Mesas temáticas coordenadas
Recepción: 16 Febrero 2018
Aprobación: 14 Mayo 2018
Resumo: O artigo mostra possíveis ligações entre análises teóricas de Gramsci sobre os grupos subalternos e os seus debates políticos com o Partido Comunista Italiano no cárcere. Também discute os grupos subalternos sob a perspectiva de outros temas atuais tais como: feminismo, racismo e pluralidade atual da classe trabalhadora.
Palavras-chave: Classes subalternas, hegemonia, União Soviética, Partido Comunista Italiano.
Abstract: This article intends to demonstrate the links between Antonio Gramsci`s analysis on the subaltern groups and his political debates with Italian Communist Party while he was in prison. This article also discusses the subaltern studies taking account of current issues such as feminism, racism and plurality in the working class nowadays.
Keywords: Subaltern classes, hegemony, Soviet Union, Italian Communist Party.
1 INTRODUÇÃO
Em 1977 foi lançado o filme Antonio Gramsci: I giorni del carcere de Lino del Fra que intentava uma reconstrução das discussões que Gramsci teve no cárcere. Além das cartas e biografias, o cineasta utilizou relatos de companheiros de prisão, dentre eles Athos Lisa.
Em 1933, o ex-prisioneiro Athos Lisa escreveu um informe enviado ao Comitê Central do Partido Comunista Italiano, no qual reproduz uma discussão feita com Gramsci no cárcere. (LISA, 1990). Os temas nucleares das conversas com Gramsci foram: a Assembleia Nacional Constituinte; os intelectuais; e o problema militar. Neste documento se confirmam divergências que Gramsci já havia revelado antes em conversas carcerárias com Terracini e Scoccimarro: basicamente os três previam que à queda do fascismo se sucederia uma fase democrática burguesa e não socialista proletária.
Este não foi o único documento produzido por militantes que conviveram com Antonio Gramsci no cárcere, mas o de Athos Lisa apresenta, a seu favor, o fato de que ele expressou, com clareza, ideias com as quais nem sempre aquiescia, por estarem em desacordo com a linha oficial da Internacional Comunista.
Além dos relatos dos comunistas, é interessante notar uma passagem contada pelo socialista Sandro Pertini, que esteve preso algum tempo na mesma prisão onde Gramsci estava encarcerado. Seu depoimento, embora mostre que Gramsci era crítico do Partido Socialista Italiano, também revela que ele não deixava, por isso, de manter relações amigáveis com alguns socialistas:
Um dia, Antonio Gramsci, conversando comigo, tinha expresso um juízo sobre Turati e sobre Treves, ao meu ver ofensivo. Eu reagi com muita firmeza. Gramsci que mantinha comigo relações mais que amigáveis sentiu, na manhã seguinte, a necessidade de uma leal explicação, dizendo-me que com o juízo político expresso um dia antes não queria ofender Turati e Treves. Acrescentou que apreciava a minha reação em defesa dos meus dois companheiros de exílio. (PERTINI, 1982, p.181).
Há outros depoimentos, como os de Bruno Tosin e Giuseppe Ceresa, mas são menos completos. Ezio Riboldi (1964) por exemplo, registrou que naquelas mesmas conversas que Athos Lisa documentou, Gramsci explicitou reservas em relação a Stalin, o qual seria antes nacionalista e russo do queinternacionalista, ao contrário de Lenin. Tal afirmação seria suficiente para uma expulsão naquele momento.
Nada disso o tornava partidário de Trotsky, pois tanto na Carta ao Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética (1926) quanto na única menção significativa a Stalin nos Cadernos do Cárcere (GRAMSCI, 1975) ele se posiciona a favor da maioria do partido russo, embora divirja dos métodos administrativos dos dirigentes e reconheça a importância dos líderes da oposição de esquerda.
Antonio Gramsci, então Secretário-Geral do Partido Comunista Italiano foi preso em fins de 1926 e assim permaneceu até três dias antes da sua morte, em 1937. Nos dez anos em que esteve no cárcere, ele escreveu a parte mais importante de sua obra, depois conhecida como Cadernos do Cárcere. Sob a rigorosa censura carcerária, típica do período em que a Itália esteve sob a ditadura de Benito Mussolini, Gramsci não podia obter muitas informações acerca dos fatos cotidianos e se permitir analisá-los explicitamente. Apesar disso, nos poucos contatos políticos que estabeleceu dentro da prisão, e que foram depois relatados por ex-prisioneiros, ele deixou uma análise de conjuntura acerca do início da passagem dos anos 1920 aos anos 1930.
A forma que Gramsci utilizou foi a de palestras aos coletivos de prisioneiros. Importa relevar aqui um acontecimento surpreendente: o relato de Lisa, que demonstrava um desacordo de Gramsci com a linha do partido, teria sido colhido no final de 1930. A nota intitulada Espontaneidade e Direção Consciente dos Quaderni del Carcere teria sido escrita logo depois, talvez nos primeiros meses de 1931. Esta nota carcerária trata das classes subalternas.
As preocupações maiores de Gramsci dirigiram-se às tarefas políticas da Internacional Comunista (Komintern). Como se sabe, entre 1921 e 1923, o Komintern aplicou a tática de frente única. Essa política, propugnada por Lênin encontrou séria resistência no interior de alguns partidos comunistas, particularmente o italiano. Gramsci, defensor da política do Komintern, era minoria no interior do Partido Comunista da Itália. O III e o IV Congressos da Internacional confirmaram, em suas teses, a tática de alianças.
Tentou-se até mesmo um acordo entre a II Internacional (socialista), a III Internacional (comunista) e a Internacional dois e meio (basicamente austromarxista). Na conferência de Berlim (2 a 5 de abril de 1922) compareceram alguns dos líderes máximos da esquerda europeia: R. Macdonald, Vandervelde, Longuet, Zinoviev, Bukharin, Otto Bauer e Max Adler. A chamada conferência das três internacionais foi a única do gênero e não teve efeitos políticos significativos.
Gramsci cita nos Quaderni a quarta reunião (o IV Congresso da Internacional), em que elogia a forma brilhante de um discurso de Trotsky, embora o conteúdo não tivesse sido desenvolvido. O trecho foi censurado pelo partido na edição temática dos Cadernos do Cárcere no pós Segunda Guerra Mundial.
O PCI foi primeiramente chefiado por Amadeo Bordiga. Ele defendia o abstencionismo eleitoral. Foi Gramsci que, aos poucos, conseguiu agrupar em torno de si uma nova maioria mais próxima à política defendida pela Internacional. No III Congresso do PCI, realizado em Lyon, Gramsci conquistou o posto de secretário-geral. Contudo, quando o PCI começou a adotar a linha de frente única, iniciou-se um processo de mudança política na União Soviética. No V Congresso do Komintern já apreciam elementos de “denúncia” da social-democracia. Zinoviev, presidente da Internacional Comunista, lançou a idéia de que os social-democratas eram a “mão esquerda da burguesia”, ou, simplesmente, uma “ala do fascismo”. (CLAUDIN, 1985, p. 143).
Stalin, por seu turno, defendia a proximidade de um novo período revolucionário a ser produzido pela crise mundial do capitalismo. O primeiro período tinha sido marcado pela ascensão do proletariado ao poder na Rússia; o segundo período assistira à derrota da revolução na Europa Ocidental; mas um terceiro período revolucionário parecia se descortinar. O IX pleno do Comitê Executivo da Internacional Comunista (CEIC) adotou as posições de Stalin em fevereiro de 1928, fato que ficou conhecido como a viragem na política ou o Grande Tournant. Nesse ano, Gramsci já estava na prisão e Palmiro Togliatti, na prática o novo dirigente máximo do PCI, conduzia o seu partido segundo a nova tática da Internacional, a de classe contra classe, combatendo sem tréguas a social-democracia. Gramsci era contrário a essa linha política.
Entre 1926 e 1943 a Itália registrou cerca de 10 mil presos políticos (8 mil comunistas) (SPRIANO, 1969). A direção do PCI indicava aos encarcerados que formassem coletivos de estudo, adquirissem livros e tentassem manter correspondência clandestina com o centro exterior localizado em Paris.
Segundo um depoimento de Giuseppe Ceresa (1948), Gramsci fez na cadeia uma exposição sobre a situação italiana que durou dez dias. Sua análise partiu dos aspectos históricos de cada região da Itália, das correntes políticas e culturais e do papel do fascismo. A tática derivada dessa análise, em flagrante contradição com a política da Internacional Comunista, era a de lutar pelas liberdades democráticas.
Compreendendo que o fascismo mantinha (porque necessitava) uma ampla base de massas, Gramsci considerava indispensável concentrar o trabalho nas organizações de massa do fascismo. Os comunistas deveriam aproveitar para criar as condições de alargamento e superação da própria legalidade fascista. Negando explicitamente a tese da Internacional Comunista, Gramsci considerava equívoca a idéia de que seria possível passar diretamente da ditadura fascista à ditadura do proletariado. Antes disso era preciso “[...] mobilizar todas as forças antifascistas [...]”, “[...] organizando as pequenas lutas pelas reivindicações parciais.” (CERESA, 1948).
O afastamento entre o que Antonio Gramsci pensava e como o seu partido agia de fato, pode ser percebido pela indiferença que as publicações comunistas italianas apresentavam em relação àquilo que o seu Secretário-Geral pudesse dizer. O que não significa de modo algum que não houvesse uma solidariedade ativa dos comunistas e outros anti-fascistas com a situação de Gramsci. Entretanto, de meados de 1931 até dezembro de 1933, Lo Stato operaio fez silêncio sobre Gramsci. L’unità atravessou o ano de 1932 sem uma única palavra sobre ele. (SPRIANO, 1977). Por isso, quando Athos Lisa encontrou-se com Gramsci, estava imbuído da política oficial do PCI. Sabe-se que Gramsci sentiu-se hostilizado pelos seus camaradas que discutiam com ele, de modo que interrompeu as discussões, Em outubro de 1932, quando conversou novamente com Lisa, Gramsci reafirmou suas convicções.
Segundo Lisa, Gramsci iniciou pela relação entre intelectuais e partido, apresentando seu conceito inovador de intelectual: todo aquele que exerce uma função organizadora (e dirigente) na sociedade. Desse modo levava os companheiros de cárcere a perceberem que cada classe social, em seu desenvolvimento histórico, gera os seus próprios intelectuais. Assim, a burguesia tem seus intelectuais orgânicos agindo em vários patamares, desde o controle da atividade produtiva (gerentes, administradores etc), até o governo.
Igualmente, o proletariado cria seus intelectuais orgânicos: os membros do partido, dos sindicatos etc. Gramsci identificava estratos diferenciados entre esses intelectuais: um estado maior (vanguarda) e uma oficialidade média (quadros intermediários), imprescindíveis como elo de ligação com as massas.
O problema militar era uma parte da exposição de Gramsci com notáveis desdobramentos táticos. Ele considerava importante, na situação concreta da Itália dos anos trinta, criar uma organização militar do proletariado. Mas também nesse aspecto sua posição é inovadora em relação às formas de luta tradicionais. A organização militar comunista precisa espraiar-se no interior do Estado (sociedade política), adquirir capilaridade na própria organização estatal burguesa, para tornar-se capaz de destruí-la com eficiência
A ação militar não podia ser exclusivamente técnica, mas ideológica. A temática da constituinte também foi discutida por Gramsci e, certamente, era a que mais o separava da política do movimento comunista internacional. Contrário ao isolamento político do Partido Comunista Italiano, Gramsci defendeu dois pontos fundamentais que entendia serem mais apropriados à Itália: 1. Amplo arco de alianças contra o fascismo; 2. Objetivo imediato de reconquistar a democracia formal, realizando uma Assembléia Constituinte.
Segundo Athos Lisa, Gramsci dizia que o PCI ainda estava envolvido pelo maximalismo, mas a revolução não era uma coisa acabada que apareceria num momento determinado. Num país dividido entre o norte industrial e o sul agrícola (grosso modo), complexo do ponto de vista da estratificação social até mesmo no interior das classes subalternas, a questão das alianças era a mais urgente. Sem aliados, declarava Gramsci, o proletariado não faria nenhuma revolução. Para isso era preciso identificar e incorporar as demandas dos camponeses (pois estes não viam como seus, os objetivos finais dos comunistas). Politicamente, isso se traduzia numa ação comum com os partidos que lutavam contra o fascismo.
Apenas em agosto de 1934 o PCI firmou um pacto de ação unitária com o Partido Socialista Italiano (CAMMETT, 1974). No VII Congresso da Internacional Comunista adotou-se, novamente, a tática de frente única antifascista, agora com a possibilidade de alianças mais amplas que no período 1921- 1923.
2 PODEM OS SUBALTERNOS FALAR?
A questão que gerou ampla discussão na historiografia recuperava uma ideia de Antonio Gramsci que estivera virtualmente esquecido. As minúcias filológicas dos vários conceitos gramscianos têm sido objeto de profundas investigações. Termos como hegemonia e sociedade civil já sofreram o escrutínio de autores de diferentes perspectivas teóricas durante meio século ou mais. Já o conceito de subalternos foi discutido amplamente depois que a escola de historiadores indianos criou os chamados Subaltern Studies, em torno principalmente da leitura do famoso Caderno 25 do Cárcere, em que Gramsci concentra suas passagens sobre os que estão à margem da história.
Em seguida, o conceito ganhou a adesão dos estudos culturais dos EUA. Portanto, o tema se difundiu mundialmente por causa das primeiras abordagens em língua inglesa. Massimo Modonesi e Guido Liguori fizeram uma revisão do conceito e mostraram como a forma da edição inglesa dos textos selecionados de Gramsci e erros de leitura condicionaram aquela recepção indiana e estadunidense. (DEL ROIO, 2017).
A subalternidade ainda tem uma tradução espacial, de resto já presente em seu último texto pré-carcerário, Alguns Temas da Questão Meridional (1926). O Mezzogiorno é, naItália, a própria expressão da subalternidade de uma classe ou conjunto de fragmentos de classes oprimidas e, de alguma forma, exploradas pelo capital industrial do norte. Como bem nota Marcos Del Roio (2017), os grupos subalternos podem ser compreendidos como periferias das classes dirigentes. Por baixo do espaço supostamente homogêneo de um Estado Nacional, é possível vislumbrar as verticalidades (como diria Milton Santos) do capital transnacional que geram desigualdades sociais mais ou menos visíveis no território.
Discute-se se ao trocar o uso de classes por grupos Gramsci estaria fugindo à censura carcerária. Ainda que o termo classe apareça muito, é notável que em seus Cadernos do Cárcere as expressões lotta di classe e lotta di classi sejam utilizadas somente nove vezes e lotte di classe uma só vez.
Nas únicas quatro vezes em que aparece nos Cadernos o termo classes instrumentais está vinculado aos intelectuais ou ao tema da escola unitária. A Classe operária é citada só três vezes os termos operário e operária como substantivos ou adjetivos aparecem bem mais. Mas não é pelo mero registro quantitativo que se pode atribuir a importância de um conceito, embora sua recorrência seja um índice importante da direção que a pesquisa gramsciana seguiu.
Gramsci (1977), por exemplo, define uma única vez as classes fundamentais. O sentido é bem preciso: elas são produtivas e se dividem em borghesia capitalistica e proletariato moderno. Apenas em mais dois momentos escreve sobre os grupos principais das classes fundamentais e a relação destas com os intelectuais.
Os subalternos, sempre no plural, não possuem uma definição precisa. Eles não substituem o proletariado, embora possam contê-lo. A razão disso é que eles se definem em relação a outros grupos homogêneos. Os subalternos são tudo menos homogêneos e se caracterizam pela desagregação, a espontaneidade, a falta de organização permanente (leia-se bem: não de qualquer organização!).
A pesquisa dos subalternos está subordinada ao vasto empreendimento teórico de Gramsci: compreender como se transforma a estrutura em ação, a espontaneidade em direção consciente.
De volta à questão proposta cima, os subalternos podem falar, é evidente. Ainda que emudeçam (muitas vezes propositalmente). Eles tendem a se unificar, mesmo que a tendência seja rompida sistematicamente pela ação das classes dominantes; e até mesmo podem se organizar, ainda que de modo episódico. Traços de sua direção própria e consciente se mostraram ao longo da história em seus levantes desagregados e descontínuos. Com um desses casos Gramsci inicia seu Caderno 25: a trajetória de Davide Lazzaretti.
Os seguidores de Lazzaretti atuavam no sudoeste da Toscana no século XIX. Curiosamente, naquela região, em 1953, o Partido Comunista da Itália obteve sua maior votação percentual: 48,8%. Lazzaretti nasceu em 1834. Era um carregador, vendedor ambulante etc. Em 1848 tem uma visão e vinte anos depois, durante uma das piores safras da Itália, com aumento de impostos sobre os camponeses, ele teve uma crise espiritual. Torna-se santo e tem apoio extra-oficial da Igreja para combater o liberalismo laico.
Em 1870 ele profetizou o aparecimento de um novo chefe e monarca, vindo do Sinai, que desceria o monte Amiata com os camponeses, para libertá-los. Formou a milícia do Espírito Santo e colônias comunistas nas montanhas. Os fiéis ergueram uma igreja. Sua doutrina evolui e se descobre que ele mesmo é o Messias. Ele irá descer a montanha no fim do Reino da Graça (o pontificado de Pio IX). Mas ele morrerá, rezava a profecia.
Tais acontecimentos tiveram como pano de fundo um papado de reação ao socialismo e ao liberalismo condenados em 1864 no documento Sílabo dos Erros de Nossa Época (Syllabus Errorum). Dez anos antes haviam sido proclamados os Dogmas da Imaculada Conceição e o da Infalibilidade Papal e em 1858 o milagre de Lourdes veio a reforçar a política católica da Imperatriz Eugênia na França, consorte de Napoleão III. Quando em 1870 Roma tornou-se capital do Reino da Itália o Papa declarou-se prisioneiro no Vaticano e proibiu os católicos italianos de votar nas eleições.
Em 1878, Pio IX e o rei Vittorio Emanoelle morreram. Lazzaretti havia retornado da França, onde tinha adeptos abastados e reuniu 3 mil pessoas no dia da Assunção (14 de agosto). Dias depois, ele desceu com a multidão e a bandeira de Cristo e da República para a aldeia de Arcidosso. Os carabinieri mandaram que eles voltassem. Lazzaretti disse: “Se vocês querem paz, eu lhes trago a paz; se vocês querem comiseração, eu lhes trago comiseração; se vocês querem sangue, aqui estou eu.” (HOBSBAWM, 1970, p. 93). Foram fuzilados. Lazzaretti morreu assassinado cruelmente, como Gramsci sublinha. Os outros foram condenados à prisão e o movimento despareceu aparentemente.
Hobsbawm (1970), a quem em parte se deve o relato acima, mostra, entretanto, que quando houve a tentativa de assassinar Palmiro Togliatti em 1948, os comunistas ameaçaram pegar em armas, mas foram contidos pela direção do Partido Comunista Italiano. Algumas aldeias se sublevaram e Arcidosso estava entre elas.
Mais tarde, um dirigente comunista que conhecia a história de Lazzaretti, citou o profeta num comício naquela localidade. Depois do comício foi levado à parte por algumas pessoas que estavam contentes com a citação do profeta. Eram... seguidores do profeta! Eram também comunistas, porque o profeta certamente teria apoiado o PCI, mas eles não sabiam que o partido valorizava a luta do profeta. O movimento subsistira na clandestinidade. Para Hobsbawm (1970) o movimento milenarista tinha sido absorvido por uma direção política moderna: o comunismo.
Em Gramsci, diferentemente de Hobsbawm, parece haver maior consideração para com a espontaneidade. Esta aparece correlacionada à palavra popularidade, às formas elementares, às ideias republicanas (misturadas ao fanatismo religioso).
O próprio Lazzaretti era leitor insaciável, embora não seja preciso que os opúsculos populares cheguem em grande tiragem aos camponeses, como acentua Gramsci. Suas visões são fruto de experiências reais com reminiscências literárias e tradições medievais. A essas se associam máximas socialistóides.
A espontaneidade por si só não permite explicar, por exemplo, de que maneira os camponeses anarquistas andaluzes na mesma época da Rebelião do Monte Amiata levaram a cabo greves gerais e insurreições coordenadas. O fato dos anarquistas rejeitarem a disciplina administrativa, não quer dizer que não estavam organizados como argumentou Temma Kaplan em sua crítica da ideia de milenarismo.
A teoria milenarista não mostra como uma ideologia pré-moderna se transformava em ação política. (KAPLAN, 1977). Os anarquistas construíram sindicatos, tentavam ocupar fabricas e organizar a produção em situações revolucionárias. A espontaneidade porém não atingiu níveis organizativos maiores. A sociedade imaginada pelos anárquicos seria mais factível num modelo de sociedade agro letrada, embora os testemunhos do zapatismo, por exemplo, revelem planos de auto-organização econômica e aliança com operários urbanos. O mesmo se pode dizer de experiências autogestionárias na Espanha.
Ocorre que depois de 1968, uma crítica radical não comunista apresentou características avançadas. Ela é expressão de sociedades industriais e pós industriais e não mais agrárias e questiona a alienação como um processo de estranhamento não tanto no processo produtivo, mas na esfera do consumo de massa; a repressão psico-ideológica; e a exploração do tempo livre propiciado pela mais valia relativa. Por fim, apela ao subproletariado urbano (recrutado em todas as classes, como se afirmava no Manifesto Comunista) para além de uma classe operária (vista como integrada) e do campesinato, virtualmente desaparecido na Europa Ocidental. Numa conjuntura assim é que se deu a recepção do Caderno 25 em países da periferia, onde o campesinato era importantíssimo, caso da Índia.
Toda a rebeldia autônoma dos subalternos é de grande valia ao historiador integral, diz Gramsci na sequencia de seu Caderno 25. Até mesmo as monografias locais, cujas fontes são raras, contribuem para resgatar o seu passado de suposto silêncio. Gramsci chega a tangenciar o problema da opressão racial quando cita grupos subalternos de outra raça, cultura e religião (como os escravos da Roma antiga). Mas em todos os seus cadernos são incipientes as referências ao racismo.
Há importantes notas sobre as diferenças entre trabalhadores nacionais e estrangeiros, mas não muito. O mesmo sobre as mulheres. Além de naturalizar comportamentos femininos e atribuir a elas a frivolidade e a fragilidade psicológica em suas Cartas do Cárcere, ele chega a escrever no Caderno 25 que “[...] a questão da importância das mulheres na história romana é similar à dos grupos subalternos, mas até um certo ponto: o machismo só pode ser comparado a um domínio de classe em um certo sentido”. O problema é que ele também escreve que isso “[...] tem mais importância para a história dos costumes que para a história política e social”. (GRAMSCI, 1975, p. 302).
Mesmo sendo homem de sua época, portanto não isento de preconceitos, Gramsci foi além das classes fundamentais do capitalismo e descobriu no silêncio da história das camadas subalternas as dimensões culturais que não podiam ser simplesmente incorporadas ao conceito de um proletariado europeu, branco, masculino e heterossexual.
Ele não abandonava a centralidade operária definida pela sua inserção nas relações de produção capitalistas. A subalternidade era uma dimensão a mais que permitia entrecruzar as diversas formas de sujeição de trabalhadoras e trabalhadores em sentido amplo. Abria-se a perspectiva de compreender a opressão de gênero, étnica, regional, linguística e outras tantas sem esquecer a de classe, reconfigurando-a.
Mas por que foi necessário criar outra categoria ao lado do proletário? Ambos (subalternos e operários) são dominados, mas o locus da subordinação de um é interno ao processo de produção, enquanto o do outro é predominantemente externo. Marx já havia estabelecido uma minuciosa estratificação dos subproletários que tinham uma relação intermitente com o trabalho produtivo, seja como exército de reserva de mão de obra ou como parte de uma das categorias da superpopulação relativa (excedente) tratadas em O Capital (no capítulo A Lei Geral da Acumulação Capitalista).
Gramsci não abandonou a natureza econômica da subalternidade, mas ampliou sua dimensão cultural. O fato de muitas causas feministas serem incorporadas pela Ordem, por exemplo, é antes um atestado de seu caráter antagônico ao capital do que de seu lugar secundário face à luta de classes. É por isso que há a preocupação em cooptá-las! Toda luta operária percorreu historicamente uma trilha estreita entre a integração e a repressão.
As diferentes demandas dos novos sujeitos da subalternidade, outrora marginalizadas pelos próprios marxistas, tem forte relação com o recorte da classe social, mas desde que a classe seja vista em sua pluralidade cultural.
Gramsci permitiu a ampliação da classe sem negá-la e indicou dimensões que ele mesmo não podia expandir. Os subalternos estão além do espaço de dominação fabril sem deixar de portar a primordial subordinação econômica (direta ou indireta) ao lado de outras formas de sujeição, tão importantes quanto aquela. O econômico aqui refere-se à dominação sobre aquele que é impedido de produzir livremente o seu mundo material e espiritual.
Giorgio Baratta (2011) chamou a atenção para o fato de que entre o operário e o marginalizado surge uma vizinhança muito próxima. Afinal Gramsci cita a convivência do trabalhador nacional com os imigrantes de outras etnias, por exemplo.
Gramsci, porém, não ignorou as limitações da subalternidade. Às vezes com rigor excessivo. Como os camponeses, para ele os subalternos não criaram seus próprios intelectuais orgânicos, os seus dirigentes, e nem assimilaram intelectuais tradicionais. Embora na Itália parte dos intelectuais tivesse origem camponesa.
Em primeiro lugar, a própria contraposição entre intelectuais orgânicos e tradicionais perdeu sentido com a penetração de todas as instituições de pesquisa e ensino pelo capital. Há até mesmo uma distinção no interior da intelectualidade trabalhadora. Algumas áreas da pesquisa são relegadas a uma situação periférica diante de outras que produzem ciência aplicada de ponta. São elas que impõem ao conjunto das ciências puras e das artes os seus critérios de mensuração da produtividade.
Em segundo lugar, a história revelou levantes cuja liderança foi exercida por minorias ativas não permanentes, criadas no próprio teatro de operações. Elas sempre definiram uma tática nova. Mas é uma ilusão achar que fossem desorganizadas e agrupadas ad hoc.
A espontaneidade, característica dos grupos subalternos, não seria antes um traço revalorizado no século XXI depois que organizações tradicionais da classe operária se burocratizaram por cem anos ou mais? A esquerda social democrata perdeu a capacidade de manobrar no terreno da luta cotidiana. Por outro lado, o protesto autônomo esgota-se em si mesmo, eventualmente com uma vitória e outras vezes não. E o faz não por uma falta, mas porque essa é a sua natureza: é sempre um grupo organizado que desata um dos nós da rede de poder, esperando com isso que outros se organizem em seguida para desfazer outros pontos. A forma do movimento é horizontal quando vista em conjunto.
O traço espontâneo pode ser uma resistência a grupos políticos para os quais (como já lembrava Rosa Luxemburg em seu artigo Questões Táticas) basta mobilizar as massas de vez em quando como se elas fossem reservistas de um corpo de oficiais burocratas.
Como escreveu Gramsci (1975, p. 302) num trecho de sua obra intitulado Espontaneidade e direção consciente, a “[...] experiência cotidiana iluminada pelo senso comum” não pode estar em oposição à teoria marxista: “[...] entre uma e outras há diferença quantitativa, de grau, não de qualidade” e tem que ser possível uma passagem de uma à outra reciprocamente.
Algumas dessas aqui discutidas reflexões tinham sido apresentadas oralmente na VI Jornada Internacional de Políticas Públicas (JOINPP) na Universidade Federal do Maranhão (UFMA) em agosto de 2017 e publicadas em forma resumida como prólogo em Del Roio (2017). No entanto, escapava ao autor certos liames com todo o debate político que Gramsci travou no cárcere com o seu partido (resumidos aqui na introdução).
Nesta nota sobre Espontaneidade e direção consciente de 1931 é possível encontrar um conjuminamento de apreciações de validade orgânica ou teórica tanto quanto críticas imediatas à política do partido comunista expostas sucintamente na introdução deste artigo.
Ele se inicia, por exemplo, pelos elementos de direção consciente que existem na história das classes subalternas e que deixam poucos rastros documentais. É impressionante que ele faça uma distinção entre os estudiosos que teorizaram o espontaneísmo como método imanente e objetivo do devir histórico dos politiqueiros que o usam como método político e cujo escopo é disputar a direção do partido (comunista?): “Nos primeiros se trata de uma concepção equivocada; nos segundos se trata de uma contradição imediata e mesquinha que revela uma origem prática evidente, a saber, a vontade prática de substituir uma determinada direção por outra”. (GRAMSCI, 1975, p. 329).
O Caderno 25 talvez sugira mesmo uma crítica aos rumos da própria Revolução Russa. Afinal, Gramsci diz que “[...] só a vitória ‘permanente’ rompe, e não imediatamente, a subordinação”. O autor parece dar relevo ao advérbio de tempo (imediatamente). Além disso, o substantivo vitória é adjetivado com uma palavra entre aspas: permanente.
Uma vanguarda num país simultaneamente moderno e atrasado como a Rússia não parece ter rompido a subordinação. A este respeito, num mar revolto de relatos do período, poderíamos nos remeter às Memórias de Vitor Serge, que conheceu o processo revolucionário e os seus líderes, incluindo Gramsci. E compreendeu o quanto as condições dadas, aliadas às escolhas políticas da Revolução, não permitiram a vitória permanente.
Isso faz recordar a carta em que Gramsci conta sua viagem à Ilha de Ustica para esperar o seu julgamento. Alguém o reconhece como o chefe do comunismo italiano e indaga se ele seria o líder do país caso o seu partido vencesse. E Gramsci responde que, sendo sardo, a ele seria destinado no máximo um posto de sub-chefe nos correios, cargo normalmente destinado a pessoas como ele... Decerto, há uma blague. Mas ela pressupõe que mesmo depois da vitória da Revolução muitos traços de subalternidade persistem.
Na época moderna, entretanto, há uma hegemonia ativa do grupo dirigente e dominante que abole qualquer autonomia dos subalternos. Esta renasce de outra forma como partidos, sindicatos, associações de cultura. Aludindo provavelmente ao fascismo as ditaduras contemporâneas suprimem legalmente essas novas organizações autônomas e tentam incorporá-las à atividade estatal numa forma totalitária.
Entrementes, cabe ressaltar que a manutenção da hegemonia dos grupos dominantes depende do nascimento de partidos novos para “[...] manter o consenso e o controle dos grupos subalternos.” (GRAMSCI, 1975, p. 373). Ou seja, a classe hegemônica torna-se Estado (força) e se mantêm também como partidos (consenso). Ao mesmo tempo impede, quando pode, os subalternos de serem partido e, por extensão, Estado.
Seria a hegemonia objeto de uma disputa? Ou ela seria antes uma totalidade? Nos movimentos sociais é comum se falar em contra-hegemonia. Mas haveria a possibilidade de duas hegemonias? A hegemonia é um fato total e dentro dela se estabelecem os limites que permitem a existência organizada das próprias forças que se consideram contrárias à hegemonia existente.
Um governo é forte porque representa o interesse aparente de um conjunto amplo de valores dominantes na sociedade civil. E porque ao mesmo tempo garante a expectativa de que os representantes dos subalternos podem exercer o poder dentro das regras existentes. Dir-se-ia mais: que o seu governo de fato implementaria mudanças estruturais na sociedade.
Além de esterilizar os subalternos em níveis pré-políticos, pode ser que o grupo hegemônico tenha que aceitar a organização partidária dos subalternos dentro da ordem, embora isso não seja previsto no Caderno 25.
A unidade dos grupos dominantes se faz no Estado e sempre que a subalternidade se ergue contra eles, sua autonomia é abolida, incorporada e esterilizada num nível corporativo e vigiado. Não seria a própria Democracia um mecanismo de perda da autonomia quando a oposição é legalizada?
3 CONCLUSÃO
Para estudar a história dos subalternos Gramsci propõe determinados passos na pesquisa: formação objetiva dos grupos subalternos no mundo da produção econômica; sua mentalidade; reivindicações; tentativas de influenciar os grupos dominantes etc.
Para Gramsci (1975, p. 329) “[...] em todo movimento ‘espontâneo’ há um elemento primitivo de direção consciente”. Mas há que se lembrar a outra face da moeda: a exigência de uma auto-educação das camadas subalternas e de uma direção que, não lhe sendo exterior, não pode simplesmente se confundir com elas. Este debate continua indispensável.
Numa página do Caderno 25, Gramsci cita uma história de Tácito: um senador propôs que todos os escravos vestissem um uniforme. O Senado Romano recusou a proposta porque os escravos poderiam se dar conta de que eram a maioria. Os subalternos são a maioria desagregada. Sua autonomia depende da unificação consciente de suas lutas.
Podem os subalternos falar? A pergunta devia ser dirigida a eles.
REFERÊNCIAS
BARATA, G. Antonio Gramsci em Contraponto. São Paulo: Unesp, 2011.
CAMMETT, J. Antonio Gramsci e le origini del comunismo italiano. Milano: Mursia, 1974.
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