Servicios
Servicios
Buscar
Idiomas
P. Completa
CLASSE, GÊNERO, RAÇA E MOVIMENTOS SOCIAIS: a luta pela emancipação1
Helena Hirat
Helena Hirat
CLASSE, GÊNERO, RAÇA E MOVIMENTOS SOCIAIS: a luta pela emancipação1
Revista de Políticas Públicas, vol. 22, pp. 143-158, 2018
Universidade Federal do Maranhão
resúmenes
secciones
referencias
imágenes

Resumo: O presente artigo resulta de pesquisa teórica sobre a participação feminina no mundo do trabalho, destacando a questão da exploração e a dominação masculina através da história, a despeito das grandes mudançaseconômicas, sociais, política e jurídicas ocorridas nesse campo. Acentuar, entre as permanências a presença de “ghettos” masculinos ocupacionais, em áreas como a construção civil, a aviação e a mineração, enquanto há poucos homens, por exemplo, em creches, no trabalho doméstico e entre cuidadores. Conclui que duas vias relevantes são adotadas simultaneamente por sociedades industrializadas para superar as dificuldades: a via das políticas públicas e a via da ação dos movimentos feministas. O eixo comum é a perspectiva ética de que a desigualdade constitui- -se em injustiça social.

Palavras-chave:ClasseClasse, gênero gênero, raça raça, movimentos sociais movimentos sociais, emancipação emancipação.

Abstract: The present article results of a theoretical research on women participation on labor, highlighting the male dominance and exploit issue through history, despite the great economical, social, and legal changes occured in those fields. Accentuate, among the presence of occupational men “ghettos”, in areas like civil construction, aviation and mining, while there are few men, for example,in nursery, housework and among caregivers. Concludes that two relevant ways are adopted simultaneously by industrialized societies to overcome the difficulties: the path of public policies and the path of action of feminist movements. The common axis is the ethical perspective that inequality is social injustice.

Keywords: Class, gender, race, social movements, emancipation.

Carátula del artículo

Mesas redondas

CLASSE, GÊNERO, RAÇA E MOVIMENTOS SOCIAIS: a luta pela emancipação1

Helena Hirat
Site Pouchet du CNRS, Francia
Revista de Políticas Públicas, vol. 22, pp. 143-158, 2018
Universidade Federal do Maranhão

Recepção: 28 Fevereiro 2018

Aprovação: 09 Maio 2018

1 INTRODUÇAO

Creio que o tema da VIII Jornada Internacional de Políticas Públicas (VIII JOINPP) denominado 1917-2017: um século de reformas e revolução é adequado para dar conta do amplo debate sobre as grandes transformações sociais e históricas entre 1917 e 2017.

Vou tratar principalmente da questão da exploração, da opressão e da dominação das mulheres, dimensões indissociáveis tanto para Heleieth Saffiotti (1976, 1984) no Brasil quanto para Danièle Kergoat (1978, 2012) na França exploração econômica e opressão de sexo caracterizando a dominação masculina e a desigualdade social que marcam a situação das mulheres desde a época da Revolução Russa até hoje, apesar de grandes mudanças ocorridas na sua situação econômica, social, política e jurídica.

O que mudou e o que permanece? É uma das questões que penso responder olhando a situação das mulheres, especialmente nos últimos cinquenta anos, em que se desenvolveu a sociologia do trabalho e do gênero na França.

Philippe Askenazy (2009), economista do Centro Nacional da Pesquisa Cientifica (CNRS) da França, aponta três grandes transformações do trabalho nas sociedades contemporâneas:

a) A concepção taylorista: Ela se caracteriza não apenas pela separação entre concepção e execução mas, sobretudo, pela imposição de um one best way, uma prescrição a ser adotada pelos trabalhadores para as tarefas de produção.

b) A Industrialização intensiva até os anos 1970, isto é, até a crise de 1973 (o período denominado golden age of capitalism ou as trente glorieuses), os trinta anos gloriosos de expansão econômica, na França.

c) A terceirização do trabalho: A industrialização que penetra o terciário, a exemplo dos call-centers, tanto nos países do Sul quanto nos países do Norte.

Parece-nos um esquecimento, senão um erro, não apontar, entre as grandes transformações do trabalho no pós-guerra, sobretudo a partir dos anos 1970, a feminização do mundo do trabalho.

2 GÊNERO E TRABALHO: mudanças e permanências

Se as mulheres sempre trabalharam (SCHWEITZER, 2002), como mostram as especialistas do trabalho feminino, a porcentagem de mulheres passou no caso da França, de 1/3 a metade do conjunto da população ativa em um século (MARUANI; MERON, 2012). No Brasil, considerando apenas a década passada, observa-se um incremento de 24% na atividade feminina. (COSTA, 2013).

Além do aumento da população ativa feminina podemos constatar outras mudanças importantes. Uma delas diz respeito à situação familiar das mulheres trabalhadoras em países como a França e o Brasil, dois países que fazem parte das minhas pesquisas. O número de mulheres casadas ativas aumentou nesse meio século nos dois países, assim como a porcentagem de mulheres ativas com filhos pequenos.

Hoje, na França, cerca de 80% de mulheres casadas, com filhos pequenos, tem atividade profissional fora do domicílio e aumento significativo de mulheres casadas no mercado de trabalho também foi notado e analisado pela socióloga Cristina Bruschini e outros (2008) da Fundação Carlos Chagas. Uma das exceções, em relação a essa evolução, é o caso do Japão, onde as normas sociais exigem que as mães cuidem dos filhos pequenos em suas casas e onde o número de creches e instituições de acolhida de crianças pequenas é muito reduzido, o que se traduz por uma porcentagem pequena de mães com filhos pequenos no mercado de trabalho, as exceções sendo as part-timers.2

Outra grande mudança se refere aos ramos de atividade e a inserção socioprofissional das trabalhadoras com a gênese do que chamamos a polarização do emprego feminino. Essa polarização já existia na época da Revolução Russa.

Num artigo datado de 1908, A mulher trabalhadora na sociedade contemporânea, Alexandra Kollontai (2017 [1908], p. 51) já indica a gênese dessa polarização:

O capital precisa de mão de obra barata e cada vez mais atrai para si novas forças de trabalho femininas. No entanto, enquanto a mulher burguesa passa orgulhosa e de cabeça erguida pela porta das profissões intelectuais que se abre diante dela, a mulher proletária se curva ao destino e entra na linha de produção industrial.

Kollontai (2017 [1908) fornece dados para mostrar que “[...] a proletária não só foi a primeira a ingressar no mundo do trabalho como continua a reinar nele em termos numéricos”. Ela diz que na França havia, na época, 3 584 milhões de proletários para apenas 300 000 mulheres da intelligentzia.

A polarização com um grande crescimento do polo das mulheres de nível universitário é um dado que surge e é analisado a partir de meados de 1990, por Catherine Hakim (1996) na Inglaterra, Danièle Kergoat (1998) na França, Cristina Bruschini e Maria Rosa Lombardi (2000) no Brasil, com consequências políticas, pois no mesmo grupo social das mulheres há dois subgrupos com interesses opostos.

No momento atual, a polarização é manifesta, com concentração de trabalhadoras no setor da saúde, da educação, dos serviços e do comercio e uma minoria crescente nas profissões de nível universitário. Esse polo minoritário é constituído de profissões valorizadas, relativamente bem remuneradas, ocupadas, em geral, por mulheres brancas, não migrantes, qualificadas: médicas, engenheiras, arquitetas, jornalistas, professoras universitárias, pesquisadoras, advogadas, juizas, publicitárias, etc.

Podemos constatar a partir de dados estatísticos recentes apresentados por Catherine Marry e suas coautoras/es (2017) na França e por Maria Rosa Lombardi (2017) no Brasil que a taxa de feminização dos executivos e das profissões intelectuais superiores é, na França, de 40% em 2014. Entretanto, apenas 17,8% de postos de direção de empresas de mais de 10 assalariados são ocupados por mulheres na França em 2007 (MARRY, 2017). No Brasil, durante a década de 2010, as mulheres ocupam: 54% dos empregos de jornalistas; 44% dos empregos de médicos; 51% dos empregos de advogados, de magistrados, de juízes. Entretanto, apenas 18% dos postos de engenheiros são ocupados por mulheres. (LOMBARDI, 2017).

Mas creio que é também necessário acentuar um certo número de permanências, além de constatar as mudanças. Uma delas é a permanência de ghettos ocupacionais. Há poucas mulheres na construção civil, na aviação, na mineração, para citar apenas alguns exemplos; e há poucos homens em creches, no trabalho doméstico e de cuidados e entre as professores primários.

Essa permanência de ghettos se realiza no quadro de mudanças bastante consideráveis dos setores econômicos em que as mulheres se fazem presentes. No passado, elas estavam mais presentes na indústria; hoje, elas se encontram maciçamente presentes no terciário (serviços e comércio). Assim, segundo a pesquisa de Maruani e Meron (2012) para a França, em 1901, em cada 10 mulheres, havia 4 na agricultura, 3 na indústria, 1 no comercio e uma no serviço doméstico; em 2008, em cada 10 mulheres, 4 estão no comércio ou nos transportes, 4 na administração, saúde, educação ou assistência social, 1 na indústria e 1 na agricultura.

As diferenças salariais são, como os ghettos profissionais, uma outra dessas permanências. Rachel Silvera (2016, 2014), no seu artigo na coletânea que organizei no ano passado para a Boitempo e também no seu livro declara que o salário das mulheres na França é de ¼ a menos (27%) do que o dos homens, tanto em 2017 quanto em 1917. “Mas não por falta de leis, livros, estudos estatísticos e as ações as mais diversas”, como diz a autora (SILVERA, 2016, p. 83). Em 1918, segundo R. Silvera (2006), um inspetor do trabalho ja denunciava o “regime de ¼ a menos” aplicado às mulheres nas indústrias bélicas. Ele diz: “[...] seu trabalho tornar-se-á igual ao do homem bem antes do seu salário.” (SILVERA, 2016). Diferença salarial de 27% na França, 30% no Brasil, segundo as pesquisas da Fundação Carlos Chagas. (COSTA, 2013).

Os salários femininos são inferiores aos salários masculinos e há desigualdade salarial entre homens negros e brancos, mulheres negras e brancas. Pesquisas de Nadya Araújo Guimarães (2002), no Brasil, e de feministas do movimento negro nos Estados Unidos, nos anos 1970 (BEAL, 1970), mostram que há uma hierarquia salarial segundo a qual em primeiro lugar estão os homens brancos, em segundo lugar os homens negros, em terceiro lugar as mulheres brancas e, em quarto e ultimo lugar, as mulheres negras, resultados confirmados, mais recentemente, por pesquisa publicada em 2013, de Angela Carneiro Araújo e Maria Rosa Lombardi (2013).

Também continuam a existir trabalhos repetitivos, monótonos e de ciclo curto (3 segundos, por exemplo). O exemplo de uma entrevista da socióloga Madeleine Guilbert (1966), precursora das pesquisas sobre o trabalho industrial feminino, é expressivo. A operária entrevistada que fabricava 10 000 peças por dia, diz à socióloga: “[...] é como se a senhora tivesse que escrever 10 000 vezes a mesma palavra.” (MADELINE, 1966). A ideia de que o trabalho repetitivo pode levar à autoaceleração compulsiva que, por sua vez, leva a um aumento da produtividade, é desenvolvida por Christophe Dejours (1980) que considera tal tipo de trabalho patogênico e não estruturante nem sublimatório.

O trabalho monótono e repetitivo não apenas subsiste na indústria, afetando, sobretudo, a mão de obra feminina, mas também no setor de serviços. Assim, as condições de trabalho e os conteúdos do emprego mudaram, mas é necessário notar a taylorização dos call centers, com os scripts que devem ser seguidos à risca pelas/pelos trabalhadoras/es. A intensificação do trabalho, resultado das novas formas de organização do trabalho e da produção, tem também consequências nefastas em termos de saúde física e mental. As organizações flexíveis do trabalho e da produção, em fase de implementação no momento atual, não trouxeram consigo a realização de um trabalho democrático a que se refere o filósofo Alexis Cukier (2018).

Outra permanência, apesar das grandes transformações sociais e históricas: à mulher, continua a ser atribuído o trabalho doméstico e de cuidados. Nicole Claude Mathieu e Colette Guillaumin (1963) contabilizaram 84h por semana, adicionando trabalho doméstico e trabalho profissional para uma mulher francesa com três filhos pequenos.

Os dados de 2012 para o Brasil contabilizam 57h por semana, adicionando trabalho doméstico e trabalho profissional para a trabalhadora brasileira, e 50h por semana para os trabalhadores (PNAD/ IBGE, 2012). Na França, em 2010, a mulher continua a assegurar 80% das tarefas domésticas. Essa repartição assimétrica do trabalho doméstico é uma permanência notável, pois Kollontai (2017 [1908])) diz em 1908 que “Depois do trabalho na indústria, a mulher é obrigada a cuidar do minucioso trabalho doméstico. Não há descanso para a mãe trabalhadora profissional”.

Outro exemplo de permanência, apesar das mudanças na divisão sexual do trabalho, é fornecido pelas pesquisas no setor da tecnologia da informação (TI): a pesquisa de Barbara Castro (2017) mostra que a despeito das novas configurações do emprego flexível, há permanência da divisão sexual do trabalho profissional, divisão entre o hard et oft e da divisão do trabalho doméstico em virtude das relações sociais em vigor dentro do casal e no universo familiar, que associa home office ao trabalho reprodutivo e à conciliação entre vida familiar e vida profissional para as mulheres e a um trabalho de produtividade maior e sem obrigações para os homens. A autora mostra, em particular, o peso da maternidade na evolução do emprego das mulheres no setor da tecnologia da informação.

Enfim, a precariedade atinge mais as mulheres e não é uma tendência recente, mas apontada por Nicole Claude Mathieu e Colette Guillaumin (1963) e confirmada pelas estatísticas do Institut National de la Statistique et des Etudes Economiques (INSEE – Instituto Nacional da estatística e dos Estudos Econômicos) sobre a precariedade do trabalho feminino (descontinuidade, trabalho braçal, trabalho em tempo parcial, etc.). O trabalho feminino, sendo muitas vezes um trabalho informal, aumenta o caráter de precariedade do emprego feminino. Pierre Salama (2014) mostra que mesmo o trabalho registrado tem por vezes características de trabalho informal nos anos 2000, no Brasil. Também a terceirização afeta negativamente mais as mulheres do que os homens, como demonstra Marilane Teixeira Oliveira (2015).

Queremos aqui sublinhar que na divisão sexual do trabalho profissional há uma desigualdade paradoxal. O paradoxo dessa desigualdade é que ela é sempre estruturada conforme um princípio hierárquico: o trabalho masculino tem sempre um valor superior ao trabalho feminino (KERGOAT, 2000). Os desempenhos escolares das meninas são superiores aos dos meninos em escala mundial (BAUDELOT; ESTABLET, 2013), mas permanece a situação de inferioridade das mulheres no mercado de trabalho. Os estudos de nível superior protegem do desemprego, mas não da inferioridade no mercado de trabalho em relação aos homens.

3 A QUESTÃO DA EMANCIPAÇÃO

Voltemos ao título deste artigo que inclui a ideia de emancipação. Como diz Danièle Kergoat (1978, p. 44): “[...] patriarcado e capitalismo se combinam, exploram dominando e dominam explorando”. A emancipação e a luta contra a opressão são indissociáveis nos movimentos feministas. Como demonstra Cornelia Möser, filósofa pesquisadora do Centro Nacional de Pesquisa Cientifica (CNRS) da França, há mudança de significado da palavra emancipação no século XIX, após a Revolução Francesa. Se antes designava o ritual formal de libertação de escravos dos senhores e dos filhos e dos pais, a partir do século XIX designa os grupos oprimidos (mulheres, judeus, - confira a questão judaica de Marx – camponeses, etc.).

A luta contra a opressão, a exploração e a dominação encontra um exemplo paradigmático da junção entre globalização, movimentos sociais e crise do Estado e crise de uma certa moralidade burguesa, nas manifestações das camareiras dos hotéis de Nova Iorque, majoritariamente mulheres, imigrantes, pobres e negras, que sairam às ruas quando do julgamento de Dominique Strauss Khan, ex-diretor do Fundo Monetário Internacional, preso e acusado de agressão sexual por uma camareira africana, negra e imigrante, empregada em um hotel de Nova Iorque.

A importância da interdependência nesse conflito das dimensões de classe, de gênero e de raça – que as pesquisadoras feministas analisam hoje sob a categoria de interseccionalidade – me parece evidente. E pensar hoje as condições de possibilidade da emancipação das mulheres exige pensar as relações entre emancipação e igualdade.

Recorro aqui, rapidamente, a três autoras, uma historiadora, Joan Scott; uma politóloga, Eleni Varikas e uma socióloga, Danièle Kergoat, para pensar essa conjunção entre emancipação e igualdade.

Na abertura de sua comunicação no colóquio Pensar a emancipação, realizado na Universidade de Nanterre de 19 a 22 de fevereiro de 2014, Joan Scott (2014) diz que a palavra emancipação nada tem de simples e que, segundo o dicionário (Oxford English Dictionnary), significa a supressão das “[...] restrições impostas por uma força física superior ou uma obrigação legal”. Historicamente a palavra emancipação foi frequentemente sinônimo de libertação ou de liberdade, mas não necessariamente de igualdade, diz Joan Scott, e explica que o fato de emancipação e igualdade não serem sinônimos resulta da tensão clássica entre direitos formais e direitos substantivos.

A politóloga e também historiadora e socióloga Eleni Varikas (2010, p. 54) afirma que “[...] a igualdade não é uma realidade empírica, mas pode tornar-se graças a uma ordem política instituída pelos cidadãos e cidadãs que se engajam a substituir aos privilégios de nascimento o princípio de uma lei geral para todos, conhecida de todos e elaborada por todos.

Enfim, o conceito de emancipação é pensado por Danièle Kergoat (2014) como um processo, um movimento que pode desestabilizar e reconfigurar as relações sociais de sexo. A emancipação não seria a abolição ou o fim das relações sociais de sexo, mas esse processo, esse movimento, esse longo trabalho das mulheres sobre a sua subjetividade, tanto ao nível individual quanto coletivo.

O acesso ao trabalho e à independência financeira foi durante muito tempo considerado um fator de emancipação das mulheres. Mas essa ideia é criticada com a persistência das desigualdades e a precarização das mulheres no mundo do trabalho.

Pode-se dizer, segundo Galerand e Danièle Kergoat (2008) e Kergoat (2014), que as outras formas de emancipação se fazem ao termo de um trabalho análogo. Trata-se da questão da formação do sujeito político. Enfim, para Galerand e Danièle Kergoat (2008) e Kergoat (2017), não pode haver emancipação coletiva se não houver emancipação individual. A emancipação individual é uma condição para a emancipação coletiva e vice-versa.

Creio que poderíamos afirmar que o processo emancipatório passa por uma consciência de gênero, de classe, de raça, e por um processo de luta contra a exploração, a opressão e a dominação e, portanto, por uma tomada de consciência que é ao mesmo tempo teórica e prática, e esse processo emancipatório tem na centralidade do trabalho a referência dinamizadora por excelência. O trabalho entendido no sentido amplo, enquanto trabalho profissional e trabalho doméstico, enquanto trabalho formal e trabalho informal, enquanto trabalho remunerado ou não remunerado.

Como diz Danièle Kergoat num artigo com Elsa Galerand (2008), publicado inicialmente na Nouvelles Questions Féministes e traduzido posteriormente no Cadernos de Critica Feminista do SOS Corpo de Recife, não é o trabalho que é subversivo ou emancipatório, mas a relação que as mulheres têm com o trabalho em razão das posições que ocupam na divisão sexual do trabalho. (KERGOAT; GALERAND, 2008). E se a emancipação das mulheres passa pelo trabalho, ou pela relação com o trabalho, é necessário também conjugar como diz também Danièle Kergoat (2012) - consciência de classe, de gênero e de raça.

A dificuldade do acesso ao coletivo e também à emancipação individual está na atomização dos espaços de trabalho e do isolamento, cujo exemplo paradigmático é o caso das empregadas domésticas e das cuidadoras domiciliares, que ultrapassam 7 milhões de pessoas, segundo o Censo de 2010 no Brasil, sendo irrisória nessa cifra, entretanto, a porcentagem de homens.

Podemos mencionar, segundo pesquisa em andamento, as dificuldades de comunicação e entendimento entre os diversos atores presentes: cuidadoras, auxiliares de enfermagem e enfermeiras, empregadas domésticas e diaristas e por vezes motoristas, copeiras, jardineiros etc. A complexidade da relação patroa-empregada, relação que se desenrola na intimidade, no espaço privado, tem como corolário as dificuldades de acesso às associações, aos sindicatos, às organizações feministas, etc.

Não há ainda sindicato de cuidadoras no Brasil, nem no Japão, onde há um trabalho sindical relativamente marginal com imigrantes: Filipinas, por exemplo. Pode-se dizer que na França há mobilizações de cuidadoras de ILPI (Instituições de Longa Permanência de Idosos) com o apoio dos sindicatos, mas nada que se compare à organização do sindicato dos metalúrgicos, dos docentes ou das enfermeiras. A importância do coletivo na agency, a capacidade de agir, pode ser apreendido no caso das irmãs Papin, duas empregadas domésticas francesas que, em 1933, num acesso de fúria assassinaram suas duas patroas, mãe e filha. Pascale Molinier (2005) aventa a hipótese de que as irmãs Papin talvez não teriam cometido esse assassinato se não fossem duas, mas um indivíduo isolado.

4 MOVIMENTOS SOCIAIS E EMANCIPAÇÃO

O aspecto coletivo da luta pela emancipação deve, a meu ver, ser ressaltado. No caso da França, pode-se destacar o peso das mobilizações sociais, sobretudo dos movimentos feministas como o Collectif National des Droits des Femmes (CNDF), a Marche Mondiale des Femmes (MMF), o movimento Osez le fémnisme, etc. que reivindicam creches e equipamentos coletivos, assim como lutam contra o diferencial de salários ou o tempo parcial imposto. Na Turquia, o Coletivo das Feministas Socialistas lançou em 2011 uma campanha pela igualdade na repartição do trabalho doméstico, exigindo que os homens realizem esse trabalho de maneira igualitária, sobretudo num contexto em que ambos exercem uma atividade profissional fora de casa.

Se esse tipo de campanha tiver resultados, pode ter mais repercussões sobre a divisão sexual do trabalho do que muitas leis sobre a igualdade profissional, que nem sempre são postas em prática pelos atores sociais.

O aspecto coletivo e interseccional (de classe, de raça, de gênero) e internacional (Norte/Sul) da luta pela emancipação também pode ser evidenciado pela mobilização sindical em defesa dos direitos das trabalhadoras, que ficou bastante visível nessa tragédia que se passou longe de nós, mas que nos diz respeito – em Dacca, no Bangladesh, onde 1135 trabalhadores, mulheres em sua grande maioria, morreram quando ruiu o prédio onde trabalhavam na confecção, o edifício Rana Plaza, em 24 de abril de 2013.

Nesse acidente, Shita Begun, de 27 anos que trabalhava na confecção para grandes marcas (Zara, Benetton, El Corte Inglés, etc) ficou aleijada sem o uso do braço direito e com ablação do útero por ter ficado muitas horas sob os escombros. Nenhuma vítima foi corretamente indenizada, mas muitas trabalhadoras se sindicalizaram para lutar contra as desigualdades Norte/Sul, entre homens e mulheres, de classe, de raça, na NGWF (Federação dos Trabalhadores da Confecção), um sindicato nacional.

Agir para que tais tragédias não se reproduzam, como ocorreu durante todo o século, e se solidarizar com esses trabalhadores e trabalhadoras é, para nós, trilhar coletivamente e dentro de uma perspectiva feminista, de classe e de raça, o caminho em direção à emancipação, que é também uma subversão.

5 CONCLUSÃO

No presente texto refletiu-se sobre a opressão vivenciada pelas mulheres e as formas de resistência que foram sendo construídas através da história. Em relação às mudanças, podem-se destacar a inserção de mulheres casadas no mercado de trabalho, em países como França e Brasil, a ampliação dos ramos de atividade e a inserção socioprofissional das trabalhadoras com a gênese do que chamamos a polarização do emprego feminino. Em relação às permanências, enfatiza-se, particularmente, a presença de guetos profissionais em várias áreas.

A reflexão empreendida encaminhou-se para uma indagação e uma hipótese. Como superar as desigualdades sociais e mudar a divisão sexual assimétrica no mundo do trabalho das sociedades contemporâneas? A hipótese é de que não podemos mudar a divisão sexual do trabalho profissional sem mudar a divisão sexual do trabalho doméstico, a divisão sexual do poder e do saber na sociedade. Para superar as dificuldades, duas vias distintas são seguidas simultaneamente num certo número de sociedades industrializadas: a via políticas públicas e a via da ação dos movimentos feministas.

Em relação às duas modalidades de ação há um eixo comum, que é a ideia de que a desigualdade é uma injustiça e que existe um aspecto ético a ressaltar na marcha em direção à igualdade entre mulheres e homens, entre as diferentes raças e classes sociais.

Material suplementar
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, A. M. C.; LOMBARDI, M. R. Trabalho informal, gênero e raça no Brasil do inicio do século XXI. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 43, n. 149, p. 452- 477, 2013.
ASKENAZY, P. Travail, un monde en mutation. La Revue pour l’histoire du CNRS, [S. L.], n. 24, oct. 2009.
BAUDELOT, C.; ESTABLET, R. Ecoles: égalité et inégalites à I’échelle du monde. In: MARUANI, M. (Dir.). Travail et genre dans le monde: l’état des saviors. Paris: La Découvert, 2013. p. 119-129.
BEAL, F. Being Black and Women, a Double Jeopardy. In: BAMBARRA, T. C. (Ed.). The Black Woman: an anthology, 1970. Trad. fr. In Comment s’en sortir #1, 2015.
BRUSCHINI, C. ; RICOLDI, A. M. ; MERCADO, C. M. Travail et genre dans les régions du Brésil. In: HIRATA, H.; LOMBARDI, M. R. (Coords.). Marché du travail et genre: regards croisés. France Europe-Amérique Latine. Paris: La Découverte, 2008. p. 30-45. Tradução. em português A. COSTA,A. et al. (Coords). Mercado de trabalho e gênero: comparações internacionais. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2008.
BRUSCHINI, C. ; LOMBARDI, M. R. A bipolaridade do trabalho feminino no Brasil contemporâneo, Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 110, p. 67-104, 2000.
CASTRO, B. As armadilhas da flexibilidade: trabalho e gênero no setor de tecnologia da informação. São Paulo: Annablume, 2017.
COSTA, A. de O. Apresentação, Tema em destaque: “Trabalho e gênero”. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 43, n. 149, maio/ ago. 2013.
CUKIER, A. (Dir.). Le travail démocratique. Paris: PUF, 2018. (Collection Actuel Marx confrontation).
DEJOURS, C. Travail, usure mentale: essai de psychopathologie du travail. Paris : Ed. augmentée; Bayard, 1980.
GUILBERT, M. Les fonctions des femmes dans l’industrie. Paris: La Haye: Mouton, 1966.
GUIMARÃES, N. A. Os desafios da equidade: reestruturação e desigualdades de gênero e raça no Brasil. Cadernos Pagu, São Paulo, n. 17-18, pp. 237-266, 2002.
HAKIM, C. Key issues in women’s work: female heterogeneity and the polarisation of women’s employment. London e New Jersey: Athlone Press, 1996.
HIRATA, H. ; KERGOAT, D. Division sexuelle du travail professionnel et domestique : Brésil, France, Japon. In : HIRATA, H. ; LOMBARDI, M. (Coord.). Marché du travail et genre. Regards croisés: France Europe-Amérique Latine. Paris: la Découverte, 2008. p. 197-209. Tradução em português: A. Costa, C. Bruschini, B. Sorj, H. Hirata (coord); Mercado de trabalho e gênero: comparações internacionais. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2008.
KERGOAT, D. Compreender as lutas das mulheres por sua emancipacão pessoal e coletiva. In: MORENO, R. (Org).Feminismo, economia e política: debates para a construção da igualdade e autonomia das mulheres. São Paulo: SOF, 2014. p. 11-21.
KERGOAT, D. Division sexuelle du travail et rapports sociaux de sexe. In: HIRATA, H. Et al. (Coord). Dictionnaire critique du féminisme. Paris: PUF, 2000. p. 35-44. Trad. em português, Sao Paulo : EDUNESP, 2009.
KERGOAT, D. La division du travail entre les sexes. In: ______. (Coords.). Le monde du travail, Paris: La Découverte, 1998. p. 319-327.
KERGOAT, D. Ouvriers=ouvrières. Critique de l’Economie Politique, [S. l.], n. 5, p. 65-97, 1978.
KERGOAT, D. Se battre, disent-elles... Paris: La Dispute, 2012.
KERGOAT, D; GALERAND, E. (2008) Le potentiel subversif du rapport des femmes au travail. Nouvelles Questions Féministes, LOCAL, v. 27, p. 67-82, 2008. Tradução para o português Cadernos de Critica Feminista, Recife : SOS Corpo, 2010.
KOLLONTAI, A. A mulher trabalhadora na sociedade contemporânea. In: URSO, G. S. (Org.). A revolução das mulheres: emancipação feminina na Rússia soviética: artigos, atas panfletos, ensaios. São Paulo: Boitempo Editorial, 2017 [1908].
LOMBARDI, M. R. Dossiê Mulheres em carreiras de prestigio: conquistas e desafios à feminizaçao. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 47, n. 163, p. 10-14, 2017.
MARRY, C. et al. Le plafond de verre et l’Etat: la construction des inégalités de genre dans la fonction publique, Paris: Armand Colin, 2017.
MARUANI, M.; MERON, M. Une siècle de travail des femmes en France 1901-2011. Paris: La Découverte, 2012.
MATHIEU, N. C.; GUILLAUMIN, C. Annexe sur le travail des femmes. In: LAUWE, C. de L. ; PAUL-HENRI, M. J. et. La femme dans la société. Paris: Éd. CNRS, 1963.
MOLINIER, P. De la condition de bonne à tout faire au début du xxe siècle à la relation de service dans le monde contemporain: analyse clinique et psychopathologique. Travailler, Paris, n. 13, p. 7-33, 2005.
MÖSER, C. L’émancipation comme concept politique dans les luttes féministes et queers. Revue Contretemps, [S. l.], sept.
SAFFIOTTI, H. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1976.
SAFFIOTTI, H. Mulher brasileira: opressão e exploração. Rio de Janeiro: Editora Achimé, 1984.
SALAMA, P. La financiarisation au Brésil: “un tigre en papier, avec des dents atomiques”? In: SEMINARIO INTERNACIONAL - SINDICALISMO CONTEMPORÂNEO, 2014, São Paulo. 1° de Maio: uma nova visão para o movimento sindical brasileiro... São Paulo: CESIT-UGT, 2014.
SCHWEITZER, S. Les femmes ont toujours travaillé : une histoire du travail des femmes aux XIXe et XXe siècle. Paris: Odile Jacob, 2002.
SCOTT, J. Émancipation et Égalité: une généalogie critique. In: COLLOQUE PENSER L’EMANCIPATION, PLENIERE «AUDELA DU PATRIARCAT, 2014, Nanterre. Anais... Nanterre: Université de Nanterre, 2014. Não paginado.
SILVERA, R. O salário das mulheres na França no século XXI: ainda um quarto a menos. In: ABREU, R. de P.; HIRATA,H.; LOMBARDI, M. R. (Org.). Gênero e trabalho no Brasil e a França: perspectivas interseccionais. São Paulo: Boitempo Editorial, 2016. p. 83-92.
SILVERA, R. Un quart en moins : des femmes se battent pour en finir avec les inégalités de salaires. Paris: La Découverte, 2014.
TEIXEIRA, M. T. e al (Orgs.). Precarizaçao e terceirização: faces da mesma realidade. Sao Paulo: Sindicato dos Quimicos, 2016.
VARIKAS, E. “Egalite”. In: HIRATA, H. et al. (Coords). Dictionnaire critique du féminisme. Paris: PUF, 2010. p. 54-60.
Notas
Notas
1 Esse texto foi apresentado em São Luís, no dia 23 de agosto de 2017, na Mesa Redonda As grandes transformações sociais e históricas, na VIII Jornada Internacional de Politicas Publicas (JOINPP), UFMA, 22-25/08/2017. Agradeço o convite que me foi feito por intermédio de Flavio Bezerra de Farias e Vivian Aranha Saboia assim como às coordenadoras da VIII JOINPP, Marly de Jesus Sa Dias e M. do Socorro Sousa de Araújo, e às coordenadoras de Jornadas anteriores de que tive ocasião de participar, presentes nessa mesa redonda: Josefa Batista Lopes, Maria Ozanira da Silva e Silva e Lourdes Leitão. Pude constatar na seção de abertura da Jornada que as coordenações mudaram de mãos mas a combatividade continuou intacta.
2 Para o caso do Japão, confira Hirata e Kergoat (2008, p. 205-207).
Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por Redalyc