Artigos - Dôssie Temático
POLÍTICAS PÚBLICAS CULTURAIS E A PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO NO BRASIL: perspectiva histórica
PUBLIC CULTURAL POLICIES AND THE PROTECTION OF ARCHAEOLOGICAL HERITAGE IN BRAZIL: historical perspective
POLÍTICAS PÚBLICAS CULTURAIS E A PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO NO BRASIL: perspectiva histórica
Revista de Políticas Públicas, vol. 22, núm. 1, pp. 259-284, 2018
Universidade Federal do Maranhão
Recepción: 20 Enero 2018
Aprobación: 06 Abril 2018
Resumo: O artigo é fruto das reflexões sobre as políticas públicas culturais concernen- tes aos bens arqueológicos brasileiros e visa apresentar os principais marcos diacrônicos relacionados com a construção das bases jurídicas que norteiam a proteção do patrimônio arqueológico no país. A metodologia consistiu no levantamento de fontes relacionadas com a história da arqueologia, as portarias autorizativas para a pesquisa, além de ampla análise da legislação brasileira. Os resultados apontam para uma distorção quando se fala em políticas culturais para a arqueologia, com a União participando ativamente na construção das leis, mas historicamente delegando a terceiros a gestão dos bens de natureza ar- queológica. O artigo enfoca, ainda, outros aspectos como a falta de articulação entre os entes federados, o monopólio das pesquisas arqueológicas aplicadas ao licenciamento ambiental na mão de empresas e o pouco envolvimento público com a temática.
Palavras-chave: Políticas Públicas, proteção, patrimônio arqueológico, legis- lação, diacronia.
Abstract: The article is the result of the reflections on cultural public policies concerning brazilian archaeological goods and aims to present the main diachronic fra- meworks related to the construction of the legal bases that guide the protection of archaeological heritage in the country. The methodology consisted in the survey of sources related to the history of archaeology, authorizing directives for the research, in addition to a broad analysis of the brazilian legislation. The results point to a distortion when discussing cultural policies for archa- eology, with the Union actively participating in the construction of laws, but historically delegating to third parties the management of archaeological assets. Other aspects focused are the lack of articulation between the federated entities, the monopoly of the archaeological researches applied to the environmental licensing in the hand of companies and the little public involvement with the thematic one.
Keywords: Public policies, protection, archaeological patrimony, legislation, diachrony.
1 INTRODUÇÃO
As reflexões que resultaram na elaboração deste artigo surgiram em um momento em que os debates públicos em torno do patrimônio arqueológico brasileiro encontram-se em grande efervescência, sobretudo, pelo aumento exponencial do número de portarias autorizando estudos arqueológicos aplicados ao licenciamento ambiental, em uma proporção bastante desigual em relação às pesquisas convencionais, especialmente em função do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e outros projetos desenvolvimentistas.
Somam-se a isso, as polêmicas em torno da atualização dos marcos jurídicos e regulatórios nos últimos 5 anos, outrora considerados sólidos e que norteavam a pesquisa e a proteção do patrimônio arqueológico no Brasil. Tal situação envolveu outras vozes, a exemplo do Ministério Público Federal (MPF), promotorias estaduais, Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB), movimento estudantil e empresas de licenciamento arqueológico. Além disso, cabe mencionar o aumento dos cursos de graduação e de pós-graduação em arqueologia, e, mais recentemente, a fase final de regulamentação da profissão de arqueólogo, bandeira de luta histórica dessa classe profissional que coincide com as comemorações dos 80 anos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
A abertura da arqueologia para a sociedade e o foco nas demandas políticas no contemporâneo também causaram a ampliação nas abordagens teóricas e práticas, com a incorporação de correntes de pensamento diversas, a exemplo de arqueologias das identidades, etnicidades, indígenas, feministas, queer, descolonizantes, dentre muitas outras, denominadas por Cristóbal Gnecco (2012) de arqueologias alternativas1.
Diante desse preâmbulo, nada mais oportuno do que correlacionar o tema do dossiê da Revista e a temática do patrimônio arqueológico, com um recorte temático que enfoca as políticas culturais relacionadas aos bens de natureza arqueológica, buscando avaliar os caminhos percorridos entre esses dois campos. Tangenciando tais temas, serão abordados, quando oportuno, os dispositivos legais em uma perspectiva diacrônica, ou seja, desde o momento em que as primeiras letras protetivas foram elaboradas para se reconhecer e de salvaguardar o patrimônio arqueológico.
2 ARQUEOLOGIA PÚBLICA E AS POLÍTICAS CULTURAIS: perspectivas teóricas
A inserção de uma arqueologia concebida como uma forma de ação social e política no presente (TILLEY, 1998), as implicações sobre o papel do arqueólogo na construção subjetiva do passado (TRIGGER, 2004) e na escolha do que se deve estudar e se preservar em termos de patrimônio arqueológico são tópicos que ocupam a agenda de um número cada vez maior de profissionais dessa área.
A identificação do paradigma pós-processual da arqueologia com a pós-modernidade e o relativismo cultural levou à aceitação de uma diversidade de pontos de vista (HODDER, 1999) que inaugurou uma série de questões e problemáticas até então não abordadas pela disciplina, com destaque para o seu papel político na contemporaneidade.
Atualmente, o reconhecimento de que a arqueologia não está livre de seus laços sociais e políticos e que os arqueólogos sempre trabalham pressionados por questões colocadas pela própria conjuntura e sociedade (UCKO; LAYTON, 1999) desmistificaram o conceito de objetividade ou neutralidade científica da disciplina. As implicações advindas dessas questões redefiniram alguns posicionamentos no campo arqueológico, a exemplo da falta de interação dos arqueólogos com a sociedade (FUNARI, 1995); a necessidade de esses profissionais compreenderem criticamente os processos econômicos, sociais e culturais, pelos quais a arqueologia e o patrimônio estão envolvidos (HODDER, 1999); a influência política e ideológica que ela pode exercer no presente (FUNARI, 1995); e o seu papel na preservação do patrimônio e o envolvimento e o retorno ao público. (FUNARI; ZARANKIN; STOVEL, 2005).
O crescente profissionalismo da arqueologia ampliou o seu leque de envolvimento público, levando a novas discussões, como as políticas públicas e a gestão do patrimônio cultural, a proteção de sítios subaquáticos, o combate à pilhagem e o comércio ilícito de bens arqueológicos, a destruição de sítios por fatores antrópicos, o direito de acesso dos grupos étnicos aos seus lugares tradicionais (hoje sítios arqueológicos), a devolução de esqueletos, o repatriamento de bens espoliados ou pilhados em guerras, o retorno público das pesquisas e a imagem da arqueologia nos meios de comunicação, etc.
Diante do exposto, tais temáticas foram aglutinadas no que se denomina de Arqueologia Pública, compreendida como todos os aspectos públicos da disciplina, incluindo tópicos como políticas culturais para o patrimônio arqueológico, os mecanismos de extroversão e fruição do conhecimento produção, educação, política, religião, etnicidade e identidade (FUNARI; OLIVEIRA; TAMANINI, 2005), ou seja, ela aborda agendas que deveriam aproximar a sociedade do fazer arqueológico.
É nesse contexto que a arqueologia deve se estruturar enquanto objeto das políticas culturais; contudo, essa aproximação não vem ocorrendo de forma horizontal e linear no Brasil. Fica evidente que os arqueólogos vêm se mobilizando com maior intensidade sobre temas que repercutem diretamente na atuação profissional, a exemplo das mudanças dos marcos legais, da regulamentação da arqueologia como profissão, o papel do IPHAN na regulação do exercício profissional, etc.
Além disso, existem fortes debates internos entre os arqueólogos que estão atuando no âmbito do licenciamento ambiental do patrimônio cultural, em obras que envolvem a remoção de grandes contingentes populacionais de seus territórios tradicionais versus àqueles que militam por uma arqueologia das gentes e que possuem um papel fundamental no refreamento de obras de grande impacto, onde vivem grupos humanos ancestrais e vulneráveis. (ROCHA et al., 2013). Percebe-se, portanto, que a arqueologia é um campo de forças em constante transformação, que envolve o governo, empresários, gestores, arqueólogos e a sociedade em geral e os dilemas advindos dessas relações imbricadas não vêm sendo abordados com profundidade quando avaliamos a disciplina internamente.
Diante do exposto, questiona-se: como a arqueologia vem se comportando diante das políticas públicas culturais nas últimas décadas? Para responder essa indagação é preciso estruturar a reflexão ao abordar, inicialmente, as bases epistemológicas das políticas culturais.
O argentino radicado no México, Néstor García Canclini (2001, p. 65, tradução nossa) concebe políticas culturais como um:
Conjunto de intervenções feitas pelo Estado, instituições civis e grupos comunitários organizados para orientar o desenvolvimento simbólico, atender às necessidades culturais da população e obter consenso para um tipo de ordem ou transformação social. Mas essa forma de caracterizar o alcance das políticas culturais precisa ser ampliada, levando-se em conta a natureza transnacional dos processos simbólicos e materiais na atualidade.
Tomando por base a linha do tempo criada pelo IPHAN, em virtude da comemoração de seus 80 anos, linha na qual constam os fatos mais relevantes da trajetória do patrimônio histórico e cultural no Brasil2, o relógio das políticas culturais institucionalizadas pelo poder público recuaria até os anos de 1916.
Dentre esses marcos, é possível citar aqueles que têm mais relações com o patrimônio arqueológico, a exemplo da primeira e da segunda fase da Era Vargas, quando foi criado o Ministério dos Negócios, da Educação e Saúde Pública, em 1930. Na gestão de Gustavo Capanema, como Ministro (1934-1945), foram criados o Conselho Nacional de Cultura, em 1938, e o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (atual IPHAN), pelo Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, além de outras secretarias para lidar com os assuntos culturais.
Um segundo momento coincide com um marasmo no âmbito das políticas culturais, sendo que o foco do governo era a industrialização e modernização do Brasil, especialmente na gestão de Juscelino Kubitschek (1956 - 1961). Não obstante, em 1953, o Ministério da Educação e Saúde foi desmembrado, surgindo os Ministérios da Saúde (MS) e o da Educação e Cultura (MEC), ficando subordinada ao segundo a Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN). Outro aspecto que convém destacar e que será retomado com mais detalhe ao longo deste texto foi a promulgação da Lei nº 3.924, de 26 de julho de 1961, no governo de Jânio Quadros, sendo considerada até hoje o principal avanço na proteção do patrimônio arqueológico nacional e fornecedora das bases para as normativas que se seguiram.
3 POLÍTICAS CULTURAIS E O PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO: aproximações e distanciamentos
Tania Andrade Lima analisa que desde quando se estabeleceram as relações do IPHAN com o patrimônio cultural brasileiro, há 80 anos, o órgão mostrou desinteresse e omissões em relação ao patrimônio arqueológico, fato que levou a conflitos e atritos contínuos com a comunidade de arqueólogos. Segundo ela, isso comprometeu a proteção dos sítios arqueológicos brasileiros e a criação de uma política nacional para a arqueologia. (LIMA, 2001). Em texto mais recente, Alejandra Saladino (2013/2014) buscou compreender o lugar do patrimônio arqueológico nas políticas públicas de cultura do país e constatou que o IPHAN é a organização federal responsável pela tutela dos bens arqueológicos, criando e coordenando as políticas públicas de preservação referentes aos mesmos. Tais políticas são caracterizadas pelo viés das contingências, divergências, disputas, negociações, dissenso e consenso (SALADINO, 2013/2014).
Mesmo com o Brasil sendo signatário da Carta de Laussane, que trata da proteção e gestão do patrimônio arqueológico mundial, gestada pelo ICOMOS, organismo da UNESCO ligado à ONU, o quadro exposto por Lima (2001) e Saladino (2013/2014) não se modificou como se esperava ao longo dos anos. Esse documento foi adotado pela 9ª Assembleia Geral do ICOMOS, na Suíça, em 1990, e concebeu o patrimônio arqueológico essencial para se compreender as atividades humanas no passado. Portanto, ratifica que a sua prote- ção e gestão são indispensáveis para as gerações presentes e futuras.
De acordo com a Carta, o conceito de patrimônio arqueológico é:
A parte do nosso património material para a qual os métodos da arqueologia fornecem os conhecimentos de base. Engloba todos os vestígios da existência humana e diz respeito aos locais onde foram exercidas quaisquer atividades humanas, às estruturas e aos vestígios abandonados de todos os tipos, à superfície, no subsolo ou sob as águas, assim como aos materiais que lhes estejam associados. (ICOMOS, 2009, p. 234).
A área do conhecimento que lida com o patrimônio arqueológico é a Arqueologia, sendo concebida como uma ciência social, que procura explicar o que aconteceu com grupos humanos no passado, inferindo comportamento e ideias a partir de materiais remanescentes do que as pessoas fizeram e usaram e do impacto físico de sua presença no meio ambiente (TRIGGER, 2004), tendo como principal objeto de estudo a cultura material.
Conforme mencionado, os bens de natureza arqueológica também compõem o rol dos elementos que formam o patrimônio cultural brasileiro. No entanto, diferente de outras categorias patrimonializadas, cujos critérios de proteção e salvaguarda estão intimamente ligados aos conceitos de excepcionalidade e valor, que, por sua vez, justificam medidas de acautelamento, todos os sítios arqueológicos brasileiros, quando reconhecidos por um profissional da arqueologia, per se, já se encontram protegidos por lei3. O reconhecimento e o registro dos bens de natureza arqueológica são, portanto, os meios cautelares mais usuais quando se fala em arqueologia, sendo raros os exemplos de sítios arqueológicos tombados.
Para tanto, foi criada a Ficha de Cadastro dos Sítios Arqueo- lógicos Brasileiros (CNSA), conforme a Portaria IPHAN nº 241, de 19 de novembro de 1998. Ela compõe o Sistema de Gerenciamento do Patrimônio Arqueológico Brasileiro (SGPA) em que constam todos os sítios arqueológicos nacionais cadastrados no IPHAN4. Um problema estrutural que ainda não foi resolvido decorre da não atualização do referido banco de dados. Ora, se o registro dos sítios e das coleções arqueológicas é uma das principais medidas de acautelamento do patrimônio arqueológico, a ausência de mecanismos que reúnam as informações das Superintendências Regionais, CNSA e instituições de pesquisa no que concerne à alimentação, retroalimentação e atualização dos conteúdos do SGPA fragiliza, sobremaneira, os mecanismos de fiscalização e de controle.
Como exemplo, pode-se citar o Maranhão. Em consulta realizada em 29 de dezembro de 2017, constam, cadastrados no SGPA, 166 sítios arqueológicos nesse Estado, dos 27.008 sítios registrados no Brasil. Além de ser um dos menores percentuais do país, eles estão distribuídos irregularmente pelos 217 munícipios do Estado (INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL, [20--?]), denotando um desconhecimento do patrimônio arqueológico maranhense. (BANDEIRA, 2013). Ao se considerar a Ilha de São Luís, existem cadastrados apenas 25 sítios (12 em São Luís; 9 em São José de Ribamar e 5 em Paço do Lumiar. Esse número nem de longe corresponde à realidade, sendo que publicações recentes deste autor informam existirem mais de 100 sítios apenas nessa região (BANDEIRA, 2015a, 2016, 2017); logo, desconhecimento e a omissão são temáticas perigosas quando se trabalha com a gestão do patrimônio arqueológico.
Diante do exposto, questiona-se: existem, no Brasil, políticas culturais para a proteção do patrimônio arqueológico? Em caso positivo, em qual contexto ocorrem? Ao transportar esse debate para o âmbito da arqueologia, o cenário é bem mais complexo, visto que pouquíssimos autores tratam especificamente das políticas culturais para o patrimônio arqueológico5. Nota-se que quando o tema é abordado, vem sempre associado a outros componentes do patrimônio cultural, a exemplo da história de criação dos primeiros marcos jurídicos, como o Decreto-Lei nº 25/1937 e a promulgação da Lei nº 3.924/1961, a história de criação do IPHAN e dos mecanismos de proteção do patrimônio cultural.
Além disso, a arqueologia brasileira tem uma forte peculiaridade quando se trata do seu principal objeto de pesquisa: os vestígios que estão sob a terra. Nesse contexto, o fato de a maioria dos sítios arqueológicos estar soterrada, aproxima-os dos minerais e rochas. Inclusive, devido a um entendimento à época que antecedeu à promulgação da Lei nº 3.924/1961, muitos sítios foram tratados como jazidas, a exemplo dos sambaquis, que eram minas de exploração para retirada de conchas6.
O ciclo de grande desenvolvimento e crescimento econômico do Brasil na última década (2003 - 2013) resultou em fortes inves- timentos em infraestrutura básica de energia, transporte, mineração e habitação, o que demandou uma força de trabalho no campo das engenharias e do licenciamento ambiental nunca antes visto no país. A explosão da pesquisa arqueológica aplicada ao licenciamento ambiental para fazer frente ao grande número de empreendimentos que ocorriam simultaneamente atropelou a comunidade arqueológica e o próprio poder público, visto que até o início do século XXI o pequeno contingente de arqueólogos formados era absorvido pelas universidades, museus, centros de pesquisa, órgãos governamentais, ONGs, etc. Os poucos profissionais que começavam a atuar no licenciamento ambiental, sobretudo após a promulgação da Resolução CONAMA nº 001, em 23 de janeiro de 19867, não conseguiam fazer frente à grande demanda por arqueólogos.
Muitas alternativas foram pensadas a curto, médio e longo prazo, considerando que o ciclo de crescimento se estenderia por, pelo menos, 30 anos. Em curto prazo, houve uma intensa migração de profissionais que atuavam na arqueologia dita acadêmica para a pesquisa aplicada, por meio de convênios de colaboração técnico-científica, contratação direta, parcerias, etc., o que gerou um acú- mulo imenso de portarias de pesquisa em nome de poucos arqueólogos. Paralelo a isso, foi cogitada a possibilidade de arqueólogos estrangeiros assumirem postos de pesquisa no Brasil, saída pouco profícua, em virtude das restrições impostas à atuação de não brasileiros no campo da arqueologia.
Em médio prazo houve um estímulo à criação de empresas de arqueologia voltadas para a pesquisa aplicada, uma vez sendo da União, conforme o Capítulo II, da Lei nº 3.924/1961, a prerrogativa de realizar escavações arqueológicas, o Governo facultou a terceiros (entidades públicas e privadas) a realização das pesquisas, afastando-se de vez da produção do conhecimento arqueológico.
Essa abertura na lei transformou a União em um mero agente fiscalizador com o poder de polícia, tendo na figura do IPHAN o único órgão público com a prerrogativa de lidar com o patrimônio arqueológico no Brasil. Diferentemente de outros componentes do patrimônio cultural, sobretudo dos bens imateriais, nos quais especialistas, técnicos ou empresas contratadas pelo IPHAN ficam responsáveis pelos estudos, sejam eles para tombamento, registro, res- tauro, etc., no campo da arqueologia, a práxis nas esferas acadêmica ou aplicada foi facultada a terceiros, sendo inúmeras as situações em que os interesses dos permissionários e das empresas por eles representadas entraram em conflito com os do IPHAN8.
Em artigo publicado recentemente por Roberto Stanchi (2017) essa constatação fica bastante acentuada, quando ele divide a história das relações do IPHAN com a arqueologia em quatro fases: a de delegação institucionalizada, a de delegação pulverizada, a de atuação por meio das consultorias, e a de internalização, também observando dois momentos significativos, a exemplo da tentativa de incorporação da arqueologia e de seu desmantelamento, conforme síntese apresentada no Quadro 1.
Fase de delegação institucionalizada (1937-1967) | Fase de delegação pulverizada (1967-1979) | Fase de atuação por meio das consultorias (1980-2000) | Fase de internalização (2000-2017) |
A arqueologia foi tratada no IPHAN como algo secundário, com o Museu Nacional ocupando o papel de destaque na formulação das primeiras políticas de preservação do patrimônio cultural brasileiro. Tal prática foi d e n o m i n a d a por Stanchi (2017) como administrativa por delegação, em que o Instituto passava ao Museu as suas atribuições e responsabilidades relativas ao p a t r i m ô n i o arqueológico. | Esse momento também é visto pelo autor como o ápice da pulverização do trato com o patrimônio arqueológico dentro da autarquia, em que a tomada de decisão era delegada aos representantes regionais do IPHAN para assuntos de arqueologia, sendo a maioria professores das universidades federais, que tinha a incumbência de fiscalização, análise das propostas para a realização de pesquisas, execução de salvamentos esporádicos e atendimento de denúncias sobre a destruição de sítios. | Envolve dois momentos: a primeira tentativa de trazer a arqueologia para dentro do IPHAN e o seu desmantelamento. Tais momentos se caracterizaram pela criação de uma coordenadoria de arqueologia que logo desapareceu com o governo Collor, que extinguiu o MINC e o IPHAN e criou o Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural – IBPC. Após a recriação do IPHAN, e em função das legislações ambientais introduzidas no país, os arqueólogos do órgão passaram, cada vez mais, a analisar estudos ambientais. | Período marcado por concurso e seletivo para técnicos de arqueologia, e s t r u t u r a ç ã o do IPHAN pelo Decreto nº 6.844/09, que cria o Centro Nacional de Arqueologia – CNA9 subordinado ao D e p a r t a m e n t o do Patrimônio Material e F i s c a l i z a ç ã o – DEPAM, e a posterior criação da Coordenação de Pesquisa e Licenciamento. Marca também o momento de criação, revogação e recriação dos marcos jurídicos do patrimônio a r q u e o l ó g i c o , s o b r e t u d o , voltados ao l i c e n c i a m e n t o ambiental. |
Outro aspecto que chama a atenção é o financiamento das pesquisas. Atualmente, poucos são os projetos de arqueologia de cunho acadêmico que contam com financiamento público. No extremo oposto, todos os projetos realizados no Brasil voltados para o licenciamento ambiental são financiados por empresas públicas ou privadas, que, na maioria das vezes, têm interesses conflitantes à preservação do patrimônio arqueológico. As situações nas quais os empreendimentos foram cancelados ou modificados em função do interesse público em preservar os bens arqueológicos são raras no Brasil, visto que os empreendedores são bastante refratários quando se fala em adaptação ou mudança em projetos de engenharia.
Por fim, em longo prazo, houve uma opção acertada, a meu ver, do Governo Federal, juntamente com o MEC, na criação de cursos de graduação em arqueologia, com vistas a formar uma nova geração de profissionais para atuar tanto no mercado quanto na gestão dos bens arqueológicos. O primeiro deles foi criado na Universidade do Valo do São Francisco (UNIVASF), em 2004, e funciona em São Raimundo Nonato, no Piauí. Os cursos de graduação se multiplicaram e hoje há 14 cursos em funcionamento, que também deram origem a novas pós-graduações em arqueologia; a maior concentração desses cursos se encontra no Nordeste brasileiro.
4 A ARQUEOLOGIA DISCUTE POLÍTICAS PÚBLICAS? ELEMENTOS PARA O DEBATE
A noção de patrimônio cultural é um elemento-chave para a construção e execução de políticas culturais, sobretudo àquelas relacionadas à proteção, à salvaguarda e à extroversão desses bens. Não obstante, o próprio conceito de cultura é um somatório de correntes de pensamento frutos de seu tempo, não cabendo aqui esmiuçá-lo. Tal premissa pode ser aplicada aos bens de natureza arqueológica que, dado o seu caráter finito e não renovável, torna-os elementos primordiais quando se fala de políticas culturais protetivas.
Retomando a Carta de Laussane, o art. 2ª refere-se especificamente a políticas de conservação integrada a serem adotadas pelos Estados membros:
As políticas de protecção do património arqueológico devem ser tidas em conta pelos planificadores à escala nacional, regional e local. A participação activa da população deve ser integrada nas políticas de conservação do património arqueológico. Esta participação é essencial sempre que o património de uma população autóctone esteja em causa. A participação deve basear-se no acesso aos conhecimentos, condição necessária a qualquer decisão. A informação do público é, portanto, um elemento importante da “conservação integrada”. (ICOMOS, 2009, p. 234).
No mesmo documento fica evidente o interesse da UNESCO para que os Estados membros criem marcos jurídicos transversais, que atendam as especificidades do patrimônio arqueológico em escalas global, nacional, regional e local:
A protecção do património arqueológico deve ser considerada uma obrigação moral de cada ser humano. Mas é também uma responsabilidade pública colectiva. Esta responsabilidade deve traduzir-se pela adopção de uma legislação adequada e pela garantia de fundos suficientes para financiar, eficazmente, os programas de conserva- ção do património arqueológico. (ICOMOS, 2009, p. 235).
No Brasil, a Carta de Laussane teve pouco impacto nos aspectos jurídicos mais robustos, visto que os principais marcos legais da arqueologia tinham sido criados em período anterior ao documento internacional10.
O Decreto Lei nº 25/1937 já expressava em seu Capítulo I, art. 1º, que compõe o patrimônio histórico e artístico nacional, o “[...] conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interêsse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.” (BRASIL, 1937).
A Lei nº 3.924/196111, também abordou a importância da proteção dos bens arqueológicos e o papel da União em sua preservação e gestão frente ao aproveitamento econômico, quando no Capítulo VI, das Disposições gerais, o art. 22º, informa: “[...] o aproveitamento econômico das jazidas, objeto desta lei, poderá ser realizado na forma e nas condições prescritas pelo Código de Minas, uma vez concluída a sua exploração científica, mediante parecer favorável da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ou do órgão oficial autorizado.” (BRASIL, 1937).
No presente, a organização do patrimônio cultural é regida pela Constituição Brasileira, de 1988, também anterior à Carta de Laussane, que em seu art. 216 considera como patrimônio cultural: “[...] os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.” (BRASIL, 1988a), sendo composto, dentre outros elementos, pelos conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. Apenas em 1988, a Portaria SPHAN nº 007, de 1 de dezembro de 1988, regulamentou as permissões, autorizações e a comunicação prévia para realização de pesquisas já expressas na Lei nº 3.924/1961. (BRASIL, 1998b). Tal medida visou resguardar os objetos de valor científico e cultural localizados nas pesquisas. Portanto, cabe ressal- var que se a Carta de Laussane influenciou alguma normativa jurídica relacionada à arqueologia, isso ocorreu posteriormente a 1990, a exemplo da Portaria IPHAN nº 230, de 17 de dezembro de 200212, revogada pela Instrução Normativa nº 001, de 25 de março de 2015. (BRASIL, 2002, 2015a).
Por sua vez, a Instrução Normativa nº 001, de 25 de março de 2015, estabeleceu os procedimentos administrativos a serem observados pelo IPHAN, quando instado a se manifestar nos processos de licenciamento ambiental federal, estadual e municipal em razão da existência de intervenção na Área de Influência Direta (AID) do empreendimento; em acordo com a Portaria Interministerial nº 60, de 24 de março de 2015, que criou os procedimentos administrativos que disciplinam a atuação da FUNAI, do IPHAN, da Fundação Cultural Palmares e do Ministério da Saúde (MS) nos processos de licenciamento ambiental de competência do IBAMA. (BRASIL, 2015a, 2015b).
Além desses instrumentos, cabe destacar que no período do impeachment da presidenta Dilma RousseR, com a eminente destituição de toda a diretoria do IPHAN e a extinção do Ministério da Cultura, outras normativas foram publicadas, inclusive, bastante criticadas pela comunidade arqueológica, que julgou não ter sido adequadamente consultada, a exemplo da Portaria n° 196, de 18 de maio de 2016 , que dispõe sobre a conservação de bens arqueológicos móveis, criando o Cadastro Nacional de Instituições de Guarda e Pesquisa, o Termo de Recebimento de coleções arqueológicas e a Ficha de Cadastro de bem arqueológico móvel.
Além disso, ressaltam-se a Portaria nº 341, de 13 de agosto de 2015, que dispõe sobre a Instituição da Marca de Autorização de Pesquisa Arqueológica; a Portaria nº 159, de 11 de maio de 2016, que regulamenta os requisitos e procedimentos para celebração de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) pelo IPHAN; a Portaria nº 199, de 18 de maio de 2016, que institui a Coordenação Técnica Nacional de Licenciamento, no âmbito do Gabinete da Presidência do IPHAN; a Portaria nº 137, de 28 de abril de 2016, que estabelece diretrizes de Educação Patrimonial no âmbito do IPHAN e das Casas do Patrimônio; a Portaria n° 197, de 18 de maio de 2016, que dispõe sobre os procedimentos para solicitação de remessa de material arqueológico para análise no exterior; e o Ofício Circular nº 001, de 22 de fevereiro de 2013 - PRESI/IPHAN, que trata da idoneidade técnico-científica do arqueólogo ao solicitar permissão para pes- quisa. Somam-se a esse corpo, as normas que compõem o sistema jurídico ambiental, a exemplo da Lei da Política Nacional de Meio Ambiente, a Lei de Crimes Ambientais e as Resoluções do Conama, em especial a de nº 001/1986, que não serão detalhadas neste artigo. (BRASIL, 1986, 2013, 2015c, 2016a, 2016b, 2016c, 2016d, 2016e).
Conforme exposto, a base legal para o patrimônio arqueológico encontra-se bem assentada em concepções filosóficas gestadas há mais de 80 anos, sendo que nos últimos 15, a ênfase na construção da legislação foi quase que exclusivamente para normatizar a presença da arqueologia no licenciamento ambiental.
Especificamente nos últimos 5 anos, as mudanças dos marcos legais foram levadas com muita avidez pelo IPHAN, com a justificativa de se atualizar a legislação, sobretudo, para atender o licenciamento ambiental, que rotineiramente modifica, adequa e organiza seus instrumentos jurídicos nas esferas estadual e local. Trata-se de uma corrida maluca de sincronização da legislação do patrimônio cultural arqueológico, que é basicamente centrada na esfera federal, com uma série de marcos jurídicos dos Estados e municípios e da própria União.
Diante desse cenário, percebe-se que se existe algum tipo de política cultural no âmbito do patrimônio arqueológico, ele vem ocorrendo na esfera pública, com a atuação hegemônica da União que, desde a década de 1937, vem criando, recriando, revogando e atualizando os marcos legais, exercendo com isso um forte controle jurídico-administrativo na arqueologia nacional.
Não obstante, reside aí uma dicotomia a ser enfrentada, pois, ao mesmo tempo que a União indica quem pode ou não fazer arqueologia no Brasil13, além de deter o controle na emissão de autorizações de pesquisa, na fiscalização, gerenciamento, punição e aprovação dos relatórios, o grosso da produção de conhecimento na arqueologia está concentrado na mão da iniciativa privada14, cujas portarias estão em nome de arqueólogos consultores ou contratados por empresas privadas.
Isso também se reflete na ausência de mecanismos de autocontrole entre os próprios pares, uma vez que a profissão de arqueólogo no Brasil ainda não é regulamentada por lei, logo não existe um conselho de classe para avaliar as condutas de seus profissionais15. Até o momento, o exercício da arqueologia por leigos ou amadores é proibido. Na ausência de um conselho de classe, o IPHAN acabou assumindo o papel de regular a atuação profissional, pois é ele o responsável por conceder autorização para pesquisas arqueológicas, cuja portaria deve ser publicada em Diário Oficial da União (D.O.U), em nome do solicitante. Para pleitear a portaria, o permissionário deverá comprovar idoneidade técnico-científica, conforme a Portaria IPHAN nº 007/1988 e Ofício Circular nº 001/2013-Presi/Iphan.
Tal situação deverá ser repensada caso o Projeto de Lei (PL) nº 1.119, de 14 de abril de 2015, que dispõe sobre a regulamentação da profissão de arqueólogo, seja aprovado e sancionado pelo Presidente da República, pois até o momento a União exerce pleno controle no fazer arqueológico em todas as esferas de atuação do arqueólogo.
Refletindo sobre as interfaces entre a arqueologia e as políticas culturais, gostaria de chamar a atenção para outros gargalos críticos, com vistas a estimular o debate em torno de outras possibilidades de inserção pública da arqueologia para além do IPHAN e das empresas. Nesse sentido, é temeroso constatar que, com exceção das empresas que dominam a pesquisa nacional e cerca de 14 universidades que lidam com o ensino da arqueologia, sem contar os museus centenários, como o Emílio Goeldi e o Museu Nacional, o que se percebe é que a União, enquanto responsável pelo patrimônio arqueológico, pouco fez para além da formatação de normas e sua fiscalização; isso, ao comparar a atuação do IPHAN em relação a outras esferas do patrimônio cultural.
No que concerne aos acervos, quem detém a guarda da maioria das coleções arqueológicas no Brasil são as instituições de guarda ou endossantes. Elas assumem todos os ônus e custos decorrentes da musealização, salvaguarda, conservação e fruição desse patrimônio. Nesse contexto, existem muitas discrepâncias, pois uma instituição de guarda vai desde os grandes museus de arqueologia brasileiros, com rotinas já consolidadas, a exemplo do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP ou do Museu Paraense Emílio Goeldi, etc., até uma sede provisória de um museu municipal, sem condições míni- mas de garantir a proteção dos bens sob sua tutela16.
Quando se fala em promoção do patrimônio arqueológico para fins de turismo cultural, as unidades de conservação que abri- gam sítios arqueológicos, a exemplo do Parque Nacional da Serra da Capivara e do Parque Nacional de Sete Cidades, no Piauí, ou do Parque Nacional das Chapadas das Mesas, no Maranhão, com muitas evidências de arte rupestre, quem assume a gestão é o ICMBio ou mesmo institutos privados de interesse público, como a Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM), que faz a administração do Parque Nacional da Serra da Capivara. A falta de recursos financeiros e a inconstância no repasse do pouco que ainda é disponibilizado pelo poder público, a este último, são constantemente denunciadas pela arqueóloga Niéde Guidon que, de forma resiliente, mantém a estrutura funcionando, muitas vezes tendo que incluir recursos pessoais para que o maior parque arqueológico do Brasil não feche as suas portas.
Nesse mesmo caminho seguem as atividades de promoção e extroversão do patrimônio arqueológico. Excetuando as maiores instituições que lidam com a pesquisa arqueológica e já consolidaram seus programas educativos para o grande público, a maioria dos projetos de educação patrimonial, por força da exigência legal, está vinculada aos empreendimentos que foram licenciados ambientalmente.
Muitas atividades são superficiais, imediatistas, com ressonância local e com os conteúdos elaborados por não especialistas. Em alguns empreendimentos imperam as contradições, pois ao mesmo tempo que a educação patrimonial está sendo financiada por empresas que têm interesse na implantação da obra, inclusive à custa da remoção de pessoas de seus territórios tradicionais, os profissionais precisam passar a ideia de fortalecimento das identidades e empoderamento da população vulnerável. Tal aspecto já deve ter sido vivenciado por boa parte dos arqueólogos que realizaram atividades de valorização do patrimônio arqueológico/Educação Patrimonial no licenciamento ambiental.
Essas contradições fragilizam o discurso, pois ao mesmo tempo que os bens arqueológicos são alçados ao status de primeira grandeza nos espaços de interlocução com a comunidade afetada pela obra, eles deverão ser retirados do local para que o empreendimento possa se implantar.
5 CONCLUSÃO
A constituição de um corpo jurídico quase secular, o seu aprimoramento diante da conjuntura histórica, aliado à constante luta do poder público para o cumprimento de legislação, bem como a presença da sociedade civil organizada militando por pautas esquecidas ou ignoradas pelos poderes constituídos são os temas que mais aproximam a arqueologia das políticas públicas culturais no Brasil.
Ao longo do texto ficou evidente que a participação da União, enquanto detentora das prerrogativas legais para o patrimônio arqeológico do Brasil, afastou os demais entes federados das esferas da articulação, proposição, fiscalização, proteção e divulgação dos bens arqueológicos no âmbito estadual e municipal, visto que o licenciamento ambiental ocorre nas secretarias de meio ambiente, e o componente arqueológico ocorre nas superintendências do IPHAN.
A centralização da temática em um único órgão, a meu ver, sobrecarrega o já conhecido quadro exíguo de técnicos especializados, sendo que a maioria não é de carreira, mas apenas seletivados e com o prazo de contrato com data para vencer. Esses profissionais atuam na fiscalização e cumprimento da legislação, sobretudo no âmbito dos licenciamentos ambientais. É muito raro os arqueólogos do IPHAN se envolverem em pesquisas financiadas pelo próprio órgão ou participarem de núcleos gestores de unidades de conservação e de centros históricos, de comissões ou conselhos.
Nesse contexto, o órgão vem atuando com respostas imediatas para demandas imediatas, afastando-se do sentido maior das políticas públicas, que são o planejamento, execução e avaliação das ações. A falta de articulação com outras esferas governamentais também se reflete na atuação do poder público em relação aos arqueólogos. Tomando-se por base as portarias que já foram publicadas recentemente, apesar das muitas discussões, pouco se efetivou acerca das propostas encaminhadas nos fóruns de debate. Rara exceção ocorreu com a já citada Portaria n° 196, de 18 de maio de 2016, que dispõe sobre a conservação de bens arqueológicos, ao ser aberta uma consulta pública para sua avaliação e possível modificação. O fato de a consulta ainda estar aberta não nos permite afirmar, se de fato, as sugestões e os encaminhamentos da SAB, Rede de Museus e Acervos de Arqueologia e Etnologia (REMAAE), instituições de guarda e demais profissionais serão considerados na reformulação do texto.
Diante desse cenário, o que se conclui é que quando o Estado é instado a se posicionar diante do patrimônio arqueológico, suas vinculações são fortemente direcionadas para o cumprimento da legislação, atuando como órgão regulador e controlador. São raros os exemplos em que o IPHAN fomenta, patrocina ou realiza pesquisas arqueológicas ou de divulgação dos bens arqueológicos, mesmo com suas prerrogativas constitucionais de conhecer e mapear os sí- tios arqueológicos.
Assim, é a iniciativa privada que está preenchendo essa lacuna, quando se observa que ela detém o monopólio de 98% das pesquisas arqueológicas realizadas no Brasil. (STANCHI, 2017). Essa constatação faz coro ao que foi denominado de “sistema de delegação pulverizada” (STANCHI, 2017, p. 180) ao longo da história do IPHAN, com a diferença de que, no contemporâneo, as empresas estão liderando as pesquisas arqueológicas e a absorção de boa parte dos arqueólogos formados.
Conforme exposto, encerram-se nossas reflexões constatando que, quando se trata de pesquisa arqueológica, são as empresas os principais agentes relacionados com a manipulação dos bens arqueológicos, que concentram na mão de poucos as verbas milionárias e com pouca participação da sociedade na definição de sua aplicação.
Esse caminho enviesado da arqueologia em âmbito privado já foi percebido por muitas populações que vêm rejeitando frontalmente a presença de arqueólogos em seus territórios, a exemplo da etnia Munduruku, no licenciamento ambiental da Hidrelétrica Teles Pires, e das etnias Kayabi e Apiaka, na Cachoeira Sete Quedas/rio Teles Pires, com alguns casos extremos de profissionais solicitando escolta armada para garantirem os estudos ambientais, a exemplo do projeto de viabilidade energética do rio Tapajós.
Considera-se que as políticas culturais, sendo públicas ou não, requerem o envolvimento social para os quais elas se destinam. Tais medidas ferem os códigos éticos da arqueologia e distanciam a sociedade da temática arqueológica, fragilizando, sobremaneira, o que a arqueologia tem de mais interessante a proporcionar nos contextos de licenciamento ambiental: construir laços temporais dos povos e dos seus modos de vida com o território por meio da cultura material e dos marcadores na paisagem.
Tal questão deve ser pensada quando se busca vincular a arqueologia com as políticas públicas culturais e precisa ser levada em consideração pelos atores envolvidos com tais políticas para o patrimônio arqueológico. Trata-se de um desafio que, nas palavras de Rubim (2009), deve ser enfrentado por meio da construção de efetivas políticas públicas de cultura, nas quais os diferentes agentes culturais sejam incluídos e tenham garantias de participação e de decisão. Logo, a política de cultura, naquilo que implica deliberações, escolhas e prioridades, padece da falta de um projeto que possa ser compreendido como uma política de Estado e não de partidos políticos.
Ao abordar temáticas de promoção, valorização, proteção, preservação e pesquisa do patrimônio arqueológico é possível pensar que, em um futuro não muito distante, as políticas culturais devam focar no fortalecimento das universidades, museus, centros de pesquisa, ONGs, fundações, associações de classe, para que esses espaços se transformem em lugares de excelência para reflexão, proposição, ressonância e avaliação de políticas culturais para o patrimônio arqueológico brasileiro.
REFERÊNCIAS
BANDEIRA, A. M. A cerâmica Mina no Maranhão. In: BARRETO, C.; LIMA, H. P., JAIMES, C. (Org.) Cerâmicas arqueológicas da Amazônia: rumo a uma nova síntese. Belém: IPHAN, 2016. p. 147- 157.
BANDEIRA, A. M. Distribuição espacial dos sítios Tupi na Ilha de São Luís, Maranhão. Cadernos do LEPAARQ, Pelotas, v. 12, n. 24, p. 60-96, jul./dez. 2015a.
BANDEIRA, A. M. Ocupações humanas pré-coloniais na Ilha de São Luís – MA: inserção dos sítios arqueológicos na paisagem, cronologia e cultura material cerâmica. 2013. 1097 f. Tese (Doutorado em Arqueologia) – Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
BANDEIRA, A. M. Relatório técnico final do Projeto Curadoria Preventiva das coleções arqueológicas existentes no Instituto do Ecomuseu do Sítio do Físico – São Luís – MA: documentação, informatização e socialização do conhecimento. São Luís: FAPEMA, 2015b.
BANDEIRA, A. M. Tasso Fragoso: uma nova fronteira para a pesquisa arqueológica no Maranhão. Cadernos do LEPAARQ, Pelotas, v. 14, n. 28, p. 59-90, jul./dez. 2017.
BRASIL. Constituição Brasileira de 1988. Brasília, DF, 1988a. Disponível em:http://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1988/ constituicao-1988-5-outubro-1988-322142-publicacaooriginal-1-pl. html. Acesso em: 1 jan. 2018.
BRASIL. Decreto-Lei nº. 25, de 30 de novembro de 1937. Organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Brasília, DF, 6 dez. 1937. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/ Del0025.htm. Acesso em: 01 jan. 2018.
BRASIL. Instrução Normativa IPHAN nº 001, de 25 de março de 2015. Estabelece procedimentos administrativos a serem observados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional nos processos de licenciamento ambiental dos quais participe. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2015a. Disponível em:http://portal.iphan.gov. br/uploads/ckfinder/arquivos/Instrucao_normativa_01_2015.pdf. Acesso em: 01 jan. 2018.
BRASIL. Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1998. Disponível em: http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/leis/L9605.htm. Acesso em: 01 jan. 2018.
BRASIL. Ofício Circular IPHAN nº 001, de 22 de fevereiro de 2013-Presi/Iphan. Trata da idoneidade técnico-científica do arqueólogo ao solicitar permissão para pesquisa. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2013. Disponível em:http://www.sabnet.com.br/ informativo/view?TIPO=1&ID_INFORMATIVO=103. Acesso em: 01 jan. 2018.
BRASIL. Portaria Interministerial nº 60, de 24 de março de 2015. Estabelece os procedimentos administrativos que disciplinam a atuação da FUNAI, IPHAN, Fundação Cultural Palmares e do Ministério da Saúde nos processos de licenciamento ambiental. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2015b. Disponível em:http://portal. iphan.gov.br/uploads/legislacao/Portaria_Interministerial_60_de_24_ de_marco_de_2015.pdf. Acesso em: 01 jan. 2018.
BRASIL. Portaria IPHAN n° 196, de 18 de maio de 2016. Dispõe sobre a Conservação de bens arqueológicos, móveis, criando o Cadastro Nacional de Instituições de Guarda e Pesquisa, o Termo de Recebimento de coleções arqueológicas e a Ficha de Cadastro de bem arqueológico móvel. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2016a. Disponível em:http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/ Portaria_Iphan_196_de_18_de_maio_2016.pdf. Acesso em: 01 jan. 2018.
BRASIL. Portaria IPHAN n° 197, de 18 de maio de 2016. Dispõe sobre os procedimentos para solicitação de remessa de material arqueológico para análise no exterior. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2016b. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/ Portaria_Iphan_197_de_18_de_maio_2016.pdf. Acesso em: 01 jan. 2018.
BRASIL. Portaria IPHAN n° 230, de 17 de dezembro de 2002. Compatibiliza as fases de obtenção de licenças ambientais com os estudos preventivos de arqueologia. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2002. Disponível em:http://portal.iphan.gov.br/uploads/ legislacao/Portaria_n_230_de_17_de_dezembro_de_2002.pdf. Acesso em: 01 jan. 2018.
BRASIL. Portaria IPHAN nº 137, de 28 de abril de 2016. Estabelece as diretrizes de Educação Patrimonial no âmbito do Iphan e das Casas do Patrimônio. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2016c. Disponível em:http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/ Portaria_n_137_de_28_de_abril_de_2016.pdf. Acesso em: 01 jan. 2018.
BRASIL. Portaria IPHAN nº 159, de 11 de maio de 2016. Regulamenta os requisitos e procedimentos para celebração de Termo de Ajustamento de Conduta - TAC pelo IPHAN. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil]. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2016d. Disponível em:http://www.lex.com.br/legis_27137079_ PORTARIA_N_159_DE_11_DE_MAIO_DE_2016.aspx. Acesso em: 01 jan. 2018.
BRASIL. Portaria IPHAN nº 199, de 18 de maio de 2016. Institui a Coordenação Técnica Nacional de Licenciamento, no âmbito do Gabinete da Presidência do Iphan. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil]. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2016e. Disponível em:http://www.lex.com.br/legis_27141731_ PORTARIA_N_199_DE_18_DE_MAIO_DE_2016.aspx. Acesso em: 01 jan. 2018.
BRASIL. Portaria IPHAN nº 341, de 13 de agosto de 2015. Dispõe sobre a Instituição da Marca de Autorização de Pesquisa Arqueológica. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2015c. Disponível em:http://portal.iphan.gov.br/uploads/legislacao/ Portaria341Aplicacao_da_marca_de_arqueologia.pdf. Acesso em: 01 jan. 2018.
BRASIL. Portaria SPHAN nº 07, de 01 de dezembro de 1988. Regulamenta os pedidos de permissão para desenvolvimento de pesquisas de campo e escavações arqueológicas. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1988b. Disponível em:http://portal.iphan.gov. br/uploads/legislacao/Portaria_n_007_de_1_de_dezembro_de_1988. pdf. Acesso em: 01 jan. 2018.
BRASIL. Lei nº 3.924, de 26 de julho de 1961. Dispõe sôbre os monumentos arqueológicos e pré-históricos. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 27 jul. 1961. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/1950-1969/L3924.htm. Acesso em: 1 jan. 2018.
BRASIL. Resolução CONAMA nº 001, de 23 de janeiro de 1986. Dispõe sobre as diretrizes gerais para uso e implementação da Avaliação de Impacto Ambiental como um dos instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiental. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil]. Brasília, DF, 17 fev. 1986. Disponível em:http://www.mma.gov.br/port/conama/res/res86/res0186.html. Acesso em: 01 jan. 2018.
CANCLINI, N. G. Definiciones en transición. In: MATO, D. (Org.). Estudios latinoamericanos sobre cultura y transformaciones sociales en tiempos de globalización. Buenos Aires: Clacso, 2001. p. 57-67.
FUNARI, P. P. A. Mixed features of archaeological theory in Brazil. In: UKCO, P. J. (Org.). Theory in Archaeology: a world perspective. New York, London: TAG Routledge, 1995. p. 236-205.
FUNARI, P. P. A.; OLIVEIRA, N. V.; TAMANINI, E. Arqueologia para o público leigo no Brasil: três experiências. In: FUNARI, P. P. A.; ORSER JR, C. E.; SCHIAVETTO, S. N. de O. (Org.). Identidades, discurso e poder: estudos da arqueologia contemporânea. São Paulo: Annablume; FAPESP, 2005. p. 105-116.
FUNARI, P. P. A.; ZARANKIN, A.; STOVEL, E. (Org.). Global Archaeological theory: contextual voices and contemporary thoughts. London: Softcover, 2005.
GNECCO, C. Escavando arqueologias alternativas. Revista de Arqueologia, Pelotas, v. 25, n. 1, p. 8-23, jun./dez. 2012.
HODDER, I. The archaeological process: an introduction. United Kingdom: Blackwell Publishers, 1999.
ICOMOS. Carta de Lausanne: carta para a protecção e gestão do património arqueológico, 1990. Cadernos de Sociomuseologia, Lisboa, v. 15, n. 15, p. 233-242, jan./jun. 2009.
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Recomendação de Nova Delhi. 1956. Disponível em: http://portaal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Recomendacao%20de%20Nova%20Dheli%201956.pdf. Acesso em: 01 jan. 2018.
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Sistema de Gerenciamento do Patrimônio Arqueológico Brasileiro. Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos – Maranhão. Brasília, DF, [20--?]. Disponível em:http://portal.iphan.gov.br/sgpa/ cnsa_resultado.php. Acesso em: 31 dez. 2017.
LIMA, T. A. A proteção do patrimônio arqueológico no Brasil: omissões, conflitos, resistências. Revista de Arqueologia Americana, México, n. 20, p. 51-79, jan./dez. 2001.
LIMA, T. A. A regulamentação da profissão de arqueólogo no Brasil. Revista de Arqueologia, v. 12/13, n. 1, p. 115-145, jun./dez. 1999/2000.
MENESES, U. T. B. Premissas para a formulação de políticas públicas em arqueologia. Revista do Patrimônio, Brasília, DF, n. 33, p. 37-57, jan./dez. 2007.
PARDI, M. L. F. Gestão de patrimônio arqueológico, documentação e política de preservação. 2002. 289 f. Dissertação (Mestrado Profissionalizante em Gestão do Patrimônio Cultural) – Universidade Católica de Goiás, Instituto Goiano de Pré-história e Antropologia, Goiânia, 2002.
ROCHA, B. C. et al. Arqueologia pelas gentes: Um manifesto. Constatações e posicionamentos críticos sobre a arqueologia brasileira em tempos de PAC. Revista de Arqueologia, São Paulo, v. 26, n. 1, p. 130-140, jan./jul. 2013.
SALADINO, A. Iphan, arqueólogos e patrimônio arqueológico brasileiro: um breve panorama. Revista de Arqueologia, Pelotas, v. 26/27, n. 2, p. 40-58, jan./jun. 2013/2014.
SILVA, R. C. P. Compatibilizando os instrumentos legais de preservação arqueológica no Brasil: o Decreto-Lei nº 25/37 e a Lei nº 3.924/61. Revista de Arqueologia, Pelotas, v. 9, p. 9-23, jan./dez. 1996.
SILVA, R. C. P. Os desafios da preservação arqueológica: uma arqueologia da Lei n 3.924/61. Revista do Patrimônio, Brasília, DF, n. 33, p. 59-73, jan./dez. 2007.
SIMÃO, L. de M. Elos do patrimônio: Luiz de Castro Faria e a preservação dos monumentos arqueológicos no Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém, v. 4, n. 3, p. 421-435, set./dez. 2009.
STANCHI, R. O patrimônio arqueológico: oitenta anos de delegações. Revista do Patrimônio, Brasília, DF, n. 35, p. 171-201, jan./dez. 2017.
TILLEY, C. Archaeology as socio-political action in the present. In: WHITLEY, D. S. (Org.). Reader in Archaeology post-processual e cognitive approaches. New York, London: Routledge, 1998. p. 305- 330.
TRIGGER, B. G. História do pensamento arqueológico. Tradução de Ordep Trindade Serra. São Paulo: Odysseus, 2004.
UCKO, P. J.; LAYTON, R. The Archaeology and Anthropology of Landscape. United Kingdom: Routledge, 1999.
Notas