Mesas temáticas coordenadas
Recepção: 28 Janeiro 2017
Aprovação: 09 Maio 2018
Resumo: Para construir um projeto societário alternativo ao capitalismo desde a periferia se faz imprescindível recorrer ao pensamento crítico latino-americano. No século XXI, com a onda dos governos progressistas, muitas expectativas foram colocadas pelos movimentos dos trabalhadores, contudo para a maioria desses governos não estava colocada a ruptura e sim uma conciliação, que redundou no fortalecimento do modelo civilizatório do capital, aumentando a violência nas cidades e no campo. Encontramo-nos numa encruzilhada histórica, com uma nova ofensiva da potência hegemônica contra os latino-americanos. Ao mesmo tempo, as experiências das lutas e levantes dos trabalhadores, indígenas, quilombolas, extrativistas e camponeses se apresentam como marcas de distinção das resistências e possibilidades emancipatórias.
Palavras-chave: América Latina, ofensiva neoliberal, resistências emancipatórias, movimentos do campo, lutas sociais.
Abstract: To build an alternative social project to capitalism from the periphery is essential to take up the critical Latin American thought. In the twenty-first century, within the wave of progressive governments, many expectations were raised by the workers’ movement, however for most of these governments the rupture was not put but a compromise that strengthened the civilizing model of capital, increasing violence in the cities and the countryside. We are at a historical crossroads in times of the structural crisis of capital, yet the experiences of the struggles and uprisings of the workers, indigenous, quilombolas, extractivists, and peasants present themselves as distinguishing marks of resistance and emancipatory possibilities.
Keywords: Latin America, neoliberal offensive, emancipatory resistance, rural movements, social struggles.
1 INTRODUÇÃO
Os que buscam o consenso pela cooptação e pela falsificação da realidade acabarão se defrontando com a realidade crua: uma era de luta de classes, que porá a violência organizada a serviço das classes trabalhadoras do campo e das cidades. (Fernandes, Florestan, 1981).
O sentido do colonialismo e da dependência como categorias históricas presentes em nossa construção como nação tem repercutido de forma devastadora sobre os latino-americanos. A configuração imperialista do último século e meio como continuidade histórica das formas de dominação vem sendo legitimada por um discurso de civilização, desenvolvimento e progresso. Nesse cenário avassalador urge refletir em torno da sociedade intensamente desigual que esse modelo civilizacional configurou no decurso da espoliação, exploração e expropriação de bens comuns. A dimensão desse fosso na sociedade latino-americana pode ser vislumbrada, assim como em tantas estatísticas, na compilação de informações realizada pela OXFAM Internacional (2016, p. 5), a partir da qual se constata que as desigualdades na concentração da riqueza na América Latina é um problema histórico e continua a estar vinculada com a “[...] extrema concentração do acesso e controle da terra, assim como a distribuição dos benefícios de sua exploração”.
A dinâmica das diversas formas de dominação também torna-se visível no exercício do poder estatal, como pode ser analisado percorrendo a sua formação histórica e a frequência e intensidade do exercício autocrático, ainda que diacrônico e heterogêneo. (DONGHI, 1975; ROUQUIÉ, 1991). A América Latina no Século XX foi palco de dezenas de ditaduras cívico-militares que cercearam a liberdade e a democracia, através da força e a repressão. Foram necessários anos de lutas e resistências para restabelecer condições democráticas mínimas nos países latinos do continente. Passados mais de três décadas do início desse ciclo podemos constatar que outras formas e continuidades do capital foram se metamorfoseando e se constituindo em novos sentidos nas determinações históricas de um continente periférico capitalista e colonial, marcado pelas relações de desigualdades, exploração, opressão e racismo desde sua invenção no século XVI. (JOHNSON et al., 2016).
A presença dos movimentos sociais, que surgem a partir dos anos 1970/1980 na América Latina, irá permitir repensar o continente a partir de outros sujeitos e iniciar um processo de reelaboração de suas histórias, construída na cadência das suas contendas. A experiência construída a partir das suas lutas e as modalidades de resistência dos trabalhadores, indígenas, quilombolas, extrativistas e camponeses irão incidir como marcas de distinção, inscrevendo a apertura de um crescente protagonismo, assim como uma diversidade de formas organizativas e de expressão dos movimentos sociais. Nesse âmbito de crescimento das lutas sociais crescentemente converge a presença combativa e destacada das mulheres. Ressaltando que ainda que por momentos possam parecer movimentos contraditórios, cheio de atalhos e encruzilhadas, as sementes para construção de um projeto societário têm sido lançadas.
Nesse sentido, para pensar alternativas de organização social ao capitalismo desde América Latina é importante recuperar elementos do pensamento crítico latino-americano1, particularmente ao reivindicar a necessidade de uma gradual desconstrução da interpretação eurocêntrico-hegemônica, que nega as nossas identidades. (DUSSEL, 2005). Do amplo espectro desse veio analítico precisamos partir para elaborar táticas e estratégias que contribuam para potencializar e integrar as lutas sociais, que nos prepare para enfrentar a ofensiva em curso no nosso continente. Dentre algumas dessas importantes contribuições podemos mencionar as de José Martí, José Carlos Mariátegui, Florestan Fernandes, Caio Prado, Ruy Mauro Marini e Heleieth Safiotti.
As ideias de Mariátegui, para ressaltar uma vertente analítica, têm atualidade e pertinência para avaliar a atuação dos partidos e movimentos sociais na América Latina. Na contemporaneidade, em que um expressivo contingente de trabalhadores padece de uma grande miséria tanto material como intelectual2, a qual se manifesta na incisiva redução do seu potencial utópico e sua capacidade social criadora. Por sua vez, essa situação promove a propagação da crescente onda de ideologia conservadora que assola o mundo, assumindo características particulares nos países latino-americanos; sendo que no início do século pareciam soprar outros ventos – a partir do júbilo que caracterizaram os governos progressistas, em particular nos primeiros anos –, assistimos uma tormenta se assomar pela forma em que a confiança coletiva em transformações se esvai. Quanto ao percurso do século XX e XXI, para considerável parte da esquerda, é possível vislumbrar que, infelizmente, não incorporaram o pensamento de Mariátegui (2010) de esperança e comunhão no sentido da fé no mundo, nem numa América Latina que caminhasse para a construção de uma revolução a partir das realidades e suas particularidades históricas.
Nesse mesma senda, Florestan Fernandes (1981, p. 120) também propunha que atentemos que as almejadas transformações sociais, “[...] sob o capitalismo, em todas as suas variações e com os seus avanços, sem a descolonização até o fundo e até o fim se torna uma miragem; e, ao mesmo tempo, as revoluções nacionais e democráticas são contidas e esmagadas”. Essas reflexões, contundentes, têm sido deixadas de lado ao analisar os governos contemporâneos, provocando nossa capacidade de aprendizado histórico. Portanto, consideramos que é imperativo ratificar nessa análise como somente “[...] as classes trabalhadoras podem assumir a tarefa de realizar um movimento de libertação nacional e anti-imperialista, de conteúdo socialista.” (FERNANDES, 1981, p. 120). Essa assertiva confirma sua contemporaneidade nos processos políticos, a partir de uma perspectiva de classe, neste início de século XXI. Sucintamente, essas ponderações desafiam as perspectivas predominantes em grande parte da esquerda latino-americana, que experimentaram diversos graus de institucionalização, acreditando, num extremo, que as transformações poderiam ser gestadas no âmbito da lógica do capital e exclusivamente através do complexo jogo eleitoral.
A seguir iremos ponderar alguns elementos que permitam realizar uma sucinta análise da dinâmica que os embates por projetos políticos societários se manifestam nas vicissitudes da política estatal latino-americana. Também, a continuação, sopesaremos alguns aspectos da projeto civilizatório e os desafios colocados para superação.
2 A TEMPORALIDADE E OS DESAFIOS DO EMBATE CIVILIZATÓRIO
Nas últimas décadas do século XX e início do século XXI as lutas sociais têm conquistado, com variada sorte, processos de redemocratização na América Latina. De maneira geral, a expectativa dos setores que intensamente lutaram pelo restabelecimento das democracias residia principalmente na possibilidade de interferir nas políticas estatais visando a alteração da situação de pobreza a que o povo vinha sendo submetida. Nesse percurso, com grande intensidade de confrontos, não somente em arenas institucionais, no início deste século foi possível a ascensão de governos mais próximos das reivindicações dos trabalhadores, os quais são frequentemente denominados por governos progressistas3.
Mas, assim como os ciclos do capitalismo tem afetado a América Latina de conjunto, o neoliberalismo busca reorganizar suas formas de hegemonia na região, o qual regularmente se consegue promovendo o aumento da violência não somente nas cidades, como também para as populações indígenas e campesinas. Ao analisar grosso modo a concepção política que esses governos progressistas têm executado explicita-se que no seu horizonte não estava colocado a ruptura com esse paradigma hegemônico, o qual pode ser evidenciado pelas diversas tentativas de conciliação4. No decurso da dinâmica desses governos verifica-se a efemeridade das suas conquistas sociais, os quais, em última instância, parecem frequentemente convergiam para o fortalecimento do neoliberalismo, mesmo para tal se use outros nomes, como o neodesenvolvimentismo5. Afinal, esse modelo de desenvolvimento tem um perfil conservador das relações sociais vigentes, com um discurso nacional popular que recria a fantasia de que esse modelo poderia incluir a todos de forma igualitária. Na prática, vivenciamos mais uma vez as contradições clássicas do capital, pois na medida em que pode oferecer algumas possibilidades de consumo, provoca, entre outras consequências, uma crescente mercantilização e, por sua vez, acelerada precarização da vida.
Nesse sentido, um elemento essencial a ser analisado, ao refletir em torno da perenidade da desigualdade social latino-americana, sem dúvida destaca-se o modelo extrativista, o qual está no cerne do modelo civilizatório imposto. Particularmente, ao verificar que o mesmo foi ampliado por esses governos, eleitos, muitas vezes, pelas mesmas populações que têm sido impactadas negativamente pelas suas políticas; valendo-se frequentemente da justificativa de combate à pobreza na região e tencionando por afirmar como eixo de um projeto de desenvolvimento de seus países.
Esse ciclo dos governos progressistas, em certa medida, realizou avanços sociais em termos de acesso aos bens sociais, pois por um curto período significou para uma parcela significativa da população em alguns países um perceptível alívio da situação de miséria. Contudo, o legado material desse período pode ser sentido imediatamente depois, ao constatar seu caráter transitório de alívio à pobreza, no campo e na cidade, deixando de herança devastadores impactos ambientais dessa politica neo-desenvolvimentista. Assim como, de forma generalizada se observa um empobrecimento da vida material, espiritual, cultural, nas ideias e valores das sociedades latino-americanas.
Na continuidade de relações subalternas, países como Chile, Equador, Bolívia, Argentina, Uruguai, Venezuela e Brasil, sob os governos progressistas, persistiram na tendência do papel historicamente legado à região, pela qual a mineração, a exploração petrolífera e a monocultura para exportação têm se apresentado como vital para suas economias. Atualizando seu papel no padrão de acumulação do capital, recrudescendo sua intensidade e ampliando a sua ação para novos setores. (GUDYNAS, 2012).
Onde o capital se faz presente traz consigo a exploração e a expulsão, como se pode verificar nos territórios indígenas, quilombolas, assentamentos e nas cidades, pois estamos ante o processo de incontrolabilidade do capital.
O que esta em jogo não é realmente a eficiência do capital, que pode ser aperfeiçoada pela maior ou menor realocação drástica dos recursos econômicos, mas, ao contrário, a verdadeira natureza de sua produtividade: uma produtividade que necessariamente define a si mesma por meio do imperativo de sua implacável auto expansão alienada como produtividade destrutiva, que sem cerimônia destrói tudo que esteja em seu caminho (MÉSZÁROS, 2009, p.85).
A sua atividade tem provocando deslocamentos forçados e mais empobrecimento aos trabalhadores, esse modelo extrativista tem na sua origem a lógica destrutiva dos bens da natureza e da vida, operando de forma avassaladora no modo de vida dessas comunidades. Nesse sentido, esse modelo extrativista e predatório, materializado nos projetos de exploração petroleira e mineira, na expansão do agronegócio com plantações do monocultivo, bem como na construção de megaprojetos hidroelétricos têm causado um impacto irreversível sobre os povos do campo. Para que seja possível ter uma dimensão das transformações em curso, dentre o conjunto dessas políticas podemos destacar os grandes projetos, como a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), o novo Canal Interoceânico na América Central e as hidrelétricas no Amazonas (que concentra 20% da água doce no mundo)6.
Existem diversos argumentos de que as atividades extrativistas são necessárias para o desenvolvimento como condição para diminuição da miséria. É fato que houve neste início de século uma diminuição nos índices de miséria na região, contudo nesse mesmo período esses governos não apontaram mudanças estruturais; o que permite no momento subsequente, de avanço das forças conservadoras, um retorno ao estado de miséria através das instituições democráticas da República. Estamos vendo cair por terra o que se avançou em termos de conquistas de direitos, como o caso da flexibilização dos direitos trabalhistas (terceirização), que se traduz na destruição desses direitos.
Ao mesmo tempo, o aumento da violência no campo e na cidade assume proporções de guerra, cada dia com requintes de mais de crueldade, tendo como principais objetivos atingir as populações mais vulneráveis como negros, mulheres, LGBT, indígenas, camponeses, enfim os trabalhadores pobres. No campo brasileiro somente no primeiro semestre de 2017 houve 40 assassinatos no campo. (COMITÊ BRASILEIRO DE DEFENSORAS E DEFENSORES DE DIREITOS HUMANOS, 2017)7. Esse aumento reflete a sanha desenfreada do capital para expropriar o território dessas populações. Essa é a realidade de quem vive na periferia do capitalismo, fundada no racismo e na desigualdade social comandada por uma plutocracia, onde a corrupção é parte constituinte.
3 PROJETOS CIVILIZATÓRIOS E OS DESAFIOS DA EMANCIPAÇÃO SOCIAL
O cerne dos nossos questionamentos para com a presente trajetória que o projeto civilizatório do capital tem conduzido constata a falência de uma sociabilidade excludente, da certeza que é impossível incluir a todos. O capitalismo é profundamente destrutivo e intensifica cada vez mais as desigualdades. Então, a questão é esse modelo civilizatório e a urgência de sua superação, pois fazer a critica ao produtivismo passa necessariamente por repensar esse modelo civilizatório e sua racionalidade predadora e consumista, que destrói os bens da natureza e coloca em risco a sobrevivência da humanidade. Para que serve então essa civilização?
[...] se a (in)civilização do capital chegou tão longe na devastação e vilipêndio da vida, é precisamente porque não apenas cresceu e se globalizou declarando guerra à Mãe Terra, como também, decisivamente, foi muito eficaz na criação de sujeitos-indivíduos que não se concebem como filhos da Terra, mas que a sentem e concebem a partir da exterioridade, da superioridade e da instrumentalidade. Indivíduos que acreditam e que sentem que vivem do dinheiro e não da Mãe Terra, que concebem o progresso e o desenvolvimento do humano em termos de domínio e exploração supostamente infinita dos “recursos” da Terra (MACHADO ARAÓZ, 2016, p. 467).
As críticas a essa exterioridade, superioridade e instrumentalidade que veste de racionalidade ocidental e o presente projeto civilizatório têm sido uma das vertentes mais profícuas na contemporaneidade. O pensamento pós-colonial, particularmente ao afirmar a necessidade de descolonizar o conhecimento, tem apontado a retomada da relação de comunhão entre a terra e o homem, combatendo intensamente essa concepção utilitarista da natureza. Uma aproximação com o pensamento martiateguiano, assim como do pensamento crítico latino-americano de maneira geral, é legítima no que se refere ao fortalecimento do sujeito coletivo para eficácia da emancipação. (LANDER, 2000). A maneira de diretrizes orientadoras a serem consideradas, essas premissas para um projeto social alternativo ao vigente é promissora, ao mesmo tempo em que são imensos os desafios para sua realização.
O que pode parecer meramente um intenso debate em torno da construção do conhecimento, da eficácia da ciência ou do horizonte teleológico decorrente da racionalidade que orienta e/o justifica o projeto civilizacional em curso frequentemente se depara com as questões relacionadas com o seu comprometimento na transformação das desigualdades crescentes na sociedade. Um conjunto de elementos converge para um possível colapso desta organização social: a crescente demanda por produtos básicos, aliados a um aumento do crescimento econômico de países com elevado contingente populacional, somado, entre tantos outros aspectos, a uma acelerada concentração da riqueza. Esses elementos implicam que a continuação da sua dinâmica pode conduzir a uma rua sem saída. (LÓPEZ, 2010).
Esse feixe de questionamentos tem levado Wallerstein (2002,p. 296) a afirmar que “[...] nesta altura dos acontecimentos, o pluralismo não se torna privilégio dos fracos e ignorantes, mas em cornucópia de possibilidades para um mundo melhor”. Para quem vaticina que na próxima década e meia vivenciaremos o “[...] período de desintegração do nosso sistema histórico existente e de transição de uma alternativa incerta.” (WALLERSTEIN, 2002, p. 258), por conta dos ciclos hegemônicos de longa duração, que tem estudado por décadas.
Isso aponta que, assim como o autor acima citado indica, a necessidade de uma inflexão no rumo que a civilização se encontra.
Diante do cenário de barbárie globalizada e diversificada que o século XXI nos oferece, depois de mais de cinco séculos de “desenvolvimento capitalista”, precisamos urgentemente repensar a Terra para reorientar o horizonte e o sentido de nossas lutas emancipatórias (MACHADO ARAÓZ, 2016, p. 467).
Nesse sentido, avançar em direção a sociedades emancipatórias desde uma perspectiva dos movimentos sociais, em particular os do campo, implica em potencializar uma crítica profunda a esse modo de vida e propor a construção de futuros alimentares, pois em face da crise alimentar é necessário construir um novo modelo de produção. Já que este sistema alimentar só produz famintos e comida contaminada de veneno8. O cenário torna-se ainda mais crítico com a fusão da Monsanto e a Bayer, que tende a provocar o crescimento da insegurança alimentar. Essas empresas concentram cada vez mais a reprodução da vida, privatização das sementes, da agua, do subsolo, dos bens da natureza num modelo extrativista que foi ampliado e acentuado nos períodos dos governos progressistas.
Contudo, podemos perceber marcas de distinção presentes nos processos de resistências, com uma crescente diversidade e criatividade na organização do povo em suas formas de produzir a vida. A esquerda deve olhar com mais atenção essa dinâmica, sem tentar colocar a teoria dentro da realidade. Isso nunca deu certo e não representa o pensamento criativo, como está na origem do pensamento marxista.
Essas marcas de distinção que se contrapõem ao pensamento conservador estão nas ruas e campos da América Latina, nas experiências de lutas contra o extrativismo, pela educação pública e pela garantia dos direitos conquistados. Os movimentos sociais do campo, em suas organizações continentais, como a CLOC9 (Coordinadora Latinoamericana del Campo) vinculada a Via Campesina, têm construído experiências que caminham nessa direção emancipatória. Esses aspectos podem ser observados na Declaração final da II Assembleia Continental da Coordenadoria Latino-Americana de Organizações do Campo (CLOC), com o lema: Contra o Capitalismo, Pela Soberania de Nossos Povos, América Unida Segue na Luta irá rechaçar “[...] os modelos excludentes, neoliberal, imperial, patriarcal e capitalista, que arrasa a harmonia da natureza e sua relação com o ser humano e a paz do povo, que quebra a unidade coletiva e visionaria de justiça social”. Nesse encontro, representado pela diversidade de vidas, lutas e experiências, se revela um conteúdo emancipatório que, ao mesmo tempo, são tentativas de construir outro modo de vida, outra racionalidade, bem como a reafirmação de que essa luta contra o capital é indubitavelmente uma luta internacional, a qual se realiza a partir de seus territórios.
Concebemos a Soberania Alimentaria e a Agroecologia como princípios fundamentais e um modo alternativo para esfriar o planeta, como única possibilidade da mudança ao modelo imposto pelos agronegócios, as transnacionais e reafirmamos que a agricultura campesina e indígena é a única capaz de alimentar a humanidade de maneira saudável e sustentável, mantendo a biodiversidade e identidade. [...] frente aos desafios na realidade mundial atual, que exige de nós maior compromisso de continuar reafirmando a necessidade da unidade desde Movimento Campesino Mundial. [...] Continuaremos nossa luta em defesa da vida, das sementes, da água, da terra, do território e todos os bens naturais promovendo os direitos coletivos que clama a mãe terra para uma sociedade, socialmente mais humana, justa e igualitária. (COORDENADORIA LATINO-AMERICANA DE ORGANIZAÇÕES DO CAMPO, 2017).
Portanto, para desvendar a complexidade dessa crise civilizatória é que colocamos a necessidade de compreender a forma como os movimentos populares do campo enfrentam o processo sistemático de perda de direitos e que processos têm construído para garantir direitos nos seus territórios e a defesa da sua cultura. Podemos elencar centenas de lutas cotidianas que representam a resistência a esse modelo civilizatório por todo o continente: como o enfrentamento à instalação dos blocos petroleiros na Amazônia Equatoriana; à exploração mineira de Cajamarca no Peru, na Guatemala, na Bolívia, no Brasil; à rota da soja na Argentina e Brasil; às diversas ações de resistência que os povos Mapuche no sul do Chile, dos Kaiowás e Guaranís no Centro-Oeste do Brasil e do povo Gavião que promovem a luta por seus territórios no Norte/Nordeste brasileiro. Acrescentando a esses processos o protagonismo das mulheres em todas as frentes de resistências ao capital, enfatizando que essa luta trava-se também contra a opressão patriarcal. O diferencial que se apresenta nesse momento são os novos sujeitos em lutas e sua radicalidade no enfrentamento para garantir suas vidas e identidades.
4 Á GUISA DE CONCLUSÃO
A busca por caminhos para sair dessa encruzilhada histórica, na elaboração das ações visando responder às questões que estão colocadas aqui e agora, certamente cabe aos movimentos organizados. Sobretudo potencializando sua capacidade de pensar criativamente e de fazer autocríticas, nas formas e seus conteúdos, desde uma perspectiva latino-americana, que vá além dos manuais. Embora frequentemente se afirme no âmbito dos espaços de debate contra hegemônico que os velhos métodos de luta têm sido superados, o escasso aprendizado dos embates que a história leciona frequentemente conduz a uma repetição de equívocos, impedindo de avançar na elaboração da síntese, que permite criar o novo a partir do velho. Nesse sentido, podemos retomar esse processo a partir de perceber de fato quem somos e como nos constituímos como sujeitos em nossas formações sociais como latino-americanos.
Estamos mais uma vez ante o desafio de reinterpretar a América Latina e as questões do nosso tempo a partir da nossa formação social. É necessário voltar a dialogar com o povo, romper com a institucionalidade se pretendemos um futuro de esperança para as trabalhadoras e trabalhadores, indígenas, campesinos. Não cabem modelos, nem cópias, mas torna-se premente a criação em luta de outra humanidade que destrua quaisquer vestígios do capital. Pensar a emancipação hoje é uma luta desigual, pois o mundo do capital é sedutor e há uma naturalização da exploração que tem fincado profundas influências no modo de vida. Precisamos superar a passividade política, retomar as ferramentas de transformação social, através de processos educativos dos sujeitos nas lutas, para que não haja dúvidas do caráter irreconciliável entre as elites e o povo.
A esperança de que a aventura humana não pode ser essa tragédia, de que nada está perdido e de que a vida pode renascer coloca a necessidade de que é preciso subverter o destino. E esse só poderá ser realizado em luta, ao mesmo tempo em que o momento histórico vem nos indicando que somente a luta, sem um projeto estratégico de destruição do capital não é suficiente.
REFERÊNCIAS
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Notas