Resumo: Aborda com base em Gramsci, a questão pedagógica na organização política das classes subalternas e a mediação dos intelectuais nos processos de formação de uma nova e superior cultura, na luta pela hegemonia, como estratégia revolucionária. O conteúdo desdobra-se em dois eixos: a) elementos histórico-conceituais da formação da cultura pelas classes subalternas na luta pela hegemonia, fundantes de novas relações pedagógicas; b) relações pedagógicas na formação de uma nova cultura: a dialética intelectual-massa e o trabalho como princípio educativo. Conclui com a indicação de desafios pedagógicos da formação de uma nova cultura.
Palavras-chave:Questão pedagógicaQuestão pedagógica, cultura cultura, ideologia ideologia, hegemonia hegemonia, intelectuais intelectuais.
Abstract: Aprroaches based on Gramsci, the pedagogical question in the political organization of the subaltern classes and the mediation of the intellectuals in the processes of formation of a new and superior culture, in the struggle for hegemony, as a revolutionary strategy. The content unfolds in two axes: a) historical- -conceptual elements of the formation of culture by the subaltern classes in the struggle for hegemony the thematic nucleus of new pedagogical relations; b)pedagogical relations in the formation if a new culture: the intellectual-mass dialectic and work as an educational principle. It concludes with the indication of the pedagogical challenges of the formation of a new culture.
Keywords: Pedagogical question, culture, ideology, hegemony, intellectuals.
Mesas temáticas coordenadas
A QUESTÃO PEDAGÓGICA E A PERSPECTIVA DE HEGEMONIA DAS CLASSES SUBALTERNAS1
Recepção: 15 Março 2018
Aprovação: 16 Maio 2018
A questão pedagógica, em Gramsci, situa-se no movimento histórico totalizante da vida social vinculada às relações de hegemonia, “[...] toda relação de ‘hegemonia’ é necessariamente pedagógica.” (GRAMSCI, 1999, p. 399, grifo do autor), como um elemento constitutivo dos processos contraditórios de formação ou de reforma da ordem intelectual e moral adequadamente a um padrão de produção e trabalho; ou seja, vincula-se à necessidade de formação de um tipo de conformismo social - sustentáculo da cultura, civiltá, modo de vida. O conformismo social se traduz num certo equilíbrio psicofísico (adequação entre a atividade intelectual e as necessidades da produção) que pode ser imposto pelos interesses da acumulação do capital sobre as classes subalternas e, por isso, base de uma cultura alienada e alienante, ou estabelecido por essas classes, conformismo próprio, que, assim, é suporte da organização de uma cultura emancipada. Para Gramsci,
[...] pela própria concepção de mundo, pertencemos sempre a um determinado grupo, precisamente o de todos os elementos sociais que compartilham de um mesmo modo de pensar e de agir. Somos conformistas de algum conformismo, somos sempre homens-massa ou homens-coletivos. O problema é o seguinte: que tipo de histórico de conformismo, de homem–massa do qual fazemos parte? (GRAMSCI, 1999, p. 94).
Assim, os movimentos das classes sociais na formação da cultura traduzem um amplo trabalho de elaboração de uma concepção de mundo, de uma filosofia, de uma ordem intelectuale moral Esta tem sido a tarefa fundamental dos intelectuais e das organizações de cultura, dentre elas, a escola e a religião (catolicismo) são as mais importantes, mediados pela relação entre o Estado e a sociedade civil, já que o Estado tem como uma de funções fundamentais “[...] educar a grande massa da população para um certo nível cultural e moral, nível (ou tipo) que corresponde às necessidades de desenvolvimento das forças produtivas e, por conseguinte, aos interesses das classes dominantes.” (GRAMSCI, 2000b, p. 284).
Em relação à construção de uma nova cultura pelas classes subalternas, esse movimento partindo do senso comum busca superá-lo e transformar-se em normas de conduta e bases de novas ações vitais, ou seja, produzir uma atividade prática e uma vontade nas quais essa concepção de mundo esteja contida como premissa teórica implícita – como uma ideologia - “[...] desde que se dê ao termo ‘ideologia’ o significado mais alto de uma concepção de mundo, que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações de vida individuais e coletivas.” (GRAMSCI, 1999, p. 98, grifo do autor). Gramsci reconhece que o problema fundamental desse movimento cultural é o de “[...] conservar a unidade ideológica em todo o bloco histórico que está cimentado e unificado justamente por aquela ideologia.” (GRAMSCI, 1999, p. 99). Na formação de uma nova cultura, “[...] a questão da linguagem e das línguas coloca-se, tecnicamente, em primeiro plano.” (GRAMSCI, 1999, p. 398).
Gramsci, em sua crítica à relação entre a racionalização da produção e uma ordem intelectual e moral, a partir das experiências do americanismo e do fordismo – expressões paradigmáticas da cultura e hegemonia burguesas no capitalismo monopolista expõe as raízes do seu conceito de cultura, como civiltá (modo de vida, de sentir, de pensar e de agir) a partir da base econômica, dos métodos de trabalho. Para esse pensador, “[...] os métodos de trabalho são indissociáveis de um determinado modo de viver, de pensar e de sentir a vida; não é possível obter êxito num campo sem obter resultados tangíveis no outro.” (GRAMSCI, 2001, p. 266). Considera o fenômeno americano “[...] o maior esforço coletivo realizado até agora para criar, com rapidez incrível e com uma consciência do fim jamais vista na História, um tipo novo de trabalhador e de homem.” (GRAMSCI, 2001, p. 266), adequado às necessidades do modelo fordista/taylorista de produção e trabalho. A partir da crítica profunda desse movimento, Gramsci reelabora o princípio educativo na relação entre a construção de um novo padrão produtivo e de trabalho e a organização de uma nova ordem intelectual e moral pelas classes subalternas, princípio que se funda na necessidade histórica da constituição de um processo mais amplo de superação da racionalidade da produção capitalista pelas citadas classes e instauração de uma nova e superior cultura – uma nova sociabilidade.
O processo da crítica e da elaboração de uma nova cultura supõe relações pedagógicas originais, orientadas pela perspectiva do trabalho criador, concreto, como devir histórico e princípio educativo, em detrimento do trabalho alienante, abstrato. Deste modo, as relações pedagógicas ai construídas fundam-se em um novo principio educativo centrado no trabalho, a partir de uma nova lógica entre o padrão de produção e de trabalho e a necessidade histórica de uma nova cultura; ou seja, busca modificação entre a atividade intelectual e o esforço muscular nervoso no sentido de um novo equilíbrio – conformismo -, na perspectiva de uma nova cultura. Trata-se de um equilíbrio, cujo conceito refere-se à relação
[...] entre ordem social e ordem natural com base no trabalho, na atividade prática do homem, que cria os primeiros elementos de uma intuição do mundo liberta de toda a magia ou bruxaria, e fornece o ponto de partida para o posterior desenvolvimento de uma concepção histórica, dialética, do mundo, para a compreensão do movimento e do devir, para a avaliação da soma de esforços e de sacrifícios que o presente custou ao passado e que futuro custa ao presente, para a concepção da atualidade como síntese do passado, de todas as gerações passadas, que se projeta para o futuro. (GRAMSCI, 2000a, p. 43).
Assim, é o conceito de trabalho que se coloca como princípio educativo desde as escolas primárias, o qual não
[...] pode se realizar em todo seu poder de expansão e de produtividade sem um conhecimento exato e realista das leis naturais e sem uma ordem legal que regule organicamente a vida dos homens entre si, ordem que deve ser respeitada por convicção espontânea e não apenas por imposição externa, por necessidade reconhecida e proposta a si mesmos como liberdade e não por simples coerção. (GRAMSCI, 2000a, p. 43).
Neste estudo, seguindo uma linha de discussão a partir do nexo orgânico entre cultura e hegemonia como campo temático da questão pedagógica, o conteúdo ora apresentado, desdobra-se em dois eixos: a) determinações histórico-políticas da organização da cultura pelas classes subalternas na luta pela hegemonia e a necessidade de relações pedagógicas originais; b) a função pedagógica dos intelectuais na organização da cultura e o trabalho criador como princípio educativo.
A organização das classes subalternas como classe para-si, significa, num primeiro momento, o rompimento com a ideologia dominante e a conquista da própria consciência, que se consubstancia na elaboração de uma concepção de mundo e da vida, de maneira consciente e crítica.
Esse pressuposto gramsciano ancora-se na tese de Marx e Engels (1993, p. 49), afirmada n‘A Ideologia Alemã, segundo a qual
[...] toda classe que aspira à dominação, mesmo que essa dominação, como no caso do proletariado, exija a superação de toda a antiga forma de sociedade e de dominação em geral, deve conquistar primeiro o poder político para apresentar seu interesse como interesse geral ao qual está obrigado num primeiro momento.
Gramsci assimila de forma criativa esta tese em sua análise sobre a sociedade italiana e reconstrói a categoria de hegemonia como direção intelectual e moral e domínio político, exercidos por uma classe, em condições históricas determinadas.
As exigências históricas da construção da hegemonia pelas classes subalternas como estratégia revolucionária recoloca a organização da cultura como um instrumento necessário para a emancipação político-ideológica dessas classes na constituição e redimensionamento das relações de força para a conquista do poder do Estado. Referem-se a dimensões constitutivas do processo ideológico-político-militar de superação da ordem burguesa e da construção de uma nova sociedade pelas referidas classes. Entretanto, as articulações entre essas dimensões nas formulações gramscianas nos marcos da estratégia revolucionária da guerra de posição suscitam ambiguidades e polêmicas, considerando, sobretudo, a ênfase dada à reforma intelectual e moral como condição necessária, não suficiente à tomada do poder estatal, que, para muitos críticos, aparece como centralidade da luta e, por isso mesmo, tratada como única expressão das funções de hegemonia. Em contraposição a essa tendência, concorda-se com o ponto de vista de que o movimento de constituição de uma nova hegemonia envolve a conquista da direção e depois direção+domínio2, e entre esses “[...] momentos há um interregno de ruptura, pois nenhuma classe social armada e dominante cede seu poder militar e seus privilégios só por convencimento.” (SECCO, 1996, p. 86).
Deste modo, a reforma intelectual e moral como um amplo movimento de crítica e destruição da cultura dominante “[...] significa criar o terreno para um novo desenvolvimento da vontade coletiva nacional-popular, no sentido da realização de uma forma superior e total de civilização moderna.” (GRAMSCI, 2000b, p. 18). Assim, a formação de uma vontade coletiva pelas classes subalternas como expressão de um processo de reforma intelectual e moral refere-se à “[...] consciência operosa da necessidade histórica como protagonista de um drama real e efetivo.” (GRAMSCI, 2000b, p. 17). Constitui, assim, uma categoria complexa onde se evidenciam os nexos contraditórios entre a superestrutura e a base econômica na constituição de um novo bloco histórico, de uma nova hegemonia e se apresenta como “[...] possibilidade inscrita na totalidade social.” (DIAS, 1996, p. 14).
Sob este ângulo de análise, pode-se entender o enraizamento do aparelho de hegemonia na sociedade civil considerada em sua dupla dimensão, isto é, político-ideológica e econômica, na medida em que para Gramsci (2001, p. 247), “[...] a hegemonia nasce da fábrica e necessita, apenas, para ser exercida, de uma quantidade mínima de intermediários profissionais da política e da ideologia”; assim como, a concretização das funções de direção e domínio nas mediações que corporificam a relação entre a sociedade civil e o Estado. As funções de hegemonia (direção e domínio) na concepção gramsciana dão conta das estruturas de poder burguês no ocidente e das possibilidades de destruição/construção das mesmas estruturas pelas classes subalternas, estando essas funções associadas à relação orgânica entre Estado e sociedade civil.
Na perspectiva de desvendar a hegemonia burguesa para melhor instrumentalizar a construção da hegemonia das classes subalternas, tendo presente a relação orgânica e dialética entre economia e política, esse pensador marxista elabora a noção geral de Estado ou do Estado integral (GRAMSCI, 2000b) em contraposição ao economicismo e ao liberalismo, na qual “[...] entram elementos que devem ser remetidos à noção de sociedade civil (no sentido, seria possível dizer, de que Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de coerção).” (GRAMSCI, 2000b, p. 244, grifo do autor).Nessa concepção sobre o Estado, o autor atenta para o fato de que as funções do Estado não se resumem às atividades coercitivas desenvolvidas pelo aparato do governo executivo e instituições jurídico-policiais ou sociedade política = Estado no sentido estrito, mas inclui funções de consenso ou educativas a cargo dos organismos privados da sociedade civil. Distingue assim, os “[...] elementos constitutivos do Estado em sentido orgânico e mais ampliado (Estado propriamente dito e sociedade civil).” (GRAMSCI, 2000b, p. 244), ou seja, duas instâncias na composição do Estado, como unidade dialética.
Em Gramsci, portanto, o Estado abrange “[...] todo o complexo de atividades práticas e teóricas com as quais a classe dirigente não só justifica e mantém seu domínio, mas consegue obter o consenso ativo dos governados.” (GRAMSCI, 2000b, p. 331). Esse pensador critica a tendência de identificação entre Estado e governo, como “[...] uma representação da forma corporativo-econômica, isto é, da confusão entre sociedade política e sociedade civil.” (GRAMSCI, 2000b, p. 244).
A discussão sobre a relação entre sociedade civil e sociedade política constitutiva da noção geral de Estado, tem gerado inúmeras polêmicas3, equívocos e banalizações da análise gramsciana, sobretudo em relação à concepção de sociedade civil que tende a ser confundida com “[...] uma associação de associações amorfa, desestruturada, sem cortes e sem contradições, homogeneizada.” (PAULO NETTO, 2004, p. 68), em contraposição ao Estado, restrito a governo, também homogeneizado e isento de contradições. E, ao se referir às ‘iniciativas privadas’ para caracterizar a sociedade civil, considera essas iniciativas no terreno da atividade econômica e no terreno das atividades político-ideológicas4.
Sobre a identidade – distinção entre sociedade civil e sociedade política, encontram-se elementos elucidativos na análise gramsciana quando esta relação aparece sob a forma de
[...] identificação orgânica entre indivíduos (de um determinado grupo) e Estado, de modo que ‘todo o indivíduo é funcionário’ não na medida em que é empregado pago pelo Estado e submetido ao controle ‘hierárquico’ da burocracia estatal, mas na medida em que ‘agindo espontaneamente’, sua ação se identifica com os fins do Estado (ou seja, do grupo social determinado ou sociedade civil). (GRAMSCI, 2000b, p. 282).
Tal identificação resulta de uma das funções mais importantes do Estado que é a de educação da grande massa da população, para a adesão e consentimento ao projeto dominante. Cria mecanismos e instituições próprias, dentre elas, são as mais importantes,
[...] a escola, como função educativa positiva, e os tribunais, como função educativa repressiva e negativa, [...] na realidade, tendem para este fim uma multiplicidade de outras iniciativas e de outras atividades ditas privadas que formam o aparelho da hegemonia política e cultural das classes dominantes. [...] Mas, na realidade, só o grupo social que coloca o fim do Estado e o seu próprio fim como objetivo a atingir pode criar um Estado ético, tendendo a pôr termo às divisões internas em que implica a dominação etc. e a criar um organismo social unitário técnico-moral. (GRAMSCI, 2000b, p. 284).
A unidade entre o Estado e a sociedade civil consubstancia-se numa relação contraditória de negação e afirmação, na qual é plasmado o conteúdo ético do Estado, base da unidade do bloco histórico. Portanto, não é o Estado que determina a sociedade civil, mas ao contrário, é a sociedade civil que o determina. É na relação entre sociedade política e sociedade civil, como unidade orgânica, que Gramsci centra toda sua análise sobre os processos revolucionários (considerados na diversidade das sociedades de tipo oriental e ocidental), apreendendo a sociedade civil como a base histórica do Estado de onde emana o seu conteúdo ético, como dito. A conquista do Estado pelas classes subalternas representa um momento em que essas classes, tendo já superado os interesses econômico-corporativos, alcançam uma homogeneidade entre infraestrutura e superestrutura, isto é, “[...] o bloco histórico se torna real, torna-se um bloco histórico no poder.” (BUCI-GLUCKSMANN, 1980, p. 126). Assim, sob esse ponto de vista, a problemática do Estado incorpora a de correlação de forças, e a sociedade civil encontra-se atravessada, do econômico ao ideológico, pela luta de classes.
A cultura se expressa na totalidade do bloco histórico e o seu processo de desenvolvimento está ligado a uma dialética intelectual-massa. Em relação à perspectiva das classes subalterna,
[...] a compreensão crítica de si mesmo é obtida [...] através de uma luta de ‘hegemonias’ políticas, de direções contrastes, primeiro no campo da ética, depois no da política, atingindo, finalmente, uma elaboração superior da própria concepção do real. A consciência de fazer parte de uma determinada força hegemônica (isto é, a consciência política) é a primeira fase de uma ulterior e progressive autoconsciência, na qual teoria e prática finalmente se unificam. (GRAMSCI, 1999, p. 103).
Nessa linha de discussão, o conceito de hegemonia para Gramsci (1999, p. 104), representa além do “[...] progresso político-prático, um grande progresso filosófico, já que implica e supõe necessariamente uma unidade intelectual e uma ética adequada a uma concepção do real que superou o senso comum e tornou-se crítica, mesmo que dentro de limites ainda restritos”.
Nesse processo, Gramsci (1999, p. 314) emprega a expressão catarse,
[...] para indicar a passagem do momento meramente econômico (egoístico-passional) ao momento ético-político, isto é, a elaboração superior da estrutura em superestrutura na consciência dos homens. Isto significa também a passagem do ‘objetivo ao subjetivo’ e da ‘necessidade à liberdade’. A estrutura de força exterior que esmaga o homem, assimilando-o e o tornando passivo, transforma-se em meio de liberdade, em instrumento para criar uma nova forma ético-política, em origem de novas iniciativas.
Para esse pensador o momento catártico torna-se assim, o ponto de partida de toda a filosofia da práxis, e coincide com a cadeia de sínteses que resultam do desenvolvimento dialético. Nessa análise Gramsci, retoma os dois pontos assinalados por Marx, entre os quais oscila esse processo: “[...] que nenhuma sociedade se coloca tarefas para cuja solução já não existam, ou estejam em vias de aparecimento, as condições necessárias e suficientes; e que nenhuma sociedade deixa de existir antes de haver expressado todo o seu conteúdo potencial.” (GRAMSCI, 1999, p. 314).
Para Gramsci todos os homens são intelectuais na medida em que todos são filósofos, ainda que a seu modo, inconscientemente, pois “[...] até mesmo na mais simples manifestação de uma atividade intelectual qualquer, na ‘linguagem’ está contida uma determinada concepção de mundo.” (GRAMSCI, 1999, p. 93), todavia, chama atenção para o fato de que “nem todos os homens têm na sociedade a função de intelectuais.” (GRAMSCI, 2000a, p. 18). A função intelectual encontra-se contida não no que é intrínseco a essas atividades, mas no conjunto do sistema de relações no qual se encontram os indivíduos que as personificam, isto é, na função social da categoria profissional dos intelectuais na organização da cultura, mediante exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo político, ou seja, nas funções de coerção e consenso (direção e domínio).
As classes fundamentais criam, para si, ao mesmo tempo no terreno do seu surgimento no mundo da produção econômica, “[...] organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhes dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e no político.” (GRAMSCI, 2000a, p. 15). Sendo assim, não há organização sem organizadores e dirigentes, como também não há intelectuais sem classe. Os intelectuais são criadores e difusores das concepções de mundo das classes fundamentais. Não estabelecem uma relação imediata com o mundo da produção, essa relação “[...] é ‘mediatizada’ em diversos graus por todo o tecido social, pelo conjunto das superestruturas do qual os intelectuais são precisamente os ‘funcionários’.” (GRAMSCI, 2000a, p. 20).
A noção de organicidade da função dos intelectuais modernos não se esgota no vínculo político estabelecido entre estes e a classe, mas requer a sua inserção como categoria orgânica às atividades essenciais na estrutura produtiva, independentemente de sua origem de classe, mediante o exercício de funções organizativas, diretivas. Trata-se do intelectual de novo tipo o especialista+político, o intelectual moderno, o intelectual orgânico. Esse tipo de intelectual se distingue, segundo o modo de seu surgimento na sociedade, do intelectual do tipo tradicional, referido às camadas intelectuais preexistentes – como representantes de uma continuidade histórica, podendo estas camadas estabelecer vínculos políticos estreitos com as classes fundamentais modernas, e até mesmo, no exercício de suas funções intelectuais, principalmente via mediação partidária, confundirem-
-se com os intelectuais orgânicos de uma classe fundamental. Significa dizer que os intelectuais tradicionais podem constituir-se intelectuais orgânicos de uma classe fundamental (considerando-se aqui, as diferentes gradações da atividade intelectual que dão a dimensão da maior ou menor organicidade à classe), na medida em que as funções que venham a desempenhar traduzam funções orgânicas, inerentes às atividades essenciais dessas classes, inclusive de cunhos organizativo e diretivo, como é o exemplo de alguns advogados, médicos, etc.
Gramsci acentua a função do intelectual no movimento histórico real de organização e luta de classes, ao considerar que a classe detentora do capital, em seu processo de constituição, desenvolve as mais amplas camadas de intelectuais. Ela não apenas desdobra, na maioria das vezes, suas funções essenciais em novas especializações profissionais, como cria para qualificar técnicos para o desempenho dessas funções - o mais complexo sistema educativo de formação dos intelectuais, onde a escola é o principal e o mais importante instrumento. Além disso, o próprio mundo da produção é instância formadora desse intelectual. Assim, como assinala Dias (1991, p. 10),
[...] seja na escola, seja no mundo da produção [...] todos os elementos vitais do processo produtivo nada mais são, em última análise, do que racionalizações do processo vital da classe dominante; (o que é ‘prática’ para a classe fundamental se torna ‘racionalidade’ e especulação para seus intelectuais).
Sob o ponto de vista das classes subalternas, a formação de seus intelectuais se efetiva apesar e contra o sistema político-ideológico dominante. Em contraposição à cultura política da burguesia viabilizada nos diferentes espaços da sociedade capitalista, as classes subalternas formam seus intelectuais em espaços diferenciados, em que o partido, o sindicato e outras instâncias de organização são as academias. A esses intelectuais compete o trabalho de reforma intelectual e moral, ou seja, de elaboração de um pensamento superior ao senso comum, mantendo sempre uma relação educativa formativa com a massa no sentido da sua elevação intelectual e cultural, condições necessárias na formação de uma nova cultura.
Gramsci (1999, p. 105) sublinha a importância do partido político, como intelectual coletivo, na elaboração e difusão das concepções de mundo e elaboradores das intelectualidades integrais e universais, isto é, “[...] o crisol da unificação da teoria e prática entendida como processo histórico real”. Acentua que a formação do partido com essa função histórica
[...] se realize através da adesão individual e não ao modo ‘laborista’, já que – se se trata de dirigir organicamente ‘toda a massa economicamente ativa’deve-se dirigi-la não segundo velhos esquemas, mas inovando; e esta inovação só pode tornar-se de massa, em seus primeiros estágios, por intermédio de uma elite na qual a concepção implícita na atividade humana já se tenha tornado, em certa medida, consciência atual coerente e sistemática e vontade precisa e decidida. (GRAMCSI, 1999, p. 105).
Daí a atenção da análise gramsciana à formação do intelectual vinculado às classes subalternas, especialmente em relação ao operariado fabril, em que considera – contrariando a tese taylorista do desenvolvimento de atitudes maquinais no trabalhador fabril - que “[...] a educação técnica, estreitamente ligada ao trabalho industrial, mesmo ao mais primitivo e desqualificado, deve constituir a base do novo tipo de intelectual” e ressalta que,
[...] o modo de ser do novo intelectual não pode mais consistir na eloquência, motor exterior e momentâneo dos afetos e das paixões, mas numa inserção ativa na vida prática, como construtor, organizado, ‘persuasor permanente’, já que não apenas orador puro – mas superior ao espirito matemático abstrato; da técnica – trabalho, chega à técnica – ciência e à concepção humanista histórica, sem a qual permanece ‘especialista’ e não se torna ‘dirigente’ (especialista+ político). (GRAMSCI, 2000a, p. 53).
Tendo o trabalho como princípio educativo, as preocupações gramscianas com a formação escolar em seus diferentes níveis residem na necessidade de criação de um tipo de escola democrática em contraposição à escola tradicional oligárquica vinculada aos interesses dos grupos dirigentes. Considera que
[...] não é a aquisição de capacidades diretivas, não é a tendência de formar homens superiores que dá a marca social de um tipo de escola. A marca é dada pelo fato de que cada grupo social tem um tipo de escola próprio, destinado a perpetuar nestes grupos uma determinada função tradicional, diretiva ou instrumental. Se se quer destruir esta trama, portanto, deve-se evitar a multiplicação e graduação dos tipos de escola profissional, criando-se, ao contrário, um tipo único de escola preparatória (elementar – média) que conduza o jovem até os umbrais da escola profissional, formando-o entrementes como pessoa capaz de pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar quem dirige. (GRAMSCI, 2000a, p. 49).
Assim, a escola tem função estratégica nos movimentos culturais, na medida em que como analisa Gramsci (2000a, p. 49), trata-se de uma instituição que luta
[...] contra todas sedimentações tradicionais de concepção de mundo, a fim de difundir uma concepção moderna, cujos elementos primitivos e fundamentais são dados pela aprendizagem da existência de leis naturais como algo objetivo e rebelde, às quais é preciso adaptar-se para dominá-las, e de leis civil e estatais, produto de uma atividade humana, que são estabelecidas pelo homem e podem ser por ele modificadas tendo em vista seu desenvolvimento coletivo.
Essa formação é um elemento importante na criação de uma nova camada intelectual, na medida em que a escola constitui com a religião as principais organizações formadoras da cultura. A formação do intelectual do novo tipo, para esse pensador, consiste
[...] em elaborar criticamente a atividade intelectual que cada um possui em determinado grau de desenvolvimento, modificando sua relação com o esforço muscular-nervoso no sentido de um novo equilíbrio e fazendo com que o próprio esforço muscular-nervoso, enquanto elemento de uma atividade prática geral, que inova perpetuamente o mundo físico e social, torne-se o fundamento de uma nova e integral concepção de mundo. (GRAMSCI, 2000a, p. 53).
Assim, o estabelecimento de um novo conformismo surgido das classes subalternas – um tipo diferente e indubitavelmente superior - supõe um novo equilíbrio psicofísico, em que a coerção interna de organização do eu interior é parte de um novo tipo de humanismo. Este conformismo proposto pelos próprios trabalhadores coloca-se na base de uma nova sociedade, supondo meios próprios e originais de constituição. Trata-se de um “[...] conformismo dinâmico que não somente adapta o indivíduo ao ambiente, mas o educa para dominá-lo. Graças a esse conformismo, o automatismo converte-se em liberdade, a liberdade converte-se em responsabilidade e personalidade.” (MANACORDA,1990, p. 283). O novo conformismo é, portanto, elemento de uma nova sociabilidade – a socialista. A análise gramsciana reconhece, assim, a existência histórica do conformismo como um custo a pagar por todo o progresso. Não é o conformismo o problema, mas quem o exerce.
O novo conformismo coloca-se como devir histórico, como expressão da conquista da unidade na relação entre teoria e prática, cindida pelas relações de dominação e alienação. A dicotomia entre o pensar e o agir sob o ponto de vista das classes subalternas é uma necessidade da reprodução da ordem burguesa, e se manifesta na consciência contraditória do homem ativo de massa, ou seja, é possível dizer que ele tem duas consciências:
[...] uma implícita na sua ação, e que realmente o une a todos os seus colaboradores na transformação prática da realidade; e, outra, superficialmente explicita ou verbal, que ele herdou do passado e acolheu sem crítica. Todavia esta consciência verbal não é inconsequente: ela liga a um grupo social determinado, influi sobre a conduta moral, sobre a direção da vontade, de uma maneira mais ou menos intensa, que pode até mesmo atingir um ponto no qual a contraditoriedade da consciência não permita nenhuma ação, nenhuma escolha e produza um estado de passividade moral e política. (GRAMCI, 1999, p. 103).
A consciência contraditória se expressa no senso comum, ou seja, em uma concepção de mundo ocasional e desagregada com momentos de lucidez sobre a própria realidade de vida, que bem traduzem expressões populares de uma filosofia, e despertam para a “[...] superação das paixões bestiais e elementares numa concepção da necessidade que fornece à própria ação uma direção consciente.” (GRAMSCI, 1999, p. 98). Para Gramsci (1999, p. 98), “[...] este é o núcleo sadio do senso comum, que poderia ser chamado de bom senso e que merece ser desenvolvido e transformado em algo unitário e coerente”.
O movimento cultural de superação o senso comum pelas classes subalternas e formação de uma concepção de mundo própria, unitária e coerente situa-se no campo da filosofia e coloca determinadas necessidades, como questões pedagógicas, dentre elas:
1) não se cansar jamais de repetir os próprios argumentos (variando literariamente a sua forma): a repetição é o meio didático mais eficaz para agir sobre a mentalidade populares; 2) trabalhar de modo incessante para elevar intelectualmente camadas populares cada vez mais vastas, isto é, para dar personalidade ao amorfo elemento de massa, o que significa trabalhar na criação de elites de intelectuais de novo tipo, que surjam diretamente da massa e que permaneçam em contato com ela para se tornarem seus ‘espartilhos’. Esta segunda necessidade, quando satisfeita, é a que realmente modifica o ‘panorama ideológico’ de uma época. (GRAMSCI, 1999, p. 110).
Essa mudança de panorama ideológico, só pode ser concebida como atividade prática coletiva, realizada pelo homem coletivo, pressupõe, como dito, a conquista da unidade teoria e prática, como devir histórico, ou seja, de uma nova unidade cultural-social.
Nesse amplo movimento, a organicidade do pensamento e a solidez cultural só podem ocorrer se entre os intelectuais e os simples se verificar “[...] a mesma unidade que deve existir entre a teoria e prática.” (GRAMSCI, 1999, p. 100), isto é, se os intelectuais forem os intelectuais orgânicos daquelas massas e tiverem elaborado e tornado coerentes os princípios e os problemas que aquelas massas tenham colocado com a sua atividade prática, “[...] constituindo a assim um bloco cultural e social.” (GRAMSCI, 1999, p. 100). Nessa relação, outra questão pedagógica é apontada por Gramsci. Trata-se da observação de que no trabalho de “[...] elaboração de um pensamento superior ao senso comum e cientificamente coerente, os intelectuais devem permanecer em contato com os ‘simples’”, mediante o qual encontram a fonte dos problemas que devem ser estudados e resolvidos, e “[...] só através desse contato é que uma filosofia se torna histórica, depura-se dos elementos intelectualistas de natureza individual e se transforma em ‘vida’.” (GRAMSCI, 1999, p. 100).
A ideologia e a linguagem, como principais expressões de uma nova cultura, são constituídas organicamente. A primeira refere-se às diferentes formas de elaborações filosóficas, formadoras da nova concepção de mundo; a segunda, como veículo de expressão e socialização da nova concepção de mundo, demonstra o maior ou menor grau de complexidade desta e seu potencial na construção da nova unidade cultural-social fundada em novos códigos de sociabilidade. É importante ressaltar que esses códigos refletem também as transformações econômicas, posto que deste campo emanam os fundamentos da nova sociabilidade.
As ideologias são difundidas e se transformam em modos de vida – culturas. As ideologias, como concepções de mundo, correspondem, na análise gramsciana, às elaborações filosóficas em graus diferenciados de abstração, incluindo desde as elaborações espontâneas implícitas na atividade real de cada um, contidas na linguagem comum, na religião popular, no sistema de crenças, superstições, opiniões, modo de ver e de atuar, que se esboçam no que geralmente se chama folclore, às elaborações filosóficas logicamente afirmadas como fatos intelectuais, que superam o senso comum, cuja construção só pode efetivar-se no quadro da história da filosofia. Gramsci distingue as ideologias orgânicas, portanto essenciais, porque vinculadas a uma classe fundamental, das ideologias arbitrárias, sem importância histórica, por não manterem vínculo orgânico com as classes fundamentais. As ideologias orgânicas, como concepções de mundo próprias das classes, constituem a base de uma ordem intelectual que dirige e orienta a ação prática em conformidade aos interesses de uma classe.
A ideologia é, assim, tanto elemento de dominação, de vez que desde a entrada do homem no mundo consciente lhe é imposta uma concepção de mundo, mecanicamente, “[...] por um dos grupos sociais nos quais todos estão automaticamente envolvidos”, (GRAMSCI, 1999, p. 94), quanto pode ser elemento de libertação, quando ocorre a elaboração de uma concepção de mundo própria dos grupos subalternos, mediante a qual verifica-se o afastamento da influência ideológica da classe dominante, que é, assim, uma necessidade “[...] a fim de conseguir romper a unidade baseada na ideologia tradicional, ruptura sem a qual a força nova não poderia adquirir consciência da própria independência.” (GRAMSCI, 2000, p. 58).
Nesse processo, a questão da linguagem põe-se como uma necessidade enquanto principal veículo de expressão da nova concepção de mundo. Face à necessidade de adequação dos novos conteúdos, ela precisa ser recriada, como parte do desenvolvimento geral de determinada língua. Além disso, a linguagem comum reflete as diferenças histórico-sociais presentes entre os estratos numerosos que se pretenda unificar em torno de um projeto de hegemonia. Neste sentido, a elaboração de uma nova linguagem pressupõe o alcance de uma unidade cultural-social
[...] pela qual uma multiplicidade de vontades desagregadas, com fins heterogêneos, solda-se conjuntamente na busca de mesmo fim, com base numa idêntica e comum concepção de mundo (geral e particular, transitória operante – por meio da emoção – ou permanente, de modo que a base intelectual esteja tão enraizada, assimilada e vivida que possa se transformar em paixão). (GRAMSCI, 1999, p. 399).
Reitera-se, portanto o entendimento de que a formação de uma nova cultura pelas classes subalternas só pode ser entendida no marco dos processos revolucionários da sociedade capitalista, ou seja, do conjunto das transformações estruturais e superestruturais em que a ação política direta constitui o primeiro passo no sentido da auto-realização auto-transcendente das referidas classes. Uma determinada cultura, como totalidade, expressa-se no bloco histórico, ou seja, na unidade orgânica entre a estrutura e a superestrutura sob a hegemonia de uma determinada classe.
Sob o ponto de vista das classes subalternas a filosofia da práxis apresenta-se como a nova concepção de mundo que pretende tornar-se senso comum na perspectiva de uma nova socialibidade. Em contraposição à concepção de mundo dominante ela “[...] só pode apresentar-se inicialmente como atitude polêmica e crítica, como superação da maneira de pensar precedente e do pensamento concreto existente (o mundo cultural existente).” (GRAMSCI, 1999, p. 101). O seu grande desafio, diferente da pedagogia elaborada pelo catolicismo que sempre procurou manter os simples na sua filosofia primitiva do senso comum, é avançar na construção de práticas e instrumentos pedagógicos originais para conduzi-los a uma concepção de vida superior, uma nova cultura, no confronto permanente com as forças do retrocesso no amplo movimento das transformações estruturais e superestruturais. Como afirma Gramsci (1999, p. 13),
Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas “originais”, significa também, e, sobretudo, difundir criticamente verdades já descobertas, “socializá-las”, por assim dizer; e, portanto, transformá-las em bases de ações vitais, em elemento de coordenação e de ordem intelectual. O fato de que uma multidão de homens seja conduzida a pensar coerentemente e de maneira unitária a realidade presente é um fato ‘filosófico’ bem mais importante e ‘original’ do que a descoberta, por parte de um “gênio” filosófico, de uma nova verdade que permaneça como patrimônio de pequenos grupos de intelectuais.