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“A REVOLUÇÃO QUE ABALOU O MUNDO” E SUAS LIÇÕES PARA A RESISTÊNCIA DA CLASSE TRABALHADORA
“A REVOLUÇÃO QUE ABALOU O MUNDO” E SUAS LIÇÕES PARA A RESISTÊNCIA DA CLASSE TRABALHADORA
Revista de Políticas Públicas, vol. 22, Esp., pp. 657-674, 2018
Universidade Federal do Maranhão
Recepción: 03 Marzo 2018
Aprobación: 09 Mayo 2018
Resumo: O presente texto tem por objetivo demonstrar a grande importância da Revolução Russa para a luta dos trabalhadores brasileiros no Brasil contemporâneo, demarcando suas principais características históricas, políticas e conquistas sociais. Além disso, aponta a fundamental referência que esta Revolução ainda tem na luta, na organização e nos projetos de um futuro sem exploração e opressão.
Palavras-chave: Revolução Russa, socialism, classe trabalhadora.
Abstract: The present text aims to demonstrate the great importance of the Russian Revolution to the struggle of Brazilian workers in contemporary Brazil, marking its main historical characteristics, policies and social achievements. In addition, it points to the fundamental reference that this Revolution still has in the struggle, organization and projects of a future without exploitation and oppression.
Keywords: Russian Revolution, socialism, working class.
1 INTRODUÇÃO
A oração que nomeia este texto, sob inspiração do eminente historiador inglês Eric Hobsbawm (1999), demonstra os objetivos propostos por estas linhas. Ao contrário dos que preferem qualificar (depreciar) a Revolução Russa de 1917 como desastrosa, pretende-se demonstrar que apesar de todos os erros e desvios ocorridos no período governado por Stálin, a Revolução de 1917 trouxe mudanças significativas e conquistas sociais aos trabalhadores, não apenas na Rússia, mas para o conjunto da humanidade.
Não é por acaso que Hobsbawm identifica o século XX com a história da Revolução, da consolidação e do declínio do socialismo soviético. A sua importância não reside apenas dentro das fronteiras russas, mas ultrapassando-as atingiu todo o globo, de uma maneira ou de outra, intensa ou difusamente, positiva ou negativamente, revolucionando ou contrarrevolucionando os países do mundo.
Assim se expressa Hobsbawm (1999, p. 62):
[...] a Revolução de Outubro teve repercussões muito mais profundas e globais que sua ancestral, pois se as idéias da Revolução Francesa [...] duraram mais que o bolchevismo, as conseqüências práticas de 1917 foram muito maiores e mais duradouras que as de 1789. A Revolução de Outubro produziu de longe o mais formidável movimento revolucionário organizado da História Moderna. [...] Apenas trinta ou quarenta anos, [...] um terço da humanidade se achava vivendo sob regimes diretamente derivados dos ‘Dez dias que abalaram o mundo’ [...].
Tendo em vista os objetivos supracitados precisa-se, com efeito, tecer algumas reflexões sobre os acontecimentos processados na Rússia, os quais em conjunto compuseram uma das mais significativas Revoluções do mundo.
2 FOI UMA REVOLUÇÃO APENAS DA RÚSSIA?
Antes da Revolução de 1917, a Rússia, se comparada às potências do capitalismo mundial, estava num nível de desenvolvimento econômico-social muito atrasado. Era governada por uma Monarquia Absolutista, com o poder em mãos de um déspota – o Czar1 Nicolau II, apoiado numa nobreza latifundiária e militarizada, bem como no alto clero da igreja Católica Ortodoxa. Não havia liberdade de imprensa ou organização de trabalhadores legalmente estabelecida.
Existiam inúmeras nacionalidades sob o controle ditatorial do Czar, sem direitos ou respeito a seus valores culturais. Todos os movimentos e atos populares eram reprimidos com intensa violência. A grande maioria da população era analfabeta. Economicamente o país era agrário, com uma indústria em desenvolvimento tardio. A base da economia era a produção agrícola, com mais de 80% da população vivendo no campo.
As terras não pertenciam aos pequenos camponeses, pelo contrário, eram domínios de uma minoria de latifundiários do Estado Czarista e da Igreja. Os trabalhadores viviam sob um regime de servidão feudal, onde o “[...] senhor tinha direito de vida e morte sobre seus servos. Não somente os fazia trabalhar como escravos, como podia também vendê-los, castigá-los, torturá-los e mesmo matá-los, sem quase nenhum empecilho.” (VOLIN, 1980, p. 22).
Valladares e Berbel (1994, p. 14) apontam que apenas em 1861 os servos adquiriram uma liberdade pessoal através dos Estatutos da Emancipação, antes, porém, “[...] mais da metade do campesinato era constituído por servos, que eram tidos como propriedade pessoal dos donos de terra, algo mais próximo da escravidão do que da servidão medieval européia”.
Como se não bastasse esse quadro crônico, o Czar, para satisfazer sua política imperialista, iniciou um processo intenso de industrialização, especialmente para fins militares. Industrialização essa que destoava completamente das estruturas arcaicas do Império Czarista. As contradições geradas por essa empreitada originaram uma massa de trabalhadores rurais sem-terras, expropriados pelo Estado e latifundiários e, no mesmo movimento, uma de trabalhadores urbanos com péssimos salários e superexplorados na jornada de trabalho. (REIS FILHO, 1997).
Agravando mais a situação, a Rússia envolveu-se numa guerra imperialista (1904) contra o Japão. Todo o esforço voltou-se para esse confronto, mas o resultado não foi o esperado. Ao invés da Rússia sair com mais território anexado ao seu, ao contrário, sofreu uma humilhante derrota e as condições dos trabalhadores russos só pioraram. Greves explodiram por todo o país, inclusive greves operárias de significativa importância. A população não suportava mais a fome, a miséria e dava os primeiros sinais da Revolução de 1905, que Lênin viria chamar de: O ensaio geral.
Porém, mesmo com todos os sofrimentos pelos quais passavam os trabalhadores russos, estes ainda acreditavam na bondade e honestidade do Czar Nicola II. Todas as revoltas e greves voltavam-se contra os governantes mais imediatos e a imagem do Czar continuava inatingível. “Os levantes dos camponeses contra seus amos e opressores não impediam a veneração cega pelo paizinho Tzar”, nos informa Volin (1980, p. 24). O tratamento dispensado ao Czar pela população era o mais carinhoso possível. Ele era o protetor, o destinado por Deus a guiar seu povo, por isso chamavam-lhe de pai: o paizinho czar.
No entanto, essa imagem iria se despedaçar nos acontecimentos processados no dia 9 de janeiro (calendário russo)2 mais conhecido como Domingo Sangrento. Mais de 200 mil pessoas saíram às ruas para reivindicar melhores condições de vida, numa passeata pacífica que não tinha o objetivo de derrubar Nicolau II, pois sua imagem de protetor do povo russo era ainda bem viva. Essa afirmação pode ser constatada na carta redigida pelos manifestantes. Eis alguns trechos:
Senhor! [...] Estamos reduzidos à mendicidade. Somos oprimidos, esmagados sob o peso de um trabalho esgotador, cobertos de ultrajes [...]. Ó Tzar estará tudo isto em conforme aos mandamentos de Deus em virtude do qual tu reinas? Vale a pena viver sob tais leis? [...]. Tu foste enviado a esse mundo para conduzir o povo à felicidade [...] (VOLIN, 1980, p. 66).
Como se percebe, há uma mistura de insatisfação, reivindicações e respeito. No entanto, bastaram os primeiros passos da manifestação para que a polícia e o exército reprimissem a população. Foi um banho de sangue que não se sabe ao certo quantos morreram. Porém, o interessante é saber que logo depois desse episódio a crença no paizinho Czar se desfazia.
Parte considerável dos trabalhadores russos crédulos que o Czar não sabia de seus problemas e bastava um aviso para que ele os resolvesse, passou a considerá-lo cúmplice e principal responsável pelas misérias da população russa. Depois do Domingo Sangrento a luta de classes intensificava-se estourando várias greves e revoltas por toda a Rússia, sendo uma das mais famosas a dos marinheiros do encouraçado Potenkin.
Mesmo não derrubando o Czar, a revolução de 1905 abalou as estruturas imperiais, inclusive forçando o Imperador a aceitar uma Monarquia Constitucional, sem efeito prático é verdade, mas demonstrando simbolicamente que o poder de Nicolau II ruía.
A consequência mais importante da Revolução de 1905 foi a formação dos Sovietes (Conselhos populares e operários). Os trabalhadores russos encontraram uma forma de organização e ação política independente e democrática que se tornou célula básica proeminente na Revolução Socialista de outubro.
Nessa conjuntura, ganhavam forças os partidos de orientação marxista como o Partido Social Democrata Russo (PSDR) que, mais tarde, dividir-se-ia em Mencheviques e Bolcheviques. Estes, sob a liderança de Lênin e Trotsky, tiveram papel fundamental na luta pela Revolução. A formação do PSDR, somado ao rápido desenvolvimento da Indústria, da rede ferroviária e do consequente crescimento do proletariado industrial, contribuíram decisivamente para transformação e fortalecimento do movimento revolucionário russo. Todos esses elementos, unidos e em conjunto, deram as bases necessárias para o crescimento do sentimento revolucionário, da teoria marxista e da posterior Revolução Socialista.
Esses fatores já desenhavam um futuro revolucionário. Faltava algo? Um estopim? A Primeira Guerra Mundial (1914-1918), nesse sentido, não pode ser desconsiderada. Para Hobsbawm (1999,p. 61), “[...] a revolução foi filha da guerra do século XX”.
Todos os países envolvidos sofreram forte abalo e convulsões sociais que puseram em risco suas estruturas capitalistas. O movimento socialista toma grande envergadura, principalmente por sua campanha anti-guerra. Os soldados e a população de todos os países em guerra não suportavam mais as consequências trágicas. Os soldados, cada vez mais desejosos pela paz, uniram-se às palavras de ordem do socialismo. O mesmo pode-se falar dos operários da indústria de armamento. Com efeito, a maior parte da população e dos soldados queria a paz e só quem apontava para esse fim eram os socialistas que, com isso, angariavam simpatias e militantes. Isso pode ser observado nas cartas dos soldados em guerra enviadas aos seus parentes, pois segundo pesquisa “[...] um terço da amostragem de cartas censuradas entre novembro de 1917 e março de 1918 esperava obter a paz via Rússia, um terço via Revolução, e outros 20% via uma combinação das duas.” (HOBSBAWM, 1999, p. 66).
Para a Rússia os efeitos da Primeira Guerra eram evidentes. A fome aumentava, milhões de soldados morriam nos campos de batalhas e os camponeses eram expulsos de suas terras. Várias revoltas e greves voltaram a eclodir pela Rússia, os soldados não mais obedeciam às ordens de seus governantes e o poder do Czar já era insustentável.
A população saiu às ruas com a palavra de ordem: Pão, paz, terra! As respostas do governo foram repressão e violência. Mas os trabalhadores não pararam as manifestações e os soldados e policiais também não tinham mais condições tanto materiais, quanto psicológicas de reprimirem as passeatas. Por fim, uniram-se aos manifestantes. Chegava a hora de derrubar o Czar!
Os acontecimentos se precipitaram quando estourou uma greve geral e houve a ocupação do centro da capital russa. Era janeiro de 1917 e o Czar abdicou o poder, sendo substituído por um governo liberal-burguês provisório, sob a liderança de Kerensky.
O governo provisório, no entanto, foi incapaz de reconhecer os anseios dos trabalhadores russos e teve o mesmo fim do governo czarista. Em certo sentido, o governo provisório não governava sozinho. Na Rússia havia um poder dual com a consolidação dos sovietes liderados e influenciados pelos revolucionários marxistas, principalmente depois do retorno do exílio de Lênin e Trotsky.
O governo de Kerensky não retirou a Rússia da guerra. Lênin em suas Teses de Abril já denunciava a guerra imperialista e a posição do governo provisório de permanecer no conflito armado, como também sua incapacidade de chamar uma Assembleia Nacional Constituinte. O governo provisório está chegando ao fim.
O socialismo estava próximo? O que era necessário para uma Revolução Socialista? Todas as condições na Rússia estavam postas? Faltava algo ainda? Trotsky (1989, p. 22-23) buscava responder essas questões:
Para a Revolução de Outubro era necessária uma série de premissas históricas:
1) A podridão das velhas classes dominantes, da nobreza, da monarquia, da burocracia.
2) A debilidade política da burguesia que não tinha nenhuma raiz nas massas populares.
3) O caráter revolucionário da questão agrária.
4) O caráter revolucionário do problema das nações oprimidas.
5) O peso social do proletariado. A essas premissas orgânicas é preciso juntar condições conjunturais de excepcional importância:
6) A Revolução de 1905 foi uma grande lição [...].
7) A guerra imperialista agudizou todas as contradições [...].
Mas todas essas condições, suficientes para que a revolução irrompesse, eram, porém insuficientes para assegurar a vitória do proletariado na revolução. Para esta vitória, uma condição era necessária:
8) O partido “bolchevique”.
O partido Bolchevique tornou-se a principal organização revolucionária na Rússia. Em apenas oito meses, de fevereiro de 1917 a outubro do mesmo ano (calendário russo), o governo provisório foi derrubado e se instalou um governo socialista, sob a liderança do Partido Bolchevique. A Revolução Socialista triunfava. Como bem lembra Leo Hubermam (1986, p. 271): “Dezessete anos antes do fim do século XIX, Karl Marx morria. Dezessete anos após o início do século XX, Karl Marx tornava a viver”.
E os países imperialistas aceitaram a Revolução? Depois de assumir o poder os Bolcheviques e o primeiro Estado operário do mundo tiveram que enfrentar uma violentíssima guerra civil. Os contrarrevolucionários contando com o apoio dos países capitalistas organizaram um poderoso exército para derrubar o governo socialista.
Depois de dois anos de intensa batalha entre o exército contrarrevolucionário e o exército vermelho, comandado por Trotsky, os socialistas saem vitoriosos e iniciam a construção do Estado Socialista. Medidas como o Comunismo de guerra e a Nova Política Econômica – (NEP)3 foram tomadas no sentido de manter o governo revolucionário. O essencial naquele momento era manter a Rússia um Estado operário visando à consolidação do socialismo. Daí em diante muitas foram as medidas e decisões governamentais visando o fim supracitado.
3 É O FIM DA HISTÓRIA?
Com o fim da União soviética e do chamado socialismo real dos países do Leste europeu, intensificou-se mundialmente a propaganda segundo a qual o capitalismo tinha vencido a luta contra o socialismo e provado, dessa forma, sua superioridade, enquanto sistema socioeconômico. O capitalismo havia triunfado e não tinha mais alternativas a ele. Era o fim da História, da luta de classes e do comunismo.
O que restava era a reforma do capitalismo, lutar para humanizá-lo o máximo possível. A Revolução tornou-se um horizonte sombrio para muitos intelectuais e movimentos que surgiram com propostas e soluções aos problemas do capitalismo, por dentro do próprio capitalismo.
Mesmo considerando toda a era de Stálin e seus sucessores, a Revolução de 1917 e todas as suas consequências não podem ser jogadas no porão da História. Pensar assim é se distanciar do processo histórico e não observar as grandes contribuições trazidas pela Revolução, tanto para a Rússia, quanto para o planeta.
Movimentos revolucionários e partidos políticos surgiram por todos os lugares. Mesmo a revolução socialista mundial não acontecendo, revoltas sociais e revoluções eclodiram em todo o mundo influenciados e orientados pelo pensamento revolucionário socialista. Uma alternativa ao capitalismo nascia e se corporificava. A reação demonstra claramente as preocupações dos países capitalistas. O Plano Marshal4 é apenas um dos exemplos do medo que rondava os governos capitalistas.
A Revolução Russa e o Estado Socialista que se constituía, contribuiu ironicamente até para a melhoria das condições de vida dos trabalhadores das nações capitalistas. O medo do socialismo fez com que os governos capitalistas cedessem às pressões dos trabalhadores, melhorando suas condições de vida e trabalho, a fim de evitarem revoltas sociais.
Na Rússia as mudanças foram ainda mais visíveis. De um país atrasado em relação ao capitalismo europeu e semifeudal, tornou-se uma superpotência industrial e militar. Segundo Trotsky (1989, p. 32), “[...] pela primeira vez na História, o princípio de organização socialista demonstrou a sua capacidade fornecendo resultados de produção jamais obtidos num curto período”.
Para se ter uma ideia do desenvolvimento industrial da Rússia, em 1932 era três vezes maior que antes de 1914. Se comparado aos países capitalistas fica mais claro: “De 1925 a 1932, a produção industrial da Alemanha diminuiu cerca de uma vez e meia; na América, cerca do dobro; na União Soviética, subiu mais do quádruplo.” (TROTSKY, 1989, p. 33).
Muitas são as críticas a esse desenvolvimento industrial acelerado, que evidentemente trouxe muitos problemas e efeitos danosos, especialmente para os camponeses. Mas, também, os críticos se esquecem (ou fingem esquecer) que o capitalismo em toda sua existência trouxe miséria e guerras para a maioria da população mundial.
No entanto, os erros do desenvolvimento acelerado da Rússia devem ser atribuídos a quem lhes cabe: Stálin, sua política governamental e toda burocracia soviética instalada pós-morte de Lênin, exílio e assassinato da maior parte dos bolcheviques que fizeram a revolução e não às bases de uma sociedade socialista. Hernández (2005, p. 32) nos esclarece sobre a posição de Stálin no debate com Trotsky: “Stálin [...] não só defendia que a URSS, de forma isolada, poderia chegar ao socialismo, como achava que ela já era socialista”.
O socialismo ainda estava em construção como podemos perceber nas palavras de Trotsky (1989, p. 29): “Na União Soviética não existe ainda o socialismo, mas um estado em transição cheio de contradições, carregado da pesada herança do passado e, além disso, sob a pressão inimiga dos estados capitalistas”. Apesar de passar parte de sua vida perseguido por Stálin e seus seguidores, Trotsky, não obstante, em nenhum momento desacreditou ou fez análises que invalidassem a revolução e suas conquistas. Stálin deveria ser retirado do poder pela força dos trabalhadores e a revolução permanente (teoria proposta por Trotsky) posta em prática; caso contrário, o futuro do Estado soviético seria o capitalismo. Hernández (2005, p. 32) acrescenta: “Stálin vulgarizou o ideal socialista. Até Stálin, para todo o marxista, o socialismo era sinônimo de um regime superior ao capitalismo em todos os terrenos. A partir de Stálin, o socialismo começou a ser identificado com a socialização da miséria”.
A URSS saiu da Revolução de Outubro como um Estado operário. A estatização dos meios de produção, condição necessária ao desenvolvimento socialista, abriu a possibilidade de um crescimento rápido das forças produtivas. Mas o aparelho soviético sofreu, nesse meio tempo, uma degenerescência completa: de arma da classe operária converteu-se em instrumento de violência burocrática contra a classe operária, e, cada vez mais, em instrumento de sabotagem contra a economia do país. A burocratização de um Estado operário atrasado e isolado e a transformação da burocracia em casta privilegiada todo-poderosa é a refutação mais convincente não somente teórica, mas também, prática, da teoria do socialismo em um só país (TROTSKY, 2004, p.48).
No campo cultural, “[...] o simples fato de a Revolução de Outubro ter ensinado ao povo russo, às dezenas de povos da Rússia czarista, a ler e escrever coloca-se incomparavelmente acima do que toda a cultura russa encerrava antes.” (TROTSKY, 1989, p. 35). A criação e proliferação das escolas e universidades e até atos simbólicos como as reformas do calendário e da ortografia demonstram o quanto a Revolução de 1917 contribuiu culturalmente para os trabalhadores russos.
Pouco tempo depois da insurreição, um dos generais czaristas, Zaleski, escandalizava-se com o fato de um porteiro ou um guarda se tornar um presidente de tribunal; um enfermeiro, um diretor de hospital; um barbeiro, uma personalidade importante; um soldado, um comandante supremo; um jornalista, um prefeito; um serralheiro, um diretor de empresa. (TROTSKY, 1989, p. 37).
Diante de todos os problemas enfrentados e erros cometidos, apesar da burocracia soviética ter soterrado um projeto de construção do socialismo e edificação do comunismo no período em que estavam no poder na Rússia, não se pode negar que a construção de um Estado com os princípios de organização socialista contribuiu decisivamente para as conquistas sociais e trabalhistas de milhões e milhões de trabalhadores por todos os continentes.
Nesse sentido, o Socialismo como horizonte foi um forte alicerce para a luta política dos trabalhadores em todos os continentes. Na África, por exemplo, nas resistências diárias ao Imperialismo europeu, a teoria socialista foi fundamental para o processo de descolonização. Líderes da independência africana como Kwame Nkrumah,
W.E.B Du Bois, George Padmore, Jomo Keniata, Amílcar Cabral, Patrice Lumumba e Frantz Fanon não apenas discutiram a necessidade de unificação dos países africanos, mas que essa unidade teria que ocorrer nos marcos do Socialismo. Serrano e Waldman (2007, p. 236) reafirmam a importância do socialismo e da formação da União Soviética no processo de descolonização da África:
[...] a irrupção da União Soviética como superpotência foi outro fator que minou a presença colonial na África. A URSS e os países do bloco socialista prestaram importante apoio financeiro, político e militar para os movimentos de libertação, em vários momentos fator decisivo para a expulsão dos colonialistas.
Não por acaso em Angola, Moçambique, Nigéria, Guiné-Bissau e África do Sul tivemos a formação de inúmeras organizações paramilitares patrocinadas pelo imperialismo europeu e americano com o objetivo de desarticular as organizações e líderes africanos socialistas.
4 A INFLUÊNCIA DO SOCIALISMO, MARXISMO E REVOLUÇÃO RUSSA NAS LUTAS DE RESISTÊNCIA DA JUVENTUDE DE PERIFERIA: algumas reflexões
Em outras partes do mundo, e onde menos se esperava, o ideal socialista fortalecido com a Revolução Russa foi fundamental para iniciativas de organizações políticas, sociais e culturais. Parte significativa da juventude negra brasileira, durante a década de 1980 e 1990, por exemplo, como evidenciado em Santos (2012, 2015), as formas de organização político-culturais tiveram como meta a construção do Socialismo. Nestes trabalhos constatou-se que essa juventude se organizou por meio do movimento Hip-Hop5 organizado em diversas partes do Brasil e do mundo e que o marxismo e o socialismo estavam entre as principais correntes de pensamento político presentes nessas organizações.
Essas organizações da juventude negra passaram a fazer grupos de estudo e ter acesso aos autores da teoria marxista e da história da Revolução Russa. Com efeito, o marxismo e o socialismo, fortalecidos e difundidos pela Revolução de Outubro de 1917, se tornaram instrumentos de luta, aprendizado e ações políticas que envolveram reciprocamente questões culturais, raciais e de classe no interior da juventude da periferia. (SANTOS, 2015).
Entender esse aspecto requer despir-se de todos os preconceitos economicistas impregnados em muitas das produções que dizem ser marxistas em âmbito mundial e dos conceitos monolíticos, fechados e europeizados que o eurocentrismo e a ideia de democracia racial consolidaram em um certo marxismo de viés stalinista no Brasil.
Assim, a primazia dada à luta sindical e o desprezo aos movimentos culturais é também reflexo desse desvio economicista e eurocêntrico do materialismo vulgar no Marxismo. A luta de classe nesta perspectiva é movida única e exclusivamente por fatores de ordem econômica.
Os movimentos sociais e a disputa pela direção cultural na sociedade civil também foram relegados a um plano secundário ou mesmo insignificante. A relação entre a infra e superestrutura foi fossilizada na ideia de sobredeterminação, em quaisquer circunstâncias, daquela sobre esta. Por entender a dominação como resultante da exploração entre as classes, esqueceram estes que a luta contra as opressões levadas a cabo pelos movimentos sociais e culturais são, da mesma forma, parte da luta contra a exploração capitalista. A emancipação do proletariado envolve a luta contra a dominação, a exploração e a humilhação inerentes à sociedade burguesa. Portanto, não existe antinomia entre movimentos políticos e sindicais e ações de movimentos sociais.
O marxismo, conforme nos mostra Boron (2007, p. 180), não é uma colcha de retalhos teórico-metodológicos, pelo contrário, é antes de tudo “[...] uma teoria que coloca uma reflexão integral sobre a totalidade dos aspectos que constituem a vida social, superadora da fragmentação característica da cosmovisão burguesa”.
Portanto, se o Marxismo é a teoria da totalidade, não pode haver primazia absoluta de uma esfera sobre a outra:
O que deve haver, e afortunadamente há, é um corpus teórico totalizante que unifique diversas perspectivas de análise sobre a sociedade contemporânea, nenhuma das quais pode, por si só, iluminar satisfatoriamente um aspecto isolado da realidade. É esse, precisamente, o traço distintivo do materialismo histórico. (BORON, 2007, p. 178).
Não só não há incompatibilidade entre raça e classe, como também não existe entre a luta política e a disputa ideológica ou a luta por hegemonia no âmbito dos movimentos político-culturais, a exemplo do Hip-Hop ou outras expressões culturais como o reggae, o funk e mesmo o samba. O que vemos é a unidade na diversidade do proletariado. Uno enquanto classe social, mas diverso em sua formação histórico-concreta e cultural. Trotsky (2009) enfatiza esse aspecto no livro A Questão de Modo de Vida escrito no contexto de ascensão do stalinismo na Rússia. Segundo o autor:
A poderosa unidade social que representa o proletariado surge em toda a sua amplitude nas épocas de luta revolucionária intensa. Mas no interior dessa unidade, observamos ao mesmo tempo, uma incrível diversidade e mesmo uma grande heterogeneidade [...] cada camada social, cada oficina de empresa, cada grupo, é constituído por indivíduos de idade e caráter diferentes, de passado diversificado. Se não existisse essa diversidade, o trabalho do partido comunista no domínio da educação e da unificação do proletariado seria de todo simples. Pelo contrário, o exemplo da Europa prova-nos quanto esse trabalho é na realidade difícil. Pode-se dizer que quanto mais a história de um país e, portanto, a história da própria classe operária, é rica, mais reminiscências, tradições e hábitos nela se encontram, quanto mais os grupos sociais nela são antigos, mais difícil é realizar a unidade da classe operária” (TROTSY, 2009, p. 11).
Trotsky (2009, p. 8), ao escrever esse livro, estava criticando o economicismo dos artigos do jornal Pravda do partido Bolchevique, alertando para o risco deste não se transformar em uma imprensa “[...] destinada unicamente ao pessoal dos sindicatos” e na sequência propõe uma espécie de militantismo cultural com vistas a garantir a consolidação da Revolução de outubro:
[...] a revolução é acima de tudo o despertar da personalidade humana em camadas que outrora nenhuma personalidade possuía. Apesar de toda a crueza e sangrenta ferocidade de seus métodos, a revolução é, sobretudo, um despertar do sentimento humano; permite progredir, dar mais atenção à dignidade própria e alheia, ajudar os fracos e sem defesa. (TROTSKI, 2009, p. 55).
Essa mesma questão pode ser levantada quando falamos da juventude de periferia no Brasil e de suas ações culturais. A ideia comumente partilhada entre aqueles que observam a cultura da juventude de periferia é com o olhar do colonizador (de fora) que atrela as suas produções culturais à marginalidade, destruição e – muitas vezes – como uma cultura americanizada e enlatada, quando não exótica, a exemplo do que se fala do Hip-Hop e do funk, ou externa à cultura tradicional e local como são as acusações feitas – principalmente pelos membros da Academia Maranhense de Letras – ao reggae em São Luís do Maranhão.
Ainda que muitas dessas expressões culturais da juventude de periferia seja uma cultura cujo desenvolvimento deu-se nos Estados Unidos ou outras regiões e que se expandiu para o terceiro mundo a partir da década de 1980, em decorrência do processo de globalização do capital, é preciso considerar o seu processo de deglutinação nacional e regional no contexto de sua inserção ou incorporação no ethos de uma determinada cultura nacional.
Isso é importante se considerarmos alguns autores (ABRAMO, 1994; ABRAMOVAY et al., 1999; HERSCHAMANN, 2005) quediscutem e analisam a juventude brasileira, em especial da década de 1990, como uma juventude distópica, ou seja, sem propósitos de transformação da realidade ou sem nenhuma referência em relação à luta de classes. A percepção da realidade vivida na periferia seria descrita por essa juventude de forma apocalíptica. A miséria, a violência, os problemas familiares seriam amplificados e ao futuro caberia apenas a cadeia ou a morte. (ABRAMO, 1994). Como disse Herschmann (2005, p. 58-59):
Os grupos juvenis recentes caracterizam-se por uma busca de intensidade no lazer, em contraposição a um cotidiano que se anuncia como medíocre e insatisfatório. Eles parecem assumir o fato de que não têm e não são capazes de produzir grandes projetos de transformação, e que sua ação genuína só pode ser a de assumir a perplexidade, denunciar o presente e submeter à prova os projetos existentes.
Contudo, não é de qualquer juventude que se discorre aqui, mas de uma juventude situada historicamente com sua condição de classe e raça, moradora das periferias das grandes cidades e que de uma forma ou de outra – mesmo em situações de violência – expressa determinadas resistências ao sistema capitalista e as ideologias que o reforçam. Juventude envolvida em gangues ou em movimentos organizados, sem objetivos políticos ou com intencionalidade revolucionária, enfim, juventude que pelas condições materiais na qual se encontra é potencialmente perigosa para as classes dominantes.
Por meio de sua cultura, de suas formas de resistência, de sua inserção na sociedade de classes e no neoliberalismo reflete sobre as relações entre arte, revolução e organização política, mas acima de tudo, constrói diversas formas de luta, conquista e aspirações por mudança e melhoria nas condições de existência.
Assim como a história não deve ser pensada como um filme, a cultura globalizada não pode ser analisada como uma fotografia, ou seja, imóvel e estática. A cultura, seja ela qual for, deve ser considerada em seu aspecto histórico e dialético.
É por tal razão que devemos considerar o ser humano real que por meio do seu trabalho produz cultura, se entende socialmente, se conscientiza de suas tarefas para melhorar a humanidade e com isso luta para transformar o mundo em que vive.
5 CONCLUSÃO
Quantos carrascos do socialismo já existiram na humanidade? Quantas vezes não já mataram o comunismo? Dezenas? Milhares? O socialismo morreu? Vejam Cuba, por exemplo, um Estado que não é socialista e que a cada dia se consolida como um país capitalista, mas só pelo fato de organizar-se, depois da Revolução Cubana, com princípios de organização socialista trouxe mudanças substanciais para a vida dos trabalhadores cubanos, a ponto de seus estudantes escreverem um cartaz, quando da visita do Papa João Paulo II a Cuba, dizendo o seguinte: “[...] neste natal centenas de milhões de crianças vão morrer de fome, nenhuma dessas crianças é cubana” .
O socialismo morreu? A lei, a justiça e a História válidas são as do capitalismo? Deixaram de nascer pessoas exploradas e discriminadas nas favelas, periferias e comunidades pobres pelo mundo? Os adolescentes do oriente médio fogem de medo dos tanques israelenses ou os enfrentam com pedras? As revoltas sociais e greves dos trabalhadores não existem mais? A ocupação e luta pela terra deixou de existir? Com o fim do partido Bolchevique acabaram-se os partidos revolucionários?
Este texto posiciona-se contrário às afirmações que o socialismo morreu e o que fim da história já está posto. Por essa razão, busca-se a partir das reflexões deste artigo demonstrar que a Revolução Russa de 1917, com suas conquistas e contradições, influenciaram a organização política e a conquista da classe trabalhadora no mundo inteiro, bem como de parte significativa da juventude de periferia no Brasil; que o socialismo continua vivo e a luta pelo comunismo, apesar de suas mortes diárias, sempre ressuscita no outro dia.
REFERÊNCIAS
ABRAMO, H. Cenas juvenis, punks e darks no espetáculo urbano. São Paulo: Scritta, 1994.
ABRAMOVAY, M. et al. Gangues, galeras, chegados e rappers: juventude, violência e cidadania nas cidades da periferia de Brasília. Rio de Janeiro: Garamond, 1999.
BORON, A. A. A questão do Imperialismo. In: BORON, A.; AMADEO, J.; GONZÁLES, S. (Orgs.). Teoria marxista hoje: problemas e perspectivas. 1. ed. Buenos Aires: CLACSO; São Paulo: Expressão Popular, 2007.
HERNÁNDEZ, M. O veredicto da História. In: TROTSKY, L. A revolução traída: o que é e para onde vai a URSS. São Paulo: Editora Instituto José Luis e Rosa Sundermann, 2005.
HERSCHMANN, M. O funk e o Hip Hop invadem a cena. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005.
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Notas