Resumo: Artigo sobre o método histórico no pensamento de Gramsci, referenciado no método dialético, conforme pensado por Marx, e defendido por Gramsci resulta de levantamento de conteúdo, em leitura interna dos Cadernos do Cárcere e objetiva: expor e demonstrar a concepção de Gramsci sobre o método histórico, com ênfase na unificação de teoria e prática. Referindo-se ao primeiro momento da pesquisa, centra na concepção de Gramsci sobre a metodologia histórica como expressão da filosofia da práxis, destacando dois elementos centrais da unificação teoria e prática: a compreensão crítica na elaboração superior da concepção do real e os partidos políticos como “crisol” da unificação de teoria e prática na luta por hegemonia.
Palavras-chave:Método históricoMétodo histórico, Gramsci Gramsci, unificação teoria e prática unificação teoria e prática.
Abstract: This work is about the historical method in Gramsci’s thought, referenced in the dialectical method, as thought by Marx, and defended by Gramsci. It results from a survey of content, in internal reading of the Prison Notebooks and aims to: expose and demonstrate Gramsci’s conception of the historical method, with an emphasis on unification theory and practice. Referring to the first moment of the research, it focuses on Gramsci’s conception of historical methodology as an expression of the philosophy of praxis, highlighting two central elements of the unification theory and practice: the critical understanding in the superior elaboration of the conception of the real and political parties as the “crucible” of the unification of theory and practice in the struggle for hegemony.
Keywords: Historical method, Gramsci, unification theory and practice.
Mesas temáticas coordenadas
O MÉTODO HISTÓRICO EM GRAMSCI: a unificação de teoria e prática1
Recepção: 28 Fevereiro 2018
Aprovação: 09 Maio 2018
Este trabalho é produto de pesquisa que venho realizando há algum tempo, sobre o método no pensamento de Gramsci, enquanto também faço esforço de seguir suas orientações na realização de pesquisas sobre outros temas. Na pesquisa parto da constatação de que o método não está entre os temas mais explorados nos estudos sobre Gramsci, apesar da centralidade que tem no pensamento desse filósofo. Trata-se, no entanto, de um tema de grande relevância em seu pensamento: seja por sua crítica às questões de método em geral; seja por sua atenção particular à metodologia da filosofia da práxis, conforme pensado e utilizado por seu fundador, como Gramsci se refere a Marx, ou fundadores, a Marx e Engels, nos Cadernos do Cárcere2. Recorto no trabalho o aspecto do método referente à unificação de teoria e prática, por entender que se trata de um dos aspectos mais relevantes da contribuição de Gramsci (1999, p. 120) no aprofundamento do “[...] conceito da filosofia da práxis como ‘metodologia histórica’ e esta como ‘filosofia’, como a única filosofia concreta”. Entendo que o eixo de referência no pensamento de Gramsci, nesse aspecto, são as teses de Marx sobre Fueurbach das quais destaco a 2, a 8 e a 11:
[...] A questão de saber se ao pensamento humano cabe alguma verdade objetiva [gegenständliche Wahrheit] não é uma questão de teoria, mas uma questão prática. É na prática que o homem tem de provar a verdade, isto é, a realidade e o poder, a natureza interior [Diesseitigkkeit] de seu pensamento. A disputa a cerca da realidade ou não realidade do pensamento – que é isolado da prática – é uma questão puramente escolástica. [...] Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que conduzem a teoria ao misticismo encontram sua solução na prática humana e na compreensão dessa prática. [...] Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo. (MARX; ENGELS, 2007, p. 534, grifos dos autores).
Assim, referenciado no método dialético, conforme pensado por Marx, este trabalho se propõe a fazer uma análise da questão do método em Gramsci, destacando algumas de suas principais teses sobre esta, enquanto reafirma e demonstra a sua centralidade no pensamento do filósofo italiano. É por considerar que o tema permite uma variedade de recortes, que tomo como eixo de análise a unificação de teoria e prática, um dos aspectos centrais, se não o aspecto central, da análise de Gramsci sobre o Método da Filosofia da Práxis. Compreendendo como processo histórico e uma premissa da filosofia da práxis, Gramsci (1999, p. 104) considerava, em sua época, que “[...] nos mais recentes desenvolvimentos da filosofia da práxis” o “[...] conceito de unidade entre teoria e prática” permanecia numa fase inicial; conforme entendia, porque ainda subsistiam “[...] resíduos de mecanicismo, já que se fala da teoria como ‘complemento’ e ‘acessório’ da prática, da teoria como serva da prática”.
Encontro, portanto, em seu pensamento uma importante contribuição ao estudo do método histórico, destacando a unidade teoria e prática como uma questão fundamental no método da filosofia da práxis e, segundo Gramsci (1999, p. 103), na luta por hegemonia. Daí que, para ele
A consciência de fazer parte de uma determinada força hegemônica (isto é, a consciência política) é a primeira fase de uma ulterior e progressiva autoconsciência na qual teoria e prática finalmente se unificam. Portanto, também a unidade de teoria e prática não é um dado de fato mecânico, mas um devir histórico, que tem a sua fase elementar e primitiva no sentimento de ‘distinção’ de ‘separação’, de independência quase instintiva, e progride até a aquisição real e completa de uma concepção do mundo coerente e unitária.
Encontra-se aí um dos nexos do método histórico em uma discussão sobre a Luta de classes e a perspectiva de hegemonia das classes subalternas em Gramsci3 e na luta concreta. Gramsci (1999,p. 104) entende que “[...] o desenvolvimento político do conceito de hegemonia representa, para além do progresso político-prático, um grande progresso filosófico, já que implica e supõe necessariamente uma unidade intelectual e uma ética adequada a uma concepção do real que superou o senso comum e tornou-se crítica”. Neste sentido é que, para Gramsci (1999, p. 104), a unidade entre teoria e prática é um problema que deve “[...] ser colocado historicamente”, segundo entende, “[...] como um aspecto da questão política dos intelectuais”4. Ele considera, nesse sentido, o papel dos intelectuais como organizadores e dirigentes na formação da autoconsciência crítica da massa humana, como expressa na formulação abaixo:
Autoconsciência crítica significa, histórica e politicamente, criação de uma elite de intelectuais: uma massa humana não se ‘distingue’ e não se torna independente ‘para si’ sem organizar-se (em sentido lato); e não existe organização sem intelectuais, isto é, sem organizadores e dirigentes, ou seja sem que o aspecto teórico da ligação teoria-prática se distinga concretamente em um estrato de pessoas ‘especializadas’ na elaboração conceitual e filosófica. (GRAMSCI, 1999, p. 104).
Ainda que questões sobre o método marquem toda a obra de Gramsci é nos Cadernos do Cárcere que ele dedica especial atenção explícita às mesmas, razão pela qual a pesquisa tem como base essa obra específica; e o trabalho resulta de um levantamento de conteúdo do pensamento de Gramsci, em leitura interna dos 6 volumes dos Cadernos do Cárcere, organizados e traduzidos por Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, publicados pela Civilização Brasileira, a partir da Edição Critica do Instituto Gramsci, de responsabilidade de Valentino Gerratana. Neste aspecto destaco que o levantamento de trabalhos referentes ao tema me remeteu a um texto A dos Cadernos que não foram publicados na edição brasileira (ou pelo menos ainda não o localizei nos miscelâneos, onde poderia aparecer a referência), pelos motivos que os editores esclarecem5; assim, bem pontualmente, recorri também à referida Edição Critica do Instituto Gramsci. A pesquisa específica, no entanto, foi precedida de um levantamento, na literatura, de trabalhos referentes ao tema no pensamento de Gramsci, com vistas a uma primeira aproximação ao estado da questão e, em especial, avaliar a atenção que lhe é atribuída na vasta literatura sobre o pensamento de Gramsci. O referido levantamento aponta a existência de trabalhos de grande relevância, dentre os quais destaco: Problemi di metodo, de Valentino Gerratana, La Metodologia del marxismo nel pensiero di Gramsci, de Cesare Luporine e O método de Gramsci de Joseph Buttigieg (2000) 6.
Exponho neste trabalho, portanto, um recorte da pesquisa, destacando a unificação de teoria e prática, entendendo que este é um dos aspectos mais relevantes da contribuição de Gramsci no aprofundamento do “[...] conceito da filosofia da práxis como ‘metodologia histórica’ e esta como ‘filosofia’, como a única filosofia concreta.” (GRAMSCI, 1999, p. 120). Como faço a exposição trabalhando, fundamentalmente, com citações tenho presente aqui uma observação metodológica de Gramsci (2000b, p. 167) sobre escritos cheios de citações e destaco que, no texto, organizo as citações em torno de um pensamento; portanto, “[...] é o curso do pensamento que determina as citações”. Sem pretender esgotar essas teses, fiz escolhas de conteúdos, com maior destaque no volume 1 da edição brasileira, em especial do Caderno 11, apresentados neste trabalho em torno de dois itens.
No primeiro item, sob o título de O Método e a Concepção Histórica do Mundo e do Dever Ser aponto algumas das teses centrais sobre este eixo nuclear do pensamento de Gramsci nos Cadernos do Cárcere. E no segundo item, sob o título A Unificação de Teoria e Prática na Metodologia Histórica, destaco algumas teses sobre dois elementos centrais de sua concepção nesse aspecto: a compreensão crítica na elaboração superior da concepção do real - a superação do senso comum; e os partidos políticos como crisol da unificação de teoria e prática na luta por hegemonia.
Nas considerações finais reafirmo a centralidade do método no pensamento de Gramsci, com destaque para a unificação de teoria e prática, que considero um dos aspectos mais relevantes da contribuição de Gramsci (1999, p 120) no aprofundamento do “[...] conceito da filosofia da práxis como ‘metodologia histórica’”.
Na discussão que faz do método, Gramsci expõe a concepção histórica do mundo e do dever ser como elementos constitutivos da filosofia da práxis, que ele entende definir conforme seu fundador ou seus fundadores7.
A análise deste eixo temático em Gramsci assenta-se na concepção que ele desenvolve sobre a filosofia na sustentação da concepção de filosofia da práxis como metodologia histórica (GRAMSCI, 1999). E, em sua formulação Gramsci (1999, p. 93, § 12) parte de alguns pontos preliminares dos quais o primeiro ponto trata de desmistificar a filosofia como “[...] atividade intelectual própria de uma determinada categoria de cientistas especializados ou de filósofos profissionais sistemáticos”; para em seguida demonstrar que “[...] todos os homens são ‘filósofos [...] ainda que a seu modo, inconscientemente’”, embora, segundo ele, se trate de uma filosofia espontânea com limites e características, mas “[...] peculiar a ‘todo mundo’” que está contida:
1) na própria linguagem, que é um conjunto de noções e de conceitos determinados e não, simplesmente, de palavras gramaticalmente vazias de conteúdo; 2) no senso comum e no bom senso;
3) na religião popular e, consequentemente, em todo o sistema de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e de agir que se manifestam naquilo que geralmente se conhece por folclore. (GRAMSCI, 1999, p. 93).
Para Gramsci (1999, p. 93, grifo nosso), assim, a filosofia se expressa na concepção de mundo que, segundo ele, está contida “[...] até mesmo na mais simples manifestação de uma atividade intelectual qualquer, na ‘linguagem’”.
Feitas essas considerações, Gramsci (1999, p. 97) conclui: “Com efeito, não existe filosofia em geral: existem diversas filosofias ou concepções de mundo, e sempre se faz uma escolha entre elas”. E depois de demonstrar como ocorre essa escolha, que ele considera um fato complexo e não “[...] um fato puramente intelectual”, sempre partindo de uma pergunta, afirma que “[...] não se pode separar a filosofia da política; ao contrário, pode-se demonstrar que a escolha e a crítica de uma concepção de mundo são também elas, fatos políticos”.
Com essa concepção de filosofia Gramsci (1999, p. 98) analisa a questão relativa à “[...] ideia que o povo faz de filosofia” e conclui que “[...] não é possível a separação entre a chamada filosofia ‘científica’ e a filosofia ‘vulgar’ e popular, que é apenas um conjunto desagregado de ideias e opiniões”.
Para Gramsci (1999, p. 98, grifo nosso), coloca-se aí, então
[...] o problema fundamental de toda concepção de mundo, de toda filosofia que se transformou em um movimento cultural, em uma ‘religião’, em uma ‘fé’, ou seja, que produziu uma atividade prática e uma vontade nas quais ela esteja contida como ‘premissa’ teórica implícita (uma ‘ideologia’, pode-se dizer, desde que se dê ao termo ideologia o significado mais alto de uma concepção de mundo, que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações da vida individuais e coletivas) – isto é, o problema de conservar a unidade ideológica em todo o bloco social que está cimentado e unificado justamente por aquela determinada ideologia.
A sua expectativa é em relação “[...] a organicidade de pensamento e a solidez cultural” que, para ele, “[...] só poderiam ocorrer se entre os intelectuais e os simples se verificasse a mesma unidade que deve existir entre teoria e prática, isto é, se os intelectuais tivessem sido organicamente os intelectuais daquelas massas.” (GRAMSCI, 1999, p. 100). O que para Gramsci (1999, p. 100) só poderia ocorrer, efetivamente, se esses intelectuais “[...] tivessem elaborado e tornado coerentes os princípios e os problemas que aquelas massas colocavam com a sua atividade prática, constituindo assim um bloco cultural e social”.
Assim, para Gramsci (1999, p. 100): “Só através deste contato é que uma filosofia se torna ‘histórica’, depura-se dos elementos intelectualistas de natureza individual e se transforma em ‘vida’”. Encontra-se aí uma síntese da concepção da filosofia da práxis, no pensamento de Gramsci (1999), que ele opõe à metafísica e à filosofia especulativa na crítica que faz ao analisar o Ensaio Popular8. Na análise, Gramsci (1999, p. 120) destaca os “[...] conceitos de movimento histórico, de devir e, consequentemente, da própria dialética” na filosofia da práxis que, segundo ele entende, escapam ao autor.
Em uma análise que faz do método na filosofia da práxis9 levanta a questão de “[...] como surgiu no fundador da filosofia da práxis o conceito de regularidade e de necessidade no desenvolvimento histórico?” e conclui que resultam “[...] em uma elaboração de conceitos nascidos no terreno da economia política, notadamente na forma e na metodologia que a ciência econômica recebeu de David Ricardo.” (GRAMSCI, 1999, p.194). E considera ter tido “[...] importância na fundação da filosofia da práxis, não somente pelo conceito de ‘valor’ em economia, mas teve uma importância ‘filosófica’, sugeriu uma maneira de pensar e de intuir a vida e a história”. (GRAMSCI, 1999, p. 195).
A crítica analisa, de maneira realista, as correlações de força que determinam o mercado, aprofunda as suas contradições, avalia as mudanças relacionadas com o aparecimento de novos elementos e com sua intensificação e apresenta a “caducidade” e a “substitutibilidade” da ciência criticada; estuda-a como vida, mas também como morte, encontrando em seu interior os elementos que a dissolverão e substituirão inapelavelmente, bem como apresentando o “herdeiro” (que será presuntivo enquanto não der provas manifestas de vitalidade) etc. (GRAMSCI, 1999, p.195).
Nesse sentido Gramsci (1999, p. 195) entende que: “A filosofia da práxis é o historicismo absoluto, a mundanização e terrenalidade absoluta do pensamento, um humanismo absoluto da história. Nesta linha é que deve ser buscado o filão da nova concepção do mundo”.
A questão do dever ser é colocada em Gramsci como expressão de sua concepção orientada pelo movimento real da ação transformadora do mundo pelos homens. Daí sua atenção ao que considera.“O ‘excessivo’ (e, portanto, superficial e mecânico) realismo político” que entende “[...] leva muitas vezes à afirmação de que o homem de Estado só deve atuar no âmbito da ‘realidade efetiva’, não se interessar pelo ‘dever ser’, mas apenas pelo ‘ser’”. (GRAMSCI, 2000b,p. 35). No seu entendimento o homem de Estado é um político em ato que, como tal, é
[...] um criador, um suscitador, mas não cria a partir do nada nem se move na vazia agitação de seus desejos e sonhos. Toma como base a realidade efetiva: mas o que é esta realidade efetiva? Será algo estático e imóvel, ou, ao contrário, uma relação de forças em contínuo movimento e mudança de equilíbrio? Aplicar a vontade à criação de um novo equilíbrio de forças realmente existentes e atuantes, baseando-se naquela determinada força que se considera progressista, fortalecendo-a para fazê-la triunfar, significa continuar movendo-se no terreno da realidade efetiva, mas para dominá-la e superá-la (ou contribuir para isso)” (GRAMSCI, 2000b, p. 35, grifo nosso).
Para ele, portanto, “[...] o ‘dever ser’ é algo concreto, ou melhor, somente ele é interpretação realista e historicista da realidade, somente ele é história em ato e filosofia em ato, somente ele é política.” (GRAMSCI, 2000b, p. 35, grifo nosso).
Em função da importância que atribui às forças em movimento e mudança, Gramsci (2000b) considera a Análise das relações de força como uma questão fundamental nas análises histórico-políticas. Neste sentido destaca
o problema das relações entre estrutura e superestrutura que deve ser posto com exatidão e resolvido para que se possa chegar a uma justa análise das forças que atuam na história de um determinado período e determinar a relação entre elas. É necessário mover-se no âmbito de dois princípios: 1) o de que nenhuma sociedade se põe tarefas para cuja solução ainda não existam as condições necessárias e suficientes, ou que pelo menos não esteja em vias de aparecer e se desenvolver; 2) e o de que nenhuma sociedade se dissolve e pode ser substituída antes que se tenham desenvolvido todas as formas de vida implícitas em suas relações (verificar a exata enunciação destes princípios). (GRAMSCI, 2000b, p. 36).10
Consciente da interpretação e da polêmica economicista em torno do primeiro cânone, enunciado por Marx, Gramsci (2000b, p. 53), embora considerasse um equívoco a interpretação e a polêmica, adverte que
[...] é necessário combater o economicismo não só na teoria da historiografia, mas também e sobretudo na teoria e na prática políticas. Neste campo, a luta pode e deve ser conduzida desenvolvendo-se o conceito de hegemonia, da mesma forma como foi conduzida praticamente no desenvolvimento da teoria do partido político e no desenvolvimento prático da vida de determinados partidos políticos.
Neste sentido e considerando a análise histórico-política que faz da tentativa da Comuna de Paris e da “[...] vida política equilibrada depois de oitenta anos de transformações em ondas cada vez mais longas.” na França, desde a Revolução Francesa, em 1789, Gramsci (2000b, p. 39) diz que há uma mediação dialética entre esses dois princípios metodológicos que “pode ser encontrada na fórmula político-histórica da revolução permanente”11 (GRAMSCI, 2000b, p. 40, grifo nosso).
Em uma análise crítica Do sonhar de olhos abertos e do fantasiar diz Gramsci que:
Tudo é fácil. Pode-se tudo aquilo que se quer e se quer toda uma série de coisas que não se possui no presente. No fundo, é o presente invertido que se projeta no futuro. Tudo que é reprimido se desencadeia. É preciso, ao contrário, dirigir violentamente a atenção para o presente assim como é, se se quer transformá-lo. Pessimismo da inteligência, otimismo da vontade.
O dever ser é, assim, história em ato.
Considero que este item destacado no trabalho, compreende várias teses entre as quais ressalto duas que considero centrais: 1) A compreensão crítica na elaboração superior da concepção do real: a superação do senso comum; 2) Os partidos políticos como crisol da unificação de teoria e prática na luta por hegemonia.
Posto o primeiro ponto preliminar de desmistificação da filosofia, Gramsci (1999) define como segundo momento: o momento da crítica e da consciência que ele expõe como um problema, uma questão:
é preferível ‘pensar’ sem disto ter consciência crítica de uma maneira desagregada e ocasional, isto é, ‘participar’ de uma concepção do mundo ‘imposta’ mecanicamente pelo ambiente exterior, ou seja, por um dos muitos grupos sociais nos quais todos estão automaticamente envolvidos desde sua entrada no mundo consciente (e que pode ser a própria aldeia ou a província, pode se originar na paróquia e na ‘atividade intelectual’ do vigário ou do velho patriarca, cuja ‘sabedoria’ dita leis, na mulher que herdou a sabedoria das bruxas ou no pequeno intelectual avinagrado pela própria estupidez e pela impotência para a ação) ou é preferível elaborar a própria concepção do mundo de uma maneira consciente e crítica e, portanto, em ligação com este trabalho do próprio cérebro, escolher a própria esfera de atividade, participar ativamente na produção da história do mundo, ser guia de si mesmo e não mais aceitar do exterior , passiva e servilmente, a marca da própria personalidade? (GRAMSCI, 1999, p. 101).
Neste sentido entende que: “Uma filosofia da práxis só pode apresentar-se, inicialmente, em uma atitude polêmica e crítica, como superação da maneira de pensar precedente e do pensamento concreto existente (ou mundo cultural existente).” (GRAMSCI, 1999, p. 101). Assim, para Gramsci (1999, p. 116), por “[...] seu caráter tendencial de filosofia de massa, a filosofia da práxis só pode ser concebida em forma polêmica, de luta perpétua. Todavia o ponto de partida deve ser sempre o senso comum, que é espontaneamente a filosofia das multidões, as quais se trata de tornar ideologicamente homogêneas”. Apresenta-se
[...] portanto, antes de tudo, como crítica do ‘senso comum’ (e isto após basear-se sobre o senso comum para demonstrar que ‘todos’ são filósofos e que não se trata de introduzir ex novo12 uma ciência na vida intelectual de ‘todos’, mas de inovar e tornar ‘crítica’ uma atividade já existente); e, posteriormente, como crítica da filosofia dos intelectuais, que deu origem à história da filosofia e que, enquanto individual (e, de fato, ela se desenvolve essencialmente na atividade de indivíduos singulares particularmente dotados), pode ser ‘culminâncias’ de progresso do senso comum, pelo menos do senso comum dos estratos mais cultos da sociedade e, através desses, também, do senso comum popular. (GRAMSCI, 1999, p. 101).
Gramsci (1999, p. 119) aponta referências de Marx “[...] ao senso comum e à solidez de suas crenças”, certamente no enfrentamento a possíveis polêmicas no confronto com Marx 13 em relação a sua análise e contundência sobre o senso comum, e destaca:
...] trata-se de referências não à validez do conteúdo de tais crenças, mas sim à sua solidez formal e, consequentemente, à sua imperatividade quando produzem normas de conduta. Aliás, em tais referências, está implícita a afirmação da necessidade de novas crenças populares, isto é, de um novo senso comum e, portanto, de uma nova cultura e de uma nova filosofia, que se enraízem na consciência popular com a mesma solidez e imperatividade das crenças tradicionais. (GRAMSCI, 1999, p. 119).
Por sua concepção orientada pelo movimento real da ação transformadora do mundo, Gramsci entende que “[...] todo movimento cultural que pretenda substituir o senso comum e as velhas concepções do mundo em geral” têm determinadas necessidades14 das quais ele destaca duas:
1) não se cansar jamais de repetir os próprios argumentos (variando literariamente a sua forma): a repetição é o meio didático mais eficaz para agir sobre a mentalidade popular; 2) trabalhar de modo incessante para elevar intelectualmente camadas populares cada vez mais vastas, isto é, para dar personalidade ao amorfo elemento de massa, o que significa trabalhar na criação de elites intelectuais de novo tipo, que surjam diretamente da massa e que permaneçam em contato com ela para se tornarem seus “espartilhos”. (GRAMSCI, 1999, p. 110 ).
Segundo ele, é esta segunda necessidade que, quando satisfeita, “[...] realmente modifica o ‘pensamento ideológico’ de uma época”. Trata-se para este pensador de “[...] uma construção de massa” pelo que ressalta: “A adesão ou não-adesão de massas a uma ideologia é o modo pelo qual se verifica a crítica real da racionalidade e historicidade dos modos de pensar” (GRAMSCI, 1999, p. 111).
Criticar a própria concepção de mundo “significa torna-la unitária e coerente e elevá-la até o ponto atingido pelo pensamento mundial. Significa também, portanto, criticar toda a filosofia até hoje existente, na medida em que ela deixou estratificações consolidadas na filosofia popular” (GRAMSCI, 1999, p.94)
Assim para Gramsci (1999, p. 128) a “[...] atividade crítica é a única possível, notadamente no sentido de colocar e resolver criticamente os problemas que se apresentam como expressões do desenvolvimento histórico”. Mas, segundo ele entende, “[...] o primeiro desses problemas a colocar e compreender é o seguinte: a nova filosofia não pode coincidir com nenhum sistema do passado, não importa qual seja o seu nome.” (GRAMSCI, 1999, p. 128).
E aqui é importante retomar o que ele chama de catarse
[...] para indicar a passagem do momento meramente econômico (ou egoístico-passional) ao momento ético-político, isto é, a elaboração superior da estrutura em superestrutura na consciência dos homens. Isto significa também, a passagem do “objetivo ao subjetivo” e da “necessidade à liberdade”. A estrutura, de força exterior que esmaga os homens, assimilando-o e o tornando passivo, transforma-se em meio de liberdade, em instrumento para criar uma nova forma ético-política, em origem de novas iniciativas. (GRAMSCI, 1999, p. 314).
O tema sobre os partidos políticos é um dos mais importantes no pensamento de Gramsci, entendendo que os partidos políticos assumem relevante importância no mundo moderno e são
[...] o crisol da unificação de teoria e prática como processo histórico real; e compreende-se, assim como seja necessária que a sua formação se realize através da adesão individual e não ao modo ‘laborista’ já que – se se trata de dirigir organicamente ‘toda a massa economicamente ativa’ – deve-se dirigi-la não segundo velhos esquemas, mas inovando; e esta inovação só pode tornar-se de massa, em seus primeiros estágios, por intermédio de uma elite na qual a concepção implícita na atividade humana já se tenha tornado, em certa medida, consciência atual coerente e sistemática e vontade precisa e decidida. (GRAMSCI, 1999, p. 105, grifo nosso).
Para ele, “[...] pode-se dizer que os partidos são os elaboradores das novas intelectualidades integrais e totalitárias [13]” (GRAMSCI, 1999, p. 459)16. Uma função que, para Gramsci (1999, p. 105) o partido realiza
na elaboração e difusão das concepções de mundo, na medida em que elaboram essencialmente a ética e a política adequadas a elas, isto é, em que funcionam quase como ‘experimentadores’ históricos de tais concepções. Os partidos selecionam individualmente a massa atuante e esta seleção opera-se, simultaneamente nos campos prático e teórico, com uma relação tão mais estreita entre teoria e prática quanto mais seja a concepção vitalmente e radicalmente inovadora e antagônica aos antigos modos de pensar.
Coloca-se aqui a questão das ideologias que Gramsci (1999, p. 312) entende como
fatos históricos reais, que devem ser combatidos e revelados em sua natureza de instrumentos de domínio, não por razões de moralidade, etc., mas precisamente por razões de luta política: para tornar os governados intelectualmente independentes dos governantes, para destruir uma hegemonia e criar outra, como momento necessário da subversão da práxis.
Em análise à Tendência ao conformismo contemporâneo Gramsci entende que esta se ampliou e se aprofundou mais que no passado, em função da “[...] estandartização do modo de pensar e atuar”; e considerando a “[...] base econômica do homem-coletivo de hoje: grandes fábricas, taylorização, racionalização, etc.”, diz que este homem coletivo se forma, “[...] essencialmente de baixo para cima, à base da posição ocupada pela coletividade no mundo da produção.” (GRAMSCI, 2000b, p. 260)
Neste sentido aponta que:
O conformismo sempre existiu: trata-se hoje de luta entre “dois conformismos”, isto é, de uma luta pela hegemonia, de uma crise da sociedade civil. [...] O desenvolvimento das forças produtivas econômicas em novas bases e a instauração progressiva da nova estrutura sanarão as contradições que não podem deixar de existir; e, tendo criado novo ‘conformismo’ a partir de baixo, permitirão novas possibilidades de autodisciplina, isto é, de liberdade até individual. (GRAMSCI, 2000b, p. 260).
Finalizando o trabalho, é importante reafirmar que os resultados apresentados expressam indicações de natureza geral, de concepção, sobre o método histórico em Gramsci referente ao recorte específico da unificação teoria e prática e que, portanto, não se esgota nessa exposição. No momento, trata-se de reafirmar a centralidade do método, o método histórico, no pensamento de Gramsci, como dito na introdução, um tema de grande relevância em seu pensamento: seja por sua crítica às questões de método em geral, sistematicamente apontadas nos Cadernos do Cárcere, a referência da pesquisa; seja por sua atenção particular à metodologia da filosofia da práxis, como metodologia histórica destacando a questão da unidade teoria e prática como questão política dos intelectuais (GRAMSCI, 1999) e “[...] processo histórico real” (GRAMSCI 1999, p. 105). Este movido pela atividade crítica como “[...] a única possível, notadamente no sentido de colocar e resolver criticamente os problemas que se apresentam como expressões do desenvolvimento histórico.” (GRAMSCI 1999, p. 128) e impõe-se como desafio às classes em luta por hegemonia.
É importante ressaltar que, segundo Gramsci (1999, p. 260), a identificação de teoria e prática deve ser entendida como “[...] um ato crítico pelo qual se demonstra que a prática é racional e necessária e a teoria realista e racional”. Mas para ele “[...] a realidade é rica das mais bizarras combinações e é o teórico que nesta bizarria, deve rastrear a comprovação de sua teoria, ‘traduzir’ em linguagem teórica os elementos da vida histórica e não, inversamente, a realidade apresentar-se segundo o esquema abstrato.” (GRAMSCI, 2000b, p.198). E nesta perspectiva, a crítica “[...] traduz em linguagem teórica os elementos da vida histórica.” (GRAMSCI, 2000b, 198).