Entrevista

ESTADO, GOVERNOS E POLÍTICAS CULTURAIS NO BRASIL. ENTREVISTA ESPECIAL COM Lia Calabre

Antonio Evaldo Almeida Barros
Universidade Federal do Maranhão UFMA, Brasil

ESTADO, GOVERNOS E POLÍTICAS CULTURAIS NO BRASIL. ENTREVISTA ESPECIAL COM Lia Calabre

Revista de Políticas Públicas, vol. 22, núm. 1, pp. 357-362, 2018

Universidade Federal do Maranhão

Recepción: 07 Mayo 2018

Aprobación: 14 Mayo 2018

ESTADO, GOVERNOS E POLÍTICAS CULTURAIS NO BRASIL

Antonio Evaldo Almeida Barros - Em alguns de seus estudos, a senhora tem observado que embora no Brasil a relação entre o Estado e a cultura tenha uma longa história, a elaboração de políticas para o setor data do século XX. Em sua opinião, quais as principais características das relações entre Estado e Cultura na história do Brasil? É possível identificar regularidades e rupturas mais gerais?

Lia Calabre - A maioria dos estudiosos sobre políticas culturais no Brasil concorda que os dois principais momentos nos quais podemos identificar a elaboração e a implementação de políticas culturais no Brasil no século XX foram o do governo de Getúlio Vargas, em especial na gestão do Ministro Gustavo Capanema (1934-1945) e da ditadura civil-militar, mais especialmente na década de 1970.

A elaboração do que se pode chamar de políticas culturais governamentais, ou de políticas públicas de cultura, no Brasil, teve início durante o primeiro governo Vargas. Foi o tempo da construção de instituições voltadas para setores onde o Estado ainda não atuava. O maior exemplo é o do campo da preservação do patrimônio material com a fundação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Tivemos ainda a regulação do emprego de parte da produção cinematográfica com a criação do Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE), ou a ampliação do mercado editorial com a formação do Instituto Nacional do Livro (INL). A área da cultura estava sob os cuidados do Ministério da Educação e Saúde (MES) e recebeu uma atenção especial na gestão do ministro Gustavo Capanema (1934-1945).

O segundo momento de forte atuação do estado na direção da institucionalização da cultura foi o da Ditadura Civil-Militar iniciada em 1964. As ações iniciam com a criação do Conselho Federal de Cultura em um projeto de fornecer à área da cultura um grau de institucionalidade similar ao da educação. Entre as iniciativas a serem destacadas estão a elaboração de Politica Nacional de Cultura em 1974, a criação da Funarte no ano seguinte, ou ainda a promulgação da Lei do estabelecimento do Conselho de Direito autoral, ou a criação da Fundação Pró-Memória. Enfim, ao longo da década de 1970 a área da cultura foi sendo fortalecida através de novas instituições. A área da cultura ainda estava vinculada à educação, compondo o Ministério da Educação e Cultura (MEC), mas havia alcançado um lugar de destaque dentro da pasta e ganho uma secretaria específica, o que permitia ao Secretário de Cultura ter uma autonomia maior.

São dois períodos de exceção democrática, nos quais o Estado decidiu, unilateralmente, os destinos da política cultural, intercalados por momentos de crescimento de uma economia de mercado. O terceiro momento no qual podemos identificar novamente um processo de elaboração de políticas culturais se dá com a chegada do Presidente Lula ao poder e com a gestão do Ministro Gilberto Gil. Nesse momento temos a elaboração de políticas culturais em toda a sua essência (nas bases pensadas por teóricos como Néstor García Canclini.), em um ambiente democrático e de forma participativa.

Antonio Evaldo Almeida Barros - Há diferenças substanciais na relação entre Estado e Cultura nos governos FHC e Lula?

Lia Calabre - As diferenças das relações do estado com o conjunto das áreas de políticas públicas entre os governos dos Presidentes Fernando Henrique Cardoso (FHC) e Luiz Inácio Lula da Silva são profundas. No governo do Presidente FHC houve um esvaziamento da ação direta do Estado, o uso da Lei Rouanet foi consolidado. O governo investiu largamente no slogan Cultura é um bom negócio. Foram oito anos de governo de inspiração neoliberal, trabalhando pela construção de um Estado mínimo e repassando para a iniciativa privada, através da Lei Rouanet, o poder de decisão sobre o financiamento e apoio da produção cultural do país. Foi com esse quadro, de um Ministério da Cultura (MinC) voltado para a administração dos mecanismos da Lei de Incentivo e para responder aos desejos do mercado, que o governo Lula se deparou.

Para ocupar a pasta da Cultura, o Presidente Lula convidou o cantor e compositor Gilberto Gil. O próprio Ministro, em seu discurso de posse, afirma que seu maior desafio era o de retirar o MinC da distância em que ele se encontrava do dia a dia dos brasileiros, de tornar o mesmo presente em todos os cantos do país. Logo de início foi proposta a reformulação da estrutura do próprio Minc. As secretarias passam a ser organizadas sob a lógica da implementação de políticas. O Ministério passa a circular pelo país, os problemas detectados, como os da própria Lei de incentivo são levados para a discussão pública, em fóruns e seminários. Os desdobramentos das políticas, em especial no governo Lula, estiveram marcados pela discussão democrática e pelas consultas públicas. Vários programas, ações e politicas foram implementados com recursos orçamentários que cresceram muito, ainda que não tenham atingido o patamar esperado. Não que as leis de incentivo tenham perdido a potência ou tenham deixado de ser um mecanismo fundamental no processo de financiamento à cultura – motivo inclusive de críticas à gestão dos Ministros Gilberto Gil e Juca Ferreira. Mas houve um investimento orçamentário significativo e uma articulação muito maior com as outras áreas das políticas públicas. Uma série de segmentos sociais, que nunca havia se relacionado com o Estado, pode acessar recursos e ter suas atividades e práticas culturais reconhecidas.

Antonio Evaldo Almeida Barros - No atual momento de crise política e econômica pelo qual passa o país, como o Estado brasileiro tem lidado com a cultura? Como a crise se revela nas atuais políticas estatais voltadas para a cultura?

Lia Calabre - Temos que voltar um pouco e recordar como foi a relação das estatais com o financiamento da cultura. Na gestão do Presidente FHC, o MinC inicia um intenso trabalho de convencimento das estatais existentes – muitas privatizadas em seguida pelo próprio governo – de que cultura era um bom negócio de investimento. Era uma política de marketing cultural sem nenhuma, ou com muito pouca, responsabilidade social. Na gestão do Presidente Lula, houve logo de início uma preocupação com as políticas que norteariam o investimento das empresas estatais na área da cultura. Era preciso se pensar nas contrapartidas sociais. Era preciso se atuar de maneira diferenciada. As estatais não deveriam reproduzir as mesmas lógicas de mercado que guiavam o financiamento privado de uma maneira em geral. Ocorreu um trabalho de incentivo da criação de políticas de financiamento baseadas em critérios democráticos e transparentes, na sua maioria baseado no lançamento de editais públicos, buscando ampliar os públicos atingidos. Esta forma de agir, de alguma maneira ficou conhecida como política de editais e foi, inclusive, adotada por empresas da iniciativa privada.

Não podemos perder de vista que esse foi um período de forte crescimento econômico e de maior estabilidade política. Hoje, se por um lado vivemos o aprofundamento da crise econômica, que em parte foi inicialmente forjada para justificar o golpe contra uma presidente eleita democraticamente, isso resulta na imediata diminuição dos investimentos na área da cultura; de outro, seguimos para uma retomada das chamadas políticas de balcão, às quais somente um grupo privilegiado tem acesso aos recursos das leis de incentivo.

Antonio Evaldo Almeida Barros - Em sua opinião, quais os principais desafios que o Brasil precisa enfrentar para a construção de uma política cultural de caráter democrático e participativo?

Lia Calabre - Um dos maiores desafios é o da transformação da própria cultura politica do país. O Brasil vivenciou, entre 2003 e 2016, um processo de reconhecimento e de valorização do papel dos vários atores políticos na gestão pública. Em uma sociedade democrática acredita-se que tais atores devam efetivamente compartilhar os espaços decisórios. A partir de 2003, assistiu-se a um contínuo processo de ampliação da participação da sociedade civil na gestão pública, nos mais diversos níveis e áreas de governo. Hoje, os modelos de construção das novas estruturas necessárias para garantir o funcionamento democrático das sociedades extrapolam os limites restritos do Estado, ainda que, nesse exato momento, parte desse projeto se veja ameaçado por práticas políticas golpistas e autoritárias.

Temos a necessidade da construção de novos modos ou modelos de gestão pública que permitam um diálogo e uma ação mais efetiva do Estado com os múltiplos atores socais. Há ainda nos mecanismos de gestão pública e nas regulações fortes resquícios de práticas autoritárias, centralizadoras e elitistas, que buscam manter uma espécie de fosso que separa os governantes dos governados, uma elite que acessa o Estado como parceiro de uma maioria que é tradada como cliente – muitas vezes de segunda categoria. Tais tendências se fortaleceram após o início do governo golpista, em 2016. Há um claro esgotamento dos modelos tradicionais de representação; são necessárias novas ferramentas de gestão que garantam a ampliação da capacidade do conjunto da sociedade de se fazer representar junto ao Estado. Talvez as novas tecnologias possam ser úteis nesse processo.

O maior desafio é o de que esse mesmo estado que estabeleceu as regras de participação democrática, quando tem seus postos de mando apropriados por uma elite predatória e que representa, prioritariamente, os interesses do grande capital, desrespeita os princípios democráticos pactuados e previstos em lei. Os mecanismos que deveriam garantir um mínimo de estabilidade são pervertidos e passam a atender aos interesses de uma minoria que despreza os mecanismos consultivos e participativos lançando mão de expedientes pouco democráticos para se manterem no controle do poder.

Antonio Evaldo Almeida Barros - Como a senhora vê a relação entre superação da desigualdade social e política cultural?

Lia Calabre - As desigualdades de acesso à cultura seguem o mesmo mapa da desigualdade social. Os equipamentos culturais se concentram nas áreas mais nobres e mais antigas das cidades. Os mais pobres e os com menor grau de escolarização engrossam a fileira dos que nunca vão ao teatro, não foram a uma exposição no último ano ou nunca foram a um museu na vida. Acessam os recursos das leis de incentivo os produtores mais renomados que montam seus espetáculos bem longe das imensas periferias das grandes cidades. Há uma dívida histórica de desigualdade com um largo segmento da sociedade que não será paga se essas iniciativas tiverem lugar somente na cultura.

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