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Recepção: 02 Março 2018
Aprovação: 09 Maio 2018
Resumo: Aborda categorias analíticas centrais do pensamento de Gramsci e da tradição marxista (Classes Sociais, Classes subalternas, Hegemonia e transformação Social) reconstruindo-as na configuração histórico-conceitual do objeto de estudo: Classes Sociais e Construção da Hegemonia das Classes Subalternas. Parte da premissa inspirada, fundamentalmente, na visão gramsciana: é exigência histórica do processo de transformação social a ruptura, pelas classes subalternas, com a ideologia dominante e a construção de uma concepção de mundo própria que constitui a base de ações vitais. Essa premissa se constitui eixo condutor para a reconstrução do objeto deste estudo.
Palavras-chave: Classes sociais, classes subalternas, hegemonia.
Abstract: It addresses central analytical categories of Gramsci’s thinking and Marxist tradition (Social Classes, Subaltern Classes, Hegemony and Social Transformation) by reconstructing them in the historic-conceptual configuration of the object of study: Social Classes and Construction of the Hegemony of the Subaltern Classes. Part of the premise inspired fundamentally in Gramsci’s view: it is a historical requirement of the process of social transformation to break the subaltern classes with the dominant ideology and the construction of a conception of their own world that forms the basis of vital actions. This premise constitutes the guiding gaxis for there construction of the object of this study
Keywords: Social classes, subaltern classes, hegemony.
1 INTRODUÇÃO
É possível que, em face do fracasso das experiências socialistas no final do século XX, levantem-se questões quanto à pertinência do objeto deste estudo pelas suas perspectivas teórica e política, bem como quanto à possibilidade que teria o pensamento gramsciano de contribuir para o desvelamento de questões postas, hoje, pela ordem social. Mas essas questões podem ser efetivamente respondidas. Gramsci inclui-se entre os pensadores cuja proposta está fundada no pensamento de Marx e muitas das ideias difundidas, tanto na produção gramsciana quanto na marxiana, podem estar insuficientes para esclarecer problemas deste século.
Entretanto, isso não significa que as teorias por eles fundadas tenham deixado de ser um instrumento fundamental para apreender a realidade atual. A perspectiva teórico-metodológica dos dois teóricos revolucionários é a que permite o conhecimento das determinações da vida social na ordem burguesa, desvelando os processos que a engendram e as totalidades que a constituem.
No contexto dessa opção teórico-metodológica e política, a prioridade dada a Gramsci se justifica pela contemporaneidade de seu pensamento, por ser a prática política o eixo central de sua preocupação teórica e, sobretudo, pela importância que assume em sua produção, a reforma intelectual e moral a formação de uma nova cultura pelas classes subalternas – como condição de hegemonia dessas classes.
As contribuições, neste estudo, de pensadores da tradição marxista e de Gramsci, em particular, constituem referências básicas e genéricas para pensar a realidade social como totalidade histórica e para apreender o movimento do real e reproduzi-lo idealmente. Priorizei neste estudo as fontes bibliográficas, entendendo que: se é verdade que a história de um problema é um problema da história,ou seja, que a história do tratamento de um objeto passa a fazer parte desse objeto, então as reproduções ideais também se materializam, o teórico se converte em objeto prático.
A sistematização de parte dos resultados dos meus estudos, aqui estruturada em forma de artigo, compõe-se de dois grandes itens, com pequenos desdobramentos: no primeiro, debato o conceito de classe social, a partir de Marx e busco precisar o meu entendimento sobre classes subalternas, inspirada, fundamentalmente, em Gramsci e nas contribuições de Sartriani; no segundo estabeleço relações entre as categorias consciência de classe, organização e hegemonia, evidenciando o significado que têm no processo de superação pelas classes subalternas, de sua condição de subalternidade. Concluo a exposição recuperando aspectos relevantes do confronto das classes subalternas com o Estado e classe dominante no processo de construção de um novo bloco histórico e aponto alguns elementos fundamentais da atual conjuntura brasileira fundamentada em Gramsci, mostrando a atualidade do seu pensamento.
2 CLASSES SOCIAIS E CLASSES SUBALTERNAS: do conceito clássico ao debate contemporâneo
Tanto na literatura universal quanto na nacional há profundas divergências sobre a questão das classes, seja em termos de sua conceituação, seja quanto à sua existência. Daí, a importância da investigação e debate desse conceito.
Parto, inicialmente, das formulações de Marx, sobre classe social, por ser este teórico revolucionário a fonte mais relevante dessa relação conceitual e histórica e amplio a discussão com o conceito de classes subalternas e com outras formulações contemporâneas que pertençam ao mesmo campo teórico, enquanto procedentes de analistas da tradição marxista.
Entre 1844 e 1846 Marx vincula-se ao movimento operário, tanto do ponto de vista político quanto do teórico. Com essa vinculação começa a surgir a determinação de um projeto revolucionário que se destaca como ponto fundamental no itinerário de Marx. É naquele período que se verificam os encontros de Marx com a economia política, com a possibilidade de revolução e com a ultrapassagem da filosofia especulativa. Surgem aqui, as categorias de classe e revolução.
No Manifesto Comunista, 1848, a acepção usada, por Marx, do termo classe refere-se aos amplos conjuntos de sujeitos históricos que se constituem segundo um critério objetivo: por manterem relações similares com os meios de produção. Dito de outra forma, o termo classe, no Manifesto Comunista, refere-se aos
[...] agrupamentos de exploradores e explorados que, em virtude de razões puramente econômicas são encontrados em todas as sociedades humanas que ultrapassassem a fase primitiva comunal e, como argumentaria Marx, até o triunfo da revolução proletária. (HOBSBAWM, 1988, p. 36).
São classes diferentes e antagônicas que emergem com a dissolução das comunidades primitivas: a burguesa constituída pelos capitalistas modernos, proprietários dos meios de produção que empregam o trabalhador assalariado; e o proletariado constituído pelos trabalhadores assalariados modernos, que, não possuindo meios de produção próprios, são obrigados a vender a sua força de trabalho para sobreviver.
Nessa acepção de Marx e Engels (1991), sobre classe social, dois elementos importantes se destacam: a propriedade dos meios de produção e a consequente condição de assalariamento de setores da sociedade que não possuem esses meios. É, portanto, a partir das relações econômicas que esses grupos se definem enquanto classes. Numa segunda acepção usada por Marx ele introduz um elemento subjetivo no conceito de classe – a consciência de classe cuja discussão é feita em O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte. Com esse elemento, uma classe, em sua acepção plena só vem existir no momento histórico em que começa a adquirir consciência de si como tal.
Partindo dessas reflexões e reafirmando meu ponto de vista quanto à existência das classes sociais, minha referência neste estudo, é a concepção de classes sociais como
Grupos que se definem, enquanto classe, pelas relações de propriedade com os meios de produção (proprietários ou não proprietários) e pela identidade no modo de pensar e de agir, consolidando-se, efetivamente, como tal, à medida que desenvolvem sua consciência de classes. Ou seja, à medida que o movimento da história é tornado consciente pelo conhecimento dos grupos antagônicos de sua situação de classe. (CARDOSO, 1995, p. 61).
Sobre as classes subalternas, para precisar meu entendimento, parto da premissa de que a condição de subalternidade é determinada pelo lugar que segmentos dessas classes, numa sociedade capitalista, ocupam no conjunto das relações de produção e nas relações de poder. Segundo Sartriani (1986, p. 98),
Quando nos ocupamos de uma sociedade em que os meios de produção são propriedade privada, a distinção primeira e fundamental que se opera é entre classe capitalista [...] a que detém a propriedade dos meios de produção e classe proletária [...] que não possuindo tal propriedade, é constrangida a vender a sua força de trabalho aos detentores do capital, com isso se alienando (produzindo mais valia para a outra classe por meio do trabalho alienado).
Feita essa distinção, acrescenta, ainda, a necessidade de inclusão dos trabalhadores improdutivos, os desempregados e desocupados, os quais se encontram à margem da própria divisão classista da sociedade burguesa, mas, a meu ver, na condição de subalternidade. Nesse ponto de vista, incluem-se no âmbito das classes subalternas, todos os segmentos da sociedade capitalista que não possuem os meios de produção e estão, portanto, sob o domínio econômico, político e ideológico das classes que representam o capital no conjunto das relações de produção e das relações de poder: assalariados dos setores caracterizados como primário, secundário e terciário (elementos dos setores produtivo e improdutivo); os que exercem atividade manual e os que exercem atividade não manual e intelectual. Incluem-se, ainda, os segmentos não incorporados ao mercado de trabalho, que são os trabalhadores em potencial, inclusive o exército industrial de reserva, que é um segmento extremamente funcional para o capitalismo.
No pensamento gramsciano, a relação entre classes dominantes, classes dirigentes e classes subalternas só se explicita quando se tomam, dialeticamente, as categorias sociedade política ou Estado e sociedade civil. Gramsci estabelece duas grandes esferas na superestrutura: a esfera da sociedade civil e outra da sociedade política ou Estado. Ambas as esferas superestruturais formam, em conjunto, o que Gramsci (1989a) define como Estado no sentido integral: ditadura + hegemonia, ou, como o próprio teórico revolucionário escreve em outro contexto, sociedade política + sociedade civil. Assim concebendo, as duas esferas do Estado
Servem para conservar ou promover uma base econômica de acordo com os interesses de uma classe fundamental. Mas o modo de encaminhar essa promoção ou conservação varia nos dois casos: no âmbito e através da sociedade civil as classes buscam exercer sua hegemonia, ou seja, buscam ganhar aliados para suas posições mediante a direção política e o consenso; por meio da sociedade política, ao contrário, as classes exercem sempre uma ditadura, ou, mais precisamente, uma dominação mediante a coerção. (COUTINHO; NOGUEIRA, 1988, p. 77).
Quando uma classe controla o Estado e impõe-se às demais classes através do aparato jurídico-político, ela se torna dominante. Mas pode, também, ser dirigente quando estabelece relações orgânicas com a sociedade civil. É a capacidade que tem uma classe de ser, ao mesmo temo tempo dominante e dirigente, hegemônica que consolida a unidade histórica de determinada(s) classe(s).
As classes subalternas necessitam, de modo geral, dessa unidade histórica porque não dispõe do controle sobre o Estado nem exercem a hegemonia sobre as demais classes. Entretanto, essa unidade é construída e a sua consolidação supõe, inclusive, que as classes se tornem dirigentes, antes mesmo de serem dominantes.
Para Gramsci, entre os grupos subalternos um tenderá a exercer a hegemonia sobre os demais através do partido, concebido como intelectual coletivo. O grupo a que Gramsci (1989a) se refere é o proletariado industrial, à medida que consegue criar um sistema de aliança com os demais grupos e frações de classes afins e mobilizar o conjunto dessas classes contra o capitalismo e o Estado burguês.
3 SUPERAÇÃO PELAS CLASSES SUBALTERNAS DE SUA CONDIÇÃO DE SUBALTERNIDADE, NO PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL
Neste item tomo como ponto de partida a categoria hegemonia, por considerá-la ponto de referência conceitual básico, no pensamento político de Gramsci (1989b), no qual essa categoria é pensada sob diferentes óticas, sendo a ótica da reforma intelectual e moral a mais pertinente ao objeto deste estudo.
No pensamento gramsciano, a formação da consciência nacional popular depende da capacidade das classes subalternas, da cidade e do campo, de se constituírem em uma alternativa de reorganização social e política da sociedade. Essa questão está relacionada a uma perspectiva que coloque na ordem do dia o problema da construção de uma hegemonia de novo tipo.
Assim o tema da hegemonia é central entre as preocupações de Gramsci (1989b), em relação às possibilidades de as classes subalternas se tornarem protagonistas históricos, dotados de vontade coletiva própria. Nesse sentido, a hegemonia se refere à capacidade de uma dessas classes que aspire a dirigir o conjunto da sociedade em trabalhar os interesses do conjunto dos grupos subalternos, em termos de um projeto universal que contemple a organização e a participação relacionadas à política como dimensão pedagógica.
Essa noção de hegemonia tem um cunho cultural que não opera apenas no âmbito intelectual, mas informa toda a cotidianidade dos sujeitos. Desse modo, participar de forma organizada da política, numa perspectiva pedagógica, é manifestar capacidade de intervir no processo de transformação social e político de modo consciente.
É nesse sentido que entendo a organização e a consciência de classe como condições para a conquista da hegemonia pelas classes subalternas.
3.1 O conceito de hegemonia em Gramsci
Na dialética do pensamento gramsciano a questão da hegemonia – a partir da qual e para a qual o teórico e militante marxista pensa a política – é trabalhada em diversos ângulos, entre eles: um, que toma a questão das alianças de classes (operários e camponeses) como central; outro que destaca o partido político como intelectual coletivo, ao qual é atribuída a tarefa de estabelecer o nexo entre intelectuais e massa, cultura científica e cultura popular, no sentido da construção de uma vontade coletiva nacional popular, ou seja da constituição das classes subalternas como sujeitos da ação histórica; e um terceiro, que examina o processo de construção da hegemonia como reforma intelectual e moral, ou seja, como construção de uma nova cultura.
Esses ângulos de discussão estão estreitamente imbricados, mas constituem, ao mesmo tempo, eixos de análises diversificados de um conjunto unitário. Portanto, é possível aos analistas do pensamento gramsciano, enfatizarem um ou outro eixo de acordo com os interesses de estudo, sem perder de vista as relações existentes com a totalidade da construção teórica da categoria de hegemonia, feitas pelo autor.
Com esse entendimento, examino aqui o conceito de hegemonia enfatizando o eixo de análise referente à reforma intelectual e moral, à perspectiva de construção de uma nova cultura.
Nessa perspectiva de construção de uma nova cultura, a reforma intelectual e moral é um processo que se realiza na prática política e é um “[...] terreno para um ulterior desenvolvimento da vontade coletiva nacional popular, no sentido da realização de uma forma superior e total de civilização.” (GRAMSCI, 1989a, p. 8-9).
Considerada a partir desse eixo de discussão, a hegemonia, no pensamento gramsciano tem uma função eminentemente pedagógica, enquanto processo de constituição ideológica das classes subalternas, que se realiza tanto para afirmar a direção dessas classes quanto para superar a sua condição de subalternidade, construindo uma nova ordem social.
Nos termos colocados, é evidente que o caráter pedagógico da hegemonia não se refere
[...] às relações especificamente escolares, pelas quais as novas gerações entram em contato com as antigas e lhes absorvem as experiências e os valores historicamente necessários, ‘amadurecendo’ e desenvolvendo uma relação própria e culturalmente superior. Esta relação existe em toda a sociedade no seu conjunto e em todo indivíduo com relação a outros indivíduos, bem como entre camadas intelectuais e não-intelectuais, entre governantes e governados, entre elites e seguidores, entre dirigentes e dirigidos, entre vanguardas e corpos do exército. [...] É uma relação ativa de vinculações recíprocas. (GRAMSCI, 1987, p. 37).
Que provoca mudanças no modo de pensar e agir dos sujeitos e onde há negação/superação de hierarquias.
Gramsci (1989a) concebe a constituição da ideologia das classes subalternas como uma condição essencial para a conquista da hegemonia dessas classes, na medida em que conseguem romper com a dominação ideológica das classes adversárias. Esse rompimento não se efetiva independentemente das transformações econômicas, mas não há, por outro lado uma dependência absoluta dessas.
No pensamento gramsciano a ideologia é uma “[...] concepção de mundo que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações da vida individuais e coletivas.” (GRAMSCI, 1978, p. 16). A ideologia tem, portanto, um peso decisivo na organização da vida social, pois se realiza concreta e historicamente, resultando do movimento da estrutura social.
Para Gramsci (1978), essa manifestação da ideologia, enquanto concepção de mundo, objetiva-se em graus diversificados que ele procura demonstrar em suas reflexões sobre o processo de elaboração de uma concepção de mundo crítica e coerente. Estabelece, nessas reflexões, a relação entre filosofia, senso comum e religião, situando esses elementos no interior desse processo de elaboração.
Ao tratar a filosofia, Gramsci (1978) ressalta que há um preconceito bastante difundido de que ela seja algo muito difícil a que apenas uma determinada categoria de cientistas tenha acesso, insistindo que tal preconceito seja destruído. Isso porque, para Gramsci (1978), todos os homens são filósofos, na medida em que – mesmo sem terem consciência -, na mais simples manifestação da atividade intelectual está contida uma concepção de mundo, ou seja, está implícita uma ideologia.
Segundo o teórico marxista, essa filosofia tem limites porque é espontânea. Mas é acessível a todo mundo, manifestando-se
[...] na própria linguagem, que é um conjunto de noções e de conceitos determinados e não simplesmente de palavras gramaticalmente vazias de conteúdos; no senso comum e no bom senso; na religião popular e, consequentemente, em todo o sistema de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e agir que se manifestam naquilo que se conhece geralmente por ‘folclore’. (GRAMSCI, 1978, p. 11).
Nessas formas pelas quais são manifestadas concepções de mundo que, segundo Gramsci, são espontâneas, podem ser avaliados os graus de elaboração ideológica; ou seja, a maior ou menor complexidade da concepção de mundo de cada um e qual o grupo a que pertence: se o de homens-massa ou de homens-coletivo. Pois o grau de concepção de mundo pode revelar a tendência a um ou outro grupo, respectivamente.
Para Gramsci (1978, p. 12):
[...] pela própria concepção de mundo, pertencemos sempre a um determinado grupo, precisamente o de todos os elementos sociais que partilham de um mesmo modo de pensar e agir. Somos conformistas de algum conformismo, somos sempre homens-massa ou homens-coletivos. [...] Quando a concepção de mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada, pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homem-massa, nossa própria personalidade é composta de uma maneira bizarra: nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista; preconceitos de histórias passadas e intuições de uma futura filosofia que será própria do gênero humano, mundialmente unificado. Criticar a própria concepção de mundo, portanto, significa torná-la unitária e coerente e levá-la até o ponto atingido pelo pensamento mundial mais desenvolvido.
Desse modo, a consciência de nossa historicidade, de sua fase de desenvolvimento e de sua relação com outras concepções de mundo é condição fundamental para a constituição de uma filosofia crítica e coerente. A construção dessa filosofia superior ou a criação de uma nova cultura significa, além de todo um processo crítico e de descobertas originais, a difusão e socialização de verdades já desvendadas para torná-las a base do agir das classes subalternas, “[...] o elemento de coordenação é de ordem intelectual e moral.” (GRAMSCI, 1978, p.14).
A hegemonia – enquanto reforma intelectual e moral – é, precisamente, a criação de homens capazes de
[...] pensar coerentemente e de modo unitário o real presente, tornando uma nova cultura patrimônio de todos. Este é um fato filosófico bem mais importante e original do que a descoberta, por parte de um ‘gênio filosófico’, de uma nova verdade que permaneça patrimônio de pequenos grupos intelectuais. (GRAMSCI, 1978, p. 14).
Situando os elementos históricos, filosofia, senso comum e religião no processo de elaboração de uma nova concepção de mundo, Gramsci (1978) entende a filosofia como uma ordem intelectual, por ser, ao mesmo tempo, crítica e superação dos demais elementos. Nesse sentido, a filosofia coincide com o bom senso, que se contrapõe ao senso comum. Mas, lembrando o argumento de Gramsci, ao afirmar que todos os homens são filósofos porque na mais simples atividade intelectual existe uma concepção de mundo, é importante ressaltar que a diferença fundamental entre esses fenômenos é o nível de elaboração crítica. Seguindo o raciocínio do teórico marxista, tanto a religião quanto o senso comum (que também não coincidem, mas o primeiro é um elemento do segundo) expressam concepções de mundo, mesmo que os sujeitos não tenham consciência do que expressam. Ademais, o próprio Gramsci, na passagem de Cadernos do Cárcere em que reflete sobre a relação entre ideologia e filosofia, parte da concepção de religião como concepção de vida e a relaciona ao conjunto das ideologias.
Para o teórico marxista, se a religião é uma concepção de mundo (filosofia) com uma moral (norma de conduta) correspondente, não pode existir diferença entre religião e ideologia e, em última análise entre ideologia e filosofia, embora uma religião, uma filosofia ou uma ideologia, todas possam manifestar-se, historicamente, como fatos individuais.
Essa análise pode se estender para a relação entre filosofia e senso comum, uma vez que ambos constituem concepções de mundo e ambos manifestam-se como fenômenos históricos individuais, sobretudo pela diferença de nível de elaboração e de criticidade existente entre eles.
Enquanto concepção fragmentária, o senso comum manifesta a coexistência de filosofias diferenciadas que são explicitadas na contradição entre o pensar e o agir, ou seja, há uma concepção de mundo que se expressa através do fato intelectual e outra que se manifesta na ação efetiva. Essa contradição será superada com a elevação do senso comum ao plano crítico que, segundo Gramsci (1978), faz-se através da luta concreta, no cotidiano das classes subalternas, a partir dos problemas por elas enfrentados. Assim, as classes subalternas poderão chegar a um nível cultural superior e crítico. Mas Gramsci vai mais além em seu projeto revolucionário. Para ele não se trata apenas de realizar uma reforma intelectual e moral dos estratos sociais culturalmente atrasados, mas de realizar um projeto educativo capaz de tirar as massas da passividade e de construir a sua hegemonia e uma nova ordem social.
Portanto, se o senso comum é passível de transformações, realizar sua crítica e a sua superação, pela filosofia, significa desenvolver um processo pedagógico e político, referenciado na prática histórica das classes subalternas.
Assim, se o modo de pensar e a organização política ocupam um lugar decisivo na conquista da hegemonia, no pensamento gramsciano, também é decisivo o papel que o teórico marxista confere aos intelectuais e ao partido na construção de uma nova cultura.
Gramsci (1978, p. 21) entende que “[...] uma massa humana não se distingue e não se torna independente ‘por sí’, sem organizar-se; [...] e não existe organização sem intelectuais, isto é, sem organizadores e dirigentes [...]”.
Nos termos aqui expostos, a preocupação de Gramsci (1978) com a passagem das classes subalternas à posição hegemônica está vinculada à necessidade do desenvolvimento de um novo projeto cultural que seja capaz de propiciar a elaboração de uma concepção de mundo própria das classes subalternas, autonomizando-as em face do domínio ideológico das classes dominantes. Ou seja, liberando-a da racionalidade capitalista.
3.2 Consciência de classe e Organização: determinações básicas na construção da hegemonia das classes subalternas
A consciência de classe, no pensamento marxiano, se constitui como um processo histórico e dialético, constituído por homens concretos inseridos em determinado modo de produção e relações sociais correspondentes:
[...] os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias etc., mas os homens reais e ativos, tais como se acham condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas (MARX; ENGELS, 1991, p.36-37).
A consciência de classe está, portanto, diretamente vinculada à atividade material e coletiva dos homens, sendo impossível concebê-la em cada homem isolado no conjunto das relações sociais.
A consciência é, antes de tudo, a consciência do meio sensível imediato e de uma relação limitada com outras pessoas e outras coisas situadas para o indivíduo que toma consciência; é, simultaneamente, a consciência da natureza que inicialmente se depara ao homem como uma força francamente estranha, toda poderosa e inatacável, perante a qual os homens se comportam de uma forma puramente animal e que os atemoriza tanto como aos animais; e, por conseguinte, uma consciência da natureza puramente animal. (MARX; ENGELS, 1991, p. 36).
Por outro lado, na medida em que o homem toma consciência da necessidade de estabelecer relações com os indivíduos que o cercam, isto marca, para ele, a tomada de consciência de que vive efetivamente em sociedade. Mas o elemento chave determinante da constituição da consciência humana é o trabalho. Pois ao contrário do que acontece com o trabalho animal, o produto do trabalho humano já está contido na imaginação do trabalhador. Este imprime ao material o projeto que, conscientemente, tem como alvo. Diz Marx (1978, p. 129-130):
[...] na produção social da própria existência os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; estas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo social, político e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência.
Nessa perspectiva, a consciência de classe é determinada por forças motrizes estruturais (forças relativamente permanentes) e por elementos conjunturais que se apresentam como ocasionais, imediatos ou espontâneos em contextos determinados e momentos históricos dados. Mas sejam quais forem esses contextos, (desde que em sociedades de classes), entendo que a organização das classes subalternas é uma exigência fundamental, porque é na luta organizada que os segmentos subalternos da sociedade elevam sua consciência e sua solidariedade, e expressam suas vontades coletivas.
Para Gramsci, o proletariado pode, na perspectiva da revolução:
[...] tornar-se classe dirigente e dominante na medida em que consegue criar um sistema de aliança de classes (operários e camponeses), que lhe permita mobilizar, contra o capitalismo e o Estado burguês, a maioria da população trabalhadora – o que significa, na Itália, dadas as reais relações de classes, existentes, que o proletariado pode se tornar classe dirigente e dominante na medida em que consegue obter o consenso das amplas massas camponesas. (GRAMSCI,1987,139).
Mas, para isso, Gramsci (1989b) insiste em que o proletariado abandone modos de pensar corporativistas e supere interesses imediatistas e particularistas. Pois, a partir dessa superação, vai desenvolvendo-se o processo de formação de uma consciência – a consciência de classe – que se manifesta na prática política. Nesse processo, são destacados pelo autor três momentos ou graus de relação de forças nas análises histórico-políticas, que, fundamentalmente, são os seguintes: o primeiro é a relação de forças ligada à estrutura objetiva; o segundo é a relação das forças políticas, onde é apreendida a formação da consciência e organização dos grupos sociais; o terceiro é o da relação das forças militares o militar, num sentido estrito ou técnico-militar e o político militar. O primeiro grau, que é o mais elementar, é denominado de econômico-corporativo, havendo uma unidade entre um determinado grupo profissional, mas não ainda uma unidade do grupo social mais amplo. O segundo grau corresponde ao momento em que se adquire a consciência da solidariedade de interesse entre os membros do grupo social, mas ainda no terreno meramente econômico. O terceiro grau, momento propriamente político, evidencia a passagem da estrutura para a esfera das superestruturas complexas. Essa passagem da estrutura para a superestrutura, que se efetiva no terceiro momento da consciência política coletiva, é denominada por Gramsci de catarse. É o momento em que o proletariado deixa de ser classe em si e se torna classe para si e consegue elaborar um projeto político para toda a sociedade, cujo objetivo é conquistar a hegemonia, elevando ao máximo de universalidade o ponto de vista das classes subalternas.
Convicto de que apenas a situação objetiva não impulsiona essa classe à revolução e da exigência de uma análise concreta dos processos históricos, Gramsci entende que o partido enquanto locus da organização do proletariado precisa de um aparato teórico para desvendar a realidade social e atuar sobre ela.
A abordagem feita por Gramsci sobre a aliança de classes é na perspectiva de construção de um novo bloco histórico, na construção de novas relações de hegemonia que se fundam na unidade de força das classes aliadas – proletariado e as grandes massas camponesas – na luta contra a classe dirigente.
4 CONCLUSÃO
A apreensão feita das questões aqui expostas, me permitem concluir pensando a atualidade da sociedade brasileira que vivencia, neste momento histórico, uma profunda crise estrutural e, fundamentalmente política, onde a luta das classes se tornou mais explicita com o excessivo avanço do pensamento conservador das elites reacionárias do país.
Essas elites reacionárias têm o Estado sob controle e impõe-se às demais classes, em particular às classes subalternas, através do aparato jurídico-político e coercitivo, mantendo-se dominante pela força e atos golpistas, destruindo processos democráticos com argumentos farsantes de combate à corrupção, da qual são os principais protagonistas.
Feita esta breve reflexão, fundamentada nos ensinamentos de Gramsci e demonstrando a sua atualidade, retomo a premissa que norteou este estudo, agora como tese, reafirmando que: é exigência histórica do processo de transformação social a ruptura, pelas classes subalternas, com a ideologia dominante e a construção de uma concepção de mundo própria que constitui a base de ações vitais.
REFERÊNCIAS
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COUTINHO, C. N.; NOGUEIRA, M. A. Gramsci e a América Latina, 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
GRAMSCI, A. A questão meridional. Trad. Carlos Nelson Coutinho e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
GRAMSCI, A. Concepção dialética da história. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
GRAMSCI, A. Maquiavel, a política e o Estado moderno. Trad. Luiz Mário Gazzaneo. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989a.
GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organização da cultura. 7 ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989b.
HOBSBAWM, NOME. (Org). História do Marxismo. Trad. Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio N. Henriques e Amélia Rosa Coutinho. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra 1988. Vol.v O marxismo na época da Terceira Internacional: da internacional comunista de 1919 às frentes populares.
MARX, K. Para a crítica da economia política. Trad. José Arthur Giannotti e Edgar M. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os Pensadores).
MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Hucitec,1991
SARTRIANI, L. M. L. Antropologia cultural e análise da cultura subalterna. Trad. Josildeth Gomes Consorte. São Paulo: Hucitec, 1986.