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SINAIS DO PRESENTE: teoremas da equação política da emancipação no século 21
Revista de Políticas Públicas, vol. 22, pp. 327-346, 2018
Universidade Federal do Maranhão

Mesas temáticas coordenadas


Recepção: 15 Março 2018

Aprovação: 16 Maio 2018

Resumo: O ensaio discute os sinais emancipatórios nas ambivalências do presente. Preliminarmente, elabora um esboço crítico sobre a ideia do socialismo como tomada do poder político. Em seguida, insiste na hipótese que o futuro está em toda a parte das lutas e das alternativas das subjetividades anticapitalistas que ainda insistem num mundo pós-capitalista.

Palavras-chave: Marx, socialismo, Estado, emancipação.

Abstract: The essay discusses the emancipatory signs in the ambivalences of the present. It preliminarily elaborates a critical outline on the idea of socialism as taking political power. Then, it insists on the hypothesis that the future lies throughout the struggles and alternatives of the anti-capitalist subjectivities that still insist on a post-capitalist world.

Keywords: Marx, socialism, State, emancipation.

1 INTRODUÇÃO: ambivalências do presente

Devemos sempre ter em mente que qualquer debate, aqui e agora, é necessariamente um debate no território inimigo: é preciso tempo para desenvolver o novo conteúdo. Tudo que dissermos agora pode ser tomado (recuperado) de nós – tudo, exceto nosso silêncio. Esse silêncio, essa rejeição ao diálogo e a todas as formas de clinch é o nosso “terror”, agourento e ameaçador como deve ser. (Slavoj Žižek).

David Harvey elabora uma equação teórica interessante, como um mapeamento cognitivo explosivo, capaz de caracterizar a universalidade concreta/conflitiva do poder autorreferente do capital e a dialética de suas próprias denegações. Em conformidade com a diretiva de Alain Badiou (2017, p. 56), para quem é necessário “[...] formalizar por nossa própria conta o capitalismo contemporâneo”, Harvey fala na conjunção dialética das contradições fundamentais

- que trata a ontologia do capital como um processo agudo de acumulação infinita de poder e riqueza pelas classes parasitárias -, contradições mutáveis que elabora o axioma da reprodução social do capital e suas vicissitudes -, e as contradições perigosas (HARVEY, 2016) - que envolve o mapeamento cognitivo crítico num paradoxo que somente pode ser resolvido pela superação/suprassunção radical de toda forma de estranhamento/alienação possível.

Quando Marx (2011, p. 69) disse que o “[...] capital é a potência econômica da sociedade burguesa que tudo domina.” ele estava justamente antecipando uma compreensão importante retomada hoje por Deleuze e Guattari (2004, p. 37), ou seja, do capital que tem nele mesmo seu limite infinito, “[...] que não para de tender para o seu limite, que é um limite esquizofrénico”. Assim, a ontologia global do capital funciona a partir da capacidade imanente de incorporação/adaptação das novas demandas sociais à sua lógica propulsora abstrata. Isto é, uma parte de suas denegações pode até ser perigosa, mas não significa que seja decisiva quanto ao bloqueio absoluto do núcleo ontológico determinante do capital-capitalismo1.

Žižek (2012a, p. 100) diz que para o capital, “[...] seu maior objetivo não é satisfazer as demandas, mas criar sempre mais demandas que possibilitem sua contínua reprodução expandida”. Obviamente que pela própria natureza do capital-capitalismo, suas contradições estão estruturadas no processo de seu complexo expansivo e no metabolismo de seu poder, embora seu núcleo alusivo apareça sempre como uma causa distante. A ideia de uma causa distante não significa propriamente ausência de determinação, mas de uma permanência/ implicação que não atua diretamente como o real que existe, mas forma o próprio princípio de distorção da realidade2:

O Real é ao mesmo tempo a Coisa a que é impossível termos acesso direto e o obstáculo que impede esse acesso direto; a Coisa que escapa a nossa apreensão e a tela deformadora que nos faz perder a Coisa. Em termos mais precisos, o Real é, em última análise, a própria mudança de perspectiva do primeiro para o segundo ponto de vista: o Real lacaniano não é apenas deformado, mas é o próprio princípio de distorção da realidade. Esse dispositivo é estritamente homólogo ao dispositivo freudiano da interpretação dos sonhos: para Freud, o desejo inconsciente em um sonho não é simplesmente o núcleo que nunca aparece de modo direto, deformado pela tradução no texto manifesto do sonho, mas o próprio princípio dessa distorção. É assim que, para Deleuze, em uma homologia conceitual estrita, a economia exerce o papel de determinar a estrutura social “em última instância” a economia nesse papel nunca é diretamente apresentada como um agente causal real, sua presença é puramente virtual, é a “pseudocausa” social, mas, precisamente como tal, a causa absoluta, não relacional, ausente, algo que nunca está “em seu próprio lugar” [...] a instância sobredeterminada da “economia” também é uma causa distante, nunca uma causa direta, isto é, ela intervém nas lacunas da causalidade social direta (ŽIŽEK, 2012a, p. 32, grifos do autor).

Daqui decorre a necessidade de um duplo operativo compreensivo, mas também de um deslocamento da subjetividade diante da coisa em si, que combina “[...] a possibilidade de repolitização da economia” e a localização/reposicionamento da “[...] crítica da economia política como ciência do real do capitalismo.” (ŽIŽEK, 2012b, p. 145 e 147). É apenas a partir deste deslocamento compreensivo crítico que a causa distante pode se mostrar como fundadora dos problemas do capital-capitalismo. Em grande medida, o efeito é obliterado como causa, tornando-se a própria manipulação da coisa em si. Não é assim que o populismo de direita consegue tomar para si o objeto legítimo do reclamo popular na etapa do capitalismo de hoje? Não podemos esquecer que “[...] o desígnio fundamental de uma política antidemocrática é e sempre foi, e por definição, a despolitização, quer dizer, a reclamação incondicional de que ‘as coisas regressem ao normal’ e de que cada indivíduo retome o seu posto.” (ŽIŽEK, 2006, p. 35).

O paradoxo está justamente na combinação complexa entre a agudização predatória do capital-capitalismo sobre os povos, populações e territórios, ao mesmo tempo que a causa está sempre distante e deslocada do seu verdadeiro real. O desemprego crônico e estrutural contemporâneo não tem como causa o movimento auto-expansivo do capital, não é um problema da totalidade orgânica do sistema como um todo, mas acontece como causa deslocada, como aparecimento de um corpo estranho à vida social integrada, como no caso dos imigrantes na Europa contemporânea. O aparecimento da coisa estranha produz uma anomia social incômoda, explosiva, não plenamente integrável e identificada como a causa da desestabilização social.

Negri tem razão em tentar nomear a nova etapa da dominação do capital-capitalismo pela hipótese do biocapitalismo, que instituiu “[...] formas de exploração do trabalho em geral e da vida, a vida dos cidadãos, a vida da população.” (NEGRI, 2005, p. 59), numa abordagem abrangente e não fetichista da opressão existente. Segundo Marx (2004, p. 40, grifos do autor), “[...] o capital é, portanto, o poder de governo (Regierungsgewalt) sobre o trabalho e seus produtos [...] o poder de governo do capital sobre o próprio capitalista”.

Não obstante, “[...] todo acesso ao real é também sua divisão.” (BADIOU, 2017, p. 24), o que significa que a cisão política possibilitada pelo acesso ao real se inscreve em torno da ideia hegeliana da populaça, que desmascara absolutamente o formalismo do capital-

-capitalismo, pois aqui “[...] aparece que a sociedade civil-burguesa, apesar do seu excesso de riqueza, não é suficientemente rica, isto é, não possui, em seu patrimônio próprio, o suficiente para governar o excesso de miséria e a produção da populaça.” (HEGEL, 2010, p. 223, grifos do autor). Hegel parece insistir no caráter autocontraditório do capital-capitalismo, em que o excesso de riqueza produzida é homólogo ao excesso de miséria e da populaça, embora num sentido mais largo que a mera condição/privação material estrita:

Devemos notar aqui a fineza da análise de Hegel: ele afirma que a pobreza não é apenas uma condição material, mas também a posição subjetiva de ser destituído de reconhecimento social, e por isso não basta satisfazer as necessidades dos pobres pela caridade pública ou privada – desse modo, eles continuam destituídos da satisfação de cuidar de maneira autônoma da própria vida (ŽIŽEK, 2013b, p. 285).

Então, para além da particularização da causa, Hegel abre caminho para uma autêntica universalidade constitutiva do conflito. A populaça de Hegel assumiu em Marx a materialidade do proletariado. A cisão subjacente ao sistema objetivo de acumulação infinita de riqueza privatizada produz a “[...] indiferença de estamentos” (HEGEL, 2010, p. 199), ou, em linguagem marxista, “[...] é a luta de classes tout court, o real de nossa época.” (ŽIŽEK, 2012a, p. 98, grifos do autor).

Bensaïd fala em “proletarização do mundo” (BENSAÏD, 2008, p. 98) como a imagem capaz de estabelecer a conexão concreta entre a diferença de estamentos própria ao capitalismo existente. Ademais, é “[...] por isso que ‘luta de classes’ é outro nome para o fato de que ‘a sociedade não existe’ – não existe como uma ordem positiva do ser.” (ŽIŽEK, 2012b, p. 158). Com efeito, o aspecto precedente a luta de classes - é quem determina o metabolismo e funcionamento das classes como estratificação social. Como o real só existe a partir da dissolução de um semblante, “[...] o acesso a esse real só pode se dar por meio de uma divisão constitutiva de caráter político.” (BADIOU, 2017, p. 27). Como sentencia Daniel Bensaïd (1999, p. 91) “A luta não é um jogo. Mas um conflito”:

Em outras palavras, não devemos nunca esquecer que, para o verdadeiro marxista, as “classes” não são categorias da realidade social positiva, ou partes do organismo social, mas categorias do real de uma luta política que atravessa todo o organismo social, impedindo sua “totalização”: É verdade que, hoje, não existe um lado de fora do capitalismo; mas isso não deveria encobrir o fato de que o próprio capitalismo é “antagônico”, conta com medidas opostas para continuar viável – e esses antagonismos imanentes abrem espaço para a ação radical. (ŽIŽEK, 2012b, p. 158-159).

Sabemos que o capital-capitalismo se move pelo curto-circuito de suas próprias contradições autorreferentes. Seria um erro imaginar uma totalização consistente do funcionamento/acionamento do seu corpo social, ainda mais pela característica de anomia da forma-mercadoria. Não é sem razão que Žižek (2013a, p. 104) diz que a “[...] lógica totalizante do capitalismo” carrega em si mesma um paradoxo irresolvível, pois “[...] o capitalismo global é necessariamente inconsistente”. A causa distante age como um assombro inconfesso em todas as fissuras dos modos de vida existentes, posto que o capital é o interesse cego que move a acumulação infinita de riqueza abstrata, aprisionando toda vida na abstração unilateral da reificação e privando-a de sua dimensão simbólico-material autêntica.

Hegel (2010) explora uma equação filosófica importante que expressa de maneira dramática toda a ambiguidade da inconsistência do capital-capitalismo. Para ele, a violência contra si é um ato de ruptura com a vontade livre que não pode ser coagida por qualquer exterioridade. O paradoxo pode ser esquadrinhado da seguinte maneira: o que significa ser coagido sem que a vontade livre seja suprimida? Primeiramente, vejamos como Hegel (2010, p. 118, grifos do autor) apresenta o problema:

Enquanto vivo, o homem pode certamente ser subjugado, ou seja, seu aspecto físico e qualquer aspecto exterior estão colocados sob violência de outro, mas a vontade livre não pode em si e para si ser coagida, a não ser na medida em que não se retira ela mesma da exterioridade, em que está retida, ou da representação dela. Apenas pode ser coagido a algo quem quer se deixar coagir.

A primeira ambivalência fundamental do presente é que o capital-capitalismo global produz uma forma de coação compulsiva sobre o indivíduo imediato – que é a própria opressão em estado puro da causa distante sobre todos os seres e coisas -, ao mesmo tempo que empurra aos indivíduos submetidos à coação a responsabilidade de seu fracasso ontologicamente determinado. O processo de governar a si mesmo (DARDOT; LAVAL, 2016) leva à radicalização da concepção ideológica de autoconstrução do sujeito. Isso não poderia ser mais repulsivo. Contraditando tal posição francamente ideológica, que nada mais é que um semblante – “[...] a aparência falsa que se dá por real” -, retomamos Marx (2011, p. 190, grifos do autor) quando diz que:

Por um lado, se esquece que, desde logo, o pressuposto do valor de troca, como o fundamento objetivo da totalidade do sistema de produção, já encerra em si a coação sobre o indivíduo de que seu produto imediato não é um produto para ele, mas só devém para ele no processo social e tem de assumir essa forma universal e, todavia, exterior; que o indivíduo só tem existência social como produtor de valor de troca e que, portanto, já está envolvida a negação total de sua existência natural; que, por conseguinte, está totalmente determinado pela sociedade.

A segunda ambivalência do presente, grosso modo, estaria no impasse em torno da aceitação/incorporação da populaça na totalização autorreferente do capital-capitalismo global. Hegel vai alémde seus predecessores quando foi capaz de identificar uma divisão fundamental na totalidade orgânica do sistema como um todo, no entanto incapaz de identificar o caráter universalizante desta cisão. Mas, se a responsabilização individual como resultado da autoconstrução do sujeito é apenas um semblante, o que seria a populaça senão o real da verdade do núcleo alusivo do sistema dominante? Žižek (2013b, p. 283-284, grifos do autor) interpreta essa ambivalência da seguinte maneira:

Uma lacuna, no entanto, separa a posição de Hegel do cinismo: a aposta hegeliana (utópica?) é que podemos admirar um monarca não por suas qualidades reais, mas por sua própria mediocridade, como representante da fragilidade humana. Mas aqui as coisas se complicam: não seria o excesso no topo do edifício social (rei, líder) suplementado pelo excesso de baixo, por aquelas pessoas que não têm lugar próprio dentro do corpo social, o que Rancière chama de “parte de nenhuma parte” e que Hegel chamou de Pöbel (populaça)? Hegel não levou em conta que a populaça, em sua própria condição de excesso destrutivo da totalidade social, sua “parte de nenhuma parte”, é a “determinação reflexiva” da totalidade como tal, ou seja, a encarnação imediata de sua universalidade, o elemento particular na forma do qual a totalidade social se encontra entre seus elementos e, como tal, o principal constituinte de sua identidade [...] Se Hegel tivesse visto a dimensão universal da populaça, teria inventado o sintoma (como fez Marx, que via no proletariado a encarnação dos impasses da sociedade existente, a classe universal. Em outras palavras, o que torna sintomático o conceito de populaça é ele descrever um excesso “irracional” e necessariamente produzido pelo Estado moderno racional, ou seja, um grupo de pessoas para as quais não há lugar dentro da totalidade organizada, embora pertençam formalmente a ela – como tal, elas exemplificam com perfeição a categoria da universalidade singular (uma singularidade que dá corpo diretamente a uma universalidade, passando por cima da mediação por meio do particular.

Marx já havia dito, de maneira impiedosa, que a “parte de nenhuma parte” poderia ser traduzida pela nadificação social de si, “não sou nada”, ao mesmo tempo que “[...] se afirme como um estamento de toda a sociedade” (MARX, 2010, p. 155 e 154), apresentando-se como o corpo de verdade da universalidade real e concreta. Todavia, a transição/passagem do estamento particular à localização de estamento comum da totalidade social abrangente é realizada mediante uma ruptura/cisão com o semblante.

Badiou (2017, p. 28) apresenta a hipótese: “[...] se o real é acessível como arrancamento de seu semblante próprio, então há necessariamente certa dose de violência no acesso ao real”. Assim, não podemos desprezar a atuação dos afetos políticos na constituição da ação política coletiva. No lugar da negação indeterminada do ressentimento como um afeto político importante, temos que saber distingui-lo do ressentimento inautêntico, reacionário, matéria-prima da agenda do populismo violento da extrema-direita embora Žižek (2006, p. 27) seja preciso quando afirma que “[...] a ideologia fascista ‘manipula’ o desejo popular autêntico de verdadeira comunidade e de solidariedade social contra a competição feroz e contra a exploração”, mesmo que com “[...] a obrigação de incorporar uma autêntica aspiração popular”. Não obstante, o ressentimento autêntico assume uma dimensão política emancipatória, pois ataca o núcleo axiológico da opressão/dominação. Žižek (2014, p. 9) diz que “[...] há violência ativa por trás de qualquer autêntico processo emancipatório”. Para Badiou (2017, p. 44), “[...] se por acaso o real opera uma abertura no semblante, causa imediatamente uma perturbação subjetiva total”. Žižek (2012a, p. 41-42) problematiza, ainda mais, o segundo aspecto da ambivalência do presente no capitalismo de hoje:

Como podemos encontrar um caminho nessa situação confusa? Na década de 1930, Hitler apresentou o antissemitismo como uma explicação narrativa dos problemas vividos pelos alemães: desemprego, decadência moral, descontentamento social... Por trás disso tudo estariam os judeus, isto é, a evocação da “conspiração judaica” deixa tudo muito claro, porque provoca um simples “mapeamento cognitivo”. O ódio que se tem hoje contra o multiculturalismo e a ameaça imigrante não funciona de maneira semelhante? Coisas estranhas estão acontecendo, há colapsos financeiros afetando nossa vida, mas são vivenciados como algo totalmente obscuro – e a rejeição do multiculturalismo introduz uma falsa clareza na situação: são os intrusos estrangeiros que estão perturbando nosso modo de viver... Há, portanto, uma interconexão entre a maré anti-imigração (que está aumentando nos países ocidentais e chegou ao auge com os assassinatos indiscriminados de Anders Behring Breivik) e a atual crise financeira: apegar-se à identidade étnica serve como um escudo contra o traumático fato de estarmos presos no redemoinho da abstração financeira não transparente – o verdadeiro “corpo estranho” que não pode ser assimilado é, em última instância, a máquina infernal autopropulsada do próprio capital.

A dialética da aceitação/incorporação da populaça no corpo social carrega em si mesma a tensão de um corpo estranho, em que [...] o indivíduo só tem existência social como produtor de valor de troca”, como salienta Marx (2011, p. 190). No espectro da ideologia dos dominantes, “[...] a ideia de antagonismo de classe continua a ser um conceito rigorosamente proibido” (MÉSZÁROS, 2011, p. 70), senão quando absolutamente silenciado, descartado, deslocado.

É necessário que o estranhamento entre a localização objetiva e o reconhecimento de si esteja atuando como mediador de uma discordância política permanente. Em seu lugar, o particularismo da sociedade civil alcança relevo em torno de uma identificação política absoluta, isto é, na diferença como elemento decisivo na constituição das identidades políticas. Se o real opera uma cisão radical na realidade existente, o primado da diferença sobre a igualdade não poderia significar outra coisa senão a permanência do semblante sobre o real. Aliás, “[...] o semblante contemporâneo do real capitalista é a democracia.” (BADIOU, 2017, p. 25), espaço simbólico conflitivo cujo primado básico é a diferença. Hegel foi capaz de identificar esse problema com enorme genialidade quando salientou que o universo simbólico-material das diferenças conformaria apenas uma enorme diversidade indiferente, de tal modo “[...] que cada um para si vale sem consideração ao outro.” (HEGEL, 2011, p. 146). Do refugo estratégico - que deslocou a política emancipatória da luta pela igualdade para uma luta afirmativa da diferença - à retomada/reinscrição de uma política emancipatória autêntica no século 21 precisa ser reinventada/atualizada. Não apenas tomar o poder político. Não apenas uma agenda política em torno da “[...] luta por reconhecimento” (HONNETH, 2003, p. 23). Talvez seja necessário pensar que mais do que nunca o comunismo apresenta-se como uma alternativa necessária, embora insuficiente, na impressão das ideias eternas de liberdade, igualdade e dignidade. A hipótese do comunismo é o trabalho duro da política emancipatória no século 21.

2 O QUE QUEREMOS?

Para além do tópos foucaultiano que estabelece a relação entre poder e resistência, lei e transgressão, a linguagem da emancipação social não pode ser pensada senão numa gramática radical que reponha o absoluto hegeliano como momento predominante da política como desentendimento e que, em termos propriamente dialéticos, ultrapasse o presente do capital reificador, posto que “[...] o poder não funciona mais através da enunciação dos objetos de nosso desejo: ele funciona através da gestão da nossa falta; é uma máquina de inscrição social do desencanto.” (SAFATLE, 2017, p. 34). A política emancipatória não pode restringir-se à colaboração desenfreada ou mesmo à paralisia promovida pelo novo desencanto do mundo mesmo quando aparenta resistir/lutar:

A tarefa da política emancipadora está alhures: não em elaborar uma proliferação de estratégias de como “resistir” ao dispositivo predominante a partir de posições subjetivas marginais, mas em pensar as modalidades de uma possível ruptura radical no próprio dispositivo predominante. Em todo o discurso sobre os “lugares de resistência”, tendemos a esquecer que, por mais difícil que seja imaginar isso hoje, os mesmos dispositivos a que resistimos mudam de tempos em tempos. É por isso que, de uma maneira profundamente hegeliana, Catherine Malabou preconiza o abandono da posição crítica em relação à realidade como horizonte último do nosso pensamento, independentemente de que nome seja chamada, desde a jovem “crítica crítica” hegeliana à teoria crítica do século XX. Mas essa posição crítica não consegue cumprir o próprio gesto: radicalizar a atitude crítico-negativa subjetiva em relação à realidade em uma autonegação crítica ampla. Mesmo que o preço seja sermos acusados de “regressar” à velha posição hegeliana, deveríamos adotar a posição autenticamente hegeliana absoluta que, como aponta Malabou, envolve uma espécie de “rendição” especulativa do Si ao Absoluto oniabrangente, mas a inscrição da lacuna “crítica” que separa o sujeito da substância (social) contra a qual ele resiste, nessa mesma substância, como seu próprio antagonismo ou autodistância (ŽIŽEK, 2012a, p. 112, grifos do autor).

O princípio da autonegação crítica ampla significa não simplesmente silenciar diante das pequenas lutas – pois Lukács (2012, p. 186) insiste que “[...] o filósofo não tem, portanto, o direito de lançar um olhar arrogante sobre as pequenas lutas do mundo e de desprezá-las” -, mas imaginar que há uma correlação entre a resistência finita e a manutenção do estado de coisas do “capital permanente universal”3 (HEGEL apud MÉSZÁROS, 2011, p. 65), de tal maneira que é possível dizer que a dialética da luta e da resistência finitas é condição necessária para a estabilização do complexo do sistema como um todo, em que “[...] algumas coisas devem mudar para que tudo continue o mesmo”. A lógica do capitalismo esquizofrênico, no sentido de Deluze e Guattari, zomba dos limites autoimpostos, ampliando sua esfera para o Si como o absoluto frágil da inconsistência própria do capitalismo. Assim: “O capitalismo é obrigado a propor formas de engajamento compatíveis como estado do mundo social no qual está incorporado e com as aspirações dos seus membros que consigam expressar-se como mais força.” (BOLTASKI; CHIAPELLO, 2009, p. 199).

Entretanto, é óbvio que a sentença hegeliana que diz que devemos “[...] agir como sujeito finito” (ŽIŽEK, 2012a, p. 115), que faz de seu engajamento o coração antigo do futuro, esquadrinha a equação política da emancipação no século 21, para além do estatismo burocrático proletário e sua estratégia da emancipação como tomada do poder político, posto que “[...] a democracia socialista não é solúvel no estatismo burocrático” (BENSAÏD, 2008, p. 73).

Lenin esboçou as teses fundamentais da transição socialista do século 20 em torno da tomada do poder político através da revolução violenta proletária que, fundamentalmente, realizaria a “[...] abolição do Estado proletário, isto é, a abolição de todo e qualquer estado.” (LENIN, 2007, p. 39). Grosso modo, toda a tradição política socialista após a Revolução de Outubro girou sua ação e concepção em torno da hipótese do socialismo como tomada violenta do poder político. Todavia, diante dos impasses societários do século 21, da complexidade do fracasso na tentativa de mudar o mundo e da necessidade de retomada da emancipação como horizonte de expectativas das subjetividades radicais, parece necessário não apenas ir além do programa leninista sem qualquer vínculo com alguma denegação reacionária -, mas elaborar um programa prático capaz de vincular as exigências práticas do curto-prazo à necessidade absoluta de erguimento de um novo tempo do mundo. A renúncia, neste caso, ao programa do século 20 significa a necessidade de um novo programa capaz de ser contemporâneo aos problemas/impasses de hoje, como presente provisório, mas da feitura de uma filosofia política do futuro, como o ideal real do comunismo plenamente possível.

O paradoxo da posição de Lenin hoje é que ela parece se assentar sobre postulados não mais seguros, sem garantias, no século 21. Com efeito, a centralidade da política no ideal emancipatório de Lenin carrega em si uma série de problemas ainda mais dramáticos hoje:

A noção de que os ideais da sociedade moderna representam um momento não capitalista daquela sociedade corre paralela à ideia de que existe uma contradição estrutural entre o modo proletário de produzir, como um momento não capitalista da sociedade moderna, e o mercado e a propriedade privada. Esta adota o “trabalho” como o ponto de vista da sua crítica e não tem a concepção da especificidade histórica da riqueza e do trabalho no capitalismo. Portanto, ela implica que a mesma forma de riqueza, que no capitalismo é expropriada por uma classe de proprietários privados, seria apropriada coletivamente e regulada conscientemente no socialismo. Pelo mesmo motivo, ela sugere que o modo de produção no socialismo será essencialmente o mesmo que o do capitalismo; o proletariado e seu trabalho se realização do socialismo. (POSTONE, 2014, p. 88).

A crítica de Postone se fundamenta na ideia de que a tomada do poder político não resolve o problema estrutural das formas de opressão/dominação estritas da sociedade capitalista. O proletários não são dominados apenas em função da expropriação econômica a qual estão submetidos hierarquicamente, pois nesse modelo o capitalismo é entendido “[...] simplesmente como uma forma de dominação de classe.” (POSTONE, 2014, p. 87).

Nesse sentido, “[...] ao se apossar do Estado, a burocracia revolucionária que dirigia o proletariado forneceu à sociedade uma nova dominação de classe.” (DEBORD, 1997, p. 69). Não há propriamente aqui a supressão da opressão/dominação em estado puro, mas a constituição de uma nova modalidade de dominação política de uma classe por outra. Postone (2014) reitera que o capital-capitalismo é uma forma específica de sociedade que se autodesenvolve por um complexo mecanismo de dominação abstrata, de compulsões sociais, sobre as pessoas. A “[...] violência sistêmica fundamental do capitalismo”, insiste Žižek (2012, p. 106), “[...] não é mais atribuível aos indivíduos concretos e suas ‘más’ intenções, mas é puramente ‘objetiva’, sistêmica, anônima”. Por isso parece inconsistente reduzir a necessidade da emancipação social à dimensão unilateral do controle político, quando a “[...] sociedade determinada pelo capital não é simplesmente uma função do mercado e da propriedade privada; não pode ser reduzida sociologicamente à dominação da burguesia.” (POSTONE, 2014, p. 58). Mészáros (2015, p. 134) sentencia que a “[...] dominação do capital sobre o trabalho é de caráter fundamentalmente econômico, não político” e que “[...] a dominação do capital não pode ser quebrada no nível da política”. Assim, quando estamos falando na necessidade do controle social nas sociedades pós-capitalistas, não podemos meramente insistir na centralidade do controle político sobre o complexo do metabolismo social capitalista.

A crítica de Mészáros (2011) a Hegel cabe aqui, embora por razões diversas. Mészáros considera que o sistema de Hegel não apresentava nenhuma alternativa transhistórica às incontornáveis contradições do capital-capitalismo, mesmo diante da descoberta do núcleo explosivo da populaça. O que Hegel (apud MÉSZÁROS, 2011, p. 63) propõe é um “[...] sujeito coletivo real como ator histórico – materialmente identificável e socialmente eficaz”, embora absolutamente “[...] incompatível com o ponto de vista eternizado da ‘sociedade civil’”.

Quando estamos falando da crítica à posição radical da tomada do poder político, não estamos falando dos limites propriamente hegelianos da manutenção da dualidade existente entre Estado e Sociedade Civil, mas da compreensão de um Estado como supersujeito incapaz ontologicamente de elaborar uma alternativa transhistórica duradoura e irreversível ao sistema do capital-capitalismo. Assim, a única violência revolucionária/emancipatória consistente é aquela que altera absolutamente as coordenadas básicas do mundo existente, o que torna sem efeito ontológico qualquer violência política estrita contra as coisas e os seres. Raoul Vaneigem (2003, p. 206) elabora uma belíssima imagem da violência típica emancipatória almejada:

O direito de destruir o que nos destrói expõe-nos ao risco de nos destruirmos a nós próprios, se não confiarmos à vontade de viver o encargo de eliminar aquilo que a contraria. A ofensiva do vivente em todas as frentes da existência é a melhor defesa contra o que perpetua a violência da morte, do ódio, da exclusão, da opressão.

Não podemos obliterar a complexidade, e uma ambiguidade dificílima, das exigências do futuro quando contrastadas com o imediato necessário da ação política radical. Mészáros (2011, p. 284) diz que “[...] o poder político das formações estatais do capital não é arbitrário, mas rigorosamente dominado pelas determinações estruturais materiais do sistema estabelecido de controle sociometabólico”. Postone (2014, p. 58) elabora uma equação bastante interessante demonstrando o primado das compulsões sociais anônimas sobre as pessoas e os impasses de uma alternativa em termos de democracia pós-capitalista, a saber:

Claramente, considerar as organizações estatais da sociedade moderna em termos do desenvolvimento da formação social capitalista, e não como a negação do capitalismo, também reformula o problema da democracia pós-capitalista. Essa análise fundamenta um modo de compulsões e coerções abstratas, historicamente específicas do capitalismo nas formas sociais de valor e capital. O fato de as relações sociais expressas por essas categorias não serem absolutamente idênticas ao mercado e à propriedade privada implica que essas compulsões poderiam continuar a existir na ausência das relações de distribuição da burguesia. Se for assim, a questão da democracia pós-capitalista não pode ser adequadamente posta apenas diante de uma oposição entre as concepções estatais e não estatais de política. Pelo contrário, é preciso considerar mais uma dimensão crítica: a natureza das coerções impostas às decisões políticas pelas formas de valor e capital. Isso quer dizer que a abordagem que começarei a desenvolver neste livro sugere que a democracia pós-capitalista envolve mais do que formas políticas democráticas na ausência da propriedade privada dos meios de produção. Ela exige também a abolição das compulsões sociais abstratas enraizadas nas formas sociais apreendidas pelas categorias marxianas.

Assim, por mais difícil que seja, o exame crítico do programa revolucionário da tomada do poder político não é apenas necessário, mas indispensável se realmente quisermos elaborar a ultrapassagem do presente modo de vida social, sem que caíamos no beco sem saída da repetição dos erros precedentes estratégicos. O erro do reformismo e do socialismo da tomada do poder político foi justamente acreditar, de um lado, na possibilidade de regulação do capital e da pacificação dos conflitos constitutivos do capital-capitalismo e, de outro, em reduzir a necessidade do controle social ao aparato burocrático do estado político.

Mészáros (2011, p. 1015) relembra que “[...] a definição original de Marx, do poder político como manifestação de classe, opõe a realidade da sociedade de classes ao socialismo plenamente realizado, no qual não pode haver espaço para distintos órgãos do poder político”. Uma crítica consistente ao socialismo reduzido ao aparato burocrático do estado político pode ser encontrada na impossibilidade de regulação/controle do poder político do sistema complexo do capital-capitalismo:

Dessa forma, no momento em que a burocracia quer mostrar sua superioridade no terreno do capitalismo, ela confessa ser um parente pobre do capitalismo. Assim como sua história efetiva está em contradição com seu direito, e sua ignorância, grosseiramente mantida, em contradição com suas pretensões cientificas, seu projeto de igualar-se à burguesia na produção de uma abundância mercantil é emperrado pelo fato de tal abundância trazer em si mesma uma ideologia implícita e ter como complemento normal uma liberdade sem limites para multiplicar falsas opções espetaculares, pseudoliberdade que é inconciliável com a ideologia burocrática. (DEBORD, 1997, p. 76-77, grifos do autor).

O problema é como realmente podemos fazer a transição social a uma sociedade pós-capitalista sem cairmos na conhecida degeneração burocrática stalinista? Teríamos que abandonar a posição originária de Marx? É erro da estratégia comunista ou um problema da tática política mediadora?

O verdadeiro objetivo da estratégia defendida por Marx é a divisão social hierárquica do trabalho, que simplesmente não pode ser abolida. Tal como o Estado, ela pode apenas ser transcendida por meio da reestruturação radical de todos aqueles processos e estruturas sociais pelos quais ela necessariamente se articula. Novamente, como podemos ver, não há nada errado com a concepção global de Marx e com sua temporalidade histórica de longo prazo. O problema surge de sua tradução direta no que ele denomina “divisa revolucionária” a ser inscrita na bandeira de um movimento dado. É simplesmente impossível traduzir diretamente as perspectivas últimas em estratégias políticas praticáveis (MÉSZÁROS, 2015, p. 162, grifos do autor).

Há uma hiato, uma fissura, entre as “perspectivas últimas” e as “estratégias políticas praticáveis” que insistem na necessidade de encontrarmos a forma de “contrainstituição coletiva apropriada” (ŽIŽEK, 2012a, p. 116). Marx esboçou os sinais possíveis do programa de transição socialista que são recuperados e interpretados por Lukács, Mészáros e tantos autores críticos importantes.

A transição socialista não poderia ser movida por outra coisa senão pela necessidade de “[...] transformar o projeto socialista em uma realidade irreversível”, completadas permanentemente pelas “transições dentro da transição” e o próprio socialismo como “revoluções dentro da revolução” (MÉSZÁROS, 2015, p. 163). Há uma necessidade da emergência do controle social emancipatório, que possibilita “[...] começar a pensar como expandir a democracia para além de sua forma política estatal multipartidária” (ŽIŽEK, 2012a, p.91) e que rejeite em absoluto qualquer tipo de “associação forçada” (MÉSZÁROS, 2011, p. 1015, grifos do autor). Dito isso, a dialética da atuação política e negação da política em si mesma e do Estado político elabora a grandeza da tarefa da política emancipatória autêntica, isto é:

1) instituir órgãos não estatais de controle social e crescente autoadministração que podem cada vez mais abarcar as áreas de maior importância da atividade social no curso da nossa “transição na transição”; e, conforme permitam as condições,

2) produzir um deslocamento consciente nos próprios órgãos estatais – em conjunção com (1) e através das mediações globais e internamente necessárias – de modo a tornar viável a realização das perspectivas últimas do projeto socialista (MÉSZÁROS, 2015, p. 164).

O exame crítico, portanto, das experiências radicais emancipatórias apresenta-se como o único recurso seguro diante do desafio histórico de mudar o mundo para além do modo de vida do capital-capitalismo. Qualquer atalho político ou menosprezo das ambivalências do presente não apenas repetirão infernalmente o fracasso de revoluções sem revolução, como bloquearão o futuro impossível como a esperança subjacente a toda subjetividade radical no tempo presente. Eis o tamanho do nosso problema e desafio históricos.

3 CONCLUSÃO

Mas, então, que fazer hoje? Como podemos pensar a equação política da emancipação social no século 21? Temos que lembrar que as mudanças sociais duradouras são parte do trabalho duro de tentar mudar o mundo em sua totalidade e não restringir qualquer alteração dentro do mesmo modelo. Žižek (2012a, p. 113), supreendentemente, diz que “[...] a única maneira de fazer o sistema parar de funcionar é parar de resistir”. Ele parte da hipótese que a resistência ao espólio capitalista produz o efeito contrário de seu estatuto político estratégico, pois “[...] em vez de lutar pequenas batalhas para vencer a inércia do sistema e fazer as coisas andarem melhor aqui e ali, devemos preparar o terreno para a grande batalha.” (ŽIŽEK, 2012a, p. 114). Mas também parece ter outro sentido autêntico, a saber: significa retomar com a violência autêntica necessária o comunismo como o léxico comum à esquerda radical e como o nome do problema relacionado ao futuro. Temos que quebrar o bloqueio do reformismo estratégico em direção a uma política radical emancipatória:

[...] para passar do reformismo à mudança radical, devemos passar pelo ponto zero de nos abstermos da resistência que só mantém o sistema vivo – em um estranho tipo de libertação, devemos parar de nos preocupar com as preocupações dos outros e recuar para o papel de observador passivo da dança circular autodestrutiva do sistema. Ou, digamos, diante da atual crise financeira, que ameaça acabar com a estabilidade do euro e de outras moedas, deveríamos parar de nos preocupar em evitar o colapso financeiro ou manter as coisas em funcionamento. Lenin foi o modelo dessa atitude durante a Primeira Guerra: ignorando todas as preocupações “patriotas” com a pátria em perigo, ele observou friamente a mortal dança imperialista e estabeleceu as fundações para o futuro processo revolucionário – suas preocupações não eram as preocupações da maioria de seus companheiros (ŽIŽEK, 2012a, p. 114).

Com efeito, nossa preocupação não poderia se fixar nas preocupações dos outros em tentar resolver os problemas fundamentais de funcionamento da totalidade orgânica do sistema do capital e suas vicissitudes. Aliás, temos que ir além da mera resistência que funciona como uma consciência crítica sobre ele. Žižek (2012a, p. 91) diz que “[...] há uma armadilha nesse excesso de crítica” anticapitalista, pois seu ponto de vista político objetiva apenas democratizar o capitalismo. A grande lição que talvez tenhamos que aprender é que não basta uma política do excesso de anticapitalismo, como sua negação finita, mas precisamos realmente de uma negação infinita, que não mire apenas alguns aspectos disformes do sistema como um todo, mas que se imponha enquanto autonegação do sistema e que produza a germinação dialética do futuro, pois “[...] o verdadeiro teste de valor é o que permanece no dia seguinte, ou como nossa vida cotidiana normal é modificada.” (ŽIŽEK, 2012a, p. 81). Não podemos esquecer uma lição hegeliana fundamental, quando diz que: “A pobreza em si não transforma os homens em uma populaça; esta é criada somente quando há, na pobreza, uma disposição de espírito, uma indagação interior contra os ricos, contra a sociedade, contra o governo etc.” (HEGEL apud ŽIŽEK, 2013b, p. 287).

A luta infinita pela supressão da opressão social deve ser o fato decisivo na tomada de decisão sobre o que fazer, afinal a “[...] indignação pode ser uma indicação direta de respeito próprio.” (ŽIŽEK, 2013b, p. 288). O legado de Marx é justamente o de lutar contra as formas de exploração econômica, dominação política e humilhação social. Não se trata do estabelecimento de outras formas de dominação social, da preponderância de uma classe particular sobre outras classes sociais, mas certamente a inscrição da eliminação da necessidade social da existência das próprias classes como o real do capitalismo realmente existente. Esse é o significado mais autêntico da ideia da ditadura do proletariado como a única classe capaz de eliminar o sistema de antagonismos estruturais, autoextinguindo-se. A tarefa do trabalho duro da política emancipatória autêntica é entender e religar a explosão da fúria global nos motins e violências cruas que acontecem pelo mundo afora com a hipótese comunista, pois “[...] nomeia indissociavelmente o sonho irredutível de um outro mundo de justiça, igualdade e solidariedade.” (BENSAID, 2017, p. 231). O futuro não está distante de nós, mesmo que sejamos absolutamente apaixonados pela revolução dos outros, o futuro está em toda a parte.

REFERÊNCIAS

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BENSAÏD, D. Forças do comunismo. In: BENSAÏD, D.; LÖWY,M. Centelhas: marxismo e revolução no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2017.

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Notas

1 Uso uma terminologia não muito comum aos estudos críticos, pois considero necessário dar relevo à elaboração de Mészáros a partir de Marx, para quem havia uma sutil diferenciação entre o capital como “[...] uma categoria histórica dinâmica” e o capitalismo como “[...] a força social a ela correspondente” (MÉSZÁROS, 2011, p. 1064). Os teoremas da política emancipatória devem romper com o bloqueio das determinações objetivo-compulsivas do poder abstrato predominante do capital social total, assim como da formação social tipicamente capitalista.
2 Alain Badiou (2017, p. 12) chama de semblante toda “[...] aparência falsa que se dá por real”. Ademais, “As realidades são impositivas e formam uma espécie de lei, da qual é insensato querer escapar. Somos atacados por uma opinião dominante segundo a qual existiriam realidades impositivas a ponto de não se poder imaginar uma ação coletiva racional cujo ponto de partida subjetivo não seja aceitar essa imposição.” (BADIOU, 2017, p. 7). Por isto que há um curto-circuito imanente aqui, isto é, uma “[...] cisão entre a realidade – o universo social dos costumes e opiniões convencionais em que vivemos – e a brutalidade traumática e absurda do real.” (ŽIŽEK, 2017, p. 24). O ápice do princípio de distorção da realidade pode ser localizado no primado atribuído ao “[...] lugar ocupado pela economia em toda e qualquer discussão que diga respeito ao real. Parece até que o saber do real foi confinado à economia. É ela que sabe.” (BADIOU, 2017, p. 10).
3 Na tradução brasileira liderada por Paulo Meneses, o que Mészáros (2011, p. 63) traduz como “capital permanente universal”, aparece como “patrimônio estável, universal” (HEGEL, 2010, p. 198, grifos do autor). Adotamos a tradução de Mészáros, por parecer mais efetiva com o sistema hegeliano, mas atentamos para as diversas versões disponíveis em língua portuguesa.


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