Mesas redondas
Recepción: 02 Abril 2018
Aprobación: 02 Mayo 2018
Resumo: O artigo visa discutir a articulação entre as esferas da cultura e política, em perspectiva histórica, no processo de formação dos trabalhadores no Brasil, com ênfase no acúmulo, legados, limites e desafios da experiencia formativa de trabalhadores do campo, protagonizada pelos movimentos sociais de massa do campo brasileiro. O debate sobre o significado de popular no âmbito da cultura popular brasileira à luz do processo de formação nacional é abordado no artigo como uma expressao das contradições da luta social no Brasil. O impacto do trauma do golpe militar-empresarial da ditadura de 1964 enquanto dimensão regressiva à cultura política da classe trabalhadora é analisado, enquanto impasse a ser enfrentado política e pedagogicamente nos processos formativos formais e não formais.
Palavras-chave: Cultura, política, formação, classe trabalhadora, cultura popular.
Abstract: The article aims to discuss the articulation between the spheres of culture and politics, in historical perspective, in the process of training workers in Brazil, with emphasis on the accumulation, legacies, limits and challenges of the training experience of workers, Brazilian countryside. The debate about the meaning of popular in the context of Brazilian popular culture in the light of the process of national formation is approached in the article as an expression of the contradictions of the social struggle in Brazil. The impact of the trauma of the 1964 dictatorship’s military-business coup as a regressive dimension to the working class political culture is analyzed as an impasse to be confronted politically and pedagogically in the formal and non-formal formative processes.
Keywords: Culture, politics, training, working class, popular culture.
1 INTRODUÇÃO
A articulação entre as esferas da Cultura e Política é uma questão polêmica no debate intelectual. Um dos efeitos traumáticos da ditadura militar que governou o Brasil entre 1964 e 1985 é a consolidação da ideia de que cultura e política são polos dissociados, relativos a aspectos diversos da vida, sendo a primeira condizente ao cultivo da erudição individual ou ao entretenimento de massas– polos muitas vezes coincidentes – e a segunda relativa às disputas intrapartidárias voltadas para os pleitos eleitorais. Boa parte da esquerda contemporânea, inclusive, ao operar uma releitura histórica equivocada e conservadora, entende que qualquer aproximação entre as duas esferas é sinal de dirigismo, de subordinação da cultura à política.
Entretanto, desde a publicação do emblemático ensaio Cultura e Política, 1964-1969, de Roberto Schwarz (1978), foi aberto um campo fértil de pesquisa na área, explorando o argumento trilhado pelo autor, que aponta que o impacto do golpe de 1964 incidiu primeiramente nos elos em processo de construção entre as classes operária, camponesa, estudantil e artística progressista, que engendrava por sua vez um processo consistente de transferência dos meios de representação da realidade. Enquanto os movimentos camponeses, como as Ligas Camponesas, e os sindicatos mais combativos foram desmantelados imediatamente, a repressão sobre os progressistas da classe média só incidiu sobre os protagonistas da articulação de classe, e ainda assim não de modo sistemático, mas apenas pontualmente, com fins de romper os vínculos interclasses. A produção cultural de esquerda viveu com relativa liberdade, e exerceu posição hegemônica até 1968, data da promulgação do AI-5, momento de democratização da repressão.
Conforme a trilha aberta por Roberto Schwarz e bem explorada por Iná Camargo Costa (1996) existiu no país, sobretudo, nos primeiros anos da década de 1960 uma articulação orgânica entre as esferas da cultura e política, em perspectiva emancipatória, que, justamente, por conta de seu poder de desalienação, em consonância com o acirramento da luta de classes no período, ameaçou o poder da elite local e exigiu dela tomada de posição imediata para impedir que o novo ciclo de modernização conservadora que se anunciava fosse transformado pelo povo em revolução social.
A articulação entre a mudança intensiva no modo de produção do campo, nominada como Revolução Verde, o uso da força pela ditadura, e o protagonismo da Indústria Cultural apontam que, a partir de 1964, se configurou um novo ciclo de modernização conservadora no Brasil. Nesse processo, a consolidação do monopólio televisivo e da hegemonia da linguagem audiovisual no Brasil é posterior ao golpe e contou com o forte apoio de seus gestores da caserna e da burguesia local. Data dessa época a sedimentação da tríade poder econômico e territorial + concentração dos meios de comunicação + poder político eleitoral que moderniza o velho coronelismo latifundiário e relega para a população brasileira a democratização do desejo do consumo, via sofisticação do discurso publicitário. Torna-se natural o fato dos meios de produção cultural serem concentrados em mãos de grupos que, supostamente, detêm a competência para melhor exercê-los, enquanto à maioria da população é legado o direito somente de participar consumindo e cultuando.
O presente artigo visa discutir esse imbróglio tendo em vista a organização do argumento pautada pela indagação sobre qual perspectiva de práxis ainda podemos cultivar, com base em nossos traumas históricos na análise da experiência de formação dos trabalhadores rurais organizados nos movimentos da Via Campesina, que recolocaram na pauta do dia a questão da articulação entre as esferas da política e cultura. Por esse viés, o rumo empreendido foi: analizar o significado de popular no âmbito da cultura popular brasileira à luz do processo de formação nacional abordado como expressão das contradições da luta social no Brasil; apontar o caráter patológico do consumismo como expressão do legado traumático do ciclo de modernização conservadora imposto pelo golpe de 1964; e, por fim, apontar um contraponto pela possibilidade de construção de uma cultura política em perspectiva emancipatória a partir da experiencia dos movimentos sociais do campo brasileiro, com ênfase na experiência do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
2 CULTURA COMO TERRITÓRIO EM DISPUTA
No estágio atual de exclusão de grande parcela da população do mundo do trabalho o conceito clássico de cultura como modo de reprodução da existência não é mais nem teoricamente suficiente como politicamente eficaz, porque seus pressupostos não são mais vigentes, pelas seguintes razões:
1ª) Porque não dominamos mais os meios de produção e reprodução de nossa existência, por conta do processo de alienação do trabalho decorrente do nexo entre lógica de acumulação de capital e avanços crescentes na área de tecnologia.
2ª) Porque para grande parte da classe trabalhadora expropriada do direito ao trabalho, os meios de reprodução da vida não estão ao alcance da mão. A não ser que esses grupos se organizem para confrontar a lógica de acumulação do capital e o princípio da propriedade, e garantir condições dignas de trabalho e sobrevivência.
Logo, o enfretamento é quase uma prerrogativa de sobrevivência. Isso significa que a produção cultural proveniente da classe trabalhadora que se restrinja à defesa das manifestações da cultura popular tradicional, ao cultivo dos hábitos repassados de geração para geração, sob a ode da resistência cultural, legitimam sem perceber a dissociação entre as esferas da cultura, da economia e da política, e por isso colaboram para a compreensão da cultura como algo destacado da vida social, como um elemento pitoresco, destinado à apreciação estética ou aos momentos de entretenimento. A dinâmica de uma sociedade regida pela lógica do capital incorpora de forma mercantil e isolada essas tradições, e pode até incentivá-las por meio de patrocínio às festividades. Portanto, é a dimensão combativa da cultura, vinculada à política, que pode conferir sentido orgânico, emancipador e protagonista de rupturas, à experiência acumulada em contextos anteriores.
Stuart Hall (2003, p. 263) analisa a questão da cultura popular refletindo sobre o problema da hegemonia:
O povo versus o bloco de poder: isto, em vez de “classe contra classe”, é a linha central da contradição que polariza o terreno da cultura. A cultura popular, especialmente, é organizada em torno da contradição: as forças populares versus o bloco do poder. Isto confere ao terreno da luta cultural sua própria especificidade. [...] A capacidade de constituir classes e indivíduos enquanto força popular – esta é a natureza da luta política e cultural: transformar as classes divididas e os povos isolados – divididos e separados pela cultura e outros fatores – em uma força cultural popular e democrática.
[...] A cultura popular é um dos locais onde a luta a favor ou contra a cultura dos poderosos é engajada; é também o prêmio a ser conquistado ou perdido nessa luta. É a arena do consentimento e da resistência. Não é a esfera onde o socialismo ou uma cultura socialista – já formada – pode simplesmente ser “expressa”. Mas é um dos locais onde o socialismo pode ser constituído. É por isso que a cultura popular importa. No mais, para falar a verdade, eu não ligo a mínima para ela.
Antes da utilização massificada do meio televisão como instrumento hegemônico de reprodução da ideologia dominante, no Brasil, o sentido da palavra popular era associado a algo feito pelo povo e para o povo, como a capoeira, por exemplo. Progressivamente, o termo perde esse sentido, e passa a ter o sentido de grande apelo de consumo, ou seja, popular passa a ser algo que vende muito, que tem muita audiência. Além disso, popular passou a ser utilizado como um adjetivo pejorativo: popular é um programa ou uma obra de baixa qualidade estética, produzida para conquistar a maioria da audiência. Portanto, em poucas décadas popular deixou de ser um termo relacionado a condições de produção, que dependem da socialização dos meios de produção para que possa ser feito pelo povo e para o povo, para se tornar uma expressão que indica a quantidade do índice de consumo de determinado programa de apelo popular. A classe popular foi expropriada de sua condição de produtora. Portanto, também a cultura popular precisará ser recriada e reinterpretada, levando em conta a dinâmica imposta pelo capital, partindo da perspectiva da demanda de articulação de uma ação contra-hegemônica.
3 A CULTURA POPULAR EM FACE DA FORMAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA
A formação do Brasil tem sangue mestiço. Não se trata apenas de reafirmação de uma importante diferença para com os colonizadores, mas de uma história social que tem como ponto de fundação a violência. A violência como princípio constitutivo, corpo vivo, do próprio capitalismo. E a violência como mecanismo de miscigenação forçada, originária de nossa sociedade brasileira. Toda a nossa estrutura de sociabilidade tem origem galgada em polos antagônicos e simultâneos de violência e resistência, em movimento dialético. Somos herdeiros de sotaques, peles, ritmos, tambores, timbres, como também de traços involucrados de sociabilidades transformadas ou abortadas pelo capitalismo.
Para pensar a cultura popular nesse país de diferentes, é preciso pontuar dois pontos estruturantes de sua conformação: a colonização como um vetor da acumulação primitiva do capitalismo comercial e o pleno desenvolvimento do capital em território nacionalizado, tendo como pressupostos de expressão, respectivamente, o princípio de violência como um aspecto de nossa vida social e o fetiche como manipulação do sentido coletivo de nossas diferenças.
A investigação teórica levantada por Murad (2011) aponta que a colonização no Brasil trouxe consigo, encapsulada, a barbárie como uma tendência progressiva implantada através de violência e invisibilização das expressões do trauma legado pela escravidão, em seu estudo ela analisa a produção da cultura no contexto da acumulação primitiva, tomando a grandeza histórica e força potencial da cultura popular como possibilidade de resistência.
Acerca da tendência de barbárie, o próprio capitalismo se constitui como um simbionte de formas anteriores que traziam em si resquícios e estruturas que não fora capaz de liquidar – muito ao contrário, o capitalismo absorveu de outras organizações e experiências históricas tradicionalismos que muito se ajustaram a sua racionalidade, como o patriarcado e a experiência do cristianismo (que incorpora também o primeiro como estrutura dominante). Não sendo capaz, ele mesmo, de romper com princípios de barbárie, aprofunda-se em sua lógica cindida em exploração do trabalho, uma progressiva potência destrutiva, que ameaça a si mesmo e ao mundo todo.
É preciso nos deter brevemente a isto, para que os antagonismos presentes na cultura popular não pareçam instrumentos de acaso. O capitalismo não surge da libertação dos servos. Mas do condicionamento da liberdade humana, do decreto de liberdade à propriedade privada. O lema tão fortemente marcante da história mundial, condizente à Revolução Francesa, mas característica direta das promessas burguesas (liberdade, igualdade e fraternidade) não se mostrou e não se mostra como virtude que serviria, universalmente, a toda a humanidade, mas se converteu em virtude que vale a cidadanias de outras naturezas, desiguais, desumanas e opressoras. Isto para dizer que mesmo em sua constituição clássica, europeia, o desenvolvimento do capital, desde a acumulação primitiva, necessariamente lançou mão de violência, extermínio e exploração.
Outra vinculação importante a ser feita, remete-se ao sentido espiritual da civilização burguesa. Ao nos referirmos à experiência do cristianismo e do patriarcado como adequada à estrutura capitalista, indispensável a ela, dizemos que enquanto forma há assimilações e semelhanças no modo como vivenciamos socialmente a experiência do capital. Há na história do catolicismo uma vasta e impressionante capacidade de apropriação cultural como princípio pedagógico e mecanismo de controle hegemônico.
De igual modo o capital apreende esta capacidade de absorção de padrões que funcionem e se ajustem a sua lógica própria. Como, por exemplo, na catequese dos indígenas1 e no sincretismo fruto da escravidão. O cristianismo se baseia numa crença de deus único, que cria o homem, e a mulher (da costela do outro) a sua imagem, e que pela malcriação da criatura (vejam, de sua rebeldia) o designa, como castigo, a viver do suor de seu trabalho. No capitalismo, o suor do trabalho é desigual entre as classes sociais, e a propriedade privada se coloca, ilusoriamente, como o resultado daquilo que o trabalho de cada um é capaz de constituir. Há aqui consonância simbólica entre estruturas não contemporâneas uma a outra, mas potencialmente apoiadoras entre si. Ambas instalaram no imaginário coletivo o que é, ainda, o maior de todos os mitos modernos (porém antigo): o de que o mundo foi e está determinado a priori. E esta capacidade de absorção e de poder simbólico foi refinada e reposicionada pelo sistema da Indústria Cultural, como experiência e legado do próprio capitalismo.
O deslocamento de modos de vida nas rotas das grandes navegações pode ser interpretado como um indicador dos muitos processos destrutivos necessários ao desenvolvimento do capital. A divergência entre civilizações, europeia e originárias (latinas e africanas) estava, justamente, na relação entre atividade produtiva e socialização da produção coletiva. Partia de bases diferenciadas de relação trabalho x natureza x cultura. O desenvolvimento da ciência e das forças produtivas sob essas bases foi brutalmente interrompido e mal se pode imaginar qual teria sido o futuro destes povos sem a interferência da colonização. Fato é que a civilização ocidental, estando em franca progressão de sua tecnologia, em plena mutação econômica em fase de acumulação, considerando seus berços de cultura e arte, não olha para o que encontra nas terras-além-mar a partir da diferença, pura e simplesmente, mas caracteriza os diferentes como primitivos, como sociedades inferiores. E encontra na diferença um antagonismo que justifique o injustificável até hoje: todo o tipo de massacres, saques e expropriações.
A subjugação destes povos à escravidão produz a violência bruta dos açoites, do sangue, da morte, do adoecimento em massa, como também imensa agressão à cultura, e ao imaginário. A concepção de trabalho trazida pelos colonizadores brancos realiza uma profunda inversão de sentido, transformando-o, por um período ainda indeterminado, num sinônimo de sacrifício. O trabalho sob a escravidão carrega uma grande, fundamental e violenta contradição: não serve para a produção e reprodução da vida, não satisfaz necessidades, não realiza humanamente o ser humano lançado à sombra de seu próprio trabalho. Essa configuração europeia de atividade produtiva segue nossa vida nacional manifestando sempre traços de estranhamento.
Importa-nos dizer que é nessa contradição do trabalho desumanizador que a formação social de nossa cultura desvelou uma necessidade de resistência e combate para que pudesse nascer. Se pensássemos em termos genéticos, haveria aqui dois genes em volta um do outro: a violência e a resistência. Em nossa formação social, desde o nascimento, a cultura se coloca num movimento de risco e de disputa permanente, seguindo uma história de dominação, em dois polos:
1 - A desterritorialização de povos originários e a escravidão se colocam como excludentes das condições de produção e reprodução da vida no Brasil. O que há então, num primeiro momento, é a reprodução de culturas trazidas de outras terras – formadas a partir das atividades produtivas características destes povos, bem como, uma relação distinta com a natureza. Que se colocarão como um ato de resistência da Memória e da humanidade desses povos.
2 - Ao miscigenar-se, ao transformar-se sob o teto da sociabilidade repartida, dividida em classes, baseada em exclusão e marginalização, a cultura popular nascida no Brasil nasce combativa. Isto é importante, pois que não se vale do pressuposto de produção e reprodução da vida no seu ponto de partida, esse caráter só foi possível a partir dos reagrupamentos, da formação de um campesinato consolidado, de um segmento urbano em expansão, já fruto de sincretismos, com suas singularidades e tradicionalismos – que se fazem como sínteses dos substratos fundidos, mas, sobretudo, de um processo de adequação e educação orientado pelos colonizadores pela elite.
Esses dois pontos parecem necessários para entender porque a cultura é um estratégico e determinante solo de disputa, é sinônimo de embate, e traz em si duas possibilidades antagônicas, tal como a luta de classes, a de realização de sua verve violenta e bárbara, como herança de uma formação guiada pelo pressuposto destrutivo do capital (de sua racionalidade exploradora, portanto) e o potencial combativo, herdado pela organização da resistência, da memória de outras possibilidades de sociabilidade. É na formação dos quilombos, na resistência das aldeias, na construção do campesinato que o sentido de resistência ganha sua aparição e importância histórica. É um viés importante de articulação entre cultura e política a partir da formação social.
É preciso, ao ter a clareza de que não há pureza em nossa cultura popular, nos atentar à formação da violência como constitutiva também do espírito nacional. Pois que o gatilho está sempre voltado para o povo e a hegemonia no poder usa de seus aparatos para que os disparos da brutalidade produzida pelo capital soem como disparos engatilhados pelo próprio povo, por sua própria vontade e/ou maldade.
A colonização e o trauma de um mundo de trabalho estranhado produzem uma violência que a ordem capitalista não racionaliza, que em medida serve à manutenção da lógica, noutra lhe ameaça e poderá impor um caos irremediável a sua própria sustentação.
O sujeito social brasileiro tem enorme facilidade em incorporar aquilo que vem de fora como melhor, mais adequado a ele mesmo e ao seu modo de vida, e possui uma relação interna com sua identidade brasileira de amor e ódio. Há na formação desta personalidade coletiva uma relação dúbia com sua diferença para com o desenvolvimento formal do capitalismo. E essa noção de diferença produz dois grandes personagens históricos, o atrasado e o exótico. A inferioridade e a coisificação fetichizada da identidade nacional.
O primeiro grande repúdio e o primeiro grande assédio à diferença estavam no choque moral e cultural que os europeus tiveram ao se deparar com os povos originários, perante uma relação totalmente adversa com o tempo, com o corpo, com a atividade produtiva com a qual estavam acostumados, em uma estrutura social relativamente simples. Esta não poderia ser assimilada como uma diferença aceitável. A disparidade entre os mundos levou, via de regra, a intolerância que o espírito da civilização burguesa tem pelo o outro.
A dominação, exclusão ou coisificação do diferente é um padrão de comportamento tendencioso à lógica capitalista, e como a violência é o seu pressuposto, não há limites éticos no Brasil para a continuidade das chacinas. Mata-se gente negra, pobre, indígena, gente da favela e gente do campo todos os dias no Brasil. E ainda matarão mais. Notemos que a continuidade da liquidação da população pobre tem certa complacência do senso comum, formado para conviver com a violência, induzida ao estranhamento dessa condição como culpa da própria classe. O Fulano, bandido da favela, é jovem, taí cheio de força, um vagabundo desse podia estar trabalhando; O João Sem-Terra, vagabundo, podia estar trabalhando em vez de ir roubar o que é dos outros!.
O discurso do ódio é o discurso corporificado da colonização, tomada como história natural. A escravidão no Brasil trouxe a propriedade privada como um desejo inalienável a povos que estavam acostumados à propriedade comum. A propriedade privada se torna ideal de liberdade. O discurso do ódio é o discurso de morte ao diferente que matou negros e indígenas, a mesma morte que fez com que negros e indígenas se rebelassem contra a dominação escravocrata. Ser diferente pode, no Brasil, estar, portanto, vinculado simultaneamente a nossa originalidade social, ou à profunda marginalização.
Morte ao diferente é um dos principais pilares de atuação da chamada Indústria Cultural. O polo de diferença que foi incorporado por esse sistema é a diferença que mantém a marginalização, transmutadas em multicoloridas tendências de mercado.
No mercado, a liberdade de escolha só é possível se existe a múltipla possibilidade das opções, se existe o estímulo pelo ato de escolher, de ter variadas coleções de objetos (é um modo de assegurar um lugar social). Com a intensificação da produção, do consumo, da concorrência e da tendência de morte rápida à própria tendência entre as mercadorias, faz com que se exija do mercado um apelo ao estilo, à visão individual de mundo através de padrões de estética e comportamento. A diferença se coloca aqui também de modo semelhante ao caráter fetichista da mercadoria, como uma sutileza metafísica (MARX, 2012), pois que dissimula seu significado real – a diferença é uma roupagem distinta para um modo indistinto de racionalidade e uma forma única de vida social, conformando-se também como forma única de consciência.
Nos importam as diferenças. Não as falsas, que em essência acobertam a padronização universal imposta pela cultura burguesa, não estas que zombam de nossa história e originalidade, mas as que, de nossa singularidade, carregam potência emancipadora, combativa e criativa. Nos importam aquelas que se produzem das contradições de sua própria formação, organizadas e criticadas a partir de espaços de sociabilidade que não acumulem a lógica formal e que se projetem, se forjem em perspectivas anticapitalistas. Há que permanecer em alerta o fato de que nossas diferenças existem em terra de resistência, de memória histórica, de ressignificação simbólica das construções sociais. Ao serem incorporadas como tendências para o mercado nós perdemos o que elas têm de sentido político e originalmente livre.
Polarizada pelos aspectos de nossa formação social, nossa cultura popular é a cultura do país dos diferentes, marginalizada pela tentativa de embranquecimento da elite, em episódios de criminalização, inferiorização e folclorização. Há, de um ponto de vista quase que dissecante, resíduos de outras experiências de organização da vida, resíduos de culturas advindas de outros pressupostos de produção e reprodução da existência, que, longe de serem possíveis de recuperação, conferem um importantíssimo lugar à cultura popular: o lugar da contra-hegemonia, por ser essa pulsão, por ser memória histórica, pela certeza de que outras relações produtivas e sociais são possíveis. É a nossa vinculação viva com a capacidade criativa coletiva, de inauguração do novo.
No Brasil não faltam iniciativas de construção do novo. Quando a cultura popular começava a estabelecer um novo patamar de vínculo orgânico com a política, num sentido mais formulado de ruptura e carregado de uma forte intencionalidade revolucionária, a ditadura inaugura uma nova fase de industrialização, realizando um movimento de regionalização da Indústria Cultural. Esse movimento teve um caráter triplo de atuação: na esfera econômica, política e cultural, atuou na necessidade de consolidar um projeto político, da urgência de silenciar processos revolucionários, de apagar a memória combativa do país. E isso terá um poderoso impacto na cultura popular que, consequentemente, colocará aos movimentos populares um desafio político no que diz respeito à disputa por hegemonia, que passa pela compreensão do sentido orgânico da cultura popular.
Temos como legado da ditadura militar, e ação permanente da Indústria Cultural, um engessamento no trato com a cultura popular ou uma profunda perversão das linguagens produzidas pelo povo, em face de sua organização da vida. Isso nos coloca num problema, pois que a cultura produzida pelo povo, resistente, que supera a morte e recoloca sobre a reprodução da pobreza sua capacidade criativa, se vê encurralada entre a impossibilidade de produção e reprodução da vida, mais uma vez, e a expressão esvaziada da cultura que foi absorvida e transformada pela cultura burguesa.
Para consolidar plenamente este sistema no Brasil, junto com a conjunção da Identidade Nacional com o projeto conservador do capital, a Indústria Cultural precisou conhecer e testar as produções culturais características de cada região, eleger dentre elas as de maior abertura para o mercado e assim fetichizá-las, descaracterizá-las de modo que as diferenças sejam completamente indiferentes entre si. O poder desse sistema não deve ser ignorado, ela realiza e potencializa o gene da violência como padrão de comportamento na cultura e produz conservadorismo.
A Indústria Cultural parece um sistema benevolente, cheio de vontade de sorrir e representar a todos, mas sua consequência mais agressiva é a destruição do pensamento diferente, seu repertório de conteúdo social é bastante delimitado e intencionalizado, e tem uma capacidade de desviar a insurgência das pautas críticas que surgem sobretudo quando há apelo popular, este é incorporado por ela e redirecionado a um campo impotente no sentido político.
Reduzir uma sociedade de 100 milhões de pessoas a um mercado de 25 milhões exige um processo cultural muito intenso e muito sofisticado [...] para fazer com que as pessoas aceitem ser parte de um país fantasma, de um país inexistente, de um país sem problemas. [...] É preciso embrutecer essa sociedade de uma forma que só se consegue com o refinamento dos meios de comunicação, dos meios de publicidade, com um certo paisagismo urbano que disfarça a favela, que esconde as coisas. (VIANA FILHO, 1983, p. 181).
Quando dizemos que o sistema complexo da Indústria Cultural atua nos três planos pilares da economia, da política e da cultura, pretendemos chamar atenção para o fato de que a devastação política provocada por ele está fincada na necessidade premente de mercado, na manipulação permanente do ser-consumidor. Ao afirmarmos que objetivamente não é mais possível dizer que nossa cultura vem da produção e reprodução da existência, estamos apontando para uma cultura produzida e reproduzida a partir do mercado, conduzida pelo consumo. Ela obedece assim à necessidade de ampliação do mercado, sua cultura precisa satisfazer as necessidades da mercadoria, atribuindo-lhe protagonismo objetificado; é, portanto, uma cultura sem sujeito. Não são escassas as discussões sobre o estágio de coisificação da humanidade, este é terreno de disputa essencial e central para a cultura popular – que deve, necessariamente, ser oposta à cultura sem sujeito, ela só existe na condição de polo antagônico. Fora desta, sua expressão é meramente folclórica, monumento histórico imóvel e frágil.
4 A PERSPECTIVA CONTRA-HEGEMONICA NO PROCESSO DE FORMAÇÃO POLÍTICA
Conforme apontávamos anteriormente, não são escassas no Brasil as iniciativas e experiências de elaboração crítica e práticas político-formativas cujo principio norteador é a transformação social, a construção do novo. Mesmo expostas ao permanente embate, às contradições postas pelas mais variadas situações da conjuntura política nos marcos históricos de importância para o país, estas experiências resistem à insistente tentativa de silenciamento e apagamento da irradiação dessas experiências como ação concreta de alternativa, como opções de projeto de sociedade.
Nesse sentido, um dos aprendizados com as lutas de décadas anteriores, sobretudo na trajetória do MST, foi a providência de lutar pela reforma agrária não apenas no âmbito da conquista da terra, mas também nas trincheiras da educação, cultura, comunicação, saúde, direitos humanos, produção agrícola, levando em conta a dimensão de totalidade de um projeto popular para o país, pautado pela democratização radical dos meios de produção e do acesso aos bens produzidos nas diversas esferas. Portanto, trata-se de uma demanda e de um processo de acumulação forjado na luta, que tem como uma das consequências a progressiva necessidade de capacitação e formação de seus integrantes.
Na experiência do MST, a trajetória de vínculação permanente entre atuação e formação política como um dos pilares básicos de organização popular demarca um caráter emancipatório importante, por não se limitar à dimensão da formação do discurso, a perspectiva crítica permitiu que a formação dos sentidos ganhasse espaço e se projetasse com mais força no interior do movimento, a partir do entendimento de que a humanização passa, necessariamente, por um combate à negação de acesso. O acesso à terra como pauta central, a de maior peso no conflito de interesses – por ferir a liberdade da propriedade privada e do latifúndio – se colocou como a possibilidade concreta, por via combativa e de resistência, de vivenciar, dentro do capitalismo, outras potencialidades como sociabilidade. A perspectiva anticapitalista de movimentos do campo que reposicionam a luta pelo direito à produção e reprodução da vida é ampla e se expraia na formação de valores, na construção de práticas culturais que tragam, em si, propósitos de ruptura.
A formação é tida como um direito e um compromisso, não está apenas nos programas de estudo dos cursos e debates realizados pelo MST, mas nos espaços físicos, no sentido de território, de significação estética dos seus espaços de ocupação. Na mística, que é uma importante sintese de elo sensível entre as linguagens e o conteúdo político, o sujeito camponês se coloca em via de desfazer uma condição passiva de mera audição, para projetar um lugar de fala protagonizado por si mesmo – ao contrário da ação da Indústria Cultural. Há potência nisso, em constante mutação e variação; quanto mais o movimento dialético das contradições impõe disputa por hegemonia, impõe o processo de estudo recorrente das técnicas e estratégias de dominação a que tais práticas devem se colocar em oposição direta, e isto é um desafio.
O fato de os movimentos sociais terem colocado em pauta a necessidade de refletir sobre arte e cultura no processo de formação acontece num momento em que a percepção crítica sobre as consequências alienadoras do monopólio dos meios de comunicação de massa se avoluma em diversos segmentos de classe da sociedade brasileira. A passividade diante da ideologia dominante começa a gerar mal estar e despertar providências práticas.
Ao sublinhar que o analfabetismo é o traço básico do subdesenvolvimento no terreno cultural, Antonio Candido (1987, p. 44) ressalta, no ensaio Literatura e Subdesenvolvimento:
Na maioria dos nossos países [latinoamericanos] há grandes massas ainda fora do alcance da literatura erudita, mergulhando numa etapa folclórica de comunicação oral. Quando alfabetizadas e absorvidas pelo processo de urbanização, passam para o domínio do rádio, da televisão, da história em quadrinhos, constituindo a base de uma cultura de massa. Daí a alfabetização não aumentar proporcionalmente o número de leitores da literatura, como a concebemos aqui; mas atirar os alfabetizados, junto com os analfabetos, diretamente da fase folclórica para essa espécie de folclore urbano que é a cultura massificada.
A relação alienada com os meios de comunicação hegemônicos é consequência do processo de inserção na modernidade pela via exclusiva do consumo, mediante o desconhecimento generalizado dos modos de produção, das técnicas e das intenções políticas dos meios de comunicação de massa. Os indivíduos são encarados como massa consumidora, e sem formação que lhes permita a crítica aos padrões estéticos hegemónicos; ficam suscetíveis a toda ordem de impulsos e manobras de legitimação da ordem da classe dominante.
Esse processo foi acelerado e consolidado com a ditadura militar iniciada em 1964, que interrompeu experiências contra-hegemônicas de educação popular em perspectiva emancipatória, que trabalhavam de forma coesa e produtiva as esferas da cultura, educação, economia e política, como por exemplo, a proposta da Pedagogia do Oprimido, eixo principal do Movimento de Cultura Popular de Pernambuco (MCP), coordenado por Paulo Freire durante o governo de Miguel Arraes em Pernambuco, e os Centros Populares de Cultura (CPCs) que se espalharam por mais de doze capitais do país por meio da parceria da União Nacional dos Estudantes com artistas e movimentos sindicais e camponeses.
Um dos primeiros atos de interrupção desses movimentos foi o afastamento dos laços políticos ente os segmentos operário, camponês e estudantil, que viabilizava a troca de experiência e fortalecia a consciência política de classe dos participantes e a transferência dos meios de produção de diversas linguagens artísticas.
Como consequência, os espaços de formação ficaram vulneráveis à influência da indústria cultural no Brasil, e os danos são perceptíveis na rotina das salas de aula, pois, em geral, os professores ignoram por completo o fato de que para além da alfabetização escrita, muitas vezes precária, que destina boa parte de nossa população ao analfabetismo funcional, seria necessária uma espécie de alfabetização estética em sentido amplo, que permitisse a compreensão do sentido social das estruturas formais da produção artística. O mesmo desafio está presente nas escolas do campo, mesmo onde a pedagogia dos movimentos sociais consegue incidir com mais força, não raro é a atmosfera de disputa contra o mal legado da ditadura. As escolas do campo exigem do esforço coletivo dos movimentos, ao pautar a formação dos educadores, de pensar também estas articulações para que o acúmulo pedagógico ganhe maior capilaridade.
Outro desafio colocado para cultura é como articular uma proposta que seja capaz de contemplar a especificidade do modo de sobrevivência das populações do campo ao mesmo tempo que elabora uma perspectiva contra-hegemônica de abordagem da realidade. Como fazer com que esses dois movimentos dissonantes possam dialogar, numa perspectiva dialética?
Entendemos que diante da eficiente hegemonia burguesa no âmbito da cultura – e não só dela –, ao darmos vazão ao processo de multiplicação corremos o forte risco de reforçar, sem perceber, as formas de representação da estética dominante, ou seja, corremos o risco de fazer de graça o trabalho do inimigo.
Portanto, ao mesmo tempo que multiplicamos, temos que qualificar nossa formação. Daí vem a convicção coletiva de que não basta termos acesso aos meios de produção para nos inserirmos em atividades produtivas, com devida qualidade técnica, apenas para reproduzir ainda as mesmas formas. É preciso fazer diferente. Não lutamos pela inclusão dos pobres no capitalismo – eles só podem ser incluídos nesse sistema se a condição da desigualdade for mantida. Lutamos por transformação social
O seminário Arte e Cultura na Formação, promovido na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), entre maio e junho de 2005, foi um marco divisor para o trabalho do MST na área cultural. Nessa ocasião foram elaboradas as linhas políticas do coletivo de cultura e essas definições passaram a pautar o planejamento dos cursos e seminários seguintes. Para o Coletivo Nacional de Cultura do MST o saldo teórico desse seminário contemplou três perspectivas intercaladas:
a) O entendimento da lógica da mercadoria como dado prioritário para reflexão sobre o significado contemporâneo da luta de classes;
b) Estrutura do favor como mediação do funcionamento do capitalismo no Brasil;
c) Entendimento da forma como dado estético organizador da matéria (conteúdo) social.
Essa experiência de acumulação tem permitido dar um salto de qualidade nos processos formativos do coletivo nos espaços formais e não-formais, pois por meio dela se compreende que a esfera da cultura deve estar sempre articulada com a esfera da política e da economia, e que o método de apropriação das linguagens artísticas deve evitar a segmentação do conhecimento consequente da divisão alienada do trabalho, atuando sempre que possível com a proposta de articulação das diversas linguagens, considerando o lastro histórico de seus desenvolvimentos específicos.
Essas são, portanto, implicações teóricas, práticas e políticas que orientam as experiências de formação na área da cultura, sempre na perspectiva de que os sujeitos em formação, uma vez participantes do mundo de diferentes linguagens, não apenas adquiram habilidades de manuseio dessas linguagens, mas que, sobretudo, a partir delas, sejam capazes de ajudar a construir processos amplos de formação que intervenham criticamente num novo modo de desenvolvimento do campo.
No ensaio Direitos Humanos e Literatura, após definir o conceito de literatura em sentido amplo2, Antonio Cândido (2007, p. 74) ressalta:
Assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura. Deste modo, ela é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente. Neste sentido, ela pode ter importância equivalente à das formas conscientes de inculcamento intencional, como a educação familiar, grupal ou escolar.
Nesse sentido, um dos desafios que se coloca para os cursos que contemplam a Área de Linguagens é a formação estética e política de educadores para que eles sejam capazes de desconstruir os sentidos hegemônicos das obras e programas, por meio da compreensão da relação dialética entre a forma estética e a forma social. Cândido (2007, p. 80) explica o potencial emancipatório da percepção crítica dessa relação, atualmente ofuscada pela ideologia:
Em palavras usuais, o conteúdo só atua por causa da forma, e a forma traz em si, virtualmente, uma capacidade de humanizar devido à coerência mental que pressupõe e que sugere. O caos originário, isto é, o material bruto a partir do qual o produtor escolheu uma forma, se torna ordem; por isso o meu caos interior também se ordena e a mensagem pode atuar. Toda obra literária pressupõe esta superação do caos, determinada por um arranjo especial das palavras e fazendo uma proposta de sentido.
A prática predominante do ensino de linguagens no aparelho escolar convencional corre pelo sentido inverso: as obras de diversas linguagens são selecionadas exclusivamente pelo conteúdo, ou seja, pelo que supostamente abordam, ignorando a dimensão formal, isto é, a questão de como tal conteúdo é abordado. Dessa maneira, a especifidade formativa e desideologizadora do estudo crítico das linguagens é soterrada, e o ensino de artes e de português é ofertado apenas como suporte para as outras áreas de conhecimento. Então, é comum os professores de artes serem solicitados para ajudar a área de ciências a explicar determinado fenômeno por meio de um teatrinho, ou músicas serem selecionadas exclusivamente pelo que diz a letra das canções, ou ainda filmes serem selecionados para substituir a aula dos professores, como ilustração do conteúdo, e não como uma matéria para a reflexão em si. São sintomas de nossa deficiência estrutural no campo do ensino na área de linguagens.
Na Educação do Campo da UnB a percepção das formas de assédio da Indústria Cultural, e da mercantilização da vida pelos padrões hegemônicos de representação da realidade tem sido objeto permanente de debate. A estudante da Licenciatura e professora de escola do campo, Ingrid Pranke, defendeu na primeira turma do curso, em maio de 2011, a monografia A utilização do audiovisual pela escola estadual de ensino médio Joceli Corrêa e suas implicações e confirmou, com a pesquisa, que de modo geral os professores se utilizam de maneira mecânica da linguagem, sem explorar os aspectos formais do audiovisual. Após observar aulas e entrevistar os docentes, estudantes e a coordenação pedagógica, a pesquisadora chega à conclusão que boa parte dos docentes utiliza os filmes como artifício de substituição de suas aulas, muitas vezes sem ligação direta entre tema de aula e filme sugerido, ou quando selecionam o filme para ilustração de conteúdo não exploram no debate os aspectos formais da construção do filme. Nos relatórios solicitados são exigidos o título do filme e o tema abordado. Logo, o que se deduz é que se trata de um problema de formação do corpo docente, que na ausência de instrução para o trabalho crítico com a linguagem audiovisual, se utiliza do recurso de modo burocrático e limitado, quando não incorre diretamente no reforço de padrões estéticos e ideológicos dominantes.
Em outra pesquisa de conclusão de curso defendida na primeira turma da Educação do Campo da UnB, o estudante Abraão Godóis (2011) desenvolve na monografia MST Arte e Política: a realidade em movimento, do lazer à mobilização a categoria de análise territorialização da Indústria Cultural ao perceber que havia diferença entre as músicas tocadas, cantadas ou escutadas nas ações de mobilização (de ocupação de terras, de ocupação de prédios públicos, de resistência aos despejos, nas marchas de protesto, etc) e nos momentos de diversão, de entretenimento interno nas áreas de acampamento e assentamento, concluiu que a Indústria Cultural se impõe e avança mesmo nos espaços com pretensão contra-hegemônica porque do ponto de vista ideológico faz parte do consumo corriqueiro das pessoas, é um elemento constituinte da experiência de vida das pessoas, ou seja, se trata de um dado de força da hegemonia.
Cabe destacar que em ambas as pesquisas, norteadas pelos pressupostos do materialismo histórico dialético, o diagnóstico sobre o papel que cumpre a Indústria Cultural não é fatalista, na medida em que ambos os pesquisadores apontam para processos pedagógicos e formativos norteados pelo processo de socialização e apropriação dos meios de produção das linguagens estéticas. Conforme Godóis (2011, p. 57):
A comunicação, educação, arte são todas fruto das “relações do homem com a natureza”. É o princípio fundador, criador e recriador do ser humano, assim, somente pelo trabalho, pela reorganização das relações de trabalho, poderemos reconstruir a sociedade. Para uma reorganização dos modos de produção é necessário ter o domínio sobre os meios de produção.
Enquanto Pranke (2011, p. 54) sugere a seguinte metodologia para o trabalho com audiovisual na escola:
O que poderia ser realizado além do assistir os filmes (alienando quem assiste em termos de consciência e em relação aos processos de produção) é a produção de material com essa linguagem, observando o como se produz, a forma que quer representar, enfim, o que se quer com o trabalho realizado. A partir do momento em que os educandos tenham um objetivo consistente para realizar essa produção certamente começariam a enxergar com outros olhos o fazer de um filme, compreenderiam o trabalho que permeia essa atividade, não apenas ficariam na condição de expectador passivo, mas desenvolver a ação, participar do trabalho como um sujeito da obra.
No entanto, se não existir discussão e compreensão da forma com que boa parte dos filmes é realizada esse trabalho de produção poderá ser transformado em mero trabalho de reprodução. Nesse caso se faz necessário que todos os envolvidos no ambiente escolar se proponham ao estudo sobre estética, a forma hegemônica de produção (de boa parte dos filmes), a intenção com que se apresenta o conteúdo através da forma.
Existem, nas práticas desenvolvidas pelo MST, diversos debates e tentativas de recolocar a funcionalidade das linguagens, tanto no que diz respeito à produção artística quanto à democratização de acesso, pois articulada ao processo de formação, como recurso pedagógico na educação dos sentidos, incidem com maior força no processo de elevação da consciência, num processo condutor onde a linguagem se reconecte ao senso crítico – para desvelar o mundo. Das muitas experiências, entre Escolas e Brigadas Nacionais, o fortalecimento do debate sobre o uso das linguagens tem se desdobrado em experimentações de composição coletiva. Um exemplo disto é a atuação no campo da literatura, protagonizada pela Frente Palavras Rebeldes.
A proximidade entre o MST e a Literatura não é fato recente, na verdade, por ser uma organização que tem por pressuposto a transformação social, os legados das revoluções permitiram que o Movimento trouxesse para sua perspectiva de organização popular não apenas a luta por educação, mas a luta pelo protagonismo his- tórico, de ser capaz o movimento mesmo de elaborar e sistematizar sobre sua práxis, de fazer sua arte, de criar e ressignificar símbolos. É assim que a poesia tem um importante elo com o sujeito sem-terra.
Historicamente no movimento a poesia foi o gênero que se fir- mou como parte da organicidade, da experiência sensível nos espa- ços de sociabilidade. Por seu vínculo com a declamação e aproxima- ção com a tradição oral, a poesia é o gênero literário mais próximo da forma coletiva de socialização de conhecimento, de ação pedagógica, massiva, de processos de crítica, ou de celebrar conquistas. A ora- lidade foi, por muito tempo, o maior meio de aproximação com as massas, principalmente onde elas estavam mais longe das letras. Ao longo dos 30 anos, o Movimento teve uma incidência muito grande no enraizamento da poesia, a I Mostra Nacional de Poesia do MST, realizada em 2016, foi um bonito retorno desse processo de enrai- zamento pela quantidade de poesias que vieram dos assentamentos, das escolas, da militância.
Tais experiências com poemas são diversas e cumprem o papel de crítica do real, com uma perspectiva muito de convocatória a um processo de soberania do povo. Dado o lugar de violência vivido pela luta camponesa a poesia nascida desta luta, e a vivência do poema, têm uma força provocadora imensa, porque articula resistência, combate e projeto de libertação. Não apenas no poema, mas na articulação da poesia com a construção dos espaços pedagógicos, a emancipação e proposta de uma sociabilidade diferente vão se apresentando pela vivência coletiva desses espaços, a festa e a insurreição, o amor e a disciplina, a poesia e o trabalho, o corpo, a liberdade e a responsabilidade individuo-coletivo, a invocação da memória histórica dos processos de luta. Então, o poema engajado atua num conceito de mediação entre o projeto de libertação e a antecipação do futuro, a ação contra-hegemônica.
Por esse chão histórico nasce a Palavras Rebeldes, primeiro como um grupo vinculado ao Coletivo Nacional de Cultura do MST, formado a partir da afinidade com a declamação e, também, pela organização de conteúdo para coletâneas de poemas. De experiências como a Mostra Nacional e de ações que demandavam composições específicas, esse grupo se expande, se reconhece como um coletivo também criador/escritor. Um ponto chave para entender a diversidade da Palavras Rebeldes passa pela heterogeneidade dos militantes que a compõem, grande parte já vinculados a atuações em outras linguagens (como o teatro e a música). Sendo assim, nasce com uma perspectiva de fusão de linguagem, e converte isso à expectativa de produção: a palavra como geradora de outras linguagens.
Ao ampliar sua atuação para além do poema, a Palavra Rebeldes se coloca como uma Frente de Literatura e realiza, assim, experiências que vão desde a produção de material de subsídio para os processos de formação, como a coletênaea de narrativas sobre violência contra a mulher, vinculada ao Setor de Gênero do MST, até o desenvolvimento de processos de composição coletiva da escrita – que passa pelo debate da intencionalidade, depois de forma, depois pela criação das possibilidades de escrita, elaboração artística. Esse processo de escrever coletivamente se dá de dois modos: a escrita a muitas mãos de modo efetivo, pela combinação de estilos de escrita, declamação, pelas diversas experiências que cada integrante traz da literatura feita nos estados, até que a forma traga a síntese de todo o processo criativo, se permitindo ser algo novo – nós-lírico. A autoria como coletiva. E a segunda, como debate coletivo da intencionalidade e produção em rede de escritores ligados à Frente, onde cada texto socializado passa por contribuições, opiniões críticas e reconstruções. Há na sua forma de organização um modo diferente de lidar com o processo criativo – que é incentivada pela própria experiência do Movimento Sem Terra, na sua forma de construção de linhas, materiais, elaborações, estratégias. A Frente reverbera essa tradição interna.
Sendo assim, a Palavras Rebeldes tem atuado entre organização de material literário e produção escrita baseando-se em duas necessidades norteadoras: a de democratização da literatura, facilitando as vias de acesso a conteúdos literários e a de incitação a uma tradição de escrita dentro do próprio movimento, como pressuposto de exposição do cotidiano (dentro da militância e no contexto da vida da classe trabalhadora). Se na história do movimento a poesia foi o gênero que expressava a voz coletiva, a Frente agora experimenta essas vozes em outros gêneros, como a crônica e o conto. E parece que, num momento adequado, pela necessidade de se abrir espaço para que histórias sejam contadas, circuladas, para que as impressões de mundo tenham lugar, dado o desafio de enfrentamento pela linguagem posto pelo período histórico. O desafio, posto por um processo ainda em andamento, é o fortalecimento de uma tradição literária dentro do MST, é o impulso pela leitura, pela produção, pela socialização, pelas experimentações, a fim também de superar a estagnação das formas de registro e projeção da experiência do movimento para o futuro.
5 CONCLUSÃO
Há cinquenta e três anos após iniciar o último golpe de Estado no Brasil, que nos manteve sob ditadura militar por vinte e um anos (1964-1985), estamos vivendo o primeiro golpe de Estado no país, no século XXI, porém, em chaves distintas da anterior. O atual estado de exceção é decorrente de um golpe midiático-jurídico-parlamentar-empresarial e, também, para os movimentos sociais do campo, repressivo, por meio da articulação de setores da justiça com forças policiais estaduais.
Na década de 1960 a Revolução Brasileira era uma questão debatida não apenas no plano da especulação teórica, estava ao rés do chão, debatida no plano da estratégia, enquanto possibilidade concreta vislumbrada por setores da esquerda brasileira. Diversos segmentos de trabalhadores da arte tomaram parte no debate, muitas obras precipitaram o debate ao dar forma estética às contradições da realidade nacional. Falar em revolução não era algo deslocado diante das condições objetivas daquele contexto – considerado por muitos pesquisadores como o único período pré-revolucionário que o Brasil viveu no século XX.
Um dos efeitos das derrotas políticas é a expropriação da memória dos perdedores. Retirar do horizonte estratégico a perspectiva da revolução foi uma das principais conquistas da classe dominante. Partidos limitados ao horizonte das eleições da democracia representativa, que elegeram o marketing político como a arma principal de diálogo com as massas, sempre em registro apelativo, em detrimento do trabalho de base, da formação e da capilaridade do trabalho de agitação e propaganda: é a imagem do cenário de terra arrasada da política brasileira, vitimada por sucessões intermitentes de ciclos de contrarrevoluções preventivas, em que práticas distintas, como as preservadas e fortalecidas por movimentos sociais ou por coletivos artísticos, aparecem hoje como residuais.
Em circunstância de impasse histórico regressivo como o que vivemos hoje, cabe notar o prognóstico, em texto projetivo, visando a construção de uma plataforma do Partido dos Trabalhadores que articulasse as esferas da cultura e da política, que Roberto Schwarz escreve em 1982. Segundo o autor, na forma que os meios de comunicação tomaram no Brasil após os anos de ditadura, eles significavam:
a) Concentração da iniciativa cultural em mãos da classe dominante, que decide unilateralmente o que vai e o que não vai ser divulgado no país;
b) Sujeição cultural da população em seu conjunto, que é transformada em público espectador e consumidor, no mesmo sentido em que a concentração do capital em poucas mãos já havia transformado a população em mão de obra barata;
c) Incorporação praticamente total da população, com sua diversidade e antagonismos, a um padrão cultural mais ou menos homogêneo;
d) Extraordinário desenvolvimento do processo de comunicação social, sempre nesta forma unilateral e autoritária, em que uns poucos decidem o que todos irão ver e ouvir, autoritarismo que não é incompatível com pesquisas de ibope. (SCHWARZ, 1987).
Passados trinta e cinco anos do prognóstico de Schwarz (1987), podemos avaliar que o protagonismo da indústria cultural no bloco histórico hegemônico reconfigurado em 1964, a partir do golpe militar-civil-empresarial, não foi enfrentado devidamente por nenhuma das frentes de esquerda: os partidos de esquerda optaram por travar a disputa no campo inimigo, com as armas do marketing político, calcadas na linguagem publicitária, e quando se tornaram governo não compraram briga com o monopólio dos meios de comunicação em mãos de poucas famílias no Brasil, ramificadas com setores do agronegócio e com o sistema financeiro; os sindicatos, atrelados às táticas partidárias, não investiram em formação política, trabalho de base e no desenvolvimento de meios de comunicação capazes de abranger o conjunto da população brasileira, não superaram os limites estreitos da mídia coorporativa sindical; e os movimentos sociais desenvolveram meios de comunicação para se comunicar com suas bases, ou com o público alvo de suas lutas, porém, não forjaram meios e formas capazes de se contrapor ao intenso ataque da mídia hegemônica, que opera alternando as táticas de invisibilização, criminalização ou cooptação dos movimentos e suas lutas.
Um dos grandes riscos, na atual conjuntura, é submetermos o acúmulo do agitprop dos movimentos sociais ao horizonte limitado do futuro dos partidos políticos, que abriram mão de uma perspectiva estratégica de acúmulo de forças em prol da Revolução e trilham o caminho regressivo da batalha institucional como um fim em si mesma, e não como elemento de mediação entre o poder que emana do povo e a institucionalidade do poder instituído.
Florestan Fernandes (2005, 2015) defendia – no momento em que percebia que diante da correlação de forças a redemocratização do país após os vinte e um anos de ditadura era também a passagem para mais um ciclo de contrarrevolução preventiva, que seria necessário apostar na construção de um movimento socialista – o que constitui tarefa maior do que a construção de um partido norteado pela ideologia socialista, daí o necessário empenho na retomada da construção da cultura política forjada de forma articulada por diversos segmentos organizados da classe trabalhadora. Vale, nesse sentido, recuperar a avaliação de Brecht (1967, p. 103): “A existência do teatro épico pressupõe, além de determinados padrões técnicos, um poderoso movimento social que tenha interesse na livre manifestação de questões vitais com a finalidade de encontrar soluções e que possa defender este interesse contra todas as tendências contraditórias”.
Já temos experiência em nossos movimentos com diversas formas de ação, métodos, táticas, linguagens. O desafio é ampliar a escala da ação, buscando formas de multiplicação, capilarização da experiência, no campo e na cidade, por meio da organicidade dos movimentos de nosso arco de parcerias. E, para além da expansão quantitativa, permanece o desafio da elaboração de formas capazes de disputar os padrões de representação da realidade com a mídia hegemônica. Para isso é necessário investir em pesquisa de linguagem ao mesmo tempo que buscamos construir processos de produção em rede capaz de articular e visibilizar a experiência diversa, rica, porém, pulverizada, em andamento3. Cabe, nesse sentido, diante da conjuntura do primeiro golpe das forças de direita contra a democracia brasileira, no século XXI, retomar os desafios pautados por Schwarz (1987, p. 84) para a esquerda brasileira há trinta e cinco anos:
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Notas