontram em terrenos de marinhas e/ou áreas ambientais (federais ou estaduais), nas quais podem os seus ocupantes requerer diretamente à serventia o registro da regularização fundiária. (BRASIL, 2017, art. 42º).
Nesse sentido, após a aprovação dos projetos de regularização fundiária (de interesse específico e de interesse social) e da emissão do certificado de regularização fundiária (CRF), emitido pelo Muni- cípio, os legitimados devem procurar diretamente a serventia extra- judicial para abertura de matrículas das áreas objeto de titulação, se não houver registro ou matrícula anterior.
Identicamente à Lei n° 11.977/2009, a Lei n° 13.465/09 estabeleceu dois tipos de regularização fundiária urbana: interesse social e interesse específico, as quais foram conceituadas pelos incisos I e II do art. 13º da Lei nº 13.465/2017, a saber:
Art. 13. A Reurb compreende duas modalidades:
I - Reurb de Interesse Social (Reurb-S) - regularização fundiária aplicável aos núcleos urbanos informais ocupados predominantemente por população de baixa renda, assim declarados em ato do Poder Executivo municipal; e
II - Reurb de Interesse Específico (Reurb-E) - regularização fundiária aplicável aos núcleos urbanos informais ocupados por população não qualificada na hipótese de que trata o inciso I deste artigo. (BRASIL, 2017).
Nessa situação, a legislação utilizou o critério econômico – que será fixado por cada Município, conforme suas realidades fac- tuais –, para definição de regularização fundiária de interesse social, enquanto que a de interesse específico definiu-se por exclusão da primeira.
A Lei n° 13.465/2017 determinou que o tamanho da área de até 250 m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) não caracteriza a regularização fundiária de interesse social (Reurb-S), mas serve como critério temporal de conversão em propriedade, a partir da legislação específica sobre usucapião (constitucional ou CC), conforme o art. 26º, § 1°, descrito a seguir:
Art. 26. Sem prejuízo dos direitos decorrentes do exercício da posse mansa e pacífica no tempo, aquele em cujo favor for expedido título de legitimação de posse, decorrido o prazo de cinco anos de seu registro, terá a conversão automática dele em título de propriedade, desde que atendidos os termos e as condições do art. 183 da Constituição Federal, independentemente de prévia provocação ou prática de ato registral.
§ 1° Nos casos não contemplados pelo art. 183 da Constituição Federal, o título de legitimação de posse poderá ser convertido em título de propriedade, desde que satisfeitos os requisitos de usu- capião estabelecidos na legislação em vigor, a requerimento do interessado, perante o registro de imóveis competente. (BRASIL, 2017, grifo nosso)
Noutros termos, se o legitimado ocupar ininterruptamente uma área de até 250 m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, após cinco anos do registro da Reurb-S (BRASIL, 1988, art. 183º, 2017, art. 26º).
Do contrário, não preenchendo os requisitos acima, tais como, não ocupar ininterruptamente uma área de até 250 m², o legitimado poderá solicitar a conversão da sua posse em propriedade, a partir do registro desse título no fólio real, em 15 (quinze) ou 10 (dez) anos, nos termos previstos para usucapião extraordinária, nos termos do art. 1.238º3 do CC combinado com o §1° do art. 26 da Lei nº 13.465/2017. (Figura 1).
Desse modo, o que diferencia os tipos de regularização fundiária urbana de interesse social, do interesse específico, são as hipóteses normativas da Lei nº 13.465/2017, e não o tamanho de área de até 250 m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) que serve para os tipos de usucapião constitucional e do CC.
4 TÍTULO DE LEGITIMAÇÃO DE POSSE
A regularização fundiária urbana é mais adequada para resolver problemas de ocupações ilegais sem recorrer ao Poder Judiciário, por meio da chamada legitimação de posse, que foi conceituada, conforme inciso IV do art. 47º da Lei n° 11.977/2009, como um “[...] ato do poder público destinado a conferir título de reconhecimento de posse de imóvel objeto de demarcação urbanística, com a identificação do ocupante e do tempo e natureza da posse.” (BRASIL, 2009).
Registre-se que o caput do art. 25º da Lei nº 13.465/2017 conceituou a legitimação de posse, como um “[...] instrumento de uso exclusivo para fins de regularização fundiária, constitui ato do poder público destinado a conferir título, [...], com a identificação de seus ocupantes, do tempo da ocupação e da natureza da posse.” (BRASIL, 2017).
A legitimação de posse não ocorre somente em áreas privadas ou devolutas, mas também em área pública, destinadas exclusivamente à regularização fundiária de interesse social, em razão do benefício da dispensa de licitação, nos termos do art. 17º, inciso I-f, da Lei n° 8.666, de 21 de junho de 1993, bem como a averbação da construção independe de prova de inexistência de débito previdenciário, nos termos da letra e do § 6° do inciso II do art. 47º da Lei n° 8.212, de 24 de julho de 1991.
Aliás, a legitimação de posse em terras públicas não é novida- de da Lei n° 13.465/2017, pois já existia no art. 5° da Lei n° 601, de 18 de dezembro de 1850 (Lei de Terras); sendo prevista, depois, no art. 57º combinado com o art. 164º, ambos do Decreto-Lei n° 9.760, de 5 de setembro de 1946 (dispõe sobre bens imóveis da União) e, por fim, no art. 29º da Lei n° 6.383, de 7 de dezembro de 1976 (dispõe sobre processo discriminatório de terras devolutas da União).
Contudo, a diferença da legitimação de posse das citadas Leis Federais da legitimação de posse da Lei n° 13.465/2017 é a gratuidade na sua concessão e no seu registro imobiliário.
No processo discriminatório de terras devolutas da União, o § 1° do art. 29º da Lei n° 6.383/1976 diz que a legitimação de posse consiste no fornecimento de uma licença de ocupação para o uso, de no mínimo, de quatro anos, findo o qual o ocupante terá prefe- rência para aquisição do lote ocupado. No mesmo sentido dispõe o Decreto-Lei sobre bens da União, ao dizer que a legitimação de posse decorrerá do pagamento da taxa de legitimação (Decreto-Lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946, caput do art. 164).
Quanto à natureza jurídica da legitimação de posse da Lei nº 13.465/2017, tem configuração de posse, embora registrável no livro de registro de imóvel (fólio real), consoante o art. 167º, inciso I-41, da Lei n° 6.015/1973, visto que as referidas Leis usam o termo conversão da legitimação de posse em propriedade, em vez de consolidação da legitimação de posse em domínio, reforçando a ideia possessória daquela legitimação.
Contudo, a legitimação de posse tem uma noção jurídica diversa em relação à posse do art. 1.196º do CC4, que manteve o texto similar ao art. 485º do CC de 19165.
Desde o CC de 1916, o direito civil brasileiro reconhece a posse como um mero estado de fato que tutela os seus efeitos possessórios. Nos comentários daquele Código, Clóvis Beviláqua (1956, p.39) afirmava o seguinte:
A posse, considerada em si mesma, funda-se em um mero fato e se apresenta como estado de fato; mas uma vez firmada, nela a ordem jurídica, em atenção à paz social e à personalidade humana, respeita o que ela apresenta ser, reconhece o jus possessionis, o direito de posse, que os interditos defendem. Eis a explicação desta forma especial do direito. É um interesse que a lei protege; portanto, é um direito.
Ademais, para além dos efeitos possessórios, Beviláqua (1956, p. 29) também dizia que o CC de 1916 adotou a teoria objetiva de Jhering “[...]quanto ao conceito de posse como uma visibili- dade da propriedade.”, reconhecendo-a como um direito real, e não pessoal.
Entretanto, ainda que tenha visibilidade da propriedade com natureza de direito real, isso não tem o condão de atribuir à posse a natureza de direito de propriedade (BRASIL, 1916, art. 674º6, BRASIL, 2002, art. 1.225º7), razão pela qual o sistema de registro público brasileiro aproxima-se do sistema alemão, porque os incisos I e II do art. 167º da Lei n° 6.015/1973 não alcançam os atos e negócios jurídicos possessórios no fólio real.
Com efeito, a transmissão da posse não significa disposição sobre a coisa, mas apenas a transmissão temporal de ocupação da coisa para fins de usucapião e proteção possessória. Nesse aspecto, Tepedinho (2011, p. 46, grifo nosso) afirma que:
Admitida a posse como direito subjetivo, discute-se a natureza real ou pessoal do direito possessório. Na construção de Jhering, a pos- se foi concebida como direito real, e a significar ‘uma relação imediata da pessoa com a coisa’. [...] Martin WolR, no direito alemão, afirma que, ao contrário da propriedade e de outros direitos reais definitivos, o BGB [Bürgerliches Gesetzbuch] não inclui a posse como direito real. Argumenta, ainda, que o sistema registrário não abrange a posse.
Assim, o conceito de disposição abrange não somente a transmissão da coisa em si mesma, mas também a transmissão dos direitos inerentes a ela, tais como o direito usar, gozar e dispor. (SCHAPP, 2010).
Por outro lado, a legitimação de posse da Lei nº 13.465/2017– antes de sua conversão em propriedade – é transferível por causa mortis ou por ato inter vivos (BRASIL, 2017, art. 25º, § 1°), configurando-se um direito disponível e, por conseguinte, passível de inscrição no fólio real, nos termos do art. 167º, inciso I-41, da Lei n° 6.015/1973.
Nessa esteira, como a legitimação da posse é um direito disponível, é possível a constituição do direito real de garantia sem o desapossamento do bem (penhor, hipoteca e anticrese – arts; 1.419º a 1.430º do CC) ou, ainda, do direito real em garantia com transferência do bem sem o desapossamento da coisa (alienação fiduciária da propriedade imóvel – caput do art. 228 da Lei n° 9.514, de 20 de novembro de 1997), conforme dispõe Penteado (2008).
Nesse contexto, é possível afirmar que o ocupante de área objeto de regularização fundiária pode obter financiamento imobiliário junto ao Sistema Financeiro de Habitação, dando como garantia o seu direito sobre a legitimação de posse.
Estima-se que grande parte das áreas privadas e sem conflito judicial no Município de São Luís estão acima de 250 m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) sem preencher o requisito constitu- cional do art. 183º da CF/1988, invocando, assim, a norma do § 1° do art. 26º da Lei nº 13.465/2017.
Nesse ponto, cabe analisar a finalidade dessa disposição normativa que remete à legislação especial de usucapião, no caso, o caput do art. 1.2389 do CC, que deixa evidente os seus pressupostos: (i) a posse; (ii) uso manso e pacífico; (iii) tempo e (iv) animus domini (a intenção de ter a coisa como dono).
Não se olvide que, na usucapião extraordinária, não importa se o tamanho da área é superior ou inferior a 250 m² (duzentos e cinquenta metros quadrados), nem se o ocupante está de boa ou má-fé, tampouco se há título justo, mas, ao revés, se o ocupante observou aqueles pressupostos legais mencionados.
Ora, uma vez preenchido tais requisitos do art. 1.238º do CC, adquire-se o direito à propriedade, possível de declaração judicial de usucapião, resultando numa sentença de natureza declaratória, cujo efeito no registro imobiliário, nos termos do art. 167º, I-28, da Lei n 6.015/1973, é apenas para fins de publicidade e transmissão a terceiros, em observância ao princípio da continuidade registral. (BRASIL, 1973b, art. 195º).
Na espécie, quando o Município (ou a autoridade licenciadora) aprova o projeto de regularização fundiária urbana de interesse social ou de interesse específico, implica um reconhecimento administrativo sobre o direito à propriedade plena que se encontra no patrimônio jurídico do ocupante da área objeto de regularização fundiária, sem prejuízo de decisão judicial em contrário.
Segundo Tepedinho (2011, p. 276), considera-se plena a propriedade que “[...] reúne em torno do seu titular todas as faculdades que compõem a senhoria, assim considerada o núcleo de aproveita- mento econômico do domínio faculdades de usar, fruir e dispor da coisa”.
Uma vez preenchidos os requisitos ex lege para declaração judicial de usucapião extraordinário, com maior razão dar-se-á no âmbito administrativo da regularização fundiária de interesse social ou de interesse específico, com área superior ou inferior a 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados), com vistas ao beneficiário do projeto da regularização fundiária urbana receber o seu título de legitimação de posse convertido em propriedade, passível de registro imobiliário, nos termos do art. 167º, I-42, da Lei n° 6.015/197310.
Desse modo, se juridicamente é desnecessário esperar 05 (cinco) anos, do registro do título de legitimação de posse até a sua conversão em propriedade, quando se tratar de área superior a 250 m² (duzentos e cinquenta metros quadrados), com maior razão, é despiciendo aos ocupantes de áreas inferiores a 250 m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) esperar o mesmo lapso temporal, quando observarem os requisitos dessa norma de usucapião extraordinária, visto que a Lei n° 13.465/2017 não traz nenhum dispositivo restringindo proposta de emissão de título de legitimação de posse convertido direto em propriedade.
5 CONCLUSÃO
Como visto nas linhas anteriores, este trabalho fez uma análise comparativa da regularização fundiária prevista nas Leis Federais n°s 11.977/2009 e 13.465/2017, tomando como referência o Município de São Luís, onde coexistem várias propriedades públicas e privadas, pressupondo soluções diversas para concessão de títulos dominiais aos ocupantes ilegais, com a participação de vários atores sociais.
Inicialmente, é necessário individualizar as áreas que serão regularizadas, separando as públicas das privadas, para estabelecer procedimentos complementares ao previsto na Lei n° 13.465/2017, para converter posse em propriedade, que é uma forma indireta de usucapião administrativo.
Nesse ponto, a ideia de regularização fundiária tem uma finalidade social muito importante contra o déficit habitacional, ocasio- nada pela ausência de registro anterior nas serventias extrajudiciais, razão pela qual o art. 216º-A da Lei nº 6.015/1973, alterada pelo art. 7° da Lei n° 13.465/2017, que trata de usucapião administrativo, permitiu a abertura de matrícula, se for o caso.
Quanto ao tempo de 05 (cinco) anos para conversão da posse em propriedade, demonstrou-se a desnecessidade de aguardar esse lapso temporal quando se preenchem os requisitos legais da usuca pião extraordinária do CC, pois, do contrário, as pessoas deveriam recorrer ao Poder Judiciário, algo que iria de encontro à própria lógica da Lei n° 13.465/2017, cuja pretensão é resolver as posses ilegais pela via administrativa, de maneira menos burocratizada, sem perder a segurança jurídica do direito imobiliário.
Em relação ao problema de valorização de áreas ocupadas ilegalmente, especialmente sobre o financiamento imobiliário, a Lei n° 13.465/2017 permitiu indiretamente a possibilidade de financiamento bancário por meio da legitimação de posse, visto que a referida Lei admite expressamente a disponibilidade jurídica de bens imóveis registrados sob o título da legitimação de posse, algo que não era previsto expressamente na Lei Federal n° 11.977/2009.
Pelas razões discutidas neste trabalho, fez-se uma proposta de interpretação da regularização fundiária urbana da Lei n° 13.465/2017, para solver os problemas sociais do Município de São Luís, promovido por setores público e privado, auxiliado por financiamento bancário acessível à população.
REFERÊNCIAS
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Notas