Mesas temáticas coordenadas
Recepção: 26 Março 2018
Aprovação: 09 Maio 2018
Resumo: Reflexão sobre a questão social e sua emergência a partir da entrada do proletariado como sujeito político, após a Revolução Russa de Outubro de 1917. A análise que se apresenta tem o propósito de relacionar, historicamente, os componentes dos movimentos de aceleração e desaceleração do crescimento econômico, com destaque para o período denominado de anos dourados, nos quais foi predominante a intervenção do Estado, mediante um modelo de regulação, que ao mesmo tempo favorecia a acumulação de capital e o equilíbrio na relação entre capital e trabalho. O declínio desse processo na segunda metade dos anos 1970 faz emergir de modo mais explícito o conflito distributivo e social que não se explica a partir de fatores “exógenos”, pois está diretamente relacionado ao próprio movimento do capital nos países centrais e periféricos. Expõe sobre a influência desse processo na constituição, ascensão e fim do Welfare State e a regulação social tardia no Brasil. A partir de revisão bibliográfica na temática, elabora sobre o legado deixado pela Revolução Russa e projeta acertos e erros que devem ser considerados na construção de uma nova ordem societária.
Palavras-chave: Questão social, Revolução russa, Estado de Bem-Estar Social, crise, acumulação.
Abstract: Reflection on the social issue and its emergence from the entrace of the proletariat as a political subject, after the Russian Revolution of October 1917. The analysis presented here has the purpose of relating, historically, the components of the acceleration and deceleration movements of economic growth, especially the period known as golden years, in which the intervention of the State was predominant, through a model of regulation, Which at the same time favored capital accumulation and equilibrium in the relation between capital and labor. The decline of this process in the second half of the 1970s makes it appear more explicitly the distributive and social conflict that is not explained by “exogenous” factors, since it is directly related to the movement of capital itself in central and peripheral countries. It exposes on the influence of this process in the constitution, ascent and the end of Welfare State in the western world and late social regulation in Brazil. From a bibliographic review on the subject, elaborates on the legacy left by the Russian Revolution and projects hits and errors that must be considered in the construction of a new social order.
Keywords: Social issue, Russian revolucion, Welfare State, crisis, accumulation.
1 INTRODUÇÃO
Os chamados Anos Dourados são marcados pelo crescimento de tipo fordista, baseado numa produção e num consumo de massa. Nesses anos do pós-guerra, verificou-se a generalização da divisão taylorista do trabalho, sobretudo nos países da Europa. A generalização do taylorismo, com produção em cadeia, permitiu elevar a produtividade, ofertando de bens estandardizados em grandes séries, principalmente nos países do velho continente.
O crescimento da produtividade possibilitou a elevação dos lucros, o que estimulava novos investimentos, ao passo que os preços dos bens caíam em termos reais. A expansão da atividade econômica com forte demanda por força de trabalho possibilitou a elevação dos salários, embora a composição orgânica do capital se elevasse, sobretudo se comparada à composição vigente na Europa do entre guerras.
A elevação dos níveis salariais sem comprometer a acumulação de capital (lucros), permitiu a constituição de um mercado de consumo de massas, que foi a condição imprescindível para o funcionamento do sistema, uma vez que a rentabilidade só poderia ser assegurada quando e enquanto os mercados fossem amplos o suficiente para justificar a referida produção. Foi a fase em que se ampliou o consumo de bens duráveis nos diferentes estratos da população.
Na verdade, a regulação do tipo fordista estava ancorada na manutenção de um forte crescimento da produtividade, condição necessária para a expansão da demanda sem impactos negativos sobre a taxa de lucro. Por outro lado, a forte intervenção do Estado, quer como Estado providência, quer como planejador ou indutor de acordos entre parceiros sociais no pós-guerra, propiciou o crescimento contínuo da demanda, que era condição indispensável desse modo de regulação.
A padrão fordista entrou em crise quando não se vislumbraram novas possibilidades de acréscimos importantes de produtividade, ocorrendo a saturação dos mercados nos países industrializados, uma vez que as diferentes categorias sociais tiveram acesso a bens aos quais se aplicavam facilmente tais métodos de produção. Tornou-se cada vez mais difícil alargar o campo de aplicação do fordismo a novos setores que fossem capazes de prolongar o crescimento da produtividade. Além disto, a demanda passou a ser cada vez mais uma demanda por renovação e não de primeira aquisição, o que fez com que houvesse flutuações muito grandes na procura, exigindo maior flexibilidade nas quantidades produzidas, não facilmente compatível com a típica cadeia contínua dos anos do auge da era de ouro.
Por outro lado, a diminuição do ritmo de crescimento da produtividade, aliada à possibilidade de aumento de salários, devido à expansão da atividade econômica e da política social deliberada de atender às reivindicações dos trabalhadores, como forma de conter o avanço dos Partidos Comunistas, e, consequentemente a expansão política soviética, revelaram-se como sérias restrições ao processo de acumulação.
Assim, o conflito distributivo e social, aliado ao esgotamento dos ganhos de produtividade ligados à inovação, são apontados como possíveis elementos explicativos da diminuição do ritmo de crescimento dos anos dourados.
Neste contexto, ensaiamos uma reflexão sobre a importância da experiência da Revolução Russa de 1917 para construção das políticas públicas no ocidente. Partimos da problematização da categoria questão social. Esmiuçamos sua emergência, sintetizamos suas características, apresentamos a contribuição de vários autores sobre a compreensão da questão social.
Percorremos esse caminho para a abordagem do tema por entendermos que a questão social está imbricada tanto com a Revolução de Outubro de 1917, pela qual, de fato, a questão social toma dimensão política, quanto está vinculada às políticas públicas, qualquer que seja ela, por se constituir como a matéria-prima da elaboração delas. Assim, recuperamos desde as referências feitas por Marx e Engels, passando pela Igreja Católica, até autores que destacaram particularidades da questão social, como Hannah Arendt, Robert Castel, e pesquisadores brasileiros de renome na reflexão da temática, como José Paulo Netto, Josefa Batista Lopes e Marilda Iamamoto, dentre outros autores que se debruçaram sobre o Estado de Bem Estar, como Marta Arretche, Aldaísa Sposati, etc. Para a reflexão crítica acerca da experiência soviética, apoiamo-nos nos escritos políticos de Antonio Gramsci e nas reflexões da Revista Verinotio, de número 23, sobre os 100 anos da Revolução Russa e nos textos sobre a Revolução Russa integrantes do livro Revoluções, organizado por Michel Löwy.
Assim, almejamos estabelecer as bases para a reflexão sobre a relação entre as políticas do welfare state e sua relação com a ascensão da classe trabalhadora como sujeito ativo da elaboração das políticas públicas, a partir da Revolução Russa, no cenário dos movimentos de aceleração e desaceleração do crescimento nos anos dourados e na segunda metade dos anos 1970. Recorte este que trabalhamos na Mesa Temática Coordenada O legado da Revolução Russa para as políticas públicas, proposta pelo Observatório de Políticas Públicas e Lutas Sociais (OPPLS), na VIII Jornada Internacional de Políticas Públicas (JOINPP); tendo como trilha o pressuposto de que a Revolução de Outubro de 1917 é o marco referencial para o que se terá de políticas públicas, de proteção social e demais, no ocidente. Há um antes e um depois dela, indubitavelmente.
2 CONFLITO DISTRIBUTIVO E SOCIAL
A era de ouro do capitalismo foi marcada por fortes investimentos, crescentemente poupadores de força de trabalho e intensivos em capital. No entanto, mesmo nos países industrializados, o número de trabalhadores se manteve e até mesmo aumentou. Segundo Hobsbawm (1995, p. 262),
Em todos os países avançados, com exceção dos EUA, os reservatórios de mão-de-obra preenchidos durante a depressão pré-guerra e a desmobilização do pós-guerra se esvaziaram, novos contingentes de mão-de-obra foram atraídos da zona rural e da imigração estrangeira, e mulheres casadas, até então mantidas fora do mercado de trabalho, entraram nele em número crescente.
Ainda segundo o autor, as pessoas eram vistas cada vez mais enquanto consumidores de mercadorias e não como produtoras, uma vez que o aumento da produtividade permitia progressivamente prescindir da força de trabalho. No entanto, a expansão da atividade econômica era de tal magnitude que tornava possível a absorção do contingente de trabalhadores ainda não empregados.
Além da forte expansão da atividade econômica, o retorno à política do laissez-faire estava fora da agenda, pois objetivos político-econômicos visando a contenção do avanço do comunismo e o pleno emprego, tiveram absoluta prioridade, o que justificou a maior presença do Estado na economia. Isto produziu o que para muitos foi designado de Economia Mista, que ao mesmo tempo facilitou o planejamento e a modernização econômica, aumentando enormemente a demanda.
Sobre esse período afirma Hobsbawm (1995, p. 268),
Todos queriam um mundo de produção e comércio externo crescente, pleno emprego, industrialização e modernização, e estavam preparados para consegui-lo se necessário, por meio de um sistemático controle governamental e administração das economias mistas, e da cooperação com movimentos trabalhistas organizados, contanto que não fossem comunistas. A era de ouro do capitalismo teria sido impossível sem esse consenso de que a economia da empresa privada (“livre empresa” era o nome preferido) precisava ser salva de si mesma para sobreviver.
Cabe ressaltar que o grosso das atividades econômicas continuou centrado nos mercados internos, embora o comércio internacional tenha se expandido. Até mesmo os EUA que tinham se tornado em grande parte autossuficiente antes da segunda guerra, quadruplicaram suas exportações para o resto do mundo entre 1950 e 1970, ao passo que se tornavam um grande importador de bens de consumo a partir do final dos anos 1950. No auge dessa era, os EUA exportavam apenas 8% de seu PIB.
O processo de transnacionalização de forma mais vigorosa somente se intensificou a partir da década 60. É a partir de então, que se consolida um sistema de atividades econômicas para os quais os territórios e Estados não constituem mais parte do esquema de operação, mas sim passam a constituir-se como fatores complicadores. No início dos anos 1970, a economia transnacional já tinha se tornado uma força efetiva em nível global e continuou a crescer nas décadas de crise após 1973. Segundo Hobsbawm (1995) o surgimento da economia transnacionalizada criou, em grande parte, os problemas dessas décadas.
Com a revolução nos meios de transporte e comunicação, foi possível dividir a produção de um único artigo em vários países. A linha de montagem deixava de operar-se em um único local, e espalhou-se pelo mundo. Plantas de fábricas foram montadas não só em países já industrializados, mas também em países periféricos, com mão-de-obra barata e, sobretudo, feminina e jovem. Era o novo artifício para fugir ao controle dos Estados.
Pode-se afirmar que a fuga da indústria dos países centrais, com mão-de-obra mais cara e protegida para os países periféricos, apresentou-se como um movimento normal do capital na busca de valorização. O que se apresentava como incomum era a combinação de crescimento econômico, numa economia baseada em consumo de massa com uma força de trabalho plenamente empregada, e crescentemente bem paga e protegida. Este, efetivamente, se constituiu em motivo para a transferência de parte do capital industrial para a periferia.
A combinação entre crescimento e elevação dos salários e demais conquistas trabalhistas era uma construção política, que se apoiava no consenso entre setores de direita e esquerda, com a eliminação da ultradireita (de cunho fascista e ultranacionalista) e a neutralização da extrema esquerda comunista, nos marcos da guerra fria. Essa combinação também estava baseada num certo consenso tácito ou explícito, entre o capital e organizações trabalhistas, para manter as reivindicações dos trabalhadores dentro de limites que não comprometessem os lucros futuros, que deveriam ser suficientes para justificar a continuidade, e ampliação dos investimentos, sem os quais a brutal elevação da produtividade do trabalho não poderia ocorrer.
Para Hobsbawm (1995, p. 277),
Tratava-se de um pacto aceitável para todos os lados. Os patrões, que pouco se incomodavam com altos salários num longo boom de altos lucros, apreciavam a previsibilidade que tornava mais fácil o planejamento. A mão-de-obra recebia salários que subiam regularmente e benefícios extras, e um Estado previdenciário sempre mais abrangente e generoso. O governo conseguia estabilidade política, partidos comunistas fracos (exceto na Itália) e condições previsíveis para a administração macroeconômica que todos os Estados então praticavam. E as economias dos países capitalistas industrializados se deram esplendidamente bem, no mínimo porque pela primeira vez (fora dos EUA e talvez da Australásia) passava a existir uma economia de consumo de massa com base no pleno emprego e rendas reais em crescimento constante, escorada pela seguridade social, por sua vez paga pelas rendas públicas.
No final da década de 1970 os estados capitalistas avançados haviam se tornado Estados de Bem-estar, que consumiam mais de 60% de seus orçamentos na seguridade social, como eram os casos da Austrália, Bélgica, França, Alemanha Ocidental, Itália e Países Baixos. Os elevados gastos em seguridade iriam se revelar em problema com o fim da era de ouro.
O equilíbrio da era de ouro dependia da coordenação entre crescimento da produção e os ganhos que mantivessem os lucros estáveis. Por isso, a não ascensão contínua de produtividade e/ou um aumento desproporcional nos salários resultaram em desestabilização. Na verdade, essa era dependia do que não se verificou no entre guerras, ou seja, dependia do equilíbrio entre o crescimento da produção e a capacidade dos consumidores de comprá-la. Para tanto, se fazia necessário que os salários subissem com velocidade suficiente para manter o mercado ativo, mas não ao ponto de comprimir os lucros.
A questão que se colocava era como conter salário num período de demanda em excepcional crescimento? Enfim, o problema era como controlar a inflação, ou numa hipótese mais modesta, mantê-la em patamares aceitáveis que assegurassem o equilíbrio do Estado de Bem-Estar. Na década de 60, sobretudo na sua segunda metade, a era de ouro já dava sinais de esgotamento, além do declínio da hegemonia americana, o sistema monetário com base no dólar iniciava um processo de desintegração. Os sinais de diminuição da produtividade já se evidenciavam, além do que, os reservatórios de mão-de-obra interna que fora continuamente absorvida durante o boom, chegara perto da exaustão.
Nos anos 1960, uma nova geração de trabalhadores, para a qual desemprego em massa, insegurança, e elevação abrupta de preços fazia parte da história, passou a ingressar no mercado de trabalho. Era uma geração cujas expectativas tinham por base o pleno emprego e inflação sistematicamente baixa. Essa geração de trabalhadores acostumada ao pleno emprego, percebeu que os aumentos de salários negociados por seus sindicatos eram, na verdade, bem menores do que poderiam obter do mercado. O que se observou, a partir de então, foi um aprofundamento da luta de classes, com uma inflexão no sentido de superar a moderação e cooperação vigentes antes de 1968, entre empregados e empregadores.
Contraditoriamente, a rápida expansão da economia nos anos 1972-1973, apresentando índices de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) da ordem de 7,5% ao ano, nos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), aliada a uma aceleração da inflação, com aumento dos ativos circulantes em nível mundial, além do elevado déficit americano, puseram em primeiro plano a crise da era de ouro, ficando secundarizados os próprios efeitos da luta de classe.
2.1 Esgotamento dos ganhos de produtividade ligados à inovação
No imediato pós-guerra, assiste-se à consolidação da hegemonia norte-americana no cenário internacional. As necessidades de importação levaram europeus e japoneses a se voltarem para os EUA, visando obter bens de capital e de consumo, o que permitiu que o excedente comercial norte-americano chegasse a 10 bilhões de dólares em 1947. Essas importações tiveram repercussões internas nos EUA, onde contribuíram não só para a reconversão da economia de guerra, mas também para a redução da taxa de desemprego.
No continente europeu, a destruição, miséria, frio, desemprego, fome, inflação e escassez de dólares, propiciavam o caldo de cultura necessários para ameaçar a ordem política então vigente. Além disso, os acontecimentos do Leste fortaleciam a posição soviética no continente, com o avanço dos partidos comunistas. É nesse contexto que a guerra fria se desenvolveu como decorrência da política externa norte-americana.
O ano de 1947 é o ano de ruptura com os interesses da política norte-americana passando, então, a ser dominado pelo conflito Leste-Oeste, com a aprovação do Plano Marshall, destinado supostamente à reconstrução econômica do pós-guerra. Os 25 a 30 anos que se seguiram ao plano assistem a uma crescente internacionalização da economia, com a Europa e o Japão voltando a ocupar papel central no jogo de alianças norte-americanas. No plano econômico, verificou-se uma reestruturação industrial, comercial e financeira que envolvia os principais espaços nacionais de acumulação. Esse tipo de articulação, desembocou na perda progressiva da hegemonia econômica norte-americana em escala mundial.
Os EUA se despreocuparam com o potencial competitivo dos países europeus e do Japão, voltando sua atenção quase que exclusivamente para problemas de natureza geopolítica, em particular, com o fortalecimento da capacidade da Europa Ocidental de resistir ao avanço do comunismo. Foram nesses anos que se delinearam os elementos estruturais da resposta interna dos países atingidos pela guerra, como: apoio do Estado à reconstrução, ainda que com recurso ao endividamento externo; rearticulação monopolista do capital industrial e bancário, com adaptação das velhas estruturas locais aos padrões tecnológicos e de mercado da grande corporação norte americana; agressividade comercial, particularmente da Alemanha em direção ao resto da Europa, e do Japão em direção a Ásia e também aos Estados Unidos.
Na verdade, gestaram-se condições para o crescimento europeu e japonês, em tamanho e poder competitivo, tendo por base, suas moedas desvalorizadas, baixos custos de força de trabalho, tecnologia atualizada proporcionada pelos EUA. Na década de 1960, os padrões de industrialização eram bastante assemelhados em todos os países industrializados, com o setor de bens de consumo durável jogando o papel propulsor no desenvolvimento das indústrias metalomecânica e de apoio. Nos EUA, com uma economia mais madura, e o mercado consumidor apresentando crescimento meramente vegetativo, a única alavanca dinâmica passou a ser o setor da indústria bélica, que apesar de ter um desenvolvimento tecnológico elevado apresenta efeitos de encadeamento e empuxe interindustrial bastante limitados.
O que caracterizou a expansão do capitalismo na segunda metade da década de 1950 e dos anos 1960 foi a generalização dos padrões de produção e consumo norte-americanos nos demais países centrais, e também em alguns países da periferia semi-industrializada, que em contraste com a maturidade norte-americana, moviam-se com grande dinamismo. A saída em direção à Europa por parte das empresas norte-americanas, representou tanto o potencial de acumulação em excesso, vis a vis as condições do mercado nacional norte-americano, quanto a atração que exerciam, em termos de perspectivas e maior dinamismo, os mercados europeus que se encontravam em processo de integração. A expansão para fora, do subsistema de filiais, revelou-se benéfica ao dinamismo da economia nacional norte-americana, quer pelos circuitos de exportação entre matrizes e filiais, quanto pela demanda do resto do mundo sobre sua poderosa indústria agroalimentar.
Os EUA continuaram a ser o único país a exportar com vantagens absolutas produtos primários, produtos industriais e serviços, ao passo que seus dois principais concorrentes foram obrigados a concentrar-se na exportação de produtos manufaturados, com elevado conteúdo tecnológico, para aproveitar vantagens competitivas dinâmicas. A concorrência europeia e japonesa após ter ganho a batalha comercial, enfrentou a do investimento direto externo, levando a uma ampliação de filiais pelo espaço econômico mundial, até então, sob controle norte-americano. Na verdade, desencadeou-se uma segunda onda de inversões nos países periféricos em processo de industrialização, com a Alemanha quadruplicando seus investimentos no estrangeiro entre 1965-1970, passando de um fluxo de 2.199 para 8.648 milhões de marcos. Na verdade, os EUA não atacaram o problema estrutural de sua economia, com a busca de novas frentes de expansão que pudessem descortinar novos horizontes de crescimento próprio e do resto do mundo, mas sim, buscaram um ajuste monetário do balanço de pagamentos.
O auge do ciclo alcançado no início dos anos 1970 dava sinais de desaceleração, a partir da segunda metade de 1973. A desaceleração da produção e os desequilíbrios no comércio exterior foram as manifestações mais claras do esgotamento do padrão de acumulação norte-americano, que se traduzia, sobretudo, pela queda do ritmo de acumulação industrial, com aumento da capacidade ociosa e desequilíbrios na capacidade de autofinanciamento do setor industrial.
O que se verificou foi a elevação da relação capital produto, com desaceleração nos aumentos da produtividade do trabalho e deterioração das relações de troca contra a indústria, em favor do setor primário em âmbito mundial; ocorria também a elevação dos salários, enquanto custo industrial, ao mesmo tempo que o poder de compra era reduzido. No plano da concorrência intercapitalista, as oportunidades de investimento através da reação oligopolista, chegavam ao seu limite, provocando excesso de competição e capacidade ociosa da indústria de bens de capital. Além disso, a expansão do sistema de filiais nos marcos do controle hegemônico do sistema capitalista parecia ter alcançado seu teto. O crescimento, com base na generalização e adaptação dos padrões de produção e consumo norte-americanos, havia se esgotado. Na verdade, havia se esgotado um padrão tecnológico, sem que fosse possível continuar sua difusão pela concorrência, que já teria sido levada à exaustão, não havendo evidências fortes o suficiente para acreditar que nos próximos anos pudessem ocorrer uma nova revolução industrial. O binômio (energia-transporte), sobre o qual estavam assentados os padrões industriais desde o século XIX, e sobre o qual se articulavam os interesses fundamentais do capitalismo, não poderia ser destruído sem que instabilizasse o sistema.
3 A EMERGÊNCIA DA QUESTÃO SOCIAL E SUA INFLUÊNCIA NA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL NO MUNDO OCIDENTAL, A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DA REVOLUÇÃO PROLETÁRIA DE 1917
“A expressão ‘questão social’ não é semanticamente unívoca; ao contrário, registram-se em torno dela compreensões diferenciadas e atribuições de sentido muito diversas.” (PAULO NETTO, 2004, p. 41). Em Engels (1875), por exemplo, ao demonstrar com firmeza e clareza as facetas da questão social na Rússia do fim do século XIX, em sua resposta a Tkachov, é possível identificarmos questão social com miséria, quando expõe que “[...] los campesinos [rusos] en su masa se ven en una situación de extraordinaria miseria y absolutamente insoportable.” (ENGELS, 2007, p. 2). Foram múltiplos e de diferentes posições ideo-políticas, os autores que, concomitante a Engels,utilizaram-se do termo questão social para dar conta do fenômeno pauperismo, aparecido na Inglaterra, no final do século XIX, fruto da primeira onda industrializante na Europa Ocidental (NETTO, 2004)1.
De onde vêm tantos pobres? Era a questão levantada por uma quantidade de panfletos que crescia no decorrer do século [XVIII] [...]
De modo geral [...], prevalecia a impressão de que o pauperismo era visto como um fenômeno sui generis, uma doença social provocada por uma série de razões cuja maior parte se ativou apenas porque a Poor Law falhou na aplicação do remédio certo. (POLANYI, 2000, p. 113-114).
Karl Polanyi (2000, p. 114) dá a resposta a este enigma: “[...] o agravamento do pauperismo se devia ao que hoje chamaríamos desemprego invisível. Tal fato não poderia ser aparente numa época em que até mesmo o emprego, no geral, era invisível”. Aqui, Polanyi nos deixa evidente os rumos que tomaria a reflexão – dos pensadores do século XVIII – sobre a questão social: pauperismo e progresso eram inevitáveis. A compreensão da questão social estava delimitada sob duas expressões gritantes da problemática social: a pobreza e o desemprego.
O problema da pobreza se concentrava em torno de dois termos estreitamente relacionados: pauperismo e economia política. Embora abordemos separadamente o impacto de ambos sobre a consciência moderna, eles formaram parte de um todo indivisível: a descoberta da sociedade. (POLANYI, 2000, p. 128).
Algo que Hannah Arendt, em seu texto A questão social (capítulo II de seu livro Da Revolução), interpreta sob a seguinte percepção:
A realidade que corresponde a essa imaginária moderna é aquilo que, desde o século XVIII, veio a ser chamado de questão social, e que poderíamos, melhor e mais simplesmente, denominar de a existência da pobreza. Pobreza é mais que privação, é um estado de constante carência e aguda miséria [...]. Foi sob o ditame dessa necessidade que a multidão acudiu ao apelo da Revolução Francesa. (ARENDT, 1990, p. 48).
Se pauperismo e progresso eram inevitáveis, e até resultaram numa revolução em 1789, de fato, parecia estar dada a descoberta da sociedade, como escreve Polanyi. Marx e Engels, no entanto, trazem outra compreensão. No Manifesto Comunista – escrito entre o final de 1847 e o início de 1848 –, compreendem como, na verdade, a descoberta não da sociedade, mas de uma sociedade: “[...] a moderna sociedade burguesa, que surgiu do declínio da sociedade feudal, mas não aboliu as contradições de classe.” (MARX; ENGELS, 1998, p. 8). O Manifesto do Partido Comunista fora encomendado aos autores pela Liga dos Comunistas (antes denominada Liga dos Justos). Já nas suas primeiras linhas – “[...] um espectro ronda a Europa: o espectro do comunismo [...] todas as potências da velha Europa se uniram em uma santa campanha difamatória contra ele: o papa e o czar [...]” – expressa uma visão completamente oposta à que seria dada pela Igreja católica à questão social. Para a Igreja, em sua Rerum Novarum - sobre a condição dos operários:
Os socialistas [...] instigam nos pobres o ódio invejoso contra os que possuem [...] O erro capital na questão presente é crer que as duas classes são inimigas natas uma da outra, como se a natureza tivesse armado os ricos e os pobres para se combaterem mutuamente... (IGREJA CATÓLICA, 1891).
Dois textos com elaborações completamente antagônicas sobre a mesma realidade. Como corretamente aponta Arendt (1990, p.49) – ainda que discordante da tese marxista2:
A transformação da questão social numa força política, efetuada por Marx, está contida no termo exploração, isto é, na noção de que a pobreza é a conseqüência da exploração por uma “classe dominante”, que detém a posse dos meios de violência. (ARENDT, 1990, p. 49).
Essa tradição analítica deixada por Karl Marx e Friedrich Engels demarcou o campo de compreensão da questão social: miséria, pobreza, exploração, desigualdade social, engendradas pela disputa capital x trabalho. Anota José Paulo Netto:
O desenvolvimento capitalista produz, compulsoriamente, a “questão social” [...] A “questão social” é constitutiva do desenvolvimento do capitalismo. Não se suprime a primeira conservando-se o segundo.
A “questão social”, nesta perspectiva teórico-analítica, não tem a ver com o desdobramento de problemas sociais que a ordem burguesa herdou ou com traços invariáveis da sociedade humana; tem a ver, exclusivamente, com a sociabilidade erguida sob o comando do capital. (PAULO NETTO, 2004, p. 45-46).
Em seu texto A questão social no capitalismo, Marilda Villela Iamamoto (2004) enfatiza a questão social como indissociável do processo de acumulação e dos efeitos que produz sobre as classes trabalhadoras, inerente às formas assumidas pelo trabalho e pelo Estado na sociedade burguesa. A autora associa-se à compreensão marxiana onde pensar o trabalho e a questão social supõe dar conta da historicidade da sociedade capitalista. Disto decorre uma dupla característica que a particulariza: (a) a mercadoria é o caráter predominante e determinante dos produtos; e (b) a mais-valia é a determinante da produção. (IAMAMOTO, 2004, p. 13).
É correto Iamamoto (2004, p. 14) identificar que (i) o progresso da acumulação traz consigo uma (ii) mudança na composição técnica e de valor do capital, que (iii) reduz relativamente o capital variável – empregado na força de trabalho – e aumenta o capital constante, empregado nos meios materiais de produção. O que implica uma (iv) redução do tempo de trabalho socialmente necessário à produção de mercadorias e, consequentemente, (v) aumento do tempo de trabalho excedente ou mais-valia. Desta forma, o trabalhador produz mais em menos tempo e, assim, contribui para (1) a acelerar a produtividade do trabalho e (2) ampliar a taxa de lucratividade. Ocorre que, no outro lado da moeda, a concentração e a centralização de capitais decorrentes desse processo leva a ampliar a produção concomitantemente ao decréscimo relativo de capital variável que
[...] aparece inversamente como crescimento absoluto da população trabalhadora, mais rápido que os meios de sua ocupação. Assim, o processo de acumulação produz uma população relativamente supérflua e subsidiária às necessidades médias de seu aproveitamento pelo capital [...] (IAMAMOTO, 2004, p. 14).
Em síntese: a acumulação da miséria relativa à acumulação do capital é a raiz da produção/reprodução da questão social na sociedade capitalista. A questão social tem sua gênese na propriedade privada, fundadora da lógica do sistema do capital. Lógica esta que traz consigo a contradição fundamental entre capital (que apropria privadamente a riqueza coletiva produzida pelo) trabalho e que, uma vez politizada e trazida a público, expressa-se pela questão social em diversas manifestações. Ela já estava presente, como bem percebeu Jean Jacques Rousseau – em seu Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens –, quando “[...] o primeiro que, tendo cercado um terreno, arriscou-se a dizer: ‘isso é meu’, [...] encontrou pessoas bastante simples para acreditar nele.” (ROUSSEAU, 1989, p. 84). Rousseau, pioneiramente, desvenda aqui as raízes da propriedade, como comenta Jean-François Braunstein (apud ROSSEAU, 1989, p. 84):
[comentário 95] Como no início da primeira parte (p. 52), Rousseau faz uma representação figurada da tese essencial da segunda parte. Mas logo completa seu grito de revolta ao anunciar uma análise, que vai mostrar a necessidade do aparecimento da ideia de propriedade, resultado de uma lenta evolução. A observação de Voltaire, na margem de seu exemplar, mostra bem o caráter revolucionário do pensamento de Rousseau: “eis a filosofia de um miserável que gostaria que os ricos fossem roubados pelos pobres.”
Como observa José Paulo Netto (2004, p. 42), “[...] para os mais lúcidos observadores da época, independente da sua posição ideo-política, tornou-se claro que se tratava de um fenômeno novo, sem precedentes na história anterior conhecida”. De fato, tratava-se de algo inédito em sua expressão:
Com efeito, se não era inédita a desigualdade entre as várias camadas sociais, se vinha de muito longe a polarização entre ricos e pobres, se era antiqüíssima a diferente apropriação e fruição dos bens sociais, era radicalmente nova a dinâmica da pobreza que então se generalizava. (PAULO NETTO, 2004, p. 42).
E demarca o autor a diferenciação determinante: “[...] pela primeira vez na história registrada, a pobreza crescia na razão direta em que aumentamos a capacidade social de produzir riquezas.” (PAULO NETTO, 2004, p. 42). A pobreza é a ponta do iceberg da questão social! Engels (2003) já trabalhou bem esta compreensão ao analisar a questão social russa:
Es indudable que Rusia se encuentra en vísperas de una revolución. Sus asuntos financieros se hallan en el más completo desbarajuste. La prensa de los impuestos ya no ayuda, los intereses de las viejas deudas públicas se pagan recurriendo a nuevos empréstitos, y cada nuevo empréstito tropieza con mayores dificultades; ¡únicamente se puede conseguir dinero pretextando que se va a construir más ferrocarriles! Hace ya mucho que la administración está corrompida hasta la médula; los funcionarios viven más del robo, de su venalidad y de la concusión que de su paga. La producción agrícola — la más importante en Rusia — se halla en pleno desorden debido al rescate de la prestación personal en 1861; a los grandes terra- tenientes les falta mano de obra; a los campesinos les falta tierra, los impuestos los tienen agobiados y los usureros los despluman; la agricultura rinde menos cada año. [...].Aquí se dan todas las condiciones para una revolución; esta revolución la iniciarán las clases superiores de la capital, incluso, quizá, el propio Gobierno, pero los campesinos la desarrollarán, sacándola rápidamente del marco de su primera fase, de la fase constitucional: esta revolución tendrá gran importancia para toda Europa aunque sólo sea porque destruirá de un solo golpe la última y aún intacta reserva de la reacción europea. (ENGELS, 2003, p. 7).
A pobreza, após as condições políticas, teóricas e históricas do fim do século XIX, emergiu como dimensão mais evidente da questão social, inclusive, evidenciando o surgimento do novo sujeito político “[...] portador de uma hipótese revolucionária de modo de produção e da sociedade, inspirada no socialismo”. (INEGRAO; ROSSANDA, 1995, p.11 apud LOPES, 2000, p. 4). Observemos aqui que
A questão social não é sinônimo da contradição entre capital e trabalho e entre forças produtivas e relações de produção que geram desigualdades, pobreza, desemprego e necessidades sociais – mas, de embate político, determinado por essas contradições. (PEREIRA, 2004, p. 54, grifo nosso).
Reforça Potyara Pereira essa dimensão de maior dialeticidade que ela introduz ao debate ao considerar a questão social como resultante do embate político propiciado pela contradição entre as classes. Neste sentido, embora nos sejam evidentes as metamorfoses da questão social de um modo de produção a outro, não nos parece plausível a explicação que estas se deem pela crônica do salário, como nos propõe Robert Castel (1998). Como bem sintetiza Alejandra Pastorini (2004, p. 62),
Partindo da idéia de que a ‘questão social’ foi se redefinindo e metamorfoseando com o passar do tempo, ele se interessa em analisar o que há de diferente e de comum nas heterogêneas situações de vulnerabilidade social, desde o século XIV até chegar à sociedade do século XX. Para tanto realiza uma exaustiva análise do processo de desconversão da sociedade feudal, iniciando seu estudo pela sociedade cadastrada, passando pela indigna condição do assalariado até chegar à modernidade liberal. A partir daí Castel concentrará sua atenção na sociedade salarial e no surgimento do pauperismo entendido com um estado novo (tanto pelas causas quanto por seu caráter) gerado, não pela falta de trabalho, mas pela nova organização do próprio trabalho. Segundo o autor, na sociedade salarial há três situações diferentes que indicam formas de cristalização das relações de trabalho na sociedade industrial, a saber: a condição proletária, a condição operária e, finalmente, a condição salarial.3
Ainda que dê uma relevante contribuição para os estudos da questão social enquanto categoria, ao centrar sua análise na caracterização da condição do sujeito (condição proletária, operária e salarial), Robert Castel passa ao lado da análise das condições sociais, econômicas, políticas e históricas que caracterizam e propiciam a emergência desse sujeito – a partir de sua posição no sistema de produção e reprodução da sociedade em que vive. Condições essas que determinam as contradições que farão esse sujeito assumir o papel histórico de superação (ou não) do sistema. Sem essa ótica, não é possível compreender o papel desse sujeito como catalisador (ou não) do processo que leva à metamorfose da questão social, a qual Castel busca desvendar. Da mesma forma é insustentável, diante de uma análise mais apurada, que na contemporaneidade (1) inexista a questão social ou de que (2) haja uma nova questão social. Quanto à primeira, não há como pensar a sociedade sem sujeitos em movimento. Ainda que os sujeitos das classes dominadas estejam subalternizados, em completa defensiva, sua situação está apenas submersa ou silenciada pelo outro.
Dessa forma, apesar de existirem problemas cujos impactos negativos sobre a humanidade são evidentes, eles ainda não foram decisivamente problematizados e transformados em questões explícitas; isto é, ainda não foram alvo de correlações de forças estratégicas, a ponto de abalarem a hegemonia da ordem dominante e permitirem a imposição de um projeto contra-hegemônico. (PEREIRA, 2004,p. 53, grifo nosso).
A questão social não está ausente quando não está expressa, manifesta! Pode estar latente, dada a posição desigual das classes subalternizadas no embate político quando da transformação das necessidades sociais em questões (PEREIRA, 2004). Ouçamos o alerta de Domenico Losurdo (1998, p. 208): “[...] a negação da questão social é ainda mais radical no publicismo neoliberal dos nossos dias”. Quanto à segunda: “[...] inexiste qualquer ‘nova questão social’. O que devemos investigar é, para além da permanência de manifestações ‘tradicionais’ da ‘questão social’, a emergência de novas expressões da ‘questão social’ [...]” (PAULO NETTO, 2004, p. 48).
Foi sob esse capitalismo liberal burguês que emergiu o seu contraponto, o espectro comunista que rondou a Europa a partir do início do século XX. Ele e a depressão econômica de 1929 é que viabilizarão o retorno dos postulados em torno da concepção de seguridade social, inaugurada na Grã-Bretanha por Willian Beveridge através do Plano Beveridge sobre Seguro Social e Serviços Afins, de 1942, mas que “[...] extrapolou as fronteiras britânicas e foi inspirar reformas realizadas nos principais países capitalistas após a Segunda Guerra Mundial, antecipando os princípios da constituição do Welfare State” (PEREIRA, 2007, p. 110). A partir do welfare state de Keynes, posto em implantação sob os 30 anos gloriosos4 do capitalismo nos países avançados,
Os mínimos sociais passaram a ter uma conotação mais alargada, incluindo, além de políticas de manutenção de renda – geralmente sob a forma de uma rede de segurança impeditiva do resvalo de cidadãos social e economicamente vulneráveis para baixo de uma linha de pobreza legitimada pela sociedade –, outros mecanismos adicionais de proteção social, como: serviços sociais universais (saúde e educação, por exemplo), proteção ao trabalho (em apoio ao pleno emprego) e garantia do direito ao acesso a esses bens e serviços e ao seu usufruto). Esta foi a fase de ouro das políticas de proteção social [...] (PEREIRA, 2004, p. 112-13).
O welfare state é, portanto, fruto da Revolução Industrial, da busca do capitalismo por sua legitimação social e, também, do acordo entre as forças do Capital e do Trabalho dos países que se colocavam distantes do bloco socialista, constituído a partir da Revolução Russa de 1917. (ARRETCHE, 1995). E somente possível no contexto do movimento de aceleração do crescimento do capital, como vimos anteriormente. O paradigma keynesiano que só entrará em declínio após nova crise do capitalismo, nos fins dos anos 1970, decadência do socialismo real com a queda do Muro de Berlim, a Perestroika e a Glasnost russas de Gorbachev5, nos fins dos anos 1980, e ascensão das teses neoliberais com Ronald Reagan e Margaret Thatcher6, que se disseminaram mundo a fora ao longo dos anos 1990. É esse desmanche social do Estado de Bem-Estar, retomando Sposati (2002, p. 1), que não tivemos no Brasil, posto que sequer o vimos constituído por aqui.
Ao contrário de um “desmanche social”, nestes países marcados pela violação de direitos humanos e sociais até os anos setenta, vai ocorrer sim, a construção de um novo modelo de regulação social que vincula democracia e cidadania e é descentrado da noção de pleno emprego ou de garantia de trabalho formal a todos. Este modelo de regulação social se afasta da universalização dos direitos trabalhistas e se aproxima da conquista de direitos humanos ainda que de modo incipiente.
Contraditoriamente, nossa experiência de regulação social tardia7 firma uma concepção de sistema de proteção social na Constituição de 1988, concedendo uma seguridade social que abarca saúde, previdência e assistência social, com mínimos sociais independente de contribuição ao sistema – a exemplo da previdência rural, do Benefício de Prestação Continuada (BPC) –, indo na contramão da onda neoliberal em curso na Europa e grande parte da América Latina.
Nesse breve resgate histórico da emergência da questão social, temos claro, então, que a Revolução de Outubro de 1917 é o ponto de referência, indubitavelmente. Com ela, tivemos o rompimento do “[...] domínio privado nas relações entre capital x trabalho, extrapolando a questão social para a esfera pública [...]”. (IAMAMOTO, 2004, p. 17). Dessa forma, o principal legado trazido pela Revolução Russa às políticas públicas trata-se do fato de colocar no cenário um ator político novo, agora sujeito das políticas públicas, e não apenas o seu objeto e à revelia de sua opinião.
A Revolução Russa de 1917 tem seus antecedentes na Revolução Russa de 1905: “[...] as derrotas militares das classes dominantes favorecem naturalmente as insurreições das classes dominadas.” (ACHCAR, 2009, p. 71). Contudo, a insurreição popular é combatida com um banho de sangue, o domingo vermelho, em 9 de janeiro de 1905, pelo czar Nicolau II, que repete a dura repressão à greve geral conduzida pelo soviete de operários têxteis, na região de Moscou, em 16 de junho de 1905. E, uma vez mais, em novembro desse ano, quando os sovietes de Moscou e São Petersburgo, com a presença de soldados rebelados, marujos, camponeses e operários mobilizam nova rebelião popular.
“A repressão à insurreição de Moscou fez ao todo quase um milhão de mortos e vários milhares de feridos entre os insurgentes e população.” (ACHCAR, 2009, p. 80). O essencial da Revolução de 1905 termina em dezembro, com prisão ou deportação de lideres dos sovietes, como Trotsky, Parvus e Lev Deustch. A Revolução de 1905, “[...] apesar de abortada, deixou uma marca indelével na consciência de muitos: a da legitimidade do combate contra o regime czarista execrado. É por isso que aparecerá retrospectivamente como um ‘ensaio geral.’” (ACHCAR, 2009, p. 81). Ecos de 1905 repercutirão em 1917! A queda do regime dos czares, em fevereiro, e a tomada do Palácio de Inverso, oito meses depois, revelam bem isso.
[...] assembleias de massa em Petrogrado – o soviete dos soldados na Duma, o congresso dos camponeses ao receber uma delegação de soldados vinda do front, na Casa do Povo, ou ainda uma reunião de soldados e marinheiros na grande sala de Catarina – são um testemunho da efervescência da sociedade da sociedade civil ao longo desse ano extraordinário. Revelam o aprendizado da democracia, no fogo da ação, por operários e camponeses que, livres em um só golpe de um jugo social e político esmagador, descobrem-se sujeitos da história. (HOUZEL; TRAVERSO, 2009, p. 81).
Outubro de 1917 foi exatamente o “[...] momento breve, mas carregado de sentido, quando os humildes e os oprimidos têm, enfim, direito à palavra, e esse momento redime séculos de opressão.” (DEUTSCHER apud HOUZEL; TRAVERSO, 2009, p. 119). A Revolução Russa, mais do que um fenômeno de poder, foi um fenômeno de costumes: mais do que um fato revolucionário, foi um fato moral, e mais do que um ato, foi um ato proletário, examina historicamente Gramsci (2004). “A Revolução Russa destruiu o autoritarismo e o substituiu pelo sufrágio universal, estendendo-o também às mulheres. Substituiu autoritarismo pela liberdade, substituiu a constituição pela livre voz da consciência universal” (GRAMSCI, 2004, p. 101). Instaurou uma nova consciência moral!
E foi essa consciência que possibilitou a emergência desse novo sujeito, homem-ativo, não homem-massa, como diz Gramsci, que passou a estar no palco das decisões acerca das políticas públicas. Esse é o principal legado da Revolução de Outubro de 1917 para as políticas públicas no ocidente. As políticas públicas têm um antes e um depois da Revolução Russa. Tanto que a derroca da experiência real do socialismo traz consigo justamente a postulação de teses neoliberais que procuram restabelecer os termos das políticas públicas anteriores à Revolução soviética, pelo simples fato de, não mais existindo, deixou de ser alternativa a seduzir expectativas, corações e mentes do proletariado mundial. Não se precisa mais de um welfare state para ludibriar a classe trabalhadora a não aderir à ideia de que os homens sejam artífices de seus destinos. (GRAMSCI, 2004).
É certo que, passados 100 anos, não se pode, evidente, deixar de tecer uma crítica à experiência, sobretudo, frente a sua derrocada concreta. E a crítica que parece mais justa é que aduz o limite dado à Revolução de Outubro quando se isolou do mundo, pensando ser possível o socialismo num país só, e, em decorrência, a incapacidade de, frente à complexidade que é construir uma sociedade comunista, que é tão ou mais complexa ainda que a sociedade burguesa que ela busca superar, é não ter dado a especial atenção à criação de organismos capazes de desenvolver a própria revolução e sua maximização pela democracia, pela participação, pela superação de qualquer totalitarismo. Isto porque, aponta corretamente Gramsci (2004, p. 377-378):
1) a revolução não é necessariamente proletária e comunista quando se propõe e consegue derrubar o governo político do Estado burguês; 2) não é proletária e comunista nem mesmo quando propõe e consegue aniquilar as instituições representativas e a máquina administrativa através das quais o governo central exerce o poder político da burguesia; 3) tampouco é proletária e comunista quando a vaga da insurreição popular põe o poder nas mãos de pessoas que se digam (e sejam sinceramente) comunistas. A revolução é proletária e comunista somente quando é liberação de forças produtivas proletárias e comunistas que se vinham elaborando no próprio seio da sociedade dominada pela classe capitalista; só é proletária e comunista na media em que consegue favorecer e promover a expansão e a organização de forças proletárias e comunistas capazes de iniciar o trabalho paciente e metódico necessário para construir uma nova ordem nas relações de produção e de distribuição, uma ordem na qual se torne impossível a existência da sociedade divida em classes e cujo desenvolvimento sistemático, por isso, tenda a coincidir com um processo de esgotamento do poder de Estado, de dissolução sistemática da organização politica de defesa da classe proletária, que se dissolve como classe para se tornar humanidade.
Pelo que foi, em seus primeiros anos, sob a liderança de Lênin, e pelo que deixou de ser, da metade de sua existência, sob o comando de Stálin, até os seus últimos dias, pelas mãos de Gorbachev, a Revolução Russa de 1917 é o referencial da construção/desconstrução das políticas públicas no mundo. Eis o seu grande legado!
4 CONCLUSÃO
Comparando-se o conflito social e distributivo com a perda dos ganhos de produtividade ligados à inovação, como explicações para a desaceleração do crescimento dos anos dourados, pode-se afirmar que esse conflito parece estar longe de ameaçar a estabilidade do sistema, sobretudo se considerarmos a existência de enormes contingentes de força de trabalho nos países periféricos e o processo de segmentação e simplificação do trabalho, que tanto liberava quanto facilitava o ingresso de novos contingentes de trabalhadores no mercado. A explicação para a interrupção do ritmo de acumulação deve ser buscada não em fatores exógenos à acumulação, mas nos fatores intrínsecos ao próprio movimento do capital, ou seja, se faz necessário reconhecer que o ciclo de inovações que se disseminou no pós-guerra encontrou limites, o que obrigou a uma diminuição no ritmo de crescimento em termos relativos.
Sobre a Revolução Russa, a melhor posição é a equidistante tanto do mito negativo, quando da mistificação desarvorada. É perceber que, concretamente, ela jamais se configurou como superação da sociabilidade do capital (ASSUNÇÃO, 2017), sobretudo se bem compreendermos que capital e capitalismo são coisas distintas, que é possível desenvolver capital industrial, sem capitalismo. Foi o que tivemos na União Soviética. Então, essa crítica é necessária, para não se repetir os erros históricos que levaram a experiência à debacle. Os quais: (i) não concluir a construção de uma sociabilidade emancipada da lógica do capital; (ii) confundir superação da propriedade privada com apropriação coletiva da propriedade, e não apropriação social da propriedade; (iii) acreditar que o fim da revolução é a afirmação de uma classe, e não a afirmação universal do homem; e (iv) confundir socialismo com estatismo, com estatização da economia. (ASSUNÇÃO, 2017).
A questão social, então, é tema que deve ser refletido nos marcos não só do contexto e da classe que, em cena, possibilitou que a questão social pudesse ser vislumbrada, mas também no cenário das sociedades pós-capitalistas. Essa é uma reflexão que temos como legado da experiência da Revolução de 1917 e que não podemos nos furtar de encarar, ainda mais que pretendemos debater, elaborar e construir políticas públicas que não sejam apenas funcionais à manutenção da ordem do capital, ainda que em experiências pós-capitalistas. Essa é a reflexão crítica necessária para mantermos acesa a fagulha da esperança de que ainda podemos criar uma ordem social nova.
REFERÊNCIAS
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Notas