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A REVOLUÇÃO RUSSA E OS MOVIMENTOS DE RESISTÊNCIA NA AMÉRICA LATINA
A REVOLUÇÃO RUSSA E OS MOVIMENTOS DE RESISTÊNCIA NA AMÉRICA LATINA
Revista de Políticas Públicas, vol. 22, pp. 305-326, 2018
Universidade Federal do Maranhão
Recepção: 09 Março 2018
Aprovação: 09 Maio 2018
Resumo: Este texto discute a influência da Revolução Russa de 1917 nos movimentos de resistência na América Latina. Procura refletir como a experiência da Revolução Socialista de Outubro de 1917 reacendeu as esperanças das Revoluções na América Latina alimentou e suscitou movimentos anticapitalistas e de resistência ao imperialismo no continente .
Palavras-chave: Revolução, movimentos revolucionários, anticapitalismo, antiimperialismo.
Abstract: This text discusses the influences of the Russian Revolution of 1917 on resistance movements in Latin America. Seeks to reflect how the experience of the October Socialist Revolution of 1917 rekindled the hopes of Revolutions in Latin America fed and raised anti-capitalist and imperialist resistance movements on the continent.
Keywords: Revolution, revolutionary movements, anti-capitalism, anti-imperialism.
1 INTRODUÇÃO
O ano de 1917, em meio ao encrudescimento de um golpe jurídico-midiático que ameaça a jovem democracia brasileira e a perda de direitos dos trabalhadores, comemorou-se, em quase todo o país, o centenário da Revolução Russa, inegavelmente um dos grandes feitos da humanidade. Eric Hobsbawm a descreve como o maior legado para a humanidade, talvez maior que a Revolução Francesa, no século XIX. Pois se “[...] as ideias da Revolução Francesa, como é hoje evidente, duraram mais que o bolchevismo, as consequências práticas de 1917 foram muito maiores e mais duradouras que as de 1789.” (HOBSBAWM, 1995, p. 62). John Reed (1967, p. 56), descreve de forma apaixonada os dias que abalaram o mundo: “[...] Enquanto isso, por todos os cantos ao redor dessa gente, a grande Rússia estava em trabalho de parto para dar à luz um mundo novo”. A efervescência revolucionária tomava conta de toda a Rússia: aprendia a ler e lia, política, economia, história, “[...] porque o povo desejava saber” (REED, 1967, p. 56). A sede de conhecimento que varria a Rússia, nesse momento, não se “[...] tratava de frivolidades, de livros de História falsificada, de religião diluída, de ficção barata que corrompe - eram textos de teoria social e econômica, dissertações, filosóficas, as obras de Tolstoi, Gogo e Gorki.” (REED, 1967, p. 56-57).
Ainda sobre a educação, há uma orientação da atividade educativa que resumidamente busca o poder autenticamente democrático num país onde imperem o analfabetismo e a ignorância deve fixar como seu primeiro objetivo a luta contra esses flagelos (Lenin). No curto prazo, busca-se suprir o analfabetismo,
[...] organizando uma rede de escolas que atendam às exigências da pedagogia moderna; deve instituir o ensino para todos obrigatório e gratuito, e criar, ao mesmo tempo, toda uma série de escolas normais e institutos de formação de mestres, capazes de em muito pouco tempo preparar o possante exército de professores necessários para instruir toda a população Rússia (COMISSÃO EXECUTIVA PARA O CONSELHO DOS COMISSÁRIOS DO POVO apud REED, 1967, p. 271).
Para Hobsbawm (1995, p. 63) “Durante grande parte do Breve Século XX, o comunismo soviético proclamou-se um sistema alternativo e superior ao capitalismo, e destinado pela história a triunfar sobre ele [...]”.
O fato é que a Revolução Russa mudou radicalmente o mundo. A sua política internacional pode ser entendida como uma “[...] luta secular de forças da velha ordem contra a revolução social, tida como encarnada nos destinos da União Soviética e do comunismo internacional, a eles aliada ou deles dependente.” (HOBSBAWM, 1995, p. 63). Não pode ser pensada como uma luta nacional, embora a sua vitória proporcionou a formação de inúmeros estados-nação (e o fim também).
No início do ano de 1917, o país está imerso numa crise econômica: todos os dias formam-se filas intermináveis em busca de alimentos. Ainda, mergulhado numa guerra, perdendo seus soldados no front. (TROSTSKY, 1979). Foi na
[...] sequência da crise que a desorganização do exército atinge seu apogeu e se formam alianças mais fortes e mais coerentes entre os soldados, os operários — meio em que as ideias bolcheviques avançam — e os camponeses. [...] O exército se funde com a sociedade, que se arma [...] As manifestações também são armadas. Os fuzis despontam à frente da multidão que se alastra pelas ruas. Como em toda revolução, a massa, à maré humana, está no centro dos eventos e invade o espaço. Desfila, reivindicativa, sobeja, como em fevereiro, no Palácio Tauride, reúne-se em assembleia e depois, como de hábito, continua simplesmente a tomar as ruas de Petrogrado, agarrando-se aos bondes, cuja circulação barulhenta marca o ritmo da vida da cidade. A multidão ora aparece estática— os homens parecem imóveis sob suas boinas—, ora agitada— mãos se estendem para apanhar panfletos ou jornais—, mas nunca indiferentes (HOUZEL; TRAVERSO, 2009, p. 115-116, grifos nossos).
Reed (1967, p. 270) descreve alguns decretos que são publicados pelo Comissário do povo, destacamos dois deles: o primeiro, diz respeito ao seguro social
O proletariado da Rússia inscreveu entre suas reivindicações a promessa de um sistema completo de seguro social para os assalariados em geral, assim como para os pobres das cidades e dos campos. O governo do czar, os grandes proprietários, os capitalistas e, depois deles, o governo de coalizão e de conciliação, decepcionaram as aspirações dos trabalhadores no tocante o seguro social.
O governo dos operários e dos camponeses, apoiados nos sovietes dos deputados operários, soldados e camponeses, comunica à classe operária da Rússia e aos pobres das cidades e das aldeias que vai imediatamente preparar uma legislação de seguro social, baseada nas seguintes fórmulas propostas pelas organizações do trabalho:
1. Seguro para todos os assalariados sem exceção, assim como para todos os pobres urbanos e rurais;
2. Seguro para cobrir todos os tipos de perda da capacidade de trabalho, tais como doença, fraqueza, velhice, parto, viuvez, orfandade e desemprego
3. Todas as despesas com o seguro ficam a cargo do empregador
4. Indenizações pelo menos do valor dos salários completos em todos os casos de perda da capacidade de trabalho e de desemprego
5. Controle dos próprios trabalhadores sobre todas as instituições ligadas ao seguro
Em nome do Governo da República da Rússia, o Comissário do Povo para o Trabalho
Alexandre Shiliapnikov.
O segundo decreto diz respeito à educação popular. Diz o decreto
[...] No domínio da educação, todo poder autenticamente democrático, em um país onde imperem o analfabetismo e a ignorância, deve fixar como seu primeiro objetivoa luta contra esses flagelos. Deve, nos mais curtos prazos possíveis, suprimir inteiramente o analfabetismo, organizando uma rede de escolas que atendam às exigências da pedagogia moderna; deve instituir o ensino para todos obrigatório e gratuito, e criar, ao mesmo tempo, toda uma série de escolas normais e institutos de formação de mestres, capazes de em muito pouco tempo preparar o possante exército de professores necessários para instruir toda a população da imensa Rússia [...]
Descentralização: A comissão do Estado para a Educação Popular não é de modo nenhum um poder central a governar as instituições de instrução e educação. Pelo contrário, todo o trabalho com as escolas deveria ser transferido para os órgãos do governo autônomo local. O trabalho independente dos operários, soldados e camponeses, no sentido de criar sua própria iniciativa organizações culturais e educacionais, deve receber plena autonomia, tanto de parte do Estado como dos centros municipais.
O trabalho da Comissão do Estado servirá como um elo e uma ajuda para organizar recursos de apoio material e moral às instituições municipais e privadas, particularmente àquelas com um caráter de classe firmado pelos operários.
O Comitê de Estado para a Educação Popular: Toda uma série de preciosos projetos de lei que foi elaborada desde o início da Revolução pelo Comitê do Estado para a Educação Popular, um organismo razoavelmente democrático quanto á sua composição, rico em especialistas.
[...] A comissão considera como sua tarefa prioritária prestigiar o professor e, antes de mais anda, aqueles muito pobres que, no entanto, quase se pode dizer que são os que dão a contribuição mais importante para o trabalho da cultura: os professores do ensino primário. Suas justas reivindicações devem ser satisfeitas imediatamente e custe o que custar. [...] Seria uma vergonha conservar na pobreza os professores da esmagadora maioria do povo russo.
Mas uma democracia verdadeira não se pode dar por satisfeita com a simples alfabetização, com a simples instrução elementar para todos. É preciso que ela tome a si o propósito de organizar e estender igualmente a todos o ensino subsequente, escalonado em vários graus. O ideal é: instrução igual e se possível do mais alto grau, para todos os cidadãos. Na medida em que essa meta ainda não foi alcançada para todos, é preciso que a transição natural até a universidade dependa inteiramente das aptidões do aluno, e não dos recursos de sua família.
O Comissário do Povo para a Educação
A. V. Lunatcharsky (apud REED, 1967, p. 271-3).
Estes dois decretos dão um panorama ligeiro da efervescência na sociedade Russa revolucionária.
Também no campo das artes, a Revolução Russa, provocou uma transformação. Nas palavras de Hobsbawm (2013, p. 251)
O passado estava morto. A arte e a sociedade poderiam ser reconstruídas. Tudo parecia possível. O sonho de vida e de arte, o criador e o público, não mais separados ou separáveis, mas unificados pela transformação revolucionária de ambos, agora poderiam ser concretizados todos os dias, nas ruas, nas praças, por homens e mulheres que também eram criadores, como seria demonstrado nos filmes soviéticos com sua desconfiança (inicial) contra actores profissionais.
Ou,
Quando se constatou a vitória sobre a ordem e as pessoas que representavam a velha “Rússia”, ficou evidente que a revolução não era somente uma reviravolta na política. Seu sentido e seu significado eram claramente muito mais profundos e multifacetados. Tratava-se não apenas do estabelecimento de uma ou outra ordem política, mas da produção de novas formas, de uma vida social diversa e do ajuste dos padrões culturais diferentes ou Antigos.Ficou claro que a Revolução Russa marcava o começo de uma revolução do espirito (VIGÓDSKI, 2017, p. 102).
Enquanto o novo não irrompe com toda força, mesclam-se o novo e o velho. Continua Vigódski (2017, p. 105)
Saibamos que a cultura não se constrói do nada e que os valores culturais não surgem do vazio. As conquistas da velha cultura não podem ser destruídas enquanto em seu lugar não houver algo de novo. É por esse motivo que, quando estamos na fronteira entre duas culturas, sempre testemunhamos uma mescla. Separar o que pertence a somente uma é quase impossível.
[...] Mas é preciso olhar de frente e penetrar mais fundo — o otimismo sempre é mais profundo do que o pessimismo— para que observemos os brotos da cultura e o renascimento do espirito. Apesar de tudo, eles conseguem arrojar-se através do solo sangrento coberto de destroços.
Um breve, mas necessário esclarecimento do tipo de Estado que está sendo gestado com a Revolução Russa. Lênin (2017, p.196) dá a direção desse Estado em construção:
[...] Referimo-nos ao Estado do tipo da Comuna de Paris, que substitui o exército e a políica separados do povo, com o armamento direto e imediato do povo. A essência da Comuna, caluniada por escritores burgueses, reside nisto, estes, inclusive, atribuíam equivocadamente a ela, entre outras coisas, a intenção de “implantar imediatamente o socialismo”.
A revolução russa começou a criar, primeiro em 1905, e logo em 1917, um Estado precisamente desse tipo. Uma República dos Sovietes de Deputados Operários, Soldados, Camponeses etc., reunidos na Assembleia Constituinte dos representantes do povo de toda a Rússia, ou no Conselho dos Sovietes, etc. é o que já está sendo realizado na vida de nosso país, agora neste momento, por iniciativa de um povo de bilhões de homens que cria a democracia sem autorização prévia, à sua maneira, sem esperar que os senhores professores democratas-constitucionalistas escrevam seus projetos de lei para criar uma república parlamentar burguês, e sem esperar, tampouco, que os pedantes e rotineiros da “social-democracia” pequeno-burguesa como os senhores Plekhanov ou Kautsky, renunciem a suas tergiversações com a teoria marxista do Estado.
A realização da Revolução Russa visava trazer a revolução do proletariado mundial. Embora, não se realize dessa forma, e a Rússia soviética ficasse comprometida, por uma geração com um isolamento e atraso, as opções para seu desenvolvimento estavam determinadas. Ela fomentou uma onda de Revoluções que
[...] varreu o globo nos dois anos após Outubro e as esperanças dos aguerridos bolcheviques não pareceram irrealistas. (“Povos, escutem os sinais”) era o primeiro verso do refrão da “Internacional”, em alemão. Os sinais vieram, altos e nítidos e Petrogrado e — depois que a capital foi transferida para uma localização mais segura em 1918— Moscou e foram ouvidos onde quer que atuassem movimentos trabalhistas e socialistas, independentemente de sua ideologia e mesmo além. “Sovietes” foram formados por empregados da indústria do tabaco em Cuba, onde poucos sabiam onde ficava a Rússia. Os anos de 1917-1919 na Espanha vieram a ser conhecidos como o “biênio bolchevique”, embora a esquerda local fosse anarquista apaixonada, ou seja, politicamente no pólo oposto ao de Lenin Movimentos estudantis revolucionários irromperam em Pequim (1919) e Córdoba (1918) logo espalhando-se pela América Latina e gerando líderes revolucionários. (HOBSBAWM, 1995, p.71).
O continente latino-americano viveu nestes primeiros anos do século XX, uma onda de movimentos de resistência, de revoluções; de greves, movimentos intensos e apaixonantes.
2 REVOLUÇÃO MEXICANA
[...] a causa do México revolucionário e a causa da Rússia constituem uma causa da humanidade e o interesse supremo de todos os povos reprimidos” (Emiliano Zapata).
A Revolução vitoriosa Bolchevique de 1917, encontra o México sacudido pela revolução contra o latifúndio e a opressão do imperialismo. Como observa Hobsbawm (1988, p.396)
A revolução mexicana é significativa pois nasceu diretamente das contradições internas do mundo do império e por ter sido a primeira das grandes revoluções no mundo colonial e dependente em que as massas trabalhadoras tiveram um papel importante, Pois os movimentos antiimperialistas e os que mais tarde seriam chamados de movimentos de libertação colonial estavam de fato, se desenvolvendo no interior dos velhos e novos impérios coloniais das metrópoles, mas sem contudo ainda parecerem representar uma ameaça séria ao poder imperial.
A Revolução Mexicana permitiu as massas
[...] governar e dirigir seus próprios destinos. No entanto, essa grandiosa e profunda luta revolucionária , levada a cabo ‘pelos de baixo’, foi em última instância, apropriada e dirigida por caudilhos militares de origem pequeno-burguesa, que conquistaram a hegemonia do movimento. (BUSTOS, 2008, p. 146).
Durante a Revolução
A sociedade mexicana viveu realmente crises extraordinárias e experimentou sérias mudanças. Os movimentos camponeses e os sindicatos dos trabalhadores tornaram-se forças importantes. E a Constituição representou um novo respeito aos direitos a uma justiça igualitária e fraterna. (WOMACH, 2013, p. 107-108).
Participaram mais de 25 mil revolucionários lutando pelos mais variados motivos: cargos, negócios, espólios, vingança e, por terra. A insurreição nacional convocada por Madero, se materializou com o perigo de desencadear movimentos camponeses incontroláveis. (WOMACH, 2013). O que de fato ocorre. Madero, uma vez eleito sem grandes contestações dos EUA, avisa que as reivindicações das aldeias teriam de aguardar o estudo da questão agrária. Emiliano Zapata, destaca-se como uma grande liderança “[...] numa guerra de guerrilhas independente para recuperar as terras de suas aldeias. O próprio menoscabo que mostravam pelas mudanças que fossem apenas políticas fortaleceu seu compromisso com uma causa camponesa nacional e ampliou os horizontes de sua estratégia.” (WOMACH, 2013, p. 123).
Estava criado o mito que embalou a luta pela Reforma Agrária, por uma sociedade justa e fraterna por todo o continente.
Pode-se verificar a influência da Revolução de Outubro as ideias de poder soviético entre as massas populares. Em 1920 os mineiros em greve, ocuparam as minas de carvão e organizaram Soviets1; em 1921 os operários das fábricas têxteis da cidade de Pueblo2 e redondezas proclamaram uma República Soviética nacionalizaram a terra e a distribuíram entre os operários. A pressão do imperialismo estadunidense faria com que o México rompesse as relações diplomáticas com a URSS em 1930 numa clara ofensiva contra-revolucionária como denunciou o Partido Comunista do México. Restabelecida em 1936, sob a presidência de Lázaro Cárdenas, anti-imperialista3.
Vimos ressurgir nos anos 1990, o movimento de resistência anti-imperialista e anticapitalista, os neo-zapatistas, com uma grande participação dos camponeses-indígenas. O camponês mexicano “[...] tem elevado seus líderes, heróis, mártires no panteão de seus mitos, o que realimentaria a revolução que viria de novo, depois.” (ALTMANN, 1998, p. 184). Nas palavras do subcomandante4 Marcos (apud ALTMANN, 1998, p. 184-185)
Somos produto de 500 anos de lutas: primeiro contra a escravidão, nas guerras de independência contra a Espanha encabeçada pelos insurgentes, depois para evitar ser absorvidos pelo expansionismo norteamericano, depois, para promulgar nossa Constituição e expulsar o império francês de nosso solo, depois a ditadura porfirista nos negou a aplicação justa das leis de Reforma e o povo se rebelou formando seus próprios líderes, surgiram Villa e Zapata, homens pobres como nós aos quais se negou a preparação mais elementar para assim poder utilizar-nos como carne de canhão e saquear as riquezas de nossa pátria sem importar-lhes que não tenhamos nada, absolutamente nada, nem um teto digno, nem terra, nem trabalho, nem saúde, nem alimentação, nem educação, sem ter direito a eleger livre e democraticamente as nossas autoridades, sem independência dos estrangeiros, sem paz nem justiça para nós e nossos filhos.
3 REVOLUÇÃO RUSSA E A ARGENTINA
Buenos Aires, no momento em que eclode a Primeira Guerra Mundial, era considerada o posto avançado da civilização, foi “[...] beneficiada pela sobrevivência das grandes propriedades nos pampas [...]” (ROCK, 2013, p. 563). Considerada, a Paris, da América do Sul, também tinha uma grande organização dos trabalhadores. 1917, encontra a Argentina governada por um reformista burguês dos radicais que defendiam os interesses da burguesia nacional sem no entanto “[...] realizar nenhuma reforma democrática [...]” e suas tropas não hesitavam em “[...] dispersar as reuniões populares.” (ZORINA, 1952). A eleição de Yrigoyen pela União Cívica Radical em 19165, indicava uma nova era no desenvolvimento do país. No entanto, a eleição de Yrigoyen não assustou os conservadores, como seria de esperar. “Ao aceitar a política eleitoral, parecia que os radicais haviam abandonado a ideia de revolução.” (ROCK, 2013, p. 582). Cabe observar que em 1919, o governo apoiou a reforma universitária, La Reforma, que começou em Córdoba, em 1918. O movimento da reforma começou em Córdoba
Com uma série de greves de ativistas e uma enxurrada de manifestos, organizados por uma nova associação estudantil, a Federación Universitária Argentina. Entre as reivindicações figuravam a representação dos estudantes na gestão da universidade, a reforma da prática de exame e o fim do nepotismo na indicação dos professores. Durante grande parte do ano de 1918, a Universidade de Córdoba e a cidade se viram envoltos num turbilhão. No ano seguinte, as greves estudantis se espalharam para Buenos Aires e La Plata. (ROCK, 2013, p. 586).
Nos anos da Primeira Guerra Mundial
formou-se no Partido Socialista da Argentina uma ala revolucionária de esquerda que desmascarava sistemáticamente a política social-chovinista dos líderes do Partido. Sob a influência direta da Revolução de Outubro esta ala de esquerda intensificou os seus trabalhos e procedeu à publicação de seus órgãos de imprensa (“Bandera Roja”, etc), em cujas páginas manifestavam-se simpatias em relação à revolução russa e se popularizava a doutrina de Marx (ZORINA, 1952).
A revolução de Outubro tem um grande impacto no movimento operário. Como podemos ver pelo depoimento:
Manifestações, paradas e comícios, particularmente em homenagem à Rússia revolucionária, se verificam diariamente. representam um espetáculo majestoso pela sua colossal quantidade de bandeiras... Nos palcos se representam peças de orientação revolucionária e as obras dos chefes da revolução russa se vendem nas ruas e nos bondes (Secretário do Sindicato dos Transportes da Argentina apud ZÓRINA 2007).
Uma greve dos metalúrgicos, em 1918, desencadeia uma grande repressão dos proprietários que agem duramente contra os grevistas, matando centenas deles. Como resposta, em 1919, uma greve geral
[...] espontânea na cidade que posteriormente se estendeu também a outras cidades do país. Duzentos mil operários participaram dos funerais das vítimas dos espingardeamentos. A procissão fúnebre também foi vítima do ataque das tropas e da polícia. As ruas se cobriram de centenas de operários mortos e feridos. Apesar de tudo cem mil pessoas compareceram ao local do enterramento. Quando se iniciou o comício fúnebre as tropas abriram fogo de metralhadoras, com ferocidade incrível e indiscriminadamente, contra milhares de operários, mulheres e crianças. Os operários indignados começaram a invadir as casas que vendiam armas e a levantar barricadas. À noite a reação começou nos bairros operários. Também as sedes dos sindicatos foram atacadas e devastadas. Os líderes anarco-sindicalistas se apressaram em entrar em entendimentos com as autoridades e apelaram traiçoeiramente para as massas no sentido de que cessassem a greve, mas a maioria dos operários não atendeu, porém, a esse apelo. A fúria continuava a lavrar nos bairros operários. Os operários emigrados russos eram perseguidos com particular ferocidade e acusados de fundarem Soviets. Por especial encomenda das autoridades a polícia “descobriu” rapidamente um «Soviet sul-americano de deputados operários chefiado por três operários russos». Os policiais invadiam as residências dos operárias, destruíam a sua parca propriedade e assassinavam pessoas completamente inocentes. Declarou-se o estado de guerra em todo o país. Foi somente a 15 de janeiro que o governo ordenou às autoridades militares que interviessem e fizessem cessar as desordens. Em Buenos Aires foram assassinados cerca de quatro mil operários, mais de dois mil foram atirados às prisões no decurso da «semana sangrenta» (ZÓRINA, 2007).
A Revolução Russa, inspirou a organização e resistência dos operários argentinos.
4 REVOLUÇÃO RUSSA E O BRASIL
Como relata Bandeira (2004), a Revolução de 1905 ecoou nos meios proletários do país, e o jornal operário com o significativo nome Terra Livre6, publica carta de Kropotkin, agradecendo o envio de 4 libras esterlinas para os revolucionários russos. A módica quantia, nos dias de hoje, significava uma pequena fortuna a pensar as condições precárias e os baixos salários que estavam submetidos os trabalhadores. A jornada de trabalho iniciava-se às 6 da manhã com um intervalo de uma hora e terminava somente às 18h. No comércio, este horário poderia chegar até às 20h.
A carta:
Caro Camarada,
Agradeço-te bem fraternalmente — a ti e aos camaradas de São Paulo— o envio de 4 libras esterlinas para os revolucionários russos.
Divido esta soma em duas partes iguais entre os socialistas revolucionários e os anarquistas.
Não, queridos camaradas e amigos, a vossa subscrição não chega tarde demais. A revolução na Rússia não se fará num dia. Ela exigirá dois, três anos para se realizar, como a Revolução Francesa e a Inglesa. Neste momento, sofremos um instante de reação terrível. Mata-se, fere-se, viola-se [...] (apud BANDEIRA, 2004, p. 34).
A Revolução despertava o interesse e a simpatia do proletariado e dos intelectuais brasileiros. Euclides da Cunha destaca que pelo contato da Rússia com a barbaria, somente ela poderia vencer e dominar os impérios tipicamente bárbaros e constituir o núcleo de resistência do bloco ocidental contra a ameaça asiática. A Rússia reaparece no noticiário da imprensa em 1917, com a revolução de fevereiro e com a de outubro (novembro). Discutia-se em todos os lugares: congresso, imprensa, sindicatos e nas ruas. Enquanto na Europa, “O fogo crepitava sob as cinzas da guerra e o proletariado se preparava para a intervir no campo de batalha como força independente, no Brasil, de norte a sul do país, os trabalhadores manifestavam a sua insatisfação e saíam às ruas para a luta.” (BANDEIRA, 2004, p. 70). Eclodia a Greve de 1917, com uma amplitude maior em São Paulo. Sob a direção dos líderes sindicais anarquistas, houve ecos de um levante armado dos operários, rapidamente reprimido pelo Governo.
Os operários de padaria escrevem uma mensagem num jornal,7 a Razão.
É hoje, o dia do sufrágio universal de todo o proletariado como protesto à brutalidade do capitalismo. A magia que toda esta matilha (de patrões) sonhava está sendo banida; a aurora reivindicadora que se estende por toda a Rússia não tardará esse facho luminoso a chegar ao continente americano.O prosseguimento desta guerra é o fim dos castelos do capitalismo. Todas as nacionalidades têm de passar pela mesma fase da Rússia, que é caminho nobilíssimo da grande caminhada. (BANDEIRA, 2004, p. 159-160).
A imprensa, como a de hoje, ocupava um lugar certo nessa disputa. O jornal do Brasil “[...] lamentava que os operários se deixassem arrastar na corrente de doutrinas que absolutamente não podem, pelo menos durante muito tempo ainda, medrar neste país.” (BANDEIRA, 2004, p. 165). A explicação porque os operários não deviam seguir os caminhos dos russos é que “[...] Não há capitalismo (aqui) no sentido rigoroso do vocábulo e onde, por consequência, não se observam as tremendas explorações que obrigam o proletariado a organizar grandes forças de reação em outros países.” (BANDEIRA, 2004, p. 165).
Em 1922 um grupo de operários funda o Partido Comunista do Brasil. Figura ilustre nesse processo, foi Luís Carlos Prestes, que se destaca entre os representantes do setor progressista dos militares. Tenente, envereda pelo sertão do país, a organizar a libertação do país do jugo dos capitalistas, e dos latifundiários. A Coluna Prestes, como ficou conhecida, marchou pelo sertão adentro, relembrada pelos sertanejos como os revoltosos, e na cidade, manifestações entoavam a Internacional:
Animado por um ardente amor à pátria, visava a libertá-la do jugo dos capitalistas estrangeiros e dos latifundiários reacionários. Com este objetivo se tornou, após terminar o curso de engenharia militar, participante ativo do movimento revolucionário no exército, ensinava os seus soldados a ler e a escrever e realizava entre eles a propaganda revolucionária, conquistando o seu amor e a sua confiança. Unidades do exército se levantaram em julho de 1924, numa das maiores cidades do Brasil, sob a direção da oficialidade liberal. Contavam com o apoio dos operários de tendências revolucionárias que exigiam a criação de um governo operário. Nas ruas de São Paulo realizavam-se manifestações em que se cantava a «Internacional. (BANDEIRA, 2004, p. 187).
5 REVOLUÇÃO BOLIVIANA
Irrompe, na Bolívia, em 1952, a revolução proletária: operários fabris, mineiros armados, derrotaram o Estado burguês boliviano. Um país rico e atrasado, sua economia dependia basicamente da mineração e agricultura. A derrota na guerra do Chaco8 (1932-1935) com a humilhação da perda de territórios, causa o desprestígio do Exército, responsabilizado pelo fracasso. É neste contexto que aumenta a organização sindical e em 1937 criam a Central Sindical dos Trabalhadores Bolivianos, fundam o Partido Operário Revolucionário, e em 1941 o Movimento Nacionalista Revolucionário (Ayerb, 2002). Como descreve Martim (2014) “A radicalização que se seguiu à Guerra do Chaco, deu lugar aos governos do chamado ‘socialismo militar’ do Toro e Busch, que apesar de nacionalizar petróleo foram incapazes de resolver qualquer dos problemas enfrentados pelas massas”.
Desse processo, destaca-se a eleição de Victor Estenssoro, da coligação Movimento Nacionalista Revolucionário, Partido Comunista, fundado em 1950. As elites, não reconhece os resultados das urnas e entregam o poder a uma junta militar. Esse fato, desencadeia uma insurreição popular que em três dias derrota o exército e entrega o poder ao vencedor das eleições. As principais medidas do novo governo:
A nacionalização das minas, ao mesmo tempo em que expropria a maior parte do capital estrangeiro investido no país até aquele momento, elimina o poder econômico da oligarquia mineira. Cria-se a Confederação Mineira da Bolívia (Comibol), que concentra no Estado a gestão dos recursos minerais. A reforma agrária acaba com o latifúndio e liquida a oligarquia rural como classe. A democratização da propriedade da terra busca aumentar a produtividade para atingir o auto-abastecimento e melhorar o nível do consumo interno, estimulando a expansão da demanda de bens de consumo manufaturados. O sufrágio universal abre espaço para a participação político-institucional dos analfabetos, que compõem 70% da população. A liquidação do Exército outorga amplos poderes ao novo governo para transitar pelo caminho das reformas sem ter que transigir ante um poder armado fora do seu controle. (AYERB, 2002, p. 98).
O poder real, em abril de 1952 estava nas mãos dos trabalhadores e camponeses, e o poder oficial não tinha força real. Situação semelhante a Rússia
Após a Revolução de Fevereiro de 1917 ou Espanha, depois que os trabalhadores derrotaram o levante fascista, em julho de 1936. Em ambos os casos, os trabalhadores tinham o poder (na forma de sovietes na Rússia, e os Comitês de Milícias Antifascistas, na Espanha), mas ainda havia, a seu lado, o poder oficial (o governo provisório na Rússia e o governo republicano na Espanha). Na Rússia, a situação foi resolvida em favor dos trabalhadores, em menos de nove meses, com a tomada do poder pelos soviéticos, em outubro de 1917. Na Espanha, a situação foi resolvida em favor do governo da república, que gradualmente foi recuperando o poder real, desarmando as milícias operárias e desmantelando qualquer elemento de poder dos trabalhadores já para maio de 1937, que levou diretamente ao triunfo o fascismo na guerra civil. (MARTIM, 2002).
Daí em diante, repete-se o filme: as mudanças estruturais tinham chegado a um limite que não deveria ser transposto. Controlar a desordem, definir um caminho para o desenvolvimento, é a fórmula encontrada para sair do atraso econômico. Ao temer o avanço da participação popular. Paz Estenssoro e Herman Siles Suazo, optam por negociar com os EUA: reestruturam o Exército e passam a receber treinamento nos programas do Pentágono.
No século XXI, ocorre uma outra Revolução. Não sem contradições, mas que elege um indígena presidente do país e com uma participação maior de um povo que sempre foi alijado do poder. Não faltam mobilizações da velha oligarquia que não suportando a presença do povo, preferem governar de costas para ele.
6 REVOLUÇÃO CUBANA
Mais difícil retratar a Revolução Cubana. A que mais desperta paixões e ódios. Alimentou a esperança de mudanças e transformações por todo continente latino-americano. A ideia de soberania nacional, de dignidade do povo que vigora com a Revolução Cubana de 1959. Ao derrotarem a ditadura de Fulgêncio Batista, os revolucionários cubanos liderados por Che Guevara e Fidel Castro, transformaram a história latino-americana e quiçá de todo mundo. Um pouco da história. As lutas nacionais e anti-imperialistas sempre estiveram presentes nesta pequena Ilha do Caribe, ocupada pelos ianques do norte. As contradições acirradas e os reflexos das Revoluções Russa e Mexicana são sentidos e retomados na criação da Federação dos Estudantes Universitários, comandada por Julio Antonio Mela que mais tarde estaria à frente da criação da Confederação Nacional dos Trabalhadores de Cuba e do Partido Comunista (1925). Cuba vive uma crise aguda gerada pelas contradições de seu desenvolvimento histórico de país de gênese colonial. É patente o
Fracasso da burguesia cubana em realizar qualquer processo de modernização capitalista: afasta-se toda proposta de reformas econômicas, políticas e sociais [...]. A solução sempre encontrada foi o pacto entre as elites nacionais, articuladas e subordinadas ao capital internacional, sem jamais eliminar sua marca colonialista em que pese a suas idílicas tentativas nacionalistas, desenvolvimentistas e de capitalismo autônomo. (BARSOTTI; FERRARI, 1998, p. 138- 139).
Em 1959, pondo em execução o programa da revolução: destruição do aparelho burocrático estatal e do exército oficial; reforma agrária, rebaixamento das tarifas dos serviços públicos e de moradia; erradicação do desemprego e analfabetismo; desenvolvimento do mercado interno. (BARSOTTI; FERRARI, 1998).
O capital dos Estados Unidos estava presente nas “[...] nas plantações de cana-de-açúcar, nas usinas, nas refinarias de petróleo, no sistema telefônico e no de eletricidade.” (AYERB, 2002, p. 129). Esperava-se nos EUA que os revolucionários impusessem uma orquestração moral, já que Cuba era considerada um grande prostibulo, com jogatina, prostituição para alimentar os desejos dos afortunados estadunidense e que encontravam respaldo nos regimes ditatórias em Cuba. Finada essa fase, deveria convocar as eleições. No entanto, “[...] o esgotamento dos efeitos das medidas iniciais de moralização e melhoria conjuntural da situação econômica dos setores populares, assumem importância as ações de alcance estrutural.
Nesse momento, a ‘boa vontade’ dos Estados Unidos desaparece rapidamente.” (AYERB, 2002, p. 129).
Os EUA ao verem ameaçados os seus negócios e ao perceberem que o processo revolucionário escapa do seu controle, buscam de todas as formas “[...] brecá-lo através do corte da compra de açúcar, pelo armamento e treinamento de contra-revolcuionários, sabotagens efetuadas pela CIA pelo bloqueio econômico e pela imposição de isolamento político continental e mundial a Cuba.” (BARSOTTI; FERRARI, 1998, p. 140). Para ilustrar a atuação da CIA para a derrocada do processo revolucionário em Cuba, vale a pena a longa citação de memorando da agência.
O que aconteceu depois evitou tais desenvolvimentos e deu início a uma cadeia de eventos que levou à aliança de Cuba com a URSS. Isso não é uma decorrência da política e ação dos EUA, mas da personalidade psicótica de Castro. É evidente, segundo o testemunho de seus seguidores na época, que Castro chegou a Havana num alto estado de exaltação equivalente à doença mental. Ele recebeu a adulação das massas, não só em Havana mas também em Caracas (em pessoa) e por toda a América Latina (por meio de relatórios). Mas dos EUA ele ouviu apenas a condenação universal do sumário conselho de guerra e execução dos partidários de Batista na atmosfera de um circo romano. Ele se convenceu de que os EUA nunca entenderiam e aceitariam sua revolução e que ele poderia esperar apenas hostilidade implacável de Washington. Essa foi a conclusão de sua própria mente desordenada, não relacionada a qualquer fato da política ou ação dos EUA. (CIA, 1982, rolo II, doc. 0610, apud AYERB, 2002, p. 128).
O desenrolar deste intrincado novelo, conhecemos. Cuba, resistiu (resiste) ao maior embargo da história. Mas como afirmam Barsotti e Ferrari (2002, p. 140) a cada ato
Reacionário é dada uma resposta revolucionária, pelo povo cubano, que gradativamente afasta do poder os elementos burgueses substituindo-os pelos revolucionários. Frente às incursões políticas, econômicas e militares norte-americanas visando descaracterizar e esvaziar o conteúdo revolucionário de 59, impunha-se um novo processo: a revolução nacional popular e antiimperialista aspirava ao socialismo.
Importante destacar que em abril de 1961, os EUA reconhecerão que:
O caráter do Regime de Batista em CUBA tornou quase inevitável uma violenta reação popular. A cobiça dos chefes, a corrupção do governo, a brutalidade da polícia, a indiferença do regime às carências do povo em matéria de educação, cuidados médicos, moradia, justiça social e emprego, tudo aquilo que em Cuba, como em outros países, era um convite aberto à revolução. (HABEL, 2009, p. 458).
No entanto, essa “[...] lucidez tardia não os impedirá de preparar a derrubada do novo regime de 1959.” (HABEL, 2009, p. 458) Como sabemos várias tentativas de assassinato do líder da revolução cubana, Fidel Castro, e um embargo econômico que dura dezenas de anos.
A Revolução Cubana inspirou as lutas revolucionárias por emancipação em toda a América Latina: é possível libertar-se das amarras do imperialismo, mas além é a luta anticapitalista que alimenta a utopia de um outro mundo possível e realizável.
7 CONCLUSÃO
São inúmeras às influências da Revolução Russa aos movimentos de resistência ao capitalismo e imperialismo na América Latina. Como diz Hobsbawm (1995, p. 89) a
[...] a história do Breve Século XX não pode ser entendida sem a Revolução Russa e seus efeitos diretos e indiretos. Não menos porque se revelou a salvadora do capitalismo liberal, tanto possibilitando ao Ocidente ganhar a Segunda Guerra Mundial contra a Alemanha de Hitler quanto fornecendo o incentivo para o capitalismo se reformar, e também — paradoxalmente— graças à aparente imunidade da União Soviética à Grande Depressão, o incentivo a abandonar a crença na ortodoxia do livre mercado.
A esperança, a utopia é, certamente o que alimenta os homens na luta contra a opressão, a dominação e a humilhação. Neste sentido, a Revolução Russa, deu-nos claramente os sinais de que seja possível concretizar essa utopia. Os avanços dos primeiros anos da Revolução são bastante significativos, a ponto de que a sua destruição enquanto projeto político foi perseguido pelo capitalismo9.
A presença das mulheres foi fundamental neste processo. O dia 23 de fevereiro
[...] primeira data significativa da revolução, ficou marcado na memória como a “jornada das operárias”. Às mulheres que se manifestam, juntam-se os operários das fábricas Poutilov, despedidos após uma greve. A manifestação arrasta empregados de escritório, operários saem de seus bairros para ir ao centro da cidade e afirmar suas reivindicações, pão, trabalho, paz e o fim do czarismo [...] (HOUZEL; TRAVERSO, 2009, p. 121).
Uma verdadeira revolução nas relações de gênero, Outubro ajudou a
Estabelecer uma nova concepção de mulher, ao assegurar e revelar a imagem da mulher como unidade de trabalho útil. Desde os primeiros passos da Revolução de Outubro, ficou claro que a força e a energia das mulheres são necessárias não apenas para o marido e para a família, como se acreditava há milhares de anos, mas para a sociedade, para a coletividade social, para o Estado [...] Não fosse Outubro, ainda seria dominante a visão de que a mulher independente é algo temporário e que o lugar das mulheres est[a na família à custa do marido, que ganha a vida. Outubro mudou diversos conceitos. [...] Somente a Revolução de Outubro admitiu publicamente, por meio de leis e do novo sistema soviético, que a mulher é uma trabalhadora da sociedade e que deve ser reconhecida como um cidadão ativo. A grande mudança na posição feminina na União Soviética gerou um impulso na consolidação das mulheres na luta entre os grupos sociais [...]. (KOLLONTAI, 2017, p. 214-216).
A expectativa era de que o socialismo resolveria o “[...] conflito entre o trabalho e o lar que ainda hoje pesa sobre as mulheres.” (GOLDMAN, 2017, p. 38.). Para isso, a Revolução de Outubro apontava para novas formas de organização da sociedade, nessa nova organização as velhas amarras que prendiam as mulheres aos afazeres domésticos seriam abolidas, porque
O trabalho não remunerado que as mulheres realizavam em casa seria socializado, transferido para a economia maior e executado por trabalhadores assalariados. As pessoas teriam acesso a lavanderias, creches, escolas e refeitórios públicos. O “amor livre” prevaleceria, relações sexuais seriam liberadas das injunções da Igreja e do Estado, e os parceiros seriam livres para unir-se e separar-se unicamente com base em sua inclinação pessoal. A dependência das mulheres em relação aos homens, tanto no seio da família camponesa patriarcal como entre os trabalhadores assalariados, seria abolida. As mulheres se tornariam trabalhadoras assalariadas financeiramente independentes, com igualdade de condições com os homens, As mulheres, não sendo mais dependentes dos homens para o próprio sustento e com a certeza de que seus filhos e familiares estão seguros, estariam livres para perseguir seus objetivos (GOLDMAN, 2017, p. 38).
Em 1918, foi criado o Código da Família que rompe com as “[...] prescrições e injunções patriarcais do período czarista e proclamou uma era de liberdade social sem precedentes.” (GOLDMAN, 2017, p. 41). Com tantos avanços nos anos iniciais da Revolução deparam-se com as dificuldades para o pleno vigor do Código da Família. A guerra, a dura realidade social pós-revolução deixa o país na seguinte situação. Como descreve Goldman (2017, p. 43)
Em 1922, havia cerca de 7,5 milhões de crianças famintas e moribundas na Rússia, vítimas da Primeira Guerra Mundial, da guerra civil e da fome subsequente. Elas vagavam pelo país, “famintas e desabrigadas, roubando, pedindo esmolas e se prostituindo para sobreviver”. [...] O Estado não tinha fundos para socializar o trabalho doméstico, tampouco era capaz de prover todas as crianças desabrigadas que precisavam de cuidados [...].
Ou seja, não foram fáceis os primeiros anos. Além de tudo, o Código da Família ainda se depara com os valores tradicionais dos camponeses em relação a propriedade da terra. A família camponesa era
Patriarcal: com o casamento, a mulher ia morar com a família de seu marido, e seus filhos recebiam direito à terra por meio de seu pai. Se uma mulher quisesse se divorciar do marido, ela não tinha como viver de maneira independente ou manter a custódia dos próprios filhos nas cidades. Seu marido não tinha como extrair pensão alimentícia da propriedade comum familiar. Sob tais circunstâncias, a liberdade concedida pelo direito de família entrava em conflito com as antigas tradições familiares camponesas. (GOLDMAN, 2017, p. 44).
A imagem símbolo da Revolução Russa mostra uma multidão
[...] de silhuetas armadas que, na aurora de 25 de outubro (07 de novembro), toma de assalto o Palácio de Inverno. A fumaça que as do grande portal indica um tiro de canhão; mas os assaltantes avançam correndo, com o fuzil na mão, dispersos; nenhum corpo jaz por terra. Durante várias décadas, essa foto ilustrou, para milhões de homens e mulheres, o ideal de um assalto ao céu necessário e possível (HOUZEL; TRAVERSO, 2009, p. 121).
São centenas de exemplos que poderíamos elencar aqui, que mostram as influências das Revoluções Russa e Cuba nas lutas para (de) emancipação na América Latina. Não é possível dar o passo seguinte sem re-ver seus acertos e erros. Esse necessário e possível que Ernst Bloch, chamará de utopia concreta.
REFERÊNCIAS
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Notas