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TRABALHO INFANTIL: uma expressão da violação dos direitos humanos de crianças e adolescentes
Revista de Políticas Públicas, vol. 22, pp. 233-248, 2018
Universidade Federal do Maranhão

Mesas temáticas coordenadas


Recepción: 02 Marzo 2018

Aprobación: 09 Mayo 2018

Resumo: O texto faz uma abordagem sobre uma das expressões de violação dos direitos humanos de crianças e adolescentes, o trabalho infantil. Enfatiza elementos da construção histórico-social da infância nas sociedades, assim como do aparato legal que lhes reconhece a condição de sujeitos de direitos em contraposição às situações a que são submetidos enquanto estão na condição de vítimas exploradas pelo trabalho.

Palavras-chave: Criança, adolescentes, trabalho infantil, política de direitos.

Abstract: This study approaches to child labor as a form of violation of the human rights of children and adolescents. Emphasis is given to elements of the social-historical construction of childhood in societies, as well as the construction of the legal apparatus that recognizes them as subjects of rights as opposed to the situations to which they are subjected while in the condition of victims exploited by work

Keywords: Child, teenagers, child labor, rights policy.

1 INTRODUÇÃO

Crianças e adolescentes, só muito recentemente, passaram a ser objeto de atenção da sociedade e isso se deve, em grande parte, a uma construção histórica que durante séculos contribuiu para que o mundo dos adultos absorvesse as crianças e adolescentes como iguais, sem lhes fazer qualquer distinção, sem levar em conta que são pessoas em condição peculiar de desenvolvimento.

Essa construção histórica produziu pensamentos, concepções e valores equivocados que justificaram determinadas práticas. Mas a dinâmica da história convém ressaltar, contribuiu, e ainda contribui, para a ocorrência de alterações expressivas.

A mesma história cuidou para que hoje, em função de diversos movimentos da sociedade e do pensamento humano, conheça-se um novo conceito e um novo significado para a infância, com uma dimensão biopsicossocial muito mais abrangente. Esse novo significado permitiu o reconhecimento de crianças e adolescentes como cidadãos, fazendo com que deixassem de ser objeto de interesse, preocupação e ação exclusiva da família e se tornassem responsabilidade da família, da sociedade em geral e do poder público.

Frente às transformações que ocorreram entre os séculos XIX e XX, vislumbra-se a construção de um interesse mais focado na infância, diferentemente dos séculos anteriores; fato que viabilizará um salto: a infância e a adolescência saem de uma condição secundária para ganhar o status de valioso patrimônio nacional, conforme afirma Rizzini (2008). Nessa perspectiva, tratar da criança e adolescente, considerando suas peculiaridades, passa a ser uma questão que ultrapassa o foro privado e passa a integrar a esfera pública.

No Brasil, essas transformações foram percebidas ao final do século XX, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a aprovação, pelo Congresso Nacional, da Convenção sobre o Direito da Criança e a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, ambos em 1990, documentos que se constituem marcos legais de proteção integral da criança e do adolescente, através da promoção e garantia dos seus direitos. (RIZZINI, 2008, p. 24).

Tais instrumentos legais combatem toda forma de violência contra crianças e adolescentes e visam à superação das violações de direitos humanos aos quais vêm sendo submetidas historicamente. Segmentos organizados da sociedade, amparados na legislação vigente, reivindicam a superação de questões como o trabalho infantil, que se constituiu como um problema social no Brasil a partir das primeiras décadas do século XX, com a industrialização, e até os dias atuais mantém aproximadamente 2,5 milhões de crianças e adolescentes brasileiras inseridas nas cadeias produtivas e reprodutivas deste País (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2016), tendo sua força de trabalho explorada e direitos fundamentais suprimidos.

Os avanços na legislação, assim como a promoção de campanhas de combate à exploração do trabalho infantil tendem a reduzir a questão a um dos seus aspectos, que é o próprio trabalho, o que não resolve essencialmente o problema. A superação do modelo de políticas seletivas e qualidade na efetivação das políticas de saúde, educação, segurança pública, trabalho dentre outras para crianças, adolescentes e suas famílias é condição básica tanto para prevenir quanto para erradicar, de fato, o trabalho infantil no Brasil.

Nesse sentido, a problemática do trabalho infantil vem tomando um formato que permite avaliá-la como uma violação dos direitos humanos de crianças e adolescentes, no contexto de uma estrutura de produção e de relações sociais de trabalho que se estabeleceram historicamente, especialmente a partir do surgimento do modo de produção capitalista, na qual estão inseridos o empregador, a criança ou adolescente e a família de origem destes. É preciso, então, levar em conta elementos de caráter econômico e político que são decisivos para a compreensão desse problema.

Tais aspectos amparam a premissa de que a inserção precoce de crianças e adolescentes no trabalho é o resultado da utilização de um modelo de desenvolvimento que mantém a desigualdade social e a condição de extrema pobreza das famílias, obrigando-as a encaminhar, cada vez mais precocemente, seus filhos ao trabalho.

Por figurar como problema inserido no contexto das diferentes expressões da violação dos direitos humanos de crianças e adolescentes, qualquer abordagem sobre o trabalho infantil remete-nos, necessariamente, ao resgate histórico de determinados aspectos socioculturais da infância no Brasil e no mundo, de maneira que se compreendam as diferentes percepções da sociedade acerca da infância e da adolescência, assim como as relações entre infância e trabalho e como o trabalho infantil pôde ser assimilado por determinados setores da sociedade e justificado ao longo de séculos, inclusive na contemporaneidade. É a isto que se propõe o presente texto.

2 SOBRE TRABALHO E INFÂNCIA: considerações iniciais

A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. (BRASIL, 1990, art. 3º).

Depreende-se, do acima exposto, que para se desenvolver plena e dignamente, exercitando suas liberdades e potencialidades, crianças e adolescentes precisam ter asseguradas as condições essenciais para tal desenvolvimento. No conjunto dessas condições se destacam a convivência familiar e comunitária, a educação, o lazer, a moradia, a alimentação e a proteção da sociedade. Tais condições permitirão que se tornem pessoas adultas saudáveis sob os aspectos físico e mental, portanto, em condições de contribuir para a construção de uma sociedade igualitária.

De posse das informações que atentam para as condições fundamentais à proteção integral e pleno desenvolvimento de crianças e adolescentes, inicia-se aqui a discussão acerca das diferentes justificativas para o trabalho infantil, fundamentadas nos variados entendimentos que a sociedade teve e tem acerca da infância e da adolescência. Importa ressaltar que tais aspectos sofrem variações a depender dos grupos sociais analisados, o que os torna relevantes para a compreensão de como foram produzidas as relações entre infância e trabalho e como o trabalho infantil foi facilmente adotado pela sociedade e justificado ao longo de séculos, inclusive na contemporaneidade.

Segundo Freitas (2001, p. 13), “Não é arriscado dizer que a história social da infância no Brasil é também a história da retirada gradual da questão social infantil (com seus corolários educacionais, sanitaristas, etc.) do universo de abrangência das questões de Estado”.

Ao tratar das questões atinentes à infância, Rizzini (2007) afirma que o Brasil guarda em sua trajetória histórica um longo período de exploração da mão de obra infantil, marcado pela presença constante das crianças e adolescentes pobres no mundo do trabalho, a serviço do interesse dos adultos que podiam ser seus proprietários quando estas eram escravas, patrões quando órfãs, pois, muitas delas, quando abandonadas e desvalidas, tornavam-se operárias no início da industrialização capitalista; boias frias no final do século XIX, a serviço dos grandes proprietários de terras; trabalhadores nas unidades domésticas de produção artesanal ou agrícola; e, ainda, nas casas de famílias e nas ruas garantindo sua própria manutenção e de sua família.

A história e o conceito de infância são, portanto, frutos de uma construção elaborada pelos adultos, de acordo com a posição social que estes ocupavam juristas, médicos, policiais, legisladores comerciantes, padres, educadores ou outros definiam, a partir de suas perspectivas, o que era a infância e quais seus direitos e deveres.

Daí compreendermos porque nos vários momentos da história a criança pôde ser órfã, abandonada, delinquente, escrava, menor, trabalhadora ou ainda ingênua e pura e até promessa de futuro. “Justamente por isso, é mais fácil tratar historicamente da infância do que das crianças em si, porque a infância é em parte definida pelos adultos e por instituições adultas.” (STEARNS, 2006, p. 13).

De acordo com Priore (2007, p. 84), “Há pouquíssimas palavras para definir a criança no passado. Sobretudo no passado marcado pela tremenda instabilidade e a permanente mobilidade populacional dos primeiros séculos de colonização”. Expressões como meúdos, ingênuos, infantes eram comumente utilizadas àquela época para referir-se às crianças. Ainda de acordo com a autora, documentos referentes à vida social na América portuguesa registram o uso de tais expressões dirigidas às crianças, denotando a evidência de que, no coletivo da sociedade, a infância era “[...] um tempo sem maior personalidade, um momento de transição e porque não dizer, uma esperança.” (PRIORE, 2007, p. 84).

O século XVIII demarca um momento em que não apenas o conceito de infância ganha contornos mais bem delineados, mas também uma nova construção histórica se inicia para crianças e adolescentes. Os reflexos de tais mudanças permanecem quase intactos até o século XX para, só então, serem efetivamente percebidos, tendo em vista que durante o século XIX o sistema penal aplicava às crianças e aos adolescentes as mesmas leis que eram aplicadas aos adultos, independentemente de suas idades.

A Declaração Universal dos Direitos da Criança (DUDC), documento de proteção aos direitos humanos da criança, aprovada pelos países-membros da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1959, constituiu-se em um instrumento de superação da estreita noção de infância para equiparar os seus direitos ao dos adultos, assegurando-lhes condições legais fundamentais ao seu pleno desenvolvimento físico e mental, como ser humano completo. A partir daí, surgem as bases para a doutrina da proteção integral normatizada no Brasil através da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.

Segundo Nogueira Neto (1999), em 1989, após trinta anos da DUDC, países-membros da ONU subscreveram a Convenção sobre os Direitos da Criança, instrumento normativo que assegura a proteção integral e a participação real, duas prerrogativas maiores das quais a sociedade e o Estado são os guardiões e que devem ser conferidas à criança e ao adolescente na operacionalização da garantia dos seus direitos em geral.

A Convenção sobre os Direitos da Criança reconhece a alteridade de crianças e adolescentes, assim como sua autonomia, mas também reconhece que estes são seres que precisam de pessoas, grupos e instituições responsáveis pelo seu desenvolvimento, pela sua formação, pela promoção e defesa dos seus direitos, não apenas como atendimento imediato de necessidades, vontades e interesses, mas como garantia de direitos humanos. Direitos esses que pressupõem, em certo nível, a participação de crianças e adolescentes como protagonistas de suas histórias, conferindo-lhes responsabilidades de acordo com as suas capacidades, sem descartar os deveres que também lhes são inerentes.

Estudos acerca da infância demonstram que é recente o momento que demarca, na sociedade mundial, a distinção entre crianças, adolescentes e adultos. Mais recente ainda é a compreensão destes como sujeitos de direitos, amparados pela proteção integral e por políticas públicas destinadas às suas necessidades específicas, conforme veremos a seguir.

3 POLÍTICA DE GARANTIA DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

O trabalho infantil, como visto antes, possui causas e efeitos diversos. Além disso, traz consequências sérias para o desenvolvimento físico e psíquico daqueles que estão submetidos à exploração de sua força de trabalho.

No que se refere às políticas públicas de garantia dos direitos de crianças e adolescentes, que poderiam coibir o surgimento de novas vítimas dessa exploração, assim como retirar aquelas que já estão submetidas à violação dos seus direitos, muito ainda precisa ser feito, apesar do aparato legal que já existe no Brasil.

A Constituição Federal (CF) de 1988 e o ECA promoveram a consagração dos direitos gerais e específicos de crianças e adolescentes e viabilizaram a construção de um novo paradigma de gestão desses direitos em uma realidade permeada de novas possibilidades. Segundo o artigo 86º da Lei nº 8.069/1990 - ECA, “A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais, da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.” (BRASIL, 2009, p. 30). É o marco definidor de um modelo de gestão democrática caracterizada pela inserção de novos atores sociais no conjunto de órgãos e entidades que elaboram, deliberam e fiscalizam a execução de políticas, programas e projetos relativos à concretização e preservação dos direitos de crianças e adolescentes.

Segundo Garcia (1999, p. 95),

Esse reordenamento tem uma configuração legal, formal, que deve expressar-se ao longo de um processo em todos os campos da vida social: das organizações governamentais e não-governamentais, das políticas sociais básicas e da organização familiar. Deverá desencadear inúmeras inovações de método e gestão, que de imediato não podemos aquilatar, mas que certamente contribuirão para a construção de uma nova sociedade.

A autora afirma ainda que, em cumprimento ao artigo 87º da Lei nº 8.069/1990 – ECA, constituir-se-á um conjunto articulado de instituições que atuarão a partir de linhas de ação, diretrizes e responsabilidades inerentes à política de atendimento, previamente estabelecidas no artigo 87º, para efetivar os direitos infanto-juvenis.

A política de atendimento aos direitos de crianças e adolescentes ampara-se em um conjunto de diretrizes que, como já foi dito, promoveram um reordenamento institucional proposto a romper com os paradigmas anteriores que se baseavam na estigmatização da menoridade, na doutrina da situação irregular e numa falaciosa proposta de bem-estar do menor.

O artigo 87º do ECA além de definir quais as linhas de ação da política de atendimento, as enumera a partir do caráter mais geral até o mais específico. Costa (1994) as elenca da seguinte forma: políticas sociais básicas, política de assistência social, política de proteção especial e política de garantias.

Segundo o autor a política social básica prevê em seu conteúdo os serviços de prestação pública que são direitos dos cidadãos e dever do Estado, portanto estão direcionados a um amplo conjunto de usuários e se caracterizam pelo caráter da universalidade com o fim de garantir a efetivação direta e imediata dos direitos fundamentais previstos na CF de 1988. Dentre estas se podem destacar as políticas de saúde e educação que, em geral, são as mais requeridas pelos destinatários.

Em se tratando da política de assistência social não se pode afirmar o caráter universal posto que, de acordo com a Constituição de 1988, ela tem uma característica conjuntural, está direcionada àqueles que dela necessitam, o que na sociedade brasileira se traduz em número extremamente expressivo. Dessa forma, teriam acesso aos serviços e programas da política de assistência social visando promover a emancipação social de crianças, adolescentes e suas famílias.

A política de proteção especial está destinada ao conjunto de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade ou risco social, aqueles que estão em situações particularmente difíceis, expostos a condições que os ameacem ou violem sua integridade física, psicológica e moral por ação ou omissão da família, do Estado ou de outros agentes da sociedade.

Essa política envolve uma realidade muito comum no Estado brasileiro e deverá funcionar em condições de oferecer os serviços especiais de prevenção e atendimento às crianças e adolescentes em situação de violência, negligência, maus-tratos, na rua, usuários de substâncias psicoativas, explorados sexualmente, em conflito com a lei e submetidos ao trabalho infantil abusivo e explorador.

Decorre daí a necessidade de um atendimento estruturado, especializado e preparado para identificar os danos físicos e psicológicos, além de ofertar alternativas de reversão do problema às crianças e adolescentes vitimados. Observa-se que os serviços de que carecem as crianças e adolescentes da proteção especial não poderão ter efetividade se funcionarem isolados; há uma necessidade premente de que estejam articulados às políticas sociais básicas e à política de assistência, já que o segmento que mais se encontra na situação de vulnerabilidade social é justamente aquele que figura como público da assistência e que teve seus direitos básicos negados.

Por fim, apresenta-se a política de garantias. Esta, segundo Costa (1994), atua na lacuna existente entre as prerrogativas legais e a concretude da realidade com o fim último de aproximar essas duas dimensões da vida social. É responsável pela defesa jurídico-social dos direitos individuais e coletivos de crianças e adolescentes.

Fazem parte do rol de instituições responsáveis pela defesa desses direitos o Juizado da Infância e Adolescência, o Ministério Público (MP), a Defensoria Pública e órgãos de segurança pública, criados para garantir, assegurar e manter o respeito de crianças e adolescentes, se necessário, punindo quem os transgredir. Destacam-se ainda nesse conjunto os conselhos de direitos, os conselhos tutelares, os centros de defesa, os fóruns e outros diferentes atores sociais que atuam na defesa e garantia dos direitos desse segmento.

Para Costa (1994, p. 42),

Mais do que justapor instâncias e níveis de gestão, a política de atendimento inscrita no Estatuto busca conferir organicidade ao conjunto de ações governamentais ou não, em favor da infância e da juventude por meio de uma reconfiguração das diversas modalidades de intervenção presentes na sociedade e, principalmente, no ramo social do Estado brasileiro.

Além dos órgãos acima citados, farão parte do Sistema de Garantia de Direitos, a família, as organizações da sociedade (instituições sociais, associações comunitárias, sindicatos, escolas, empresas), os Conselhos de Direitos, Conselhos Tutelares, Centros de Defesa, entre outros.

O artigo 88º do ECA estabelece as diretrizes de natureza politico-administrativa para a construção do Sistema de Garantia de Direitos, orientando as ações a serem adotadas pela administração pública e pela sociedade civil organizada. As principais diretrizes propostas pelo Estatuto para a construção do Sistema são a municipalização e a descentralização político-administrativa.

A construção da política de atendimento aos direitos de crianças e adolescentes tem na participação popular um pressuposto básico, de onde decorre a proposta de municipalização, que garante o atendimento no local em que vivem. Segundo Lima (apud CUSTÓDIO, 2006), essa proposta envolve mudanças radicais no modo de pensar e agir, nas concepções sociais, políticas, jurídicas, éticas e administrativas dos agentes públicos e da sociedade civil. Para o autor, o princípio da descentralização político-administrativa deve se transformar em um efetivo instrumento jurídico promotor das mudanças exigidas pelo novo direito no modelo de gestão.

O ECA propõe, assim, o estabelecimento de um modelo de cooperação e distribuição de competências entre União, estados e municípios, que envolverá ainda organizações não governamentais e a sociedade civil organizada. Estabelece ainda como diretrizes a criação de Conselhos de Diretos da Criança e do Adolescente em nível nacional, estadual e municipal, tendo em vista o entendimento de que o âmbito local e comunitário é o mais profícuo à promoção de direitos da infância e adolescência. Proposta que presume, consequentemente, a organização de uma rede de serviços de responsabilidade compartilhada por todos os entes políticos da federação.

O Sistema de Garantia de Direitos funcionará então a partir de três eixos basilares, a promoção, a defesa e o controle social. Cada um desses eixos congregará um grupo de instituições diferentes que realizarão tarefas específicas, mas articuladas aos demais eixos, já que um sistema prevê integração entre as partes.

Surge como diretriz da política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente a integração operacional de órgãos como o Judiciário, o MP, a Defensoria Pública e Delegacias Especializadas. Esta integração operacional tem por meta a garantia da agilidade no que tange a questões que envolvam os direitos das crianças e dos adolescentes, assegurando-se, com isso, o princípio constitucional da prioridade absoluta.

A participação e o controle social também são diretrizes significativas do Sistema de Garantias de Direitos da Criança e do Adolescente. Por isso está distribuída de forma equitativa a responsabilidade pela promoção dos direitos da criança e do adolescente entre a família, a sociedade e o Estado. No sentido de viabilizar a integração destes três protagonistas e promover a efetivação da política de atendimento ao Estatuto da Criança e do Adolescente foram criados órgãos do poder público e da sociedade civil, com papéis definidos, capazes de atender as diretrizes acima apresentadas. São eles: os Conselhos de Direitos, os Conselhos Tutelares, as Delegacias Especializadas, as Defensorias Públicas, as Varas e Promotorias Especializadas da Infância a da Juventude e os Centros de Defesa da Criança e do Adolescente.

Esse conjunto de órgãos, atuando de forma integrada, corporifica o Sistema de Garantias de Direitos da Criança e do Adolescente.

Não há como as leis, normas, acordos e compromissos terem efetividade sem que sejam absorvidas pela sociedade e, consequentemente, sem que sejam promovidas mudanças comportamentais na sociedade. Analisar constantemente o conjunto de documentos e normativas inerentes aos direitos de crianças e adolescentes e fazer com que estes sejam compreendidos e respeitados por toda a sociedade são questões fundamentais. Mas o mero conhecimento das leis, normas e outros documentos, não é o elemento suficiente para as mudanças.

Paralelo a tudo isso, é necessário garantir o efetivo cumprimento desse aparato legal, juntamente com a implementação de reformas políticas e econômicas na estrutura social, de maneira que o trabalho infantil se torne completamente desnecessário em qualquer circunstância. Constata-se, dessa forma, que sem a construção de novos modelos de organização da sociedade, que não estejam pautados na competitividade, na superprodução, na exploração do trabalho e, consequentemente, na desigualdade, não é possível alcançar a erradicação do trabalho infantil em suas variadas modalidades.

4 CONCLUSÃO

A colonização se configura como marco histórico de instalação da exploração do trabalho no Brasil e, consequentemente do trabalho de crianças e adolescentes. Essa prática estende seus tentáculos até a contemporaneidade, causando danos extremamente prejudiciais e impeditivos do pleno desenvolvimento da sociedade brasileira, haja vista a desigualdade socioeconômica que impera no país e que promove a concentração de riquezas em poucas mãos e a geração de pobreza e miséria para uma imensa parcela da sociedade.

As tradicionais formas de exploração que vitimaram crianças e adolescentes no passado permanecem evidentes de diferentes formas até os nossos dias. Aos indígenas, aos negros escravizados e aos pobres em geral coube carregar o estigma do trabalho como possibilidade de sobrevivência e de superação da condição de pobreza. Condição esta partilhada pelas gerações atuais como herdeiras da exploração e da desigualdade social disseminada em todo o país, mas que continua a afetar os segmentos de crianças e adolescentes empobrecidos.

Apesar dessa herança que nega completamente às crianças e adolescentes trabalhadoras o acesso a direitos específicos voltados ao segmento infanto-juvenil, a história registra movimentos da sociedade desencadeados pelo interesse inverso. Ações permanentes são desenvolvidas, em âmbito nacional e internacional, com o fim de reconhecê-los como responsabilidade do Estado, da sociedade e da família; como sujeitos de direitos e dignos de respeito.

Reconhecemos que o condicionante econômico é um dos principais elementos motivadores da inserção de crianças e adolescentes no mundo do trabalho. Por trás desses pequenos trabalhadores, existem famílias nas quais as pessoas adultas estão, em geral, desempregadas e desassistidas pelas políticas públicas. Tornam-se seres humanos desprovidos das condições básicas para sobrevivência, vitimados por fenômenos políticos, econômicos e sociais que sequer conseguem compreender, mas que se espraiam globalmente afetando todo o planeta e, neste caso, de forma particular, aqueles que encaminham seus filhos para o mundo do trabalho como alternativa à miséria em que estão mergulhados.

Agregado ao condicionante econômico está também o elemento cultural que justifica a inserção precoce no trabalho com base no entendimento de que o trabalho forma um bom caráter, afasta os pequenos trabalhadores de situações de violência e os educa para o futuro. Os dois elementos aparecem constantemente como justificativas para o ingresso das crianças e adolescentes no mundo do trabalho em condições que são absurdamente exploradoras, violentas e degradantes.

Para as famílias empobrecidas, a prioridade imediata nesses casos não é a conquista de ascensão social. Em primeiro lugar, está a necessidade de aumentar a renda familiar, garantir a sobrevivência de maneira digna e melhorar as condições de vida, pautando-se no trabalho e no seu valor moral.

De acordo com Sarti (2005 apud OLIVEIRA, [20--?]), a busca pelo aumento dos ganhos é feita dentro de um projeto coletivo de melhorar de vida, concebido dentro da lógica de obrigações familiares. A atividade de trabalho ganha caráter positivo, não apenas por seu apelo econômico, mas também devido ao seu valor moral, que é o mais enfatizado. Por meio do trabalho, as crianças e adolescentes serão moralmente reconhecidos como virtuosos, haja vista o seu empenho em garantir o sustento da família honestamente.

Essa é uma realidade divergente da proposta de proteção integral da infância e adolescência que agrava ainda mais o atraso social ao qual estão submetidas à medida que impede que a infância e a adolescência pobres tenham perspectivas de superação da pobreza e possam usufruir de espaços que lhes são garantidos legalmente, como a família e a escola.

O acesso aos direitos previstos legalmente é condição fundante para que crianças e adolescentes tenham oportunidade de usufruir de crescimento e desenvolvimento integral e assim se preparar para enfrentar a vida em uma conjuntura de igualdade com os que não foram submetidos ao trabalho precoce. O trabalho infantil é uma prática violadora dos direitos humanos e vai de encontro à legislação brasileira que preconiza a proteção integral e a prioridade absoluta para crianças e adolescentes; precisa, portanto, ser combatido e erradicado, em vez de justificado e tolerado como alternativa às condições adversas a que vem sendo submetida tradicionalmente a infância pobre no Brasil.

A garantia de acesso aos seus direitos permite que as famílias das crianças e adolescentes trabalhadoras tenham condições sociais e econômicas para manter a autonomia, para garantir o provimento e o desenvolvimento pleno dos seus membros, além de reforçar os laços familiares.

A compreensão de toda a extensão, de todos os males e de todas as consequências do trabalho infantil exige maiores investimentos em pesquisas, estudos e produção de conhecimento que gerem dados e informações suficientes para balizar e encaminhar discussões, debates e proposições com vistas ao combate e à superação do trabalho infantil no Brasil.

Paralelamente, o poder público que tem por dever de ofício promover a efetividade e a amplitude das políticas públicas necessárias ao atendimento das demandas da sociedade; precisa ser permanentemente cobrado e monitorado, de forma que os problemas oriundos da carência de acesso a essas políticas não se configure motivo para justificar a exploração de mão de obra infantil no trabalho.

O trabalho infantil é um problema de grandes dimensões e com um amplo espectro de variáveis que o promovem. Apesar das dimensões do problema do trabalho infantil no Brasil, é possível afirmar que à medida que essa realidade se torna conhecida, as possibilidades de combate e superação de tal prática, que dependem de ações do Estado e da sociedade, vão se ampliando posto que um maior número de pessoas passa a se comprometer com a proteção integral de crianças e adolescentes e com o controle social das ações do Estado relativas a este segmento da sociedade. É dessa forma que a história dos direitos humanos da infância e adolescência vai sendo construída.

REFERÊNCIAS

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