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AS LIÇÕES DE OUTUBRO PARA O BRASIL: classe e raça na especiÞ cidade da revolução brasileira
Claudicéa Alves Duran; Hertz da Conceição Dias
Claudicéa Alves Duran; Hertz da Conceição Dias
AS LIÇÕES DE OUTUBRO PARA O BRASIL: classe e raça na especiÞ cidade da revolução brasileira
Revista de Políticas Públicas, vol. 22, pp. 675-690, 2018
Universidade Federal do Maranhão
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Resumo: Este artigo analisa a Revolução de Outubro tomando por base as experiências e lições para a construção de um programa de raça e classe para a revolução brasileira. Investiga o processo de transição da escravidão para o trabalho livre no Brasil, a formação e o caráter da burguesia brasileira, bem como as reparações históricas como políticas de programa de transição para a libertação do proletariado brasileiro. Por fim, destaca as demandas negras que ficaram represadas pela forma como se deu o processo de escravidão no Brasil.

Palavras-chave:Revolução RussaRevolução Russa, escravidão escravidão, raça raça, classe classe, reparações reparações.

Abstract: This article analyzes the October Revolution based on experiences and lessons for the construction of a class and race program for the Brazilian revolution.It investigates the process of transition from slavery to free labor in Brazil, the formation and character of the Brazilian bourgeoisie, as well as the historical reparations as transition program policies for the liberation of the Brazilian proletariat. Lastly, it highlights the black demands that have been dammed by the way the slavery process took place in Brazil.

Keywords: Russian revolution, slavery, race, class, repairs.

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AS LIÇÕES DE OUTUBRO PARA O BRASIL: classe e raça na especiÞ cidade da revolução brasileira

Claudicéa Alves Duran
Instituto Federal do Maranhão - IFMA, Brasil
Hertz da Conceição Dias
CEM Coelho Neto: R Jorge Damous, Brasil
Revista de Políticas Públicas, vol. 22, pp. 675-690, 2018
Universidade Federal do Maranhão

Recepção: 03 Março 2018

Aprovação: 09 Maio 2018

1 INTRODUÇÃO

Não pretendemos fazer um balanço, nem tão pouco um histórico daquela que foi a revolução mais importante da história da humanidade, a Revolução Russa, que em outubro de 2017 completou 100 anos e exerce ainda hoje influência em todo o mundo. É preciso tirar as lições e pensar também o caráter da revolução no Brasil.

Antes, é importante que se diga que a revolução Russa mostrou que é possível acabar com a miséria, a fome e a opressão. Que a democracia operária é superior a todas as demais. Que a revolução social e política foi capaz de transformar um dos países mais pobres da Ásia e da Europa em uma das maiores potências do mundo. De que é possível construir um governo de base, organizado pelos conselhos, com representantes eleitos democraticamente e com cargos revogáveis.

No que pese a traição do stalinismo e o balanço necessário de se fazer sobre os processos que levaram a restauração do capitalismo em todos os países em que os trabalhadores tomaram o poder, expropriaram as classes dominantes e planificaram a economia, os livros que versam sobre a história do século XX não podem negligenciar a história do Outubro de 1917 que fez com que o impossível se tornasse inevitável para mais de um terço da humanidade.

Com base nessa experiência histórica, as peculiaridades da formação histórico-social do Brasil, bem como o caráter das suas principais classes sociais e as demandas represadas é que urge a necessidade de uma revolução no Brasil.

É importante lembrar que um quinto da sua história do país é história da escravidão, uma instituição que foi indispensável para garantir a acumulação de capital no continente europeu. Mais da metade dos africanos escravizados tiveram como o destino o Brasil, fazendo da escravidão um capítulo dos mais importantes e mais dramáticos da história.

Estima-se que no período da escravidão o país recebeu cerca de 4 a 12 milhões de negros traficados da África, num processo que durou cerca de 350 anos de escravidão em contraste com apenas 130 anos de trabalho livre.

Mesmo no continente africano, apenas a Nigéria possuiu, em termos absolutos, mais negros que o Brasil. A escravidão enquanto instituição nacional conseguiu também nacionalizar as lutas negras e organizar os quilombos. Bastava existir senzalas para que os quilombos existissem em seu paralelo e contraponto. Segundo Moura (1992, p. 23)

O quilombo aparece, assim, como aquele módulo de resistência mais representativo (quer pela sua quantidade, quer pela sua continuidade histórica) que existiu. Estabelecia uma fronteira social, cultural e militar contra o sistema que oprimia o escravo, e se constituía numa unidade permanente e mais ou menos estável na proporção em que as forças repressivas agiam menos ou mais ativamente contra ele […] Entendemos, portanto, por quilombagem uma constelação de movimentos de protesto do escravo, do qual partiam ou para ele convergiam e se aliavam as demais formas de rebeldia.

Pelo histórico de resistência, tanto a nossa independência como a abolição da escravidão, se deu com o máximo de cautela e com acordos celebrados entre as elites. A independência foi realizada mantendo a escravidão e abolição, foi realizada mantendo o latifúndio. Por isso, o Brasil ficou conhecido como um país inconcluso.

Uma abolição realizada em favor dos negros significaria destruir toda a estrutura fundiária e o bloco de poder que foi montado para garantir a existência de um modo de produção pautado na escravidão.

2 AS LIÇÕES DE OUTUBRO E A CONSTRUÇÃO DE UM PROGRAMA ENEGRECIDO PARA A REVOLUÇÃO BRASILEIRA

A tarefa colocada para os revolucionários é saber estabelecer a ponte entre as demandas específicas de cada grupo oprimido com o projeto estratégico da revolução socialista. Deve-se explicar pacientemente aos negros, a sua camada mais prole, aos operários negros, que não existem mais espaços para conquistas que sejam duradouras por dentro de um sistema decadente e destrutivo como o capitalismo em sua fase imperialista.

Nesse sentido, para uma melhor compreensão sobre a atual fase do capitalismo nos apoiamos na caracterização de Lênin (2008, p. 90) sobre o imperialismo e seus traços fundamentais:

A concentração da produção e do capital levada a um grau tão elevado de desenvolvimento que criou os monopólios [...]; 2. a fusão do capital bancário com o capital industrial e a criação, baseada nesse capital financeiro da oligarquia financeira; 3. a exportação de capitais, diferentemente da exportação de mercadorias, adquire uma importância particularmente grande; 4. a formação de associações internacionais monopolistas de capitalistas, que partilham o mundo entre si, e 5. o termo da partilha territorial do mundo entre as potências capitalistas mais importantes.

A fase decadente desse modo de produção impõe restrições à vida dos trabalhadores. Desta forma, compreender o contexto econômico, bem como aprender com a história para não repetir seus erros é tarefa da vanguarda; o mesmo vale para aquelas organizações que reivindicam a Revolução de 1917.

Foi o Partido Bolchevique que mostrou que problemas das nacionalidades oprimidas, assim como a questão agrária, só seriam resolvidos através da conquista do poder. Souberam incorporar as demandas dos movimentos democráticos, superando, dialético e programaticamente, os limites desses mesmos movimentos nacionais democráticos.

Sem tergiversar, rejeitaram os chamados blocos anti-imperialistas, ou seja, a necessidade de blocos de todas as classes, forças e partidos para lutar contra a dominação imperialista.

A formação de blocos anti-imperialistas, ao contrário do que se pensa, tem sua origem nas traições stalinistas. Não foi Lênin, nem Trotsky, nem os Bolcheviques que colocaram a formação de blocos acima dos interesses das massas exploradas e oprimidas do planeta.

A traição que o stalinismo impôs aos negros em suas lutas por direitos iguais, resulta de suas alianças com as burguesias dos países coloniais ou mesmo com os governos supostamente democráticos dos países imperialistas, tal como fez com Franklin Delano Roosevelt, Presidente dos Estados Unidos (1933-1945), traindo a luta negra contra esses mesmos governos.

No Brasil, as elaborações teóricas e formulações políticas que prevaleceram na esquerda também têm sua origem nas interpretações stalinistas. Nelas, as opressões são vistas como lutas e demandas que dividiam o conjunto do proletariado.

Esse é um debate muito presente na arena da luta de classes. No Brasil, quase toda esquerda propõe uma ampla aliança da esquerda para lutar contra a direita e o imperialismo. Nessa aliança cabem todos os partidos de esquerda, mesmo os que já estiveram no poder, que governaram para a burguesia e o imperialismo e que massacraram impiedosamente os negros em nome da governabilidade. O PT é o exemplo mais emblemático dessa aliança que se conformaria acima das classes e para justiçar tamanho descalabro, trocam a palavra classe por esquerda.

A revolução Russa que impulsionou as revoluções negras no continente africano e o Movimento Negro dos Estados Unidos foi uma revolução que incorporou ao seu programa as tarefas democráticas, mas que se realizou passando por cima de todas as organizações reformistas. A Revolução de Outubro foi essencialmente uma revolução contra a Frente Popular. Na luta pela eliminação do racismo não será diferente.

A libertação do negro brasileiro de sua opressão não será resultado de mágicas e nem de alianças que estejam acima das classes. O negro é parte majoritária e mais explorada do operariado brasileiro, portanto está no centro da luta de classe nesse país, assim como é entre os camponeses. Na outra ponta ele sofre cotidianamente em função da sua ancestralidade. Ele é explorado na fábrica e abatido nas ruas, como gado humano.

Não existem dois sistemas, ou seja, um que o explora e outro que o oprime. O conteúdo desses fardos que pesam sobre suas costas está estritamente ligado, porque são fardos colocados pelo mesmo sistema, o capitalismo.

Sendo assim, não é possível se libertar de um, sem se libertar do outro, pois ambos passam pela luta radical e implacável contra a dominação capitalista. É partindo desse entendimento que a consigna a Revolução brasileira será negra ou não será ganha toda a força. Não se trata necessariamente de um programa separado para os negros, mas de uma palavra de ordem que permite dialogar mais profundamente com os negros e levá-los a entender a necessidade de ampliar o leque de suas lutas, já que suas reivindicações estão combinadas de questões específicas e gerais. Diferente do que se costuma pensar, não existe incompatibilidade alguma entre a questão negra e a questão de classe.

A denúncia do genocídio negro comprovado nos próprios dados oficiais, e as lutas negras que se estendem da retomada de territórios quilombolas, passando pela ocupação de escolas públicas, nas rebeliões operárias em setores precarizados e o enfretamento aberto à violência policial, colocam o debate de um programa de transição para negros e negras na ordem do dia.

Na Rússia, os Bolcheviques, especialmente Lênin, compreenderam que essas lutas movidas por questões aparentemente democráticas, numa fase de decomposição social do capitalismo em sua fase imperialista, ganham importância estratégica. As nacionalidades oprimidas sob a batuta do império Russo somavam 57% do total da população, cerca de 90 milhões de pessoas, enquanto a nacionalidade opressora, os grãos-russos, representavam apenas 53% da população, somando algo em torno de 70 milhões de pessoas. Pela impossibilidade da burguesia Russa e mesmo os partidos reformistas conseguirem apresentar e implementar um programa que garantisse a libertação nacional desses povos, essa luta passou a exercer uma força explosiva e revolucionária.

Proporções devidamente guardadas, a situação que levou os trabalhadores russos a tomar o poder há 100 anos é inspiradora para a realidade brasileira. No Brasil, os negros e negras encontram-se nos setores mais explorados da classe trabalhadora. Suas demandas combinam questões históricas e atuais, por isso é importante apresentar um programa que combine a questão de raça e de classe.

3 ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO E AS REPARAÇÕES HISTÓRICAS COMO DEMANDA NEGRA DA REVOLUÇÃO BRASILEIRA

O capitalismo cometeu o maior crime da história da humanidade, que foi a escravidão. Mais de 50 milhões de índios foram eliminados na América. Mais de 20 milhões de africanos escravizados, a maioria vindo para o Brasil, entre 40% ou metade perderam suas vidas nos portos africanos ou na travessia do atlântico que se transformou num dos maiores cemitérios negros a céu aberto do mundo. Tudo isso em função da acumulação de capital na Europa.

O africano passou a ser além de uma força de trabalho compulsória, uma mercadoria viva como era adquirida na África e uma moeda-não metálica trocada por produtos primários na América, pois se esses produtos fossem comprados com metais preciosos a acumulação de capital se daria na América e não na Europa, desmontando assim a lógica da empresa colonial.

A única forma que o africano encontrava para resgatar sua humanidade que havia sido esvaziada pela escravidão, era na rebeldia, nas insurreições, nas revoluções contra o sistema que o escravizava.

Pelo histórico de resistência e risco iminente de ocorrer no Brasil uma revolução negra como a que ocorreu no Haiti entre o fim do século XVIII e início do século XX em que os escravos não só expropriaram, mas também eliminaram seus senhores, tanto a nossa independência como a abolição da escravidão se deu com o máximo de cautela e com acordos celebrados entre as elites. Nenhuma nem outra foi realizada em favor dos negros e nem seria.

A independência foi realizada mantendo a escravidão e abolição, ou seja, foi realizada mantendo o latifúndio.

No processo de decomposição do escravismo, dois aspectos passaram a preocupar as classes dominantes: a questão da posse da terra e a força de trabalho negra. Isto porque teria como consequência abolir a escravidão, o que significaria integrar os escravos, incluindo a adoção de terras pelo Estado a esse grupo. No entanto, mecanismos ideológicos, reguladores e repressores foram montados a fim de que a estrutura social hierárquica se mantivesse. Portanto, a abolição da escravidão não aconteceu de maneira pacífica. Essa é uma caricatura da nossa história criada pela burguesia.

O ano 1850 é extremamente emblemático para entendermos como se deu a abolição e a exclusão estrutural do negro brasileiro nas primeiras décadas do século XX. Nesse período foi aprovada a Lei Euzébio de Queiroz1 que golpeou de morte o tráfico de escravos. O Brasil não poderia mais receber escravos. É obvio que o tráfico se manteve clandestino ainda por alguns anos, mesmo com a marinha inglesa tentando impedir.

Segundo Moura (1992), há relatos de que quando os traficantes avistavam os navios ingleses que patrulhavam nossos mares, eles amarravam uma pedra no pescoço dos africanos e jogavam ao mar para não deixar vestígio.

Percebendo que cedo ou tarde a abolição aconteceria, o parlamento aprova a Lei da Terra (Lei n. 601, de 18 de setembro de 1850). Ora, antes, a aquisição da terra se dava pelas qualidades dos indivíduos, pelos serviços prestados ao Estado, o que implicaria, logicamente, distribuição de terras para os negros libertos. Mantida a lei anterior, logicamente estaria garantida a reforma agrária no nosso país. Mas, com a aprovação da nova Lei o acesso à terra só poderia ser mediante a compra; isso impossibilitou que os exescravos tivessem acesso à terra, o latifúndio ficou intacto, o que garante até hoje ao Brasil o título de maior concentrador de terra do mundo.

Alguns anos mais tarde seria aprovada a Lei do Ventre Livre2, que considerava livres os filhos de escravos nascidos a partir daquela data, ou seja, 1871, mas mantinha a mãe escrava. Em um de seus artigos garantia que criança livre deveria ficar sob a tutela do senhor até completar 18 anos, certamente trabalhando compulsoriamente.

Em 1885, três anos antes da abolição, o parlamento aprova a Lei do Sexagenário3 ou Lei que garantia a liberação dos escravos com 60 anos ou mais. Era público e notório que devido às condições e às jornadas extenuantes de trabalhos, dificilmente um escravo alcançaria essa idade, não em condições produtivas.

Não satisfeitos, os cafeicultores, especialmente de São Paulo, conseguiram elevar a idade de liberdade para 65 anos. A semelhança com a Reforma da Previdência que tramita no Congresso não é mera coincidência.

A lei do Ventre Livre é de 1871, o que implica dizer que o filho de escravo nascido em 1870 estaria sujeito ao trabalho escravo até 1935, caso a escravidão não fosse oficialmente extinta em maio de 1888.

No entanto, no meio do percurso dessa abolição gradual da escravidão, ocorre um dos episódios mais sangrentos da história do Brasil: a Guerra do Paraguai. Esse acontecimento contribuiu para desagregar completamente o sistema escravista. Essa guerra é de 1865, mas desde 1864 o Brasil já enfrentava uma grande crise econômica que afetou indústria incipiente, os bancos e o comércio.

Nesse mesmo contexto crescia o desemprego e a ofensiva abolicionista contra a escravidão. Naquele mesmo ano de 1864, quando o Papa Pio IX enviou uma bula que determinava, entre outras coisas, que todos os católicos envolvidos com a prática da maçonaria fossem imediatamente excomungados da Igreja, o imperador, Dom Pedro II, que integrava os quadros da instituição censurada, formulou um decreto se contrapondo à decisão do Papa. Mas os bispos de Olinda preferiram acatar as ordens vindas de Roma, e foram obrigados a prestar serviços forçados. Esse incidente em meio a uma crise econômica e social foi suficiente para a igreja romper com D. Pedro II.

Até mesmo com a Inglaterra, o Brasil havia rompido relações. É nesse contexto que explode a Guerra do Paraguai, sem que o Brasil tivesse qualquer condição de bancar. Porém, o império viu nesta guerra um pretexto para invocar os brios patrióticos daqueles que questionavam a escravidão, e resolveu comprar milhares de escravos para lutar nessa guerra. Os senhores de escravos, para fugir de seus deveres patrióticos, preferiram mandar escravos em seus lugares ou nos lugares dos seus parentes.

O exército fazia verdadeiras razias, recrutando à força negros, mestiços, brancos pobres e toda a chamada ralé. Para cada soldado branco, 45 eram negros. Era um exército predominantemente negro, portanto uma carnificina igualmente negra. Segundo Chiavenato (1979), o Duque de Caxias chegou mesmo a computar cerca de 90 mil negros mortos, só nas batalhas. Os negros mortos poderiam ter chegado a um percentual de 140 mil mortos. Apenas 20 mil retornaram com vida.

A Guerra do Paraguai era o sinal da limpeza étnica que estava por vir, da política seletiva racial que prevalece até hoje nesse país.

No Brasil, onde apesar da bancarrota de 1864 a situação econômica era mais estável (em comparação à Argentina) pelo papel potencial de país gigantesco, a guerra iminente serviu para tirar da rua os desocupadosmesmo a contragosto delese estimular fornecedores etc. Os empréstimos que o Império do Brasil e a Argentina começaram a receber, naturalmente, são sangue novo na economia desses paísesa ninguém interessa a dependência que eles criarão no futuro; surge uma nova classe borboleteando em torno de governos aliados, que usufrui de todos os modos da situação.

Criou-se assim uma situação de euforia; um falso progresso, que ao correr da guerra, porém, começa a ser desmontado, para se ver desmontado, para se ver desmascarado após a vitória da Tríplice Aliança e os primeiros desentendimentos dos aliados. (CHIAVENATO, 1979, p. 84)

A guerra envergonhou o Brasil, enquanto dentro do seu próprio território havia milhares de escravos. No Brasil, os escravos foram transformados em soldados, enquanto os soldados paraguaios aprisionados pelo exército brasileiro foram transformados em escravos, para repor a escassez decorrente do fim do tráfico e da morte de milhares nos campos de batalhas.

O Brasil saiu da guerra endividado e teria que pagar os empréstimos que contraiu junto à burguesia inglesa e recorrer a novos empréstimos. Internamente a economia estava arrasada ou já com seus ramos dinâmicos controlados pelo capital inglês.

No entanto, os que voltaram vivos, adquiriram outra consciência, outra disciplina. Os libertos se lançavam na luta pelo resgate de outros escravos ou mesmo pelos seus parentes que continuavam cativos.

Em São Paulo explodiram insurreições negras por várias regiões. Os negros sabiam que estavam mais valorizados e que o senhor não poderia mais puni-los como antes, pois não havia condições de repor as peças humanas. Isso criou um clima de instabilidade social, conforme aponta a historiadora Célia Maria Marinho de Azevedo (1987) em seu livro Onda Negra, Medo Branco.

A situação se gravou quando em 1880 os senhores de escravos do Sudeste aprovaram em suas respectivas assembleias o fim do tráfico interprovincial, ou seja, a proibição de compras provenientes da região nordeste. Os senhores do Nordeste ameaçaram abrir fogo contra o império, ainda mais quando se desenhava uma abolição em que os mesmos não seriam indenizados.

Sem apoio dos principais pilares que mantiveram a escravidão no Brasil por mais de 350 anos, ou seja, sem apoio dos fazendeiros do nordeste e do sudeste, sem apoio da igreja, sem apoio do exército que se negava a resgatar o negro que havia fugido das fazendas, sem apoio de parte da classe média que organizara os clubes de abolicionistas, com o país refém de uma dívida sem precedentes, e com insurreições escravas ganhando o sudeste do país, não restava outra saída para o Império a não ser abolir a escravidão para que o país entrasse numa situação insurrecional.

Abolida a escravidão em 13 de maio de 18884, um ano depois o Império, a República era proclamada. A Lei da abolição não definiu políticas públicas ou medidas reparatórias para integrar o negro na sociedade.

Nesse processo de transição do trabalho escravo para o livre a elite brasileira perguntava-se: o que fazer com os negros libertos?

A resposta foi branquear o país. O mesmo estado que manteve a escravidão por mais 66 anos depois da independência, agora iria financiar a vinda do imigrante Europeu. Várias foram as justificativas para tanto, entre as quais a ideia de que o atraso decorria do contingente majoritariamente negro de sua população e não do caráter dependente de sua economia e da burguesia perante as forças do imperialismo britânico.

Assim, nossa elite intelectual concluiu que o Brasil só alcançaria status de nação civilizada quando a mesma se transformasse em um país de maioria branca. Em uma palavra, sem qualquer política de Reparações para a população negra, o projeto de nação que a nascente burguesia brasileira tinha em mente era a eliminação física e biológica dos que descendiam dos escravizados.

A entrada de imigrantes no Brasil não foi uma simples ocupação de espaços de trabalhos vazios ou substituição do trabalhador atrasado por um trabalhador superior, como afirmam alguns estudiosos. Antes, tratou-se de satisfazer uma teia de interesses que se conjugava numa visão capitalista dessa transação, com capitais em jogo e interesses ideológicos e políticos que se completavam.

O governo imperial investiu no imigrante porque representava uma peça importante que dinamizava, via interesses da burguesia mercantil ativa e ávida por lucros, essa substituição. (MOURA, 1994). As classes dominantes se beneficiaram com esse tipo de investimento, tanto que estabeleceram mecanismos seletivos ideológicos, econômicos e institucionais para a entrada de imigrantes.

Houve numerosos incentivos governamentais, como pagamentos de salário a esses trabalhadores de aluguel e medidas proibitivas na compra de escravos, que passou então a ser um negócio oneroso.

A intensificação da entrada de imigrantes obedeceu à tripla finalidade, de acordo com a lógica dominante: primeiro, suprir a mão de obra necessária na cafeicultura, que descortinava grandes perspectivas; segundo, baseou-se na proposta de modernização do país, onde o tipo humano que representava o progresso era o branco; e o terceiro, o desejo de embranquecer a população brasileira.

Os imigrantes entraram com 79% do pessoal ocupado nas atividades artesanais; 81% do pessoal ocupado nas atividades comerciais. Suas participações nos estratos mais altos da estrutura ocupacional ainda eram pequenas (pois só 31% dos proprietários e 19,4% dos capitalistas eram estrangeiros). Contudo acharam-se incluídos nessa esfera, ao contrário do que sucedia com o negro e mulato. (FERNANDES, 2008, p. 89).

De acordo com Costa (1986, p. 96), a solução brasileira na perspectiva imigracionista:

[...] fora primordialmente uma promoção de brancos, de homens livres. Nascera mais do desejo de libertar a nação dos malefícios da escravatura, dos entraves que esta representava para a economia em desenvolvimento, do que propriamente do desejo de libertar a raça escravizada em beneficio dela própria, para integrá-la à sociedade de homens livres. Alcançado o ato emancipador, abandonou-se à população de exescravos à sua própria sorte.

A principal motivação das elites para retirar o ex-escravo do processo de trabalho e, consequentemente, valorizar e intensificar a importação de imigrantes brancos, não foi apenas a ocorrência de uma crise de mão de obra, mas, sobretudo, a intenção premeditada de isolar uma massa populacional disponível, que constantemente se rebelava contra as imposições, organizando pertinentes formas de luta e resistência, que se intensificaram principalmente no período préabolição.

Por outro lado, a maioria dos imigrantes, também excluídos do acesso a terra, seriam obrigados a submeter-se às condições degradantes nas fazendas de café do sudeste do país. Enquanto o negro completamente excluído do mundo do trabalho assalariado irá compor uma enorme massa compacta de desempregados que cumpriria a função do exército industrial de reserva caracterizado por Moura como franja marginal. Enquanto a franja negra pressionava os salários do imigrante branco-europeu para baixo, muitas das organizações sindicais da época tratavam o negro com total menosprezo. Enfim, o racismo e todas as suas ideologias correlatas criaram uma fratura racial no interior do proletariado brasileiro.

No Brasil, verifica-se uma dicotomia no processo de imigração, pois enquanto o trabalhador negro foi rotulado de incapaz, animalesco, símbolo de um passado que deveria ser esquecido, o branco europeu foi considerado superior, capaz, representante do progresso. Visava-se com isso exercer a nova etapa de civilização brasileira. De forma alguma foram aceitas outras etnias, que não a branca europeia. Exemplo disso foram os chineses, descartados a fim de que não degenerassem ainda mais a população do país.

Esse projeto de Estado fracassou em decorrência da eclosão da I Guerra Mundial que fez cessar a vinda de imigrantes europeus para o Brasil. É importante destacar o papel que cumpre a população negra na sua reorganização, localizando-se em vários âmbitos: político, cultural e religioso. Por isso, a cultura negra num país racista se traduz em algo muito maior que mera manifestação de tradição cultural, mas num instrumento vivo de resistência, sobretudo pela sobrevivência.

4 AS LIÇÕES QUE DEVEMOS TIRAR E O PROGRAMA QUE DEVEMOS DEFENDER

Algumas lições podemos tirar do longo processo descrito até aqui. Uma delas tem a ver com o caráter de nossa burguesia. Ela é produto de mais de 350 anos de escravidão. É uma burguesia conservadora, dócil com o imperialismo, mas extremamente violenta com os negros e os pobres de maneira geral. Enquanto classe social dominante, se negou a abrir fogo contra Portugal e Inglaterra para conquistar uma verdadeira independência.

Ela preferiu endividar o país e manter a escravidão por mais de 66 anos, a ter que mover os escravos como base social para se opor às imposições da Inglaterra. Também fez abolição mantendo o latifúndio, impedindo negros e índios de ter acesso à terra.

Ao longo dos últimos 200 anos não houve ruptura significativa com o projeto de Estado e de nação desta burguesia. Nem bem aboliram a escravidão e proclamaram a república, se lançaram numa ofensiva contra o povo, isso se deu com os massacres de Canudos, Contestado, Levante da Vacina e das Chibatas.

Hoje, a ofensiva da burguesia se manifesta no genocídio dos jovens, da violência contra as mulheres, nos ataques aos indígenas, aos quilombolas, nas verdadeiras ditaduras puras que são instaladas nos morros, nas favelas e dentro das fábricas.

Por tudo isso podemos concluir que pela sua formação histórica e pela condição de sócia-menor do imperialismo e por historicamente tratar as lutas democráticas como caso de polícia, não é possível ao proletariado negro estabelecer qualquer tipo de aliança com a burguesia brasileira, ainda que a mesma seja oprimida em relação às forças externas ao país.

O aliado impreterível do proletariado brasileiro é o proletariado branco, e todos os setores explorados e oprimidos da sociedade brasileira, a partir de um programa de transição com foco nas Reparações Históricas.

As Reparações não são, em tese, políticas revolucionárias ou socialistas, mas podem vir a ser. Elas seriam uma política adotada pelo Estado para reparar um crime que o próprio Estado burguês assume que cometeu contra os africanos e seus descendentes. O problema que se coloca, então, é que no âmbito das políticas reparatórias há reivindicações que questionam a propriedade privada, e justamente nesse aspecto é que a democracia burguesa encontrará seus limites para aceitar dialogar com as Reparações.

Enquanto Programa Mínimo, as Reparações podem adquirir um conteúdo classista, explosivo e revolucionário contra a democracia burguesa e o mito da democracia racial, tudo isso por duas questões básicas: 1 - É uma exigência que faremos a um governo burguês; 2- Questiona a acumulação de capital e a propriedade privada realizada com o tráfico negreiro, com a escravidão e com a superexploração dos descendentes africanos.

Vejamos o que Trotsky (1985, p. 105) nos diz a respeito:

Durante o período em que o poder pertence à burguesia, a divisão do nosso programa em programa máximo e programa mínimo reveste um significado profundo e fundamental de princípio. O próprio fato de a burguesia estar no poder elimina do programa mínimo todas as reivindicações que são incompatíveis com a propriedade privada dos meios de produção. Estas reivindicações formam o conteúdo de uma revolução socialista e pressupõem a ditadura do proletariado.

Isso porque a superação das fronteiras entre programa mínimo e máximo só poderá ocorrer num governo proletário. Para Trotsky (1985) a divisão em programa máximo e mínimo perde todo o significado, tanto em princípio como na prática, desde que o poder esteja nas mãos de um governo revolucionário de maioria socialista. “Um governo proletário não pode em caso algum fixar-se em tais limites”. (TROTSKY, 1919).

Material suplementar
REFERÊNCIAS
AZEVEDO, C. M. M. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites do século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
CHIAVANATTO, J. J. Genocídio americano: Guerra do Paraguai. 1. ed. São Paulo: Brasiliense, 1979.
COSTA, E. V. da. A abolição. São Paulo: Global, 1986.
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. v. 1. São Paulo: Globo, 2008.
LENIN, V. I. O imperialismo: fase superior do capitalismo. Tradução Leila Prado. São Paulo: Centauro, 2008.
MOURA, C. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Editora Anita, 1994.
MOURA, C. História do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1992.
TROTSKY, L. O regime proletário. In: TROTSKY, L. Balanços e perspectivas. [S. l.: s. n.], 1919. Cap. VI. Disponível em:https:// www.marxists.org/portugues/trotsky/1906/balanco/cap06.htm. Acesso em: 18 maio 2018.
TROTSKY, L. Teoria da Revolução Permanente. Trad. Oliveira Sá. São Paulo: Kairós Livraria Ed, 1985.
Notas
Notas
1 Esta Lei foi promulgada em 4 de setembro de 1850. Proibiu o tráfico internacional de escravos.
2 A Lei do Ventre Livre, também conhecida como Lei Rio Branco promulgada em 28 de setembro de 1871 (assinada pela Princesa Isabel). Esta lei considerava livre todos os filhos de mulheres escravas nascidos a partir da data da lei.
3 A Lei dos Sexagenários, também conhecida como Lei Saraiva-Cotegipe, foi promulgada em 28 de setembro de 1885. Essa lei concedia liberdade aos escravos com mais de 60 anos de idade. A lei beneficiou poucos escravos, pois eram raros os que atingiam esta idade, devido a mortes precoces por conta da extensa jornada de trabalho.
4 A Lei que aboliu a escravidão ficou conhecida como Lei Áurea. Resumia-se a dois artigos. Artigo 1º é declarada extinta a escravidão no Brasil; Artigo 2º Revogam-se todas as disposições em contrário.
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