Mesas temáticas coordenadas
Recepção: 01 Março 2018
Aprovação: 09 Maio 2018
Resumo: O artigo busca, a partir do pensamento de Hannah Arendt, problematizar as categorias dignidade humana e banalidade do mal para pensar os direitos humanos na contemporaneidade. Embora a análise da pensadora seja sobre a experiência das sociedades totalitárias do século passado refletindo sobre a questão do mal, seu pensamento é atual e instigante, ao afirmar a necessidade da construção dos direitos humanos pelos homens e não, simplesmente, como um catálogo de declarações e leis.
Palavras-chave: Direitos humanos, dignidade humana, banalidade do mal.
Abstract: We seek from the thought of Hannah Arendt, to problematize the category of human dignity and banality of evil to think about human rights in the contemporary world. Although the analysis of Arednt is on the experience of the totalitarian societies of the last century that reflects on the question of evil, her thinking is current and instigating, affirming the need for the construction of human rights by men and not simply a universe of declarations and laws.
Keywords: Human Rights, human dignity, banality of evil.
1 INTRODUÇÃO
Entendemos que o pensamento de Hannah Arendt é atual e instigante, principalmente o conceito de banalidade do mal para compreender a sociedade moderna, uma sociedade na qual a lógica do consumo, do supérfluo e do descartável está dominando todas as relações, desde o terrorismo islâmico contra inocentes, da guerra do Iraque e da guerra civil pela democracia na Síria; dos crimes associados à droga e a internação compulsória, a violência e o desrespeito aos pobres, a violência sistemática que é exercida por pessoas banais, da tragédia da violência e da covardia legalizadas e banalizadas.
As formulações de Arendt sobre a banalidade do mal perpassam todo seu pensamento, mas neste trabalho, utilizamos principalmente Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal (1983) e A vida do espírito (2012), que contém 02 volumes e um apêndice que tratam respectivamente sobre o pensar, o querer e o julgar que são, conforme a autora, as três atividades espirituais básicas. Aqui trabalhamos basicamente com a atividade do pensar.
Segundo Arendt (2012), essas atividades não podem ser derivadas umas das outras e, embora tenham características comuns, não podem ser reduzidas a um denominador comum. Não se deve estabelecer uma ordem hierárquica entre elas, porém, é inegável que existe uma ordem de prioridades.
Se o poder da representação e o esforço para dirigir a atenção do espírito para o que escapa da atenção da percepção sensível não se antecipassem e preparassem o espírito para refletir, assim como para o querer e para o julgar, seria impossível pensar como exerceríamos o querer e o julgar, isto é, como poderíamos lidar com as coisas que ainda não são, ou que já não são mais. Em outras palavras, aquilo que geralmente chamamos de “pensar”, embora incapaz de mover a vontade ou de prover o juízo com regras gerais, deve preparar os particulares dados aos sentidos de tal modo que o espírito seja capaz de lidar com eles na sua ausência; em suma, ele deve de-sensorializá-los. (ARENDT, 2012, p. 95, grifo da autora).
Arendt (2012, p. 95) afirma ainda que o objeto do pensamento é diferente da imagem, assim como a imagem é diferente do objeto sensível e visível, do qual é uma simples representação, portanto, é por causa dessa dupla transformação que o pensamento de fato vai mais longe ainda, para além da esfera de toda imaginação possível,“[...] onde nossa razão proclama a infinidade numérica que nenhuma visão no pensamento de coisas corpóreas jamais alcançou.”, ou “[...] nos ensina que até mesmo os corpos mais minúsculos podem ser infinitamente divididos”.
É essa última classe de objetos-de-pensamento – conceitos, ideias, categorias e assemelhados – que são o tema especializado da filosofia profissional conforme denominada pela autora. Mas explicita, também, que não há nada na vida comum do homem que não possa se tornar alimento para o pensamento, isto é, que não possa estar sujeito á dupla transformação que prepara um objeto sensível, tornando-o propriamente objeto-do-pensamento. Todas as questões metafísicas que a filosofia escolheu como tópicos especiais vêm das experiências do senso comum; a necessidade da razão – a busca de significado que faz com que os homens formulem questões – não difere em nada da necessidade que os homens têm de contar histórias de algum acontecimento de que foram testemunhas ou de escrever poemas a respeito dele. Em todas essas atividades reflexivas os homens movem-se fora do mundo das aparências e usam uma linguagem cheia de palavras abstratas que, é moeda corrente da filosofia. A retirada do mundo das aparências é então a única condição anterior essencial para o pensamento, embora não para filosofia, tecnicamente falando.
Arendt (2012) argumenta que os homens, embora totalmente condicionados pela existência entre nascimento e morte, submetidos ao trabalho para sobreviver e encontrar um lugar na sociedade, só podem transcender a todas essas condições pela via do espírito, ou seja, do pensar.
E embora isso jamais possa ente alterar diretamente a realidade – como de fato não há, em nosso mundo, oposição mais clara e mais radical do que a oposição entre pensar e fazer -, os princípios pelos quais agimos e os critérios pelos quais julgamos e conduzimos nossas vidas dependem em última instância, da vida do espírito. Em suma, dependem do desempenho aparentemente não lucrativo dessas empresas espirituais que não produzem resultados. [...] A ausência de pensamento é realmente um poderoso fator nos assuntos humanos; estatisticamente, é o mais poderoso deles, não apenas na conduta de muitos, mas também na conduta de todos. (ARENDT, 2012, p. 89).
Segundo Arendt (2012), nenhum ato do espírito – muito menos o ato de pensar – contenta-se com o seu objeto tal como lhe é dado. Ele sempre transcende a pura imediatez do que quer que tenha despertado sua atenção e transforma isso no que o filósofo franciscano do século XIII denomina de experimentum suitatis, um experimento do Eu comigo mesmo. Estar sozinho e estabelecer um relacionamento consigo mesmo são a característica mais marcante da vida do espirito. Só podemos dizer que o espírito tem sua vida própria à medida que ele efetiva esse relacionamento no qual, existencialmente falando, a pluralidade é reduzida à dualidade já implícita no fato e na palavra consciência ou syneidenai – conhecer comigo mesmo. Esse estado existencial no qual se faz companhia a si mesmo, Arendt denomina de estar só, para fazer distinção da solidão, na qual também de se estar sozinho, mas abandonado não apenas de companhia humana, mas também da sua própria companhia.
Portanto, é somente na solidão que se é privado da companhia humana; e é somente na aguda consciência de tal privação que os homens podem chegar a existir realmente no singular e talvez seja somente nos sonhos ou na loucura que eles percebam completamente o horror impronunciável e insuportável desse estado. (ARENDT, 2012).
Assim, todas as atividades do espírito testemunham, elas próprias, por sua natureza reflexiva, uma dualidade inerente à consciência; o agente espiritual só pode ser ativo agindo implícita ou explicitamente sobre si mesmo. A consciência – o eu penso de Kant – não somente acompanha todas as outras representações, mas todas as as atividades, nas quais, no entanto, posso estar inteiramente esquecido do meu eu. A consciência como tal, antes de se efetivar no estar só, chega no máximo a perceber a igualdade uniforme do eu – sou – “Tenho consciência de mim, não de como apareço para mim nem de como sou eu em mim mesmo, mas somente o que sou.” -, que assegura a continuidade idêntica de um eu por meio das múltiplas representações, experiência e memórias de uma vida e assim, expressa o ato de determinar a existência. (ARENDT, 2012, p. 93).
Para Arendt (2012, p. 93) as atividades espirituais, especialmente o pensar – o diálogo sem som que se faz consigo mesmo – podem ser entendidas como
[...] a efetivação da dualidade originária ou da cisão entre mim e meu eu, intrínseca a toda consciência. Mas essa pura consciência de mim, da qual estou, por assim dizer, inconscientemente consciente, não é uma atividade, porque acompanha todas as outras atividades, ela é a garantia de um eu-sou-eu completamente silencioso.
A vida do espírito na qual se faz companhia consigo mesmo pode ser sem som; mas nunca é silenciosa; e jamais pode se esquecer completamente de si, pela natureza reflexiva de todas as suas atividades.
Por essa razão é que essa temática é fundamental na discussão dos direitos humanos, tendo em vista a banalidade do mal e a escassez de reflexão que atinge a todos. Necessitando, assim, de sua construção ou reconstrução. Assim, concordamos com Celso Lafer (1991), ao afirmar que longe de ser destrutiva, a crítica de Arendt aos direitos humanos possui um caráter de reconstrução.
Retomaremos esse tema do pensar ou da escassez do pensamento, que reduz a consciência e leva à obediência cega e causa a tragédia, denominada por Arendt de banalidade do mal na segunda parte deste trabalho.
Os preceitos ou as fórmulas de inspiração norte-americanas dos direitos civis à (vida, liberdade e procura da felicidade) e francesas (igualdade perante a lei, liberdade, proteção à propriedade e soberania nacional) podem ser inoperantes para quem não conta com um governo para defendê-las. Esta é a maior crítica de Hannah Arendt aos direitos humanos. Os direitos humanos, assim, deixariam de persistir, justamente porque dependentes de uma pluralidade humana que os organiza.
A autora questiona a abstração simbólica da agenda dos direitos humanos e nos remete a uma herança histórica vinculada e construída para a garantia de direitos e não uma formulação ideal de direitos inalienáveis do homem. Assim, afirma que os direitos devem emanar de uma organização política, e não de alguma lei natural, e muito menos de algum mandamento divino. Pois ao se perder os direitos políticos, resultaria na impossibilidade de se poder invocar proteção a direitos humanos. Por isso, afirmou Arendt (1990), os sobreviventes dos campos de concentração entenderam que nudez abstrata de serem unicamente humanos era o maior risco que corriam, pois sem direitos políticos, o ser humano não vale quase nada ou nada.
Dessa forma, os direitos humanos e suas garantias não são dados, mas construídos a partir do resultado da ação de organização humana, ainda que orientada para princípios de justiça. Para Arendt, não se nasce igual, torna-se igual.
Em busca não dos fundamentos e fórmulas, mas da garantia efetiva de que todas as pessoas humanas deveriam ter preservadas a sua integridade física e política, sendo portadores desse modo, de uma dignidade humana, Arendt associa a noção de dignidade herdada de Kant, á do que ela denomina de direito a ter direitos. Se fosse preciso postular um fundamento, seria o de que todos os seres humanos devem ter sua dignidade preservada.
O conceito de dignidade humana em Arendt se relaciona com o conceito de juízo, mas diferentemente das tradições modernas, a capacidade de julgar não deve ser colocada nas mãos de um soberano (Deus), o julgar da autora, está diretamente relacionado com a nossa capacidade de linguagem que segundo ela, é a nossa fonte de sustentação no mundo comum e é o que deveria nos inserir em uma comunidade.
A dignidade humana estaria, portanto, relacionada com a nossa capacidade de agir em conjunto, mediante o acesso à cidadania, conforme coloca em Origens do Totalitarismo (2009), de que os direitos humanos fossem tomados como direitos públicos, cuja base seria a ideia de direitos a ter direitos, isto é, os homens devem ser respeitados não apenas como seres biológicos, mas como cidadãos livres, capazes de agir e julgar. Sem pertencer a uma comunidade e sem nela deter poder, não há dignidade. Direitos humanos sem possibilidade real de participar e decidir sobre os destinos comuns tornam-se vazios, meros instrumentos propagandísticos para os governos. (ARENDT, 1990).
Em a Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant (2008, p. 305) afirma “[...] age de tal maneira que tomes a humanidade, tanto em tua pessoa, quanto na pessoa de qualquer outro, sempre ao mesmo tempo como fim, nunca meramente como meio”. É a partir dessa formulação, que o autor ressalta a categoria dignidade de todo ser humano como fundamento para estar acima da coisa ou objeto. Ou seja, só o ser humano possui dignidade (em função da sua racionalidade), ocupando assim um lugar privilegiado em relação aos demais seres vivos, que possuem valor ou preço.
E, portanto, a moral só é possível a partir da razão e do sujeito, pois neste há a possibilidade de necessidade e universalidade, que não é possível nas coisas e objetos que apenas representam o particular e o contingente.
Entendemos a dignidade humana fundada não apenas na autonomia, como também na capacidade do ser racional de objetivar fins. “Ora digo eu – o homem, e, de uma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade”. (KANT, 2008, p. 305).
O imperativo categórico da humanidade como um fim, por sermos um ser humano racional já nos garante dignidade, visto que somos fim em nós mesmos. O pressuposto kantiano é o do valor absoluto do ser humano, o homem é fim em si mesmo. Nessa formulação, Kant inclui todos os seres racionais, ou seja, todos os que possuem razão e vontade.
Assim, o imperativo categórico tem por base a humanidade enquanto tal; logo; é universal. Não estar sujeito às contingências da vida, além disso, independe das adversidades que se apresentam à condição humana. Mesmo que os fins sejam incorretos, isso não priva o agente da dignidade. Por exemplo, alguém que rouba merece e deve ser punido, mas não deixa de pertencer à humanidade, portanto, continua possuindo dignidade.
O próprio Kant (2008, p. 306-307) afirma em A Metafísica dos Costumes:
Desprezar os outros (contemnere), ou seja, negar-lhes o respeito devido aos seres humanos em geral, é em todas as situações contrário ao dever, uma vez que se tratam de seres humanos [...] Contudo, não posso negar todo respeito sequer a um homem corrupto como ser humano; não posso suprimir ao menos o respeito que lhe cabe em sua qualidade como ser humano, ainda que através de seus atos ele se torne indigno desse respeito. Assim, podem haver punições infamantes que desonram a própria humanidade (tais como esquartejamento de um homem, seu despedaçamento produzido por cães ou cortar fora seus nariz e orelhas).
Assim, o ser humano mesmo que tenha cometido um delito deve ser respeitado, embora não deixe de ser punido.
Dessa forma, Kant (2008) amplia o conceito de dignidade a todo ser humano. Além disso, a validade e a inegociabilidade da dignidade garantem exata igualdade para todos, o que impede de falarmos em diferenciação social; possuímos a mesma dignidade independente da posição social que ocupamos. A conscientização da igual dignidade permite que a modernidade possa refletir e efetivar a igualdade entre os seres humanos.
Porém, os direitos humanos (ou qualquer outra garantia, a exemplo da igualdade), segundo Hannah Arendt, ao contrário de quase tudo que afeta a existência humana, não é um dado, mas o resultado da ação de organização humana, ainda que orientada para princípios de justiça. Para Arendt, não se nasce igual, torna-se igual.
2 A BANALIDADE DO MAL EM ARENDT
Importa aqui o conceito de banalidade do mal (Arendt) para prosseguirmos com a discussão de direitos humanos na contemporaneidade. Arendt segue a trilha deixada por Kant do conceito de mal radical, em sua investigação acerca do surgimento dessa nova forma de violência e do seu alastramento e plena realização enquanto realidade política.
A nossa reflexão a partir do conceito de banalidade do mal não se coloca a partir do domínio despótico dos homens, conforme Origens do totalitarismo, mas num sistema em que os homens sejam supérfluos. (ARENDT, 1990). E, nesse sentido, concordamos com Souki (2006), quando afirma atualidade da ocorrência desse tipo de mal sobreviver à queda dos estados totalitários. E perpassar as sociedades burocráticas modernas, os acontecimentos políticos, sociais e econômicos de toda parte conspiram com os instrumentos totalitários inventados para tornar os homens supérfluos. O modelo do cidadão das sociedades burocráticas modernas é o homem que atua sob ordens, que obedece cegamente e é incapaz de pensar por si mesmo, pois essa supremacia da obediência pressupõe a abolição da espontaneidade do pensamento. E nessa ausência de pensamento, nessa expressão humana opaca, nessa rarefação das consciências aparece a tragédia, batizada por Hannah Arendt de a banalidade do mal.
A questão do fenômeno da banalidade do mal é analisada a partir do livro de Arendt, Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Fenômeno este que nos parece bastante atual e pertinente para pensar os direitos humanos na atualidade, principalmente por estar ligado a uma preocupação ética.
A banalidade do mal a partir de Arendt, para uma análise sistemática da massificação do indivíduo desolado, que surge a partir da Revolução Industrial, e que nessa condição de homem de massa, o indivíduo perdeu seu status político. E assim, transformou se em átomo anônimo entre os átomos anônimos, um homem qualquer, sem capacidade política, sem consciência moral, sem vontade, sem julgamento e, assim, capaz de sofrer e de fazer banalmente o mal. (SOUKI, 2006).
O mal não é fruto de uma espontaneidade transbordante ou de uma busca apaixonada, cheia de rupturas e transbordamentos dramáticos, mas aparece, sobretudo, sob os traços de uma assustadora normalidade. A verdade desconcertante é que não é necessária a existência de uma maldade particular para que se possa causar um grande mal. Os crimes totalitários não foram cometidos pelos perversos, mas pelos indivíduos privados de todo motivo particular e que são, precisamente por essa razão, capazes de um mal infinito.
Quando Arendt apresenta a superfluidade dos homens enquanto homens, como núcleo do significado do mal radical, está reconhecendo a referência kantiana para se pensar o problema do mal, a partir da dignidade humana, tendo em vista que a banalidade do mal tem como núcleo, exatamente, a experiência contemporânea da destruição da dignidade, através da transformação do homem em ser supérfluo.
Assim, o mal se realiza tanto para Kant, como para Arent, quando o homem deixa de ser um fim em si mesmo, quando ele deixa de ter primazia sobre tudo mais e torna-se um meio, um instrumento. Sua existência já não se justifica por si mesma, mas se torna condicionada a um valor utilitário, a um valor relativo às necessidades definidas pelas contingências históricas e políticas. Nessa relativização de valor a vida humana se perde, também, seu significado, deixando de ser necessária e essencial para ser inconsequente e banal e, assim, o homem é destruído em sua humanidade.
Quando o homem é destruído em sua humanidade, a ação humana, consequentemente, se degenera. A ação humana, que é essencialmente caracterizada pela espontaneidade e pela possiblidade de sempre poder iniciar, poder perene de começar e de fundar a novidade, é interditada em sua própria fonte: a liberdade.
Nesse sentido, concordo com Souki (2006), quando afirma que em Kant, o homem tem uma essência ambígua e trágica, mas jamais demoníaca. Essa recusa da malignidade no homem aproxima os conceitos de mal radical e de banalidade do mal. Ao retirar-lhe o caráter demoníaco do homem, a questão do mal em Arendt passa a ser focada como uma questão política.
E quando Arendt mostra que a banalidade do mal tem a ver com a superfluidade dos homens enquanto homens, ela se identifica novamente com Kant, tendo em vista que o mal radical surge exatamente quando o homem deixa de ser considerado como um fim em si mesmo.
Podemos dizer que o conceito de mal radical de Kant abarca o de banalidade do mal, e ainda mais, a banalidade do mal é uma característica contemporânea do mal radical.
Chalier (apud SOUKI, 2006) apresenta três parâmetros em que se organiza a banalidade do mal em Arendt: a necessidade (existência de um sistema), a irrealidade (códigos e convenções padronizadas) e a ausência do pensamento. O abandono à necessidade e o afastamento da realidade se reforçam um ao outro e preparam o caminho para o mal tão banal e tão abominável que será cometido pelos indivíduos mais comuns. Só o pensar exige um pare-e-pense para resistir ao sistema e sua ideologia.
Acreditamos que esses parâmetros podem ser muito bem utilizados na condição de homem moderno. E que a ausência de pensamento desse homem facilita a sua sujeição, e o torna incapaz de resistir; por esta razão se torna tão relevante explorar mais esta questão.
A preocupação com o pensar ou com as atividades espirituais em Arendt teve origens distintas, inicialmente quando assistiu o julgamento de Eichmann, em Jerusalém, que a deixou perplexa e aturdida com a superficialidade do agente, como afirma a própria autora
Os atos eram monstruosos, mas o agente – ao menos aquele que estava em julgamento – era bastante comum, banal e não demoníaco ou monstruoso. Nele não se encontrava sinal de firmes convicções ideológicas ou de motivações especificamente más, e a única característica notória que se podia perceber tanto em seu comportamento anterior quanto durante o próprio julgamento e o sumário de culpa que o antecedeu era algo inteiramente negativo: não era estupidez, mas irreflexão. (ARENDT, 2012, p. 18, grifo da autora).
Ainda de acordo com a autora, foi essa ausência de pensamento – tão comum na vida cotidiana, onde dificilmente temos tempo e muito menos desejo de parar para pensar que despertou seu interesse pelo tema. E Arendt se pergunta. Será o fazer o mal (pecados por ação e omissão) possível não apenas na ausência de motivos torpes (como a lei os denomina), mas de quaisquer outros motivos, na ausência de qualquer estímulo particular ao interesse ou à volição? Será que a maldade – como quer que se defina esse estar determinado a ser vilão – não é uma condição necessária para o fazer – o mal?. Será possível que o problema do bem e do mal, o problema de nossa faculdade para distinguir o que é certo do que é errado, esteja conectado com nossa faculdade de pensar?
Arendt esclarece que a relação com o pensamento não é no sentido de que através dele (pensamento) se pudesse ser capaz de produzir o bem como resultado, como se a virtude pudesse ser ensinada e apreendida. A autora afirma que “[...] somente hábitos e costumes podem ser ensinados, e nós sabemos muito bem com que alarmante rapidez eles podem ser desaprendidos e esquecidos quando as novas circunstâncias exigem uma mudança nos modos e padrões de comportamento.” (ARENDT, 2012, p. 19).
A questão para Arendt era se a atividade do pensamento como tal ou o hábito de examinar o que quer que aconteça ou chame a atenção, independentemente de resultados e conteúdo específico – estivesse entre as condições que levam os homens a abster-se de fazer o mal, ou mesmo que ela realmente os condicione contra ele?
O julgamento de Eichmann despertou seu interesse pelo tema, mas também as questões morais que se originam na experiência real e se chocam, segundo Arendt (2012, p. 20), “[...] com a sabedoria de todas as épocas – não só com as várias respostas tradicionais que a ‘ética’, um ramo da filosofia, ofereceu para o problema do mal, mas também com as respostas muito mais amplas que a filosofia tem, prontas, para a questão menos urgente ‘O que é o pensar’?”.
O questionamento sobre O que é o pensar, inquietações da autora deste A condição humana, prossegue em A vida do espírito (primeira parte). De acordo com Souki (2006, p. 112), o pensar para Arendt significa, antes de mais nada,
Abandonar momentaneamente o terreno do senso comum, praticando, espontaneamente, a epoché, ao pôr-se diante do que aparece. Através do senso comum nós podemos confiar na imediaticidade de nossa experiência sensível, pois ele dá acesso ao real, e nosso senso do real depende inteiramente da aparência. Por seu lado, o espaço da aparência é o nosso mundo comum, ou a realidade ou o espaço político. Humanamente e politicamente, a realidade não se distingue da aparência. O pensar, que é o que permite ao espírito tomar distancia do mundo e não pode sair dele ou transcendê-lo. Para Hannah Arendt, a retirada (deliberada e sempre momentânea) do mundo e a solidão caracterizam a atividade de pensar.
Arendt (2012, p. 198) utiliza a metáfora do vento de Aristóteles para explicar a atividade do pensar: “Os ventos são eles mesmos invisíveis, mas o que eles fazem mostra-se a nós e, de certa maneira, sentimos quando eles se aproximam”.
A autora apresenta três semelhanças utilizadas por Sócrates do vento com o pensamento: Primeiro, a aparente inutilidade do pensamento no sentido de que ele não tem resultado final que sobreviva à atividade de pensar.
Segundo, o que a meditação faz é nos paralisar temporariamente, fazendo parar qualquer coisa que estivermos fazendo para agir sobre nós.
Terceiro, mesmo com a falta de resultados e da paralisia induzida pelo pensamento, este exerce um efeito na vida interior que é momentânea, embora perigoso.
O pensamento nos faz ciente de outra ordem da realidade diferente daquela que tínhamos antes de pensar, tomada da experiência sensível e de nossos semelhantes. O pensamento desestabiliza os critérios estabelecidos, como os valores e medidas do bem e do mal, pois dissolve tudo o que era tido como certeza. É por esta razão que a autora afirma: “não há pensamento perigoso, o próprio pensamento é perigoso.” (ARENDT, 2012, p. 198). Entretanto, ainda de acordo com a autora, esse perigo não surge da convicção socrática de quem uma vida não submetida a questionamento não vale a pena ser vivida. Ao contrário, ela surge do desejo de encontrar resultados que dispensariam o pensar.
Ainda de acordo com Arendt (2012, p 214) “[...] o pensamento acompanha a vida e é ele mesmo a essência desmaterializada de estar vivo. Uma vida sem pensamento é possível, mas ela fracassa em fazer desabrochar a sua própria essência – ela não é apenas sem sentido; ela não é totalmente viva. Homens que não pensam são como sonâmbulos”.
A ausência de pensamento, contudo, que parece tão recomendável em assuntos políticos ou morais, também apresenta riscos. Ao proteger contra os perigos da investigação, ela ensina a aderir rapidamente a tudo o que as regras de conduta possam prescrever emdeterminadas épocas para uma determinada sociedade. As pessoas acostumam se com mais facilidade à posse de regras que subsume particulares do que propriamente ao seu conteúdo, cujo exame inevitavelmente as levaria à perplexidade. (ARENDT, 2012, p, 199).
Assim, quanto maior é a firmeza com que os homens aderem ao velho código, maior a facilidade com que assimilarão o novo. Ou seja, significa que os mais dispostos a obedecer serão os que foram os mais respeitáveis pilares da sociedade, os menos dispostos a se abandonarem aos pensamentos – perigosos ou de qualquer outro tipo -, ao passo que aqueles que aparentemente eram os elementos menos confiáveis da velha ordem serão os menos dóceis. (ARENDT, 2012).
O termo vazio de pensamento, usado na reflexão de Arendt (2012) sobre o mal, não se encontra em um local específico de sua obra, se apresenta com as seguintes denominações: ausência de pensamento, superficialidade e irreflexão, e se acha sempre associado à banalidade do mal. E sempre como um vazio, um negativo, assim, o conceito não é definido por si, mas a partir do seu positivo, o pensar.
Se o pensamento é uma atividade que tem seu fim em si mesmo e se a única metáfora da nossa experiência sensorial comum que a ele se adequa é a sensação de estar vivo, assim: “[...] pensar e estar completamente vivo são a mesma coisa, e isto implica que o pensamento tem sempre que começar de novo; é uma atividade que acompanha a vida.” (ARENDT, 2012, p. 214).
A interação com nós mesmos, e com os outros, está de alguma maneira relacionada. Por essa razão Arendt (2012, p. 211) afirma que Aristóteles, se referindo à amizade, observou: “O amigo é um outro eu”. Assim, pode-se com ele empreender o diálogo do pensamento como se faz consigo mesmo. A grande questão é que o diálogo do pensamento só pode ser levado adiante entre amigos, e seu critério básico ou sua lei suprema, conforme a autora, é não se contradiga. (ARENDT, 2012).
Ao se referir aos homens maus afirma,
[...] é característico das “pessoas moralmente baixas” estarem em “discordância consigo mesmas” (diapherontai heautois), e dos homens maus evitar a própria companhia; sua alma se rebela contra si mesma (stasiazei). Que diálogo se pode ter consigo mesmo quando a alma não está em harmonia, mas em guerra consigo mesma? (ARENDT, 2012, p. 211, grifo da autora).
Por essa razão, é melhor nunca iniciar o diálogo isolado e sem som, que Arendt chama de pensar, ou nunca voltar para casa e examinar as coisas. Pois uma pessoa que não conhece essa interação silenciosa, onde se analisa o que se diz e o que se faz, não se importa de cometer um crime, já que pode esquecê-lo sem remorso.
Dessa forma, o vazio de pensamento é uma atividade humana pervertida. Para Arendt, são as contingências históricas e políticas que possibilitam a experiência humana do vazio de pensamento; como exemplo, os sistemas totalitários e suas ideologias.
A massa de indivíduos isolados, anônimos, sem interesses em comum não tem poder. O totalitarismo apoia-se em massa atomizada, procurando torná-la sempre mais atomizada e amorfa; massa de indivíduos isolados, anônimos, sem interesses pessoais, sem poder, pois homens isolados sem interesses em comum não têm nenhum poder. Nesse contexto, o senso comum é uma categoria essencial para a reflexão sobre o fato político, porque ele, ao contrário do isolamento, age sobre a via de aniquilação da esfera política. Aqui o senso comum se caracteriza como o real, condicionando indivíduo a se relacionar com a realidade do mundo em que vive, a dominá-la, julgá-la, a se adaptar, enfim, a ser ele. Muito ao contrário do indivíduo massificado e isolado.
Por outro lado, as ideologias exploram o desejo de escapar da realidade que as massas têm, pois elas são desenraizadas, desorientadas, e o mundo em torno parece-lhes incompreensível, sem sentido. Por isso o homem massificado foge da realidade.
Enfim, o objetivo das ideologias (totalitária) é eliminar a capacidade de distinguir a verdade da falsidade, a realidade da ficção, ou seja, extinguir a capacidade de pensar por si mesmo do indivíduo.
O senso comum é o que nos dá acesso ao real, e a realidade apreendida por nossos sentidos e garantida pela segurança constante com que os outros percebem e manipulam os mesmos objetos, num mundo em que nos percebemos em comum. Sem essa garantia o real se esvanece, dá lugar à ficção e abre espaço à crença de que tudo é possível. Só o senso comum vivaz, a percepção e a ação em comum num mundo compartilhado podem resistir a essa eliminação da objetividade do mundo real.
Para Arendt, o senso comum é a característica que nos permite medir a realidade, sendo comum a todos. A atrofia do senso comum não se atribui somente ao totalitarismo, mas ela (atrofia) se enraíza mais profundamente na tradição ocidental. Em A condição humana ela mostra como a alienação em relação ao mundo e o desaparecimento do senso comum caracterizam a modernidade. (ARENDT, 2001).
O senso comum é o ponto de partida para a realização do pensamento, a sua eliminação já mostra, de início, a impossibilidade de pensar. E assim, através da desvalorização do senso comum, (o senso do real) – estimulada pela ideologia e pela condição de isolamento do homem massa que o vazio de pensamento se torna uma realidade. (ARENDT, 2012).
O vazio de pensamento se efetiva também pelo movimento que é erigido como princípio absoluto, que se pode visualizar principalmente através da organização burocrática, em estado de contínuo fluxo e corrente constante. Assim, de acordo com Arendt (2012), se todo pensar exige um pare-e-pense, esse movimento permanente é incompatível com a atividade de pensar. E, por último, a indução ao conformismo, a partir desse percurso, o homem passa, de acordo com Arendt (2012), á condição de ser que não pensa, a um autônomo, sem memória, sem identidade e sem responsabilidade. Nesse contexto de deterioração humana, dissolvem se os parâmetros de bem e de mal, de certo e errado, de justo e injusto; o homem não pensa e não julga, só age indiferentemente, como um instrumento do mal como nos fala Kant. Nessa situação extrema e perversa o homem é, ao mesmo tempo, vítima e instrumento do mal.
A pausa onde o homem pode suspender, provisoriamente, seu juízo de valor e suas certezas prévias, parar para pensar é um dos primeiros atos de resistência a uma imposição externa, a uma exigência de obediência. É exatamente nessa parada, momentânea, mas decisiva, que o homem pode começar a realizar sua autonomia. É esse fluxo contínuo que nos imobiliza a parar para pensar, e tem como objetivo apenas o automatismo em que os homens deixam de (se) interrogar para, prontamente obedecer. (SOUKI, 2006).
Entendemos que o pensamento e a reflexão sobre as coisas não são suficientes para resistir ao mal, mas é condição necessária, quando na contemporaneidade, se caracteriza principalmente pela dissolução do espaço político, da diminuição do senso de realidade, o esvaziamento e o vazio de pensamento.
3 CONCLUSÃO
Trabalhamos aqui os conceitos de dignidade humana e banalidade do mal, a partir da aproximação com o pensamento de Arendt (2012). A autora chama atenção para os seres humanos que constituem o refugo da terra, nas várias figuras, seja dos refugiados, apátridas, dos imigrantes, dos clandestinos sem comunidades e que não têm governo para os defenderem, mas também para as minorias dos regimes autoritários e totalitários, que perderam o direito a ter direito, básico para exercer os demais direitos. (PEREIRA, 2014).
Quando a contemporaneidade reduz o ser humano a um estado de necessidade bruta e de selvageria, desprovido de qualquer forma de proteção estatal, a agenda dos direitos humanos é um dado flutuante em um espaço inexistente. A inserção de todos os seres humanos, nesse âmbito de proteção, é a tarefa de nossa geração, que se realiza por medidas políticas e econômicas de emancipação e de inserção.
É o que nos desafia na contemporaneidade e nos leva a agir em defesa dos direitos humanos, tendo em vista que vivenciamos, conforme afirma Tosi (2012), o lado obscuro e o fundamento oculto do Estado de Direito é o Estado de exceção, é a regra e o poder soberano, o poder sobre a vida, o bio-poder se excerce de forma arbitrária: a verdadeira face do poder se manifesta, quando analisamos como ele se comporta com os excluídos, as vítimas do sistema.
Ao lançar luz sobre o mal contemporâneo, através da banalidade do mal, Arendt nos leva a compreender e desvelar o nosso tempo. E sua contribuição em nos chamar atenção para o fato de que a liberação da necessidade não se confunde com liberdade, e que esta exige um espaço próprio – o espaço público da palavra e da ação, que nos leva a agir em conjunto, do qual nasce o poder, entendido como um recurso gerado pela capacidade de os membros de uma comunidade política de concordarem com um curso comum de ação, pois para Arendt, sem o povo ou um grupo não há poder.
REFERÊNCIAS
ARENDT, H. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
ARENDT, H. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar. Trad. Antonio Abranches et al. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
ARENDT, H. Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras. 1990.
LAFER, C. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com Hannah Arendt. São Paulo. Companhia das Letras, 1991.
PEREIRA, A. P. S. A crítica de Hannah Arendt à universalidade vazia dos Direitos Humanos. 2014. 87 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2014.
SOUKI, N. Hannah Arendt e a banalidade do mal. Belo Horizonte: EDUFMG, 2006.
TOSI, G. A internacionalização dos Direitos Humanos: o desafio para o século XXI. João Pessoa. [s. n.], 2012.