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EXPERIÊNCIAS E CRIAÇÕES DE POLÍTICAS CULTURAIS NO PONTO DE CULTURA RECREIO DAS ARTES, SOBRAL-CE
Fátima Regina Portela de Menezes
Fátima Regina Portela de Menezes
EXPERIÊNCIAS E CRIAÇÕES DE POLÍTICAS CULTURAIS NO PONTO DE CULTURA RECREIO DAS ARTES, SOBRAL-CE
EXPERIENCES AND CREATIONS OF CULTURAL POLICIES AT THE POINT OF CULTURE RECREIO OF THE ARTS, SOBRAL-CE
Revista de Políticas Públicas, vol. 22, núm. 1, pp. 155-172, 2018
Universidade Federal do Maranhão
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Resumo: O presente artigo objetiva descrever e analisar as iniciativas culturais e ex- periências organizadas e mantidas pelo Ponto de Cultura Recreio das Artes, localizado na comunidade do Recreio no município de Sobral. A descrição é permeada por uma breve análise das políticas culturais anteriores à criação dos pontos de cultura e uma apresentação do contexto em que foi criado o Progra- ma Arte, Cultura e Cidadania – Cultura Viva, bem como das características que garantiram a sobrevivência das iniciativas populares financiadas.

Palavras-chave:Programa Cultura VivaPrograma Cultura Viva,Pontos de CulturaPontos de Cultura,Políticas Cultu- raisPolíticas Cultu- rais.

Abstract: This article describes the cultural initiatives and experiences organi- zed and maintained by the Culture Recreation Point of the Arts, located in the Recreio community in the municipality of Sobral. The description is permeated by a brief analysis of cultural policies prior to the creation of culture points and a presentation of the context in which the Cultu- re, Culture and Citizenship Program was created, as well as the charac- teristics that guaranteed the survival of the popular initiatives funded

Keywords: Living Culture Program, culture points, cultural policies.

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Artigos - Dôssie Temático

EXPERIÊNCIAS E CRIAÇÕES DE POLÍTICAS CULTURAIS NO PONTO DE CULTURA RECREIO DAS ARTES, SOBRAL-CE

EXPERIENCES AND CREATIONS OF CULTURAL POLICIES AT THE POINT OF CULTURE RECREIO OF THE ARTS, SOBRAL-CE

Fátima Regina Portela de Menezes
Universidade Federal do Ceará - UFC, Brasil
Revista de Políticas Públicas, vol. 22, núm. 1, pp. 155-172, 2018
Universidade Federal do Maranhão

Recepción: 22 Diciembre 2017

Aprobación: 02 Abril 2018

1 INTRODUÇÃO

A vontade e o interesse de perceber como setores da sociedade, articulados em seus movimentos, põem em ação e se relacionam com as políticas públicas de cultura, especialmente estas que fazem parte do Programa Cultura Viva, através dos projetos contemplados pelos editais dos Pontos de Cultura é um dos interesses que motivaram o desenvolvimento da presente pesquisa.

Com isso, buscamos compreender a ação e a relação dos sujeitos coletivos com as políticas culturais, gerando reflexões e questionamentos do tipo: como os atores sociais se apropriam das politicas culturais instituídas pelo Estado? Quais as políticas culturais criadas pelos mesmos? Como se dá o processo da gestão compartilhada entre Estado e sociedade civil, quais os interesses e as relações de poder estabelecidos? Quais são as motivações criadas pelos sujei- tos no fazer cultural das ações desenvolvidas pelo ponto? E Como o Ponto de Cultura Recreio das Artes interfere nas produções, criações e práticas dos artistas e moradores?

Essas são as questões de partidas que motivaram a presente pesquisa. Assim, por meio dessas perguntas, busca-se avaliar a PCV, tendo como campo empírico o Ponto de Cultura Recreio das Artes devido à diversidade de grupos e coletivos culturais que fazem parte do mesmo.

A compreensão do modelo de avaliação de políticas públicas, aqui empreendida, não é um simples processo de análise e verificação de obtenção de resultados, como segue os modelos tradicionalistas. Mas escolho trilhar e construir os caminhos da presente pesquisa sustentados na avaliação experiencial, proposta essa desenvolvida por Raul Lejano (2012, p. 206), que tem como foco analítico a experiência, ou seja, nesse modelo o que conta “[...] é nossa interpretação de uma situação política em comparação com a experiência concreta dos atores políticos”.

Diante disso me apoio no modelo de estruturas de cuidado pensado por Lejano (2012, p. 268), que é na verdade um modelo de análise institucional proposto por ele para descrever e analisar as instituições a partir da ação coletiva e não somente a partir de “[...] um foco macroscópico na estrutura de um sistema ou de um foco microscópico no ator individual”.

Pensar e analisar o Ponto de cultura Recreio das Artes a partir das estruturas de cuidado é estar atento ao trabalho e retrabalho ativo dos relacionamentos e, não somente às relações formalmente estabelecidas, pois, segundo Lejano (2012), os indivíduos podem ser membros de diferentes conjuntos ao mesmo tempo, e um conjunto pode fazer parte de outro conjunto de maior ordem estabelecendo relacionamentos complexos e ativos entre os atores políticos. Isso nos dá uma noção de instituições não como sistemas estáticos de regras ou estruturas, mas sim transacionais.

A construção das nossas relações é comparada a um tecido de relações móveis onde somos construídos e construímos nossas percepções e atuações no mundo, a partir do envolvimento ou tessituras que formam as redes nas quais estamos entrelaçados. Vale ressaltar que essas relações são sempre permeadas e compostas por afetos e interesses. Pois existir é a capacidade de afetar e ser afetado, é agir no mundo, como disse Spinosa (2009). Compartilho da visão spinosiana que os afetos constituem-se como forças que são geradas nos encontros dos corpos e que, dependendo desses encontros, eles aumentam ou diminuem nossa capacidade de agir no mundo.

E conforme a sociologia configuracional de Nobert Elias e Scotson (1994) e Elias (2000), nesse sentido, as relações podem ser vistas como um espaço de interações e de redes intercomunicantes, onde as correlações são sempre relacionais e o indivíduo existe, enquanto tal, apenas quando compondo uma rede de interdependências, em um sistema de interações sempre tenso e conflitual, por onde se realiza sua identidade individual e social e se organiza sua vida emocional.

Com essa ideia, me disponho a compreender melhor as tessituras, ou seja, os fios, vínculos e redes de relacionamentos que os principais sujeitos sociais teceram a partir da experiência de criação do Ponto de Cultura Recreio das Artes.

Para alcançar tal objetivo, proponho o modelo experiencial de análise, ou seja, observar e analisar o PCV a partir das experiências vividas e das particularidades que o contexto específico apresenta, pois à medida que o campo sociocultural se transforma, outros ato res começam a surgir e a ganhar força. Assim, não se pode definir ou analisar os atores e agentes de uma política cultural sem considerar as peculiaridades do contexto sociocultural em análise.

Realizo uma pesquisa de natureza qualitativa1 com inspiração etnográfica, pois a mesma preocupa-se com uma análise, isto é, a cultura não é vista como um mero reflexo de forças estruturais da sociedade, mas como um sistema de significados mediadores entre as estruturas sociais e a ação humana; segundo, por introduzir os atores sociais com uma participação ativa e dinâmica no processo modificador das estruturas sociais.

Mas, enfim, se me cabe o direito de defender, entre as tantas definições conceituais existentes, uma que julgo mais completa, o faço transcrevendo as palavras de CliRord Geertz (2011, p. 15), quando diz:

O conceito de cultura que eu defendo, [...] é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado.

Geertz (2011) levanta novas abordagens metodológicas que torna o trabalho do antropólogo mais interessante no sentido de não ser tão preso a estruturas ou sistemas que enquadrem os comportamentos humanos, abrindo espaço para a construção do conhecimento sobre o outro, que deve ser de forma interpretativa.

O método etnográfico, segundo Geertz (2011), é a construção de uma pesquisa que terá como resultado uma descrição densa, dos sujeitos e ações que envolvem a pesquisa; esta descrição será interpretativa; interpretará aquilo que está presente no discurso social; esta mesma descrição, como o próprio Geertz diz, salvará aquilo que foi dito e tentará fixá-lo em formas pesquisáveis, até para não serem extintos, e, além disso, ela é microscópica. Microscópica não se limitando ao sentido de estudar ações locais e se restringir a estas análises somente a nível local. É preciso e possível relacionar as nossas pesquisas locais com questões que são e até mesmo devem ser analisadas e comparadas com problemáticas que não sejam somente de interesse local.

Fazer “[...] etnografia é como tentar ler, no sentido de construir uma leitura de […]” (GEERTZ, 2011, p. 20). E elaborar uma descrição densa, “[...] é como tentar ler um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e co- mentários tendenciosos [...]” (GEERTZ, 2011, p. 20); porém, o que interessa não é a interpretação e explicação dos fatos de forma isolada, e sim, a importância do conjunto, como ele está sendo vivido e transmitido, perpetuado pela adaptação de quem chega e se insere na tessitura dos significados.

E como ferramentas metodológicas, utilizo a pesquisa documental referente aos marcos legais e institucionais; realizei pesquisa de campo, registro de narrativas pessoais através de gravações em áudio e vídeo e a entrevista compreensiva (FERREIRA, 2014) enquanto uma das técnicas de pesquisa, onde podemos pensar inicialmente como uma forma de interação social que valoriza o uso da palavra, símbolo e signo privilegiados das relações humanas, por meio do qual os atores sociais constroem e procuram dar sentido à realidade que os cerca.

Os interlocutores entrevistados foram o coordenador do PCRA, os agentes produtores de manifestações culturais, como os brincantes do grupo de bois e reisado, de Leruá e de quadrilha junina, pois esses foram os principais atores envolvidos com o projeto do ponto e também foram os grupos que sofreram afetações e transformações diretas, a partir dessa experiência. Os roteiros de entrevistas contemplaram questões como: histórico do ponto de cultura, descrição do trabalho realizado pelos grupos, suas relações sociais e comunitárias, público envolvido na ação do ponto de cultura, infraestrutura física e equipamentos, atividades de formação, entre outras.

2 PROGRAMA CULTURA VIVA: criação de uma nova política pública cultural no brasil e seus paradigmas

Em várias cidades brasileiras têm surgido pontos, casas, coletivos e redes de cultura que apresentam novas formas de produzir, consumir, compartilhar e se relacionar com o outro tendo especialmente a atividade cultural como seu elemento propulsor e de destaque para as suas vivências, ou ainda como elemento de sobrevivência e busca de novas formas de viver. No Brasil existem movimentos sociais e culturais diversos e expressivos. Há espaços alternativos, mercados culturais localizados e dinamismos que em nada se assemelham aos das grandes indústrias culturais.

E assim novas formas inventivas de fazer cultura estão sendo criadas e reinventadas nos pontos mais escondidos e descentralizados das grandes cidades e dos centros econômicos, como as regiões Sul e Sudeste que durante anos concentraram boa parte dos recursos investidos na cultura. Por que isso está acontecendo? Qual a contribuição e o papel das novas políticas públicas culturais no Brasil na construção desse contexto? Será que esses grupos e atores sociais já existiam e estavam apenas escondidos? O que então de novo está acontecendo no cenário da política cultural brasileira?

A realidade das políticas públicas culturais no Brasil tinha tradicionalmente a valorização da alta cultura e o folclore como marcadores identitários de nossa cultura. (NUNES, 2012). As formas de financiamento e fomento eram basicamente através da renúncia fiscal. A renúncia ou dedução fiscal acontece quando os tributos são instituídos para serem arrecadados. Entretanto, para atingir outros fins de interesse do Estado, este pode abrir mão de parte da arrecadação, a fim de incentivar determinadas atividades, como por exemplo, a área da cultura.

A partir desse breve contexto podemos compreender o quanto frágil e limitada era a participação e o envolvimento dos agentes e gestores culturais nos modos de fazer e formular as políticas públicas culturais. Até porque as mesmas se restringiam às leis de incentivos e, devido à política fiscal, o papel do Estado ficava cada vez mais restrito atuando apenas como aparato burocrático para tramitação de projetos e prestação de contas. A decisão sobre quais projetos deveriam ou não ser financiados cabia quase que exclusivamente às empresas patrocinadoras. O Estado tinha assim sua participação e o seu papel na articulação e deliberação das políticas públicas culturais do país comprometidas.

Nos oito anos de governo do Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) esteve à frente do Ministério da Cultura o cientista político Francisco WeRort. Nesse período, a política cultural teve como seu fundamento ideológico a proposição de que a cultura é um bom negócio e como principal suporte as leis de incentivo (Rouanet e do Audiovisual - A Lei Federal de Incentivo à Cultura - Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991, é a lei que institui políticas públicas para a cultura nacional, como o Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC). Essa lei é conhecida também por Lei Rouanet (em homenagem a Sérgio Paulo Rouanet, secretário de cultura de quando a lei foi criada. A Lei do Audiovisual, oficialmente Lei Federal nº 8.685, de 20 de julho de 1993, é uma lei brasileira de investimento na produção e co-produção de obras cinematográficas e audiovisuais e infraestrutura de produção e exibição).

Tal opção se alinhava com a política mais ampla do governo FHC, apoiada no ideário neoliberal, de privatização das empresas públicas e, consequentemente, a diminuição do papel do Estado. Segundo Brant (2009, p. 66):

A centralidade da Lei de Incentivos na gestão das políticas públicas de cultura trouxe uma sensação de desvio de função do dinheiro público, pois as empresas eram incentivadas pelo próprio governo a utilizar eventos culturais como forma de comunicação empresarial, por meio de uma cartilha intitulada Cultura é Um Bom Negócio.

A escolha desse modelo teve consequências graves para o campo cultural do país, pois com o passar do tempo, as empresas passaram a patrocinar os eventos basicamente por meio das leis, e o que deveria ser uma legislação para atrair o empresariado para

o patrocínio da cultura, tornou-se um instrumento de acomodação. Ou seja, de um modo geral, as empresas só investem em marketing cultural se puderem deduzir o valor investido do imposto devido ao Estado, de preferência integralmente.

Rubim (2007, p. 27-28) enumera as principais críticas feitas pelos analistas a este tipo de gestão cultural:

1.O poder de deliberação de políticas culturais passa do Estado para as empresas e seus departamentos de marketing; 2. Uso quase exclusivo de recursos públicos; 3. Ausências de contrapartidas; 4. Incapacidade de alavancar recursos privados novos; 5. Concentração de recursos. Em 1995, por exemplo, metade dos recursos, mais ou menos 50 milhões, estavam concentrados em 10 programas 6. Projetos voltados para institutos criados pelas próprias empresas (Fundação Odebrecth, Itaú cultural, Instituto Moreira Sales, Banco do Brasil etc.); 7. Apoio equivocado à cultura mercantil que tem apoio comercial; 8.Concentração regional de recursos.

Pelas críticas acima citadas, podemos perceber que a política de dedução fiscal favorece a retirada gradual do Estado de várias esferas culturais, instalando definitivamente o neoliberalismo no campo da cultura.

O entendimento da cultura como mercadoria a ser negociada ditou a política cultural do governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), e o Ministério da Cultura (MinC) tornou-se um balcão de negócios, restringindo e limitando sua atuação enquanto uma instituição governamental responsável pela articulação entre o poder público e a sociedade civil na democratização e elaboração de políticas culturais que assegurem os direitos culturais dos cidadãos brasileiros.

Para Botelho (2001), a produção cultural brasileira concentrava sua atividade basicamente nas leis de incentivo fiscal federal, estaduais e municipais. E os recursos orçamentários dos órgãos públicos, em todas as esferas administrativas, eram tão pouco significativos que suas próprias instituições tinham que concorrer com os produtores culturais por financiamento privado.

Rubim (2007, p. 25) aponta algumas reflexões sobre esse contexto de ausências:

A combinação entre escassez de recursos estatais e a afinidade desta lógica de financiamento com os imaginários neoliberais então vivenciados no mundo e no país, fez que boa parcela dos criadores e produtores culturais passe a identificar política de financiamento e, pior, políticas culturais tão somente com as leis de incentivo. Outra vez mais a articulação entre democracia e políticas culturais se mos- trava problemática. O estado parecia persistir em sua ausência no campo cultural em tempos de democracia.

Para compreendermos um sentido mais abrangente do conceito de políticas culturais, temos a definição proposta por Néstor García Canclini (2005, p. 78), que nos diz ser:

[...] o conjunto de intervenções realizadas pelo estado, as instituições civis e os grupos comunitários, organizados para orientar o desenvolvimento simbólico, satisfazer as necessidades culturais da população e obter consenso para um tipo de ordem ou de transformação social. Mas esta maneira de caracterizar o âmbito das políticas culturais precisa ser ampliada tendo em conta o caráter transnacional dos processos simbólicos e materiais na atualidade.

As políticas culturais são construídas a partir das ações e dos ideários convergentes ou divergentes dos diferentes grupos que compõem a sociedade, não são somente aquelas elaboradas e oficializadas pelo Estado. Os governos podem impor suas políticas culturais assim como também a sociedade civil organizada em grupos e associações criam suas próprias políticas. As políticas culturais são dinâmicas, temporais, sociais e culturalmente construídas.

Em 2003, Luiz Inácio Lula da Silva toma posse como presidente, com o cargo de ministro da cultura sendo ocupado pelo músico Gilberto Gil. Tem-se o início de uma discussão com a sociedade sobre a necessária retomada do papel do Estado no campo cultural, buscando o conceito de política pública como o norteador das políticas culturais.

O novo governo propõe a ampliação do conceito de cultura, significando os modos de vida, e a dimensão simbólica e criativa da existência social brasileira, articulada em suas dimensões econômicas e cidadãs. O alvo prioritário das políticas culturais passa a ser a população como um todo, mudando o foco dos grupos privilegiados da sociedade como produtores e artistas, ou a elite consumidora dos espetáculos.

Dentro desse contexto os pontos de cultura também surgem e se destacam como expoentes de paradigmas que estão acontecendo nas políticas públicas culturais brasileiras resultantes do diálogo com a sociedade civil. E faz parte de um programa do Governo Federal voltado ao fortalecimento do protagonismo cultural da sociedade brasileira, que valoriza iniciativas culturais de grupos e comunidades, ampliando o acesso aos meios de produção, circulação e fruição de bens e serviços culturais, programa esse intitulado Cultura Viva.

O Ministro da Cultura, Gilberto Gil (2003-2008), inaugura uma política cultural voltada ao modelo de gestão compartilhada, tendo como pilares os conceitos de empoderamento, autonomia e protoganismo social.

A gestão do Ministro Gilberto Gil (2003) formulou uma política pública focada na diversidade cultural e no diálogo com a sociedade civil. Em um de seus discursos o ministro afirma que:

[...] toda política cultural faz parte da cultura política de uma sociedade e de um povo, num determinado momento de sua existência. No sentido de que toda política cultural não pode deixar nunca de expressar aspectos essenciais da cultura desse mesmo povo. Mas, também, no sentido de que é preciso intervir. Não segundo a cartilha do velho modelo estatizante, mas para clarear caminhos, abrir clareiras, estimular, abrigar. Para fazer uma espécie de do-in antropológico, massageando pontos vitais, mas momentaneamente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural do país [...] (GIL, 2003, p. 3).

Além da reestruturação administrativa, podemos afirmar que o Ministério passou por uma reestruturação conceitual. Quando Gil (2003, p. 3, grifo do autor) afirma em seu discurso de posse “[...] que é preciso intervir. Não segundo a cartilha do velho modelo estatizante”, “[...] para fazer uma espécie de do-in antropológico”, compreendemos que o Ministério propõe um novo paradigma para política pública cultural.

O Programa Cultura Viva mostra que as políticas culturais recentes estão mais direcionadas às localidades e às suas manifestações culturais, distanciando-se de uma visão padronizada de cultura. Ao compararmos o Programa Cultura Viva com o histórico das políticas culturais brasileiras, observamos que seu principal aspecto inovador é a integração de segmentos da sociedade civil brasileira que até então não participavam das políticas públicas culturais. Sob os princípios de autonomia, protagonismo e empoderamento o Programa propõe a inclusão de novos atores sociais. Surgia um novo paradigma nas políticas públicas culturais, ao mesmo tempo que se revelava uma complexa relação entre Estado e sociedade civil.

O Programa Cultura Viva, responsável pela criação dos Pontos de Cultura, marca um novo momento de nossas políticas. O termo Ponto de Cultura foi esboçado no final da década de 1980, pelo antropólogo Antônio Augusto Arantes, na época Secretário de Cultura em Campinas-SP. A ideia inicial era de reconhecer e potencializar as produções culturais de grupos e comunidades.

O projeto foi interrompido com a mudança de governo e, criou-se posteriormente, um programa denominado Casas de Cultura, no qual o governo respondia às necessidades das comunidades. Entretanto, a proposta dos Pontos de Cultura era justamente inversa. Os Pontos não deveriam ser construídos pelo governo. O foco não era na ausência ou carência de benefícios; mas sim em um protagonismo social a partir de um modelo de gestão compartilhada. Ao invés de conceber, o governo deveria reconhecer e potencializar as produções culturais dos grupos.

Com o cantor, compositor e político Gilberto Gil no Ministério da Cultura (2003-2008), o projeto inicial dos Pontos de Cultura foi retomado. Atualmente, Ponto de Cultura pode ser sumariamente definido como um convênio imbricado de responsabilidades e direitos, entre governo e sociedade civil. Mas o mesmo não se limita somente a esse enquadramento burocrático e institucionalizado.

Os Pontos de Cultura são também espaços de manifestações culturais dos grupos de escolas de samba, de rap, de teatro, de música, de dança, de museus, de associações de moradores, de aldeias indígenas, de quilombolas, de assentamentos rurais, de núcleos de extensão universitária (TURINO, 2009). Trata-se de um local aberto às manifestações artístico-culturais de uma localidade. Por sua vez, a gestão do ponto é realizada pelos próprios membros da comunidade. Os interesses dos pontos de cultura é justamente fomentar o protagonismo e a autonomia dos grupos culturais já existentes.

Segundo o Relatório Cultura viva: as práticas de pontos e pontões de 2011 do IPEA:

O Programa Arte, Cultura e Cidadania – Cultura Viva insere-se em um contexto de formulação da política cultural fortemente marcado pela valorização da diversidade de expressões culturais. O que oferece base e sustentação para essa ação pública de cultura é a compreensão de que a cidadania cultural e o direito à cultura são pressupostos da pluralidade da criação cultural. No Brasil, esta discussão é reforçada pela necessidade de ampliação do direito à cultura; o desafio e o objetivo é fazer com que a cultura constitua, de forma central, a experiência do sujeito enquanto cidadão para garantir o acesso à cultura de maneira equitativa e em todas as suas dimensões, o que contempla o acesso à criação, à fruição, à difusão, à produção, ao consumo, à participação, e também, à possibilidade de criação de laços de identidade. (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2011, p. 52).

A política de eventos é substituída por uma política contínua, de longo prazo, que propõe a cultura como um direito de todos os cidadãos, dando início a um processo de reorganização da cultura.

O Programa Cultura Viva conseguiu espalhar pelo Brasil de 2004 a 2012, 3662 pontos de cultura. Atualmente, o Ceará tem a segunda maior Rede de Pontos de Cultura do País, com 240 Pontos, sendo 40 por meio de convênios firmados diretamente com o Ministério da Cultura (MINC) e 200 com a Secretaria da Cultura do Estado, em 131 dos 184 municípios. Ao final de 2009, o programa alcançava mais de 8 milhões de pessoas, em mais de 3.000 Pontos de Cultura em 1.100 municípios. (INSTITUTO DE PESQUISA ECO- NÔMICA APLICADA, 2011).

Desde a criação do Programa Cultura Viva há dez anos, em julho de 2014, o projeto que instituía a Política Nacional de Cultura Viva, de autoria da Deputada Federal Jandira Feghali (PCdoB -RJ), foi sancionado pela presidente Dilma Rousseff no dia 23 de julho de 2014 como a Lei nº 13.018, sendo a mesma publicada no Diário Oficial da União, transformando o Programa Cultura Viva do MINC em política de Estado, de caráter permanente, para além de diferentes gestões governamentais.

Nesses dez anos do Programa Cultura Viva as críticas feitas pelos ponteiros, segundo o relatório do IPEA (2011), são os atrasos nos repasses de recursos financeiros pelo MINC e o processo burocrático das prestações de contas.

3 AS EXPERIÊNCIAS, MANIFESTAÇÕES E POLÍTICAS CULTURAIS CRIADAS NO PONTO DE CULTURA RECREIO DAS ARTES

O Ponto de Cultura Recreio das Artes surge a partir do convênio firmado entre o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Sobral e o MINC, em 2009. O Ponto abrange as localidades de Rafael Arruda, São José do Torto, Recreio, Serra Verde, Ouro Branco e Pedrinhas, distritos de Sobral. A ideia de criação do projeto para inscrição ao edital dos pontos de cultura veio do músico, geógrafo e educador Régis Brito, natural da comunidade do Recreio e atualmente coordenador do Ponto de cultura.

O projeto do Ponto de cultura nasce do olhar atento e sensível do coordenador que reconhece a sua comunidade como um celeiro de manifestações culturais, e com a ajuda e articulação de líderes comunitários e membros de movimentos sociais, como a participação do Manoel Rodrigues da Silva, também conhecido como Emídio Silva (Ex-padre da região que desenvolveu ações para formação das Comunidades Eclesiais de Base, na década de 80. Em 2012 foi candidato a vereador pelo Partido dos Trabalhadores - PT de Sobral e atualmente é assessor do Prefeito José Clodoveu de Arruda Coelho Neto) e de Selisvaldo Pereira Lima, líder sindical dos trabalhadores e trabalhadoras rurais de Sobral. Estes dois tiveram papel essencial na elaboração do projeto, pois os mesmos eram conhecedores da história local, e isso foi importante para fundamentar o projeto solicitado pelo Minc.

Em 2009 o projeto foi aprovado tendo como entidade proponente o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Sobral. O convênio foi dividido em três etapas, sendo cada uma no valor de 60 mil reais. Até dezembro de 2013 o Ponto tinha desenvolvido as duas primeiras etapas presentes no plano de trabalho apresentado ao MINC; a última etapa não fora concluída devido aos atrasos no repasse do recurso.

As atividades das duas primeiras etapas do projeto foi o mapeamento das manifestações culturais feito através de pesquisas de causos, histórias de rezadeiras, parteiras e sobre as origens dos lu- gares. Essa pesquisa de campo foi desenvolvida no mês de janeiro de 2010 pelos jovens das comunidades que fazem parte do ponto de cultura, que ouviram os moradores mais idosos, por meio de entrevistas que foram gravadas com o uso de máquinas fotográficas e gravador MP3. A mesma fora coordenada por Régis Brito (Coordenador do Ponto, músico, geógrafo e educador) e teve também a assessoria e orientação do Professor e Historiador Dênis Melo e do fotógrafo Hudson Costa

Também realizaram curso de software livre, oficinas de teatro de rua, oficinas de audiovisual (útil no processo da pesquisa feita para o mapeamento), aquisição de equipamentos multimídia, oficinas de percussão, o que proporcionou a formação de grupos de zambumbeiros em todas as comunidades que formam o Ponto de cultura.

O Ponto de Cultura Recreio das Artes desde sua criação, em 2009, tenta o apoio da Prefeitura Municipal de Sobral para a construção da sede, inclusive já existe o terreno que foi doado pelo Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Sobral e, até dezembro de 2013 a Prefeitura de Sobral não havia dado respostas com relação a essa solicitação do Ponto.

A partir das entrevistas, visitas e observações feitas às diversas comunidades que compõem o ponto de cultura, pude perceber que o mesmo se configura como uma rede onde as diferentes manifestações culturais específicas de cada lugar se entrecruzam e se relacionam no ponto (enquanto projeto), constituindo, assim, o exercício da diversidade cultural e a preservação das práticas e memórias desses lugares.

Segundo o coordenador do Ponto de Cultura, Régis Brito, no ínicio da sua formação, o Ponto de Cultura Recreio das Artes desenvolveu parcerias com os diversos setores da sociedade, como escolas, postos de saúde, as delegacias dos Sindicatos dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Sobral, brincantes e dançantes dos grupos de quadrilhas juninas, bois e reisado e Leruá. As oficinas eram rea- lizadas nas escolas e nas sedes dos Sindicatos dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Sobral.

A experiência de criação do Ponto de Cultura Recreio das Artes foi importantíssima para o mapeamento e reconhecimento dos grupos culturais da região, pois com a formação do Ponto, os mesmos tiveram seus laços fortalecidos com a comunidade e entre si. O Ponto também se constitui como articulador e fomentador das experiências e das políticas culturais criadas a partir da interação dos artistas com o poder público e representa uma experiência que gerou conscientização dos direitos culturais, autonomia e empoderamento.

Segundo a experiência do brincante de Leruá, Paulo Marques da Costa, o grupo solicitou à Secretaria da Cultura e do Turismo do município, incentivo para montagem da vestimenta do grupo, porém nunca houve resposta à solicitação do grupo. Somente agora, com o Ponto de Cultura, é que os brincantes de Leruá terão suas vestimentas feitas.

Os grupos não esperam pelos editais de incentivos da Secretaria de Cultura e do Turismo de Sobral. Eles apresentam condições para inovar e fortalecer suas manifestações. Isso não significa que os mesmos deixaram de concorrer aos editais municipais. Pelo contrário, os mesmos se fortaleceram e hoje têm grande destaque nos festivais culturais da cidade. Um exemplo é o grupo do Boi Pintadinho, que desde 1959 existe e tem como mestre o Sr. Francisco Bernardino de Aguiar e encanta com suas apresentações no Encontro de Bois e Reisado do município de Sobral; o grupo é reconhecido pelos traços e características tradicionais da cultura de Bois e Reisado no município.

4 CONCLUSÃO

O Programa Cultura Viva tem incitado a criação de pontos e redes de cultura no Brasil, além de fomentar os coletivos e associações que já desenvolvem atividades culturais, antes mesmo da criação desse programa.

Embora a orientação do programa Cultura Viva seja valorizar e estimular iniciativas já existentes, estas por sua vez são muito diversas e representam impacto diferenciado no interior de cada instituição. Há casos em que o projeto do ponto de cultura é central na organização e constitui sua principal – às vezes, única – ação e fonte de financiamento, enquanto há casos em que o ponto de cultura é mais um projeto entre um conjunto de ações, programas e projetos institucionais.

No caso do Ponto de Cultura Recreio das Artes, este surge a partir do programa e do contexto de criação dessa nova política pública cultural que, desde 2003, “[...] potencializa iniciativas já em andamento, criando condições para um desenvolvimento alternativo e autônomo, a fim de garantir sustentabilidade na produção da cultura. E a cultura entendida como processo e não mais como produto”. (TURINO, 2009, p. 70).

O Ponto sobrevive somente dos recursos do convênio firmado com o Minc; até a realização das entrevistas, no final do ano de 2013, o Ponto estava com todas as suas atividades paradas devido ao atraso da terceira e última parcela. Inclusive, os atrasos nos repasses têm sido uma das principais críticas ao programa.

Apesar de ter inovado no que se refere à aproximação do Estado com os agentes culturais, o Programa Cultura Viva ainda traz consigo processos burocráticos e que, de certa forma, impossibilitam a continuidade e o fluxo das atividades dos projetos desenvolvidos por cada ponto.

O Ponto de Cultura Recreio das Artes pode até ter surgido em decorrência do Programa Cultura Viva, mas é claro e latente a vontade de constituírem-se como um coletivo de arte que não dependa somente dos editais de incentivo às artes. É importante ressaltar que as manifestações culturais como Bois e Reisados, Leruá e Quadrilhas juninas já existiam nas comunidades. E foi a partir do Ponto que os grupos saíram fortalecidos e reconhecidos.

Penso que as experiências do Ponto e o envolvimento com as políticas culturais do Programa Cultura Viva representam um estimulo e formação para a vivência do protagonismo e autonomia, pois nasce, assim, o sentimento de querer expressar suas manifestações e (re)criar suas próprias políticas culturais.

Material suplementario
REFERÊNCIAS
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Notas
Notas
1 O estudo qualitativo se desenvolve numa situação natural, é rico em dados descritivos, obtidos no contato direto do pesquisador com a situação estudada, enfatiza mais o processo do que o produto se preocupa em retratar a perspectiva dos participantes, tem um plano aberto e flexível e focaliza a realidade de forma complexa e contextualizada. (RIBEIRO, 2008)
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