Resenha
CALABRE, Lia; LIMA, Deborah Rebello (Orgs.). Políticas Culturais: conjunturas e territorialidades. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa e Observatório Itaú Cultural, 2017.
CALABRE, Lia; LIMA, Deborah Rebello (Orgs.). Políticas Culturais: conjunturas e territorialidades. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa e Observatório Itaú Cultural, 2017.
Revista de Políticas Públicas, vol. 22, núm. 1, pp. 363-370, 2018
Universidade Federal do Maranhão
CALABRE Lia, LIMA Deborah Rebello. Políticas Culturais: conjunturas e territorialidades.. 2017. Rio de Janeiro. Fundação Casa de Rui Barbosa e Observatório Itaú Cultural. 164 p.pp. |
---|
Políticas Culturais: conjunturas e territorialidades é uma coletânea organizada por Lia Calabre e Deborah Lima. Lia Calabre e Deborah Lima já atuaram diretamente na Fundação Casa de Rui Barbosa, respectivamente, como presidente e assessora técnica no Setor de Estudos em Políticas Culturais. Calabre é organizadora, desde 2010, do Seminário Internacional de Políticas Culturais. Assim, com uma ampla trajetória sobre as políticas públicas culturais, as organizadoras congregam nesta coletânea resultados de pesquisas contemporâneas de estudiosos do Brasil e da América Latina centrados nesse campo de estudo. Os capítulos reunidos na coletânea foram apresentados, entre 2015 e 2016, durante a VI e VII edição do Seminário Internacional de Políticas Culturais – ambas sediadas na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, Brasil.
A coletânea é dividida em duas partes, mas que estão interligadas, a saber: Conjunturas e Territorialidades.
Na primeira parte são postos em diálogo pesquisas que têm como foco central discutir as conjunturas e os problemas contemporâneos no que se refere às políticas culturais. Esta seção traz para o palco de debates diferentes objetos e problemas de pesquisa. São trabalhos que acionam as discussões sobre produção cultural em contextos e situações variados:há enfoques centrados no Brasil, mas também em processos globais, analisa-se o métier dos gestores culturais e o lugar da cultura no campo intelectual contemporâneo global.O conjunto de 7 (sete) artigos que dão vida e movimento à parte Conjunturas reúne nomes de pesquisadores brasileiros e latino-americanos de diferentes áreas de formações e que trazem importantes reflexões para compreender as dinâmicas das produções culturais.
Ana Rosa Mantecón, especialista em políticas culturais urbanas, antropóloga e professora vinculada à Universidade Metropolitana do México parte do cenário cinematográfico da América Latina para problematizar a relação entre acesso cultural e desigualdade. A pesquisadora ressalta que “[...] apesar de a oferta cinematográfica ter sido historicamente uma das mais acessíveis em nível global, o potencial de acesso público às salas de exibição [...] viu-se diante de hierarquias e estruturas de desigualdade de cunho diverso” (MANTECÓN, 2017, p. 11). Aqui, Estados Unidos, Índia, Quênia e Nigéria são citados pela antropóloga como exemplos do acesso desigual no contexto cinematográfico. E vários são os fatores elencados pela autora que levam os sujeitos a não acessarem atividades culturais, podendo “[...] decorrer não só da distância geográfica e da falta de capital cultural ou econômico. Podemos também identificar barreiras simbólicas que impedem o acesso.” (MANTECÓN, 2017, p. 11). Mas qual a importância de tal acesso cultural? Mantecón (2017, p. 29) nos apresenta um caminho: “[...] o acesso cultural apresenta-se [...] como um lugar fundamental para sustentar a necessidade da intervenção pública diante das insuficiências e desigualdades do mercado”. Desse modo, “[...] políticas públicas mais enérgicas e consistentes na educação e na comunicação.” são apontadas como um dos caminhos “[...] para que uma porcentagem maior da população possa participar da economia criativa e do conhecimento.” (MANTECÓN, 2017, p. 29).
Tomando como lugar de análise a figura dos gestores de cultura no campo das políticas culturais, Alexandre Barbalho e Victor Vich dão sequência aos debates na seção Conjunturas. Barbalho, especificamente, pauta sua pesquisa no primeiro biênio do governo da petista e ex-presidenta do Brasil Dilma Vana RousseR, quando tinha na gestão Ana de Hollanda. Já Vich nos convida a ampliar nossa percepção da cultura para além da esfera positiva das artes, questionando o que é afinal um gestor cultural. Direta ou indiretamente, nas análises de ambos os autores há elementos que se interseccionam, como o fato de se perceber a cultura, e junto a ela a gestão, como espaço de disputas, conflitos, negociações, continuidades e rupturas.
Os trabalhos de María Pauliana Soto Labbé e Frederico Augusto Barbosa da Silva dão continuidade às reflexões no campo das conjunturas das políticas culturais. Labbé se concentra mais em tecer compreensões sobre o papel da intelectualidade da América Latina na construção e sustentação de novos modelos (ou sentidos) de desenvolvimento humano na era de transformações das sociedades. Silva, por sua vez, percorre o caminho da avaliação de políticas públicas, um campo de amplo debate, a partir da experiência do redesenho feito do programa Cultura Viva. Contudo, os dois pesquisadores redirecionam a chave de análise, respectivamente, para o poder dos símbolos e usos dos sentidos no campo das conjunturas das políticas culturais.
Álvaro Santi e José Márcio Barros são os autores que fecham esse primeiro ciclo de estudos, tratados na parte Conjunturas, colocando em cena reflexões sobre o papel dos observatórios nas políticas culturais. Para tal, Santi parte do estudo de caso do Observatório da Cultura em Porto Alegre, enquanto Barros traça alguns dos percursos e desafios enfrentados pelo Observatório da Diversidade Cultural da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). Vale ressaltar que as análises que perpassam a primeira parte da coletânea partiram de contextos locais, como é o caso do Brasil, mas se conectaram a conjunturas e lógicas globais sobre as políticas culturais, como àquelas da Unesco.
A segunda parte é composta pelas pesquisas sobre políticas culturais no campo da Territorialidade. Importante destacar que o sentido aqui atribuído à territorialidade não se restringe a delimitações geográficas tradicionais. Os sentidos atribuídos à territorialidade no campo das políticas culturais ultrapassam tais delimitações, sendo pensadas como fluidas. Desse modo, com inspiração na Gramática das Civilizações de Fernand Braudel, importante historiador francês, é possível afirmar que as fronteiras que delimitam as territorialidades também são culturais, políticas, sociais e, sobretudo, determinadas a partir das relações humanas.
Com reflexões sobre a cidade, especificamente do Rio de Janeiro, no centro da produção cultural contemporânea, Jorge Luiz Barbosa abre a parte de Territorialidades. Diretor do Observatório de Favelas e professor da Universidade Federal Fluminense, Barbosa define cultura como um produto de encontro de saberes e fazeres na pluralidade da vida social e diz ser no território que se cristalizam símbolos, memórias e valores que refletem a/na cultura. A definição de cultura proposta por Barbosa possui estreita relação com a própria definição de cidade do pesquisador. A cidade é definida como “[...] a expressão da pluralidade de experiências afetivas, existenciais e estéticas.” (BARBOSA, 2017, p. 107), mas completa o autor: “[...] todavia, a padronização cultural retira da cidade a criatividade necessária para inventar desejos, emoções e convivências.” (BARBOSA, 2017, p. 107). É possível sugerir que a padronização, fenômeno comum nos processos de patrimonialização de expressões culturais, cria ou ao menos evidência hierarquias de várias esferas nos territórios: social, econômico, cultural, etc. O território possui então uma dimensão simbólica importante e deve ser levado em consideração nos estudos sobre políticas culturais: é o que afirma Barbosa quando propõe que as favelas sejam pensadas e tomadas como territórios plurais da criação cultural. Nas palavras do próprio autor, “[...] as favelas se inscrevem na cidade como uma potência da liberdade do tornar-se, do buscar ser algo que ainda não se é, de um presente atualizado a cada posicionamento em que deliberamos sobre nossas vidas, sobre nossos atos e sobre a qualidade social de nossos encontros na cidade.” (BARBOSA, 2017, p.118). As favelas são, neste sentido, lócus de estudos sobre política culturais.
Redirecionando as lentes, um trio de pesquisadores se debruça em compreender a arena das políticas culturais a partir de um território comum: o Estado da Bahia.
Com o foco para a Bahia e para a gestão do segundo governo de Jaques Wagner (PT), entre 2011 e 2014, Antonio Albino Canelas Rubim nos apresenta uma rica discussão sobre políticas públicas de cultura desenvolvidas no Brasil, precisamente no estado da Bahia.
Ora, sabemos que no jogo das políticas públicas culturais é preciso considerar a influência e papel da arena burocrática, um dos segmentos responsáveis pela formulação, implementação e avaliação das políticas públicas. Mas, vale pontuar que “[...] a exagerada burocracia e a deficiente condição de funcionamento afetam a capacidade de planejamento e gestão.” (RUBIM, 2017, p. 127). Nesse sentido, cabe lembrar quando Rubim (2017, p. 124) diz que “[...] a Secretaria de Cultura assumiu como política os territórios de identidade, atenta à diversidade de manifestações culturais presentes em toda a Bahia e ao enfrentamento do histórico aprisionamento das políticas culturais a territórios da capital e de algumas cidades”.
Em perspectiva que também enfoca a Bahia, Laura Bezerra discute o acesso à formação e qualificação em cultura naquele Estado, destacando alguns desafios, estratégias, possiblidades e limitações nesse processo. Bezerra (2017) reforça ainda a dificuldade advinda do próprio aparelho burocrático estatal na Secretaria de Cultura para a implementação de políticas culturais. Para a autora, a atuação da secretaria é limitada e insuficiente para a missão que lhe é atribuída. Há, pois, a necessidade da “[...] presença de cidadãs e cidadãos interessados na participação política e capazes de lidar com as teias da burocracia. Isso reforça a urgência de investir, de forma ativa e sistemática, em políticas públicas de formação e qualificação em cultura.” (BEZERRA, 2017, p. 137).
Taiane Fernades (2017) é nossa terceira autora que toma a Bahia como palco de análise das políticas culturais, a partir do recorte para os dispositivos de participação cultural naquele território. Aclamada ou conhecida como celeiro cultural, a Bahia configura-se como um ambiente cultural parcamente organizado. Por muito tempo “[...] a diversidade de expressões culturais desse estado passou longos anos ofuscada por uma indústria cultural hegemônica e por uma política cultural ausente ou subordinada a interesses outro.” (FERNANDES, 2017, p. 138). Taine Fernandes (2017, p. 147) apresenta os ciclos de uma longa caminhada para a participação cultural na Bahia. Tais ciclos são importantes, posto que “[...] a construção de políticas culturais democráticas e participativas demanda uma série de esforços conjugados”.
Por fim, o trabalho de Ana Paula do Val, Luciana Piazzon Barbosa Lima, Maria Carolina de Vasconcelos e Oliveira e Viviane Cristina Pinto encerra esta coletânea sobre Políticas Culturais. O debate proposto por essas autoras consiste no esforço de problematizar as estratégias que estimularam a participação social de diversos grupos culturais da cidade de São Paulo na III Conferência Municipal de Cultura. O triplé “[...] participação, cidadania e diversidade cultural” é, pois, o pano de fundo das análises das autoras, nas quais essa conferência é pensada como mecanismo democrático e participativo de construção de políticas no referido município. (VAL et al., 2017). No entanto, cabe frisar que embora as conferências de cultura sejam espaço e momentos importantes para os debates sobre as políticas públicas culturais, “[...] entende-se que a participação social no processo de construção das políticas públicas não deve se restringir a momentos específicos, como o das conferências, mas, sim, estar presente na dinâmica e no cotidiano da gestão pública.” (VAL et al., 2017).
Os trabalhos reunidos nesta coletânea, entre tantos recortes específicos e singulares, interseccionam-se pela chave das Políticas Culturais. Discutem, direta ou indiretamente, o papel do Estado e da sociedade civil no processo de constituição das Políticas Públicas Culturais que, de certo modo, são demandas sociais. As análises evidenciam um processo dialético no circuito das políticas culturais, perpassado por tensões e disputas e envolvendo diferentes e desiguais sujeitos. São pesquisas contemporâneas de fôlego que focam diferentes conjunturas e territorialidades do Brasil, bem como da América Latina. Assim, essa coletânea cumpre um papel extremamente importante em tempos de lutas pela, ainda jovem, democracia brasileira, sobretudo após o golpe político-jurídico-midiático de 2016 que levou ao impeachment da então Presidenta Dilma Rousser.
Cabe convidar para um último diálogo com a produção desta coletânea o historiador social da cultura Edward P. Thompson e o crítico indo-britânico professor de Teoria da Cultura e da Literatura da Universidade de Chicago Homi K. Bhabha. Estes dois teóricos são importantes tanto para pensarmos as conjunturas quanto as territorialidades tal como são discutidas na coletânea organizada por Lia Calabre e Deborah Lima. Ora, para Bhabha (1998, p. 25), “[...] cada vez mais, as culturas ‘nacionais’ estão sendo produzidas a partir da perspectiva de minorias destituídas”. De certo modo, essa perspectiva corrobora com os trabalhos que compuseram esta coletânea, sejam aqueles situados nas conjunturas, sejam os situados nas territorialidades. E é preciso compreender que, tratando-se de políticas culturais, é um equívoco, como sinalizaram os trabalhos da coletânea, reduzi-las a fronteiras binárias ou geográficas (BHABHA, 1998), afinal como bem nos lembra Thompson, é preciso interpretar a cultura como fluída, não estática; como espaço de lutas, de resistências, conflitos, tensões, negociações, formações e reafirmações de identidades; é preciso interpretar a cultura como dinâmica e complexa.
Os capítulos que dão vida e movimento a esta coletânea descortinam diversos cenários locais, nacionais e internacionais e põem em cena as Políticas Culturais, em distintos momentos, como um campo aberto a múltiplas leituras epistemológicas, tocadas pelas contingências dos sujeitos, do tempo, dos espaços, dos caminhos e das intencionalidades de repensar o mundo a partir de lentes outras.
Por fim, é preciso ressaltar que a coletânea intitulada Políticas Culturais: conjunturas e territorialidades, organizada por Lia Calabre e Deborah Lima, é uma obra densa, do ponto de vista do cuidado na operacionalização dos conceitos acionados pelos autores. É também uma obra coletiva, de leitura envolvente e atual no campo das Políticas Públicas Culturais no Brasil e América Latina. O conjunto da obra é pertinente e indicada para um público bem amplo, a exemplo de estudantes de graduação, pós-graduação, pesquisadores e professores universitários e da Educação Básica, gestores e burocratas que atuam no campo das políticas culturais.Considerando os debates presentes nela, é uma coletânea indicada ainda para ONGs e Movimentos Sociais que atuam no campo da cultura.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, J. L. A favela na política cultural do Rio de Janeiro. In: CALABRE, L.; LIMA, D. R. (Orgs.). Políticas Culturais: conjunturas e territorialidades. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa e Observatório Itaú Cultural, 2017. p. 107-119.
BEZERRA, L. Formação e qualificação em cultura na Bahia (2011-2014): desafios, estratégias, possibilidades, limitações. In: CALABRE, L.; LIMA, D. R. (Orgs.). Políticas Culturais: conjunturas e territorialidades. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa e Observatório Itaú Cultural, 2017. p. 130-137., 1998.
BHABHA, H. K. O Local da Cultura. Belo Horizonte: EdUFMG, 1998.
FERNANDES, T. Dispositivos de participação cultural na Bahia. In: CALABRE, L.; LIMA, D. R. (Orgs.). Políticas Culturais: conjunturas e territorialidades. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa e Observatório Itaú Cultural, 2017. p. 138-148.
MANTECÓN, A. R. Acesso cultural e desigualdade: políticas para novos e antigos cenários cinematográficos na América Latina. In: CALABRE, L.; LIMA, D. R. (Orgs.). Políticas Culturais: conjunturas e territorialidades. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa e Observatório Itaú Cultural, 2017. p. 10-32.
RUBIM, A. A. C. Políticas culturais na Bahia 2011-2014. In: CALABRE, L.; LIMA, D. R. (Orgs.). Políticas Culturais: conjunturas e territorialidades. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa e Observatório Itaú Cultural, 2017. p. 120-129.
THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
VAL, A. P. do et. al. In: CALABRE, L.; LIMA, D. R. (Orgs.). Políticas Culturais: conjunturas e territorialidades. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa e Observatório Itaú Cultural, 2017. p. 149-161.