Resumo: O artigo trata das complexas interações e empréstimos entre as culturas populares e hegemônicas, tomando como exemplo a prática do Bumba meu boi no Maranhão. Não cabe mais pensar a relação entre as diferentes culturas, identidades e movimentos sociais a partir de um confronto bipolar e rígido entre elites e classes subalternas. Na prática, ocorre um jogo de intercâmbios e disputas entre elas, no qual a comunicação assume um papel importante no desenvolvimento de estratégias e táticas pelos sujeitos. Assim, o trabalho visa entender como o Bumba meu boi, oriundo das camadas populares e periféricas, vem interagindo com o poder político hegemônico local e, muitas vezes, assumindo um posicionamento contra-hegemônico. Por um viés gramsciano, a análise é realizada a partir de dados coletados em observações e de entrevistas com “brincantes” de Bumba meu boi em São Luís – MA.
Palavras-chave:Disputas de poderDisputas de poder, hegemonia hegemonia, contra-hegemonia contra-hegemonia, Bumba meu Boi Bumba meu Boi, Maranhão Maranhão.
Abstract: The paper is about the complex interactions and borrowings between popular and hegemonic cultures, taking as an example the practice of Bumba meu boi in Maranhão. It is no longer possible to think about the relationship between different cultures, identities and social movements from a bipolar and rigid confrontation between elites and subaltern classes. In practice, there is a game of exchanges and disputes between them, in which communication plays an important role in the development of strategies and tactics by the subjects. So, the work aims to understand how Bumba meu boi, coming from the popular and peripheral layers, has been interacting with local hegemonic political power and often assuming a counter-hegemonic position. For a Gramscian bias, the analysis is executed from data collected in observations and from interviews with “players” of Bumba meu boi in São Luís - MA.
Keywords: Power disputes, hegemony, counter-hegemony, Bumba meu Boi, Maranhão.
Mesas temáticas coordenadas
HEGEMONIA E CONTRA-HEGEMONIA NA CULTURA POPULAR DO MARANHÃO
Recepção: 16 Março 2018
Aprovação: 16 Maio 2018
A dinâmica da construção da direção política nas sociedades atuais pressupõe complexas interações e empréstimos entre as culturas populares e hegemônicas. É ingênuo pensar a relação entre as diferentes culturas, identidades e movimentos sociais a partir de um confronto bipolar e rígido entre essas formas culturais e, também, numa relação dicotômica perante o Estado, baseada somente na dominação dos sujeitos pelo poder instituído.
Nesse sentido, este artigo tem o objetivo de entender como as culturas populares no Maranhão, especificamente a prática cultural do Bumba Meu Boi1, oriunda das camadas subalternas e zonas rurais e/ou periféricas do estado, vêm estabelecendo relações com o poder político hegemônico, reconfigurando seu processo de produção de sentidos e, em certa medida, constituindo movimentos contra-hegemônicos no contexto maranhense.
A simbologia dessa manifestação na cultura maranhense é demonstrada, entre outras coisas, pela sua abrangência em grande parte do território estadual, constituindo traço identitário de diversas comunidades: são 253 grupos de Bumba meu boi no Estado do Maranhão, segundo dados da Secretaria de Cultura do Maranhão (SECMA). Os Bumba-bois são as principais atrações culturais nos arraiais da capital durante o período junino, mas o ciclo do Boi nas comunidades de origem (confecção de indumentárias e instrumentos, ensaios, rituais de batismo e morte do Boi, produção de CDs etc.) ocorre o ano inteiro, tornando-se uma atividade cotidiana dos brincantes. Ou seja, fazer Bumba meu boi no Maranhão não se limita a se apresentar nas festas de São João, mas significa pertencimento, representa compartilhar uma visão de mundo, em que a arte se confunde e se mescla com o próprio cotidiano dos brincantes praticantes desse fenômeno cultural.
Essa percepção do Bumba meu boi como elemento significativo da nossa cultura é recente. Por muito tempo, prevaleceu o preconceito e a arrogância das elites maranhenses em relação ao Bumba meu boi, historicamente uma forma subalterna de diversão do povo. As referências ao Bumba Meu Boi localizadas até agora no Nordeste datam de meados do século XIX, geralmente relacionadas com reclamações e pedidos de providências da política contra a perturbação da tranquilidade pública. (CARDOSO, 2016).
Como uma prática cultural inicialmente abominada pelas classes dominantes passa a configurar um símbolo de identidade no Estado? No decorrer do texto, iremos tratar dessa conversão da cultura marginalizada ao reconhecimento oficial da manifestação, destacando estratégias de apropriação do Bumba meu boi pelo Governo do Estado (poder hegemônico) e ao mesmo tempo as resistências e táticas dos grupos de Bumba-boi (poder contra-hegemônico).
As análises aqui apresentadas baseiam-se em pesquisas anteriores2, de onde extraímos entrevistas realizadas com brincantes de Bumba meu boi no Maranhão. Neste momento, no entanto, aproveitamos para estabelecer um diálogo mais próximo entre autores ligados aos Estudos Culturais, que nos ajudam a compreender as relações entre comunicação e cultura em nossas investigações, tais como Néstor Garcia Canclini (1983), Jesus Martín-Barbero (2008) e Dênis de Moraes (2016) e o filósofo marxista Antonio Gramsci, operando especialmente com a categoria hegemonia.
A tendência dos Estudos Culturais, iniciada nos anos de 1950 e vinculada ao Centre for Contemporary Cultural Studies, em Birmingham, Inglaterra, foi apropriada em diversas partes do mundo. Em sua versão latino-americana, desenvolvida a partir dos anos 1970, os Estudos Culturais manifestam especial interesse pelo popular como categoria de estudo (MARTÍN-BARBERO, 2008). Interessados em entender as práticas culturais, comunicacionais e de resistência das classes subalternas, os autores dos estudos culturais latino-americanos irão se aproximar do conceito gramsciano de hegemonia. O próprio Martín-Barbero (2008, p. 98-99) pontua: “Nesse redesenho vai desempenhar um papel importante o reencontro com o pensamento de Gramsci, que, acima das modas teóricas e dos ciclos políticos, alcança atualmente uma vigência que tinha sido isolada ou ignorada durante longos anos”. Essa convergência teórica contribuirá para o avanço do debate sobre a dominação de classe, revisando a concepção marxista originária acerca da determinação econômica sobre todas as outras dimensões de apreensão da realidade, incluindo a cultura. A postura dos Estudos Culturais, influenciada por Gramsci, compreende a realidade social como uma complexa arena de disputas entre múltiplas dimensões: política, cultural, ideológica e, também, econômica.
No mundo contemporâneo, o Estado já não consegue mais se estabelecer ou impor seu domínio apenas a partir de ações coercitivas ou da força física, dentre vários motivos, porque os processos de convergência cultural, as relações sociotécnicas e a globalização redimensionaram o papel dos Estados nacionais, possibilitaram maior transparência/visibilidade das ações estatais e também impulsionaram movimentos organizados dos cidadãos a fim de pressionar, regular e moldar o campo político. Tais movimentos podem ser entendidos como novas formas de atuação política. Assim, a força do Estado ou de qualquer grupo político na sociedade hoje em dia “[...] cada vez mais se baseia em disputas ideológicas e culturais que influenciam e condicionam o imaginário social, a opinião pública, os sentidos de compreensão da realidade e as decisões eleitorais.” (MORAES, 2016, p. 15), num processo em que a comunicação assume um papel estratégico.
As contribuições de Gramsci (2001), em Americanismo e fordismo, levam-nos a entender a questão cultural como elemento estruturante da sociedade moderna. O autor apresenta a cultura como um modo de organização da vida, que se concretiza no controle sobre o cotidiano dos operários das fábricas, inclusive em sua vida privada, ultrapassando suas obrigações contratuais e extrapolando o ambiente de trabalho, por exemplo, com a repressão estatal ao uso do álcool e ao sexo. O padrão comportamental disseminado pela nova ordem administrativa do trabalho traduz-se numa questão cultural, em torno de um novo modo de vida compatível com o projeto capitalista. É assim que a cultura desempenha papel decisivo no mundo da produção:
Revela-se claramente que o novo industrialismo quer a monogamia, quer que o homem-trabalhador não desperdice suas energias nervosas na busca desordenada e excitante da satisfação sexual ocasional: o operário que vai para o trabalho depois de uma noite de “orgias” não é um bom trabalhador; a exaltação passional não pode se adequar aos movimentos cronometrados dos gestos produtivos ligados aos mais perfeitos automatismos. Este conjunto de constrangimentos e coerções diretos e indiretos exercidos sobre a massa produzirá certamente resultados; e surgirá assim uma nova forma de união sexual, cujo traço característico e fundamental parece dever ser a monogamia e a estabilidade relativa (GRAMSCI, 2001, p. 269).
A percepção de Gramsci (2001) avança na discussão sobre o jogo de lutas e disputas de classes ao demarcar a dimensão simbólica (cultural) como constituinte do contexto histórico, não se limitando a um determinismo econômico – ideia segundo a qual a cultura seria um mero reflexo das condições materiais. Nesse movimento de revisão da teoria marxista, os autores ligados aos Estudos Culturais adotam as lentes do pensamento gramsciano sobre hegemonia, o que contribui para perceberem a complexa disputa das forças políticas, culturais e ideológicas que constituem o contexto histórico, para além do fator exclusivamente econômico.
A partir da apropriação do conceito de hegemonia, os culturalistas destoam da concepção da cultura de massa que somente enxerga nos meios de comunicação as representações ideológicas dominantes. De outro modo, a cultura passa a ser situada no campo de batalha onde operam a dominação e a resistência, sempre na perspectiva de uma alteridade e nunca de total submissão/dominação. Ao conceito de hegemonia são incorporadas as múltiplas possibilidades interpretativas adquiridas pelas classes subalternas no processo de reconhecimento dos interesses dominantes, entre elas a capacidade de resistência e formulação de uma nova hegemonia (a contra-hegemonia), originária dos dominados. (ARAÚJO, 2017).
O conceito de hegemonia de Gramsci que lançamos mão como categoria central de nossa análise implica a conquista do consenso e a liderança ideológica e cultural de uma classe sobre as outras. É preciso conquistar o consenso social para estabelecer o poder sobre os sujeitos. No entanto, a hegemonia é obtida e consolidada em disputas que comportam não apenas questões vinculadas à estrutura econômica e à organização política, como também, no plano ético-cultural, a expressão de saberes, práticas, modos de representação e modelos de autoridade que querem legitimar-se e universalizar-se. (GRAMSCI, 2002). A sociedade civil é o campo de disputa entre as classes sociais, é o território onde a hegemonia se faz em um constante processo de (des)construção, nunca pacífico, mas sempre conflitivo entre os sujeitos. A hegemonia, portanto, não é definida por uma aplicação direta dos interesses dominantes para a reprodução do sistema, sem resistência dos dominados. (GRAMSCI, 2001).
Na prática, ocorre um jogo de intercâmbios e disputas entre os agentes sociais, numa arena de múltiplas relações de poder e contradições, tanto Estado quanto sociedade civil buscam configurar o mundo social segundo seus interesses. E a sociedade civil, de acordo com Gramsci (apud MORAES, 2016), representa o conjunto das instituições responsáveis pela elaboração e circulação de ideologias (as concepções de mundo), sejam elas, o sistema escolar, a religião, os partidos políticos, os sindicatos, os meios de comunicação, as instituições científicas e artísticas, nas quais incluímos os movimentos culturais, como o Bumba meu boi no Maranhão.
Direcionando o olhar para nosso objeto de estudo, é inegável a força do Estado (ora representado pelo Governo do Estado, Prefeituras, agentes políticos) no processo de estabelecimento de consensos, mas não se podem ver os brincantes da cultura popular como meros sujeitos passivos, domesticados pelas ações estatais. Eles são sujeitos estabelecendo interações, que afetam o contexto social e também são afetados pelo entorno. Reconhecemos, portanto, a agência dos sujeitos da cultura popular.
O Bumba meu boi é uma forma de comunicação popular, que extrapola a noção de comunicação de massa e converge para o conceito de mediações, proposto por Martín-Barbero (2008), que associa o processo comunicativo à produção de sentidos e ao estabelecimento de relações entre os sujeitos num contexto cultural e político, logo, numa arena de disputas pelo poder.
Por essa perspectiva, é possível afirmar que todas as formas culturais no Bumba meu boi fazem parte de um processo de comunicação: a produção de toadas (canções), os instrumentos musicais e indumentárias, os espetáculos, os ensaios, todos os rituais que compõem a festa do Bumba meu boi servem para pensar os processos de ressignificação identitários, que vão além dos discursos sobre autenticidade, tradicionalidade e pureza da cultura popular. Os ritos e símbolos sagrados dessa prática cultural, suas interações com o campo político e com o mercado, seus produtos midiáticos (CDs, DVDs, espetáculos) são aspectos considerados atos comunicacionais de comunidades que detêm saberes tradicionais e elaboram novos arranjos não só para dialogar com o contemporâneo, mas também para estar e conquistar seu espaço no mundo. Desse modo, as mediações no Bumba meu boi, além de possibilitarem o compartilhamento de valores, ideias, sentimentos e o sentido de pertencimento ao grupo, também contribuem para o reconhecimento do Boi como uma identidade regional num cenário político de disputas por direitos culturais. (CARDOSO, 2016).
Ao constituir forma de comunicação, o Bumba meu boi apresenta uma forte dimensão política: seja a política mais ampla, como traço imanente à vida social, quanto a que se define no jogo com o campo da política oficial. Desse modo, essa prática simbólica gerada no universo popular e religioso do maranhense também é gerada hoje nas relações que estabelece com o Governo do Estado, com a Prefeitura de São Luís, com deputados e vereadores, com a indústria cultural, com os meios de comunicação de massa, com o turismo, com as grandes empresas e possíveis patrocinadores.
Como ressalta Alvarez (2000, p. 25), “A cultura é política porque os significados são constitutivos dos processos que, implícita ou explicitamente, buscam redefinir o poder social”. E os agentes da cultura popular têm consciência do exercício de seu poder, o que é depreendido da fala do mestre Marcelino Azevedo, amo do Bumba boi de Guimarães, falecido em 2016:
[...] este ano [2007] é ano de eleição, eles vão oferecer maior estrutura pra cultura popular, mas os outros anos eles esquecem que também são anos culturais. Eles visitam a gente com esse interesse político de levar a gente pra fazer campanha deles. Eles sabe que o grupo de cultura tem um contingente [...] Nós que tamo aqui com 130 pessoas, o político vai querer falar de um a um? Ele quer falar é com a pessoa coordenador do grupo, que aí ele tira alguma coisa. (Informação verbal)3.
Sendo a hegemonia resultado de confrontos e disputas permanentes pela conquista do consenso, o Estado constrói e mantém diversas estratégias para reafirmar sua capacidade de dirigir moral e culturalmente o conjunto da sociedade. No Maranhão, uma estratégia recorrente no âmbito do Governo Estadual é a aproximação com o campo cultural e a apropriação política da cultura popular, dada a centralidade das culturas populares no processo de constituição de identidades do maranhense.
Segundo Gramsci (apud MORAES, 2016), a hegemonia nunca é aceita de forma passiva, estando permanentemente sujeita à confrontação. Embora os grupos políticos que comandam o Estado do Maranhão exerçam hegemonia sobre os grupos de cultura popular, esse processo não é pacífico, mas conflitivo e negociado. Um exemplo: como constatado em estudo anterior (CARDOSO, 2013), a gestão cultural nos Governos de Roseana Sarney, 1995-2002 e 2009- 2014, no Maranhão, tendeu a se apropriar de expressões culturais populares, como o Bumba meu boi, fabricando símbolos identitários para o Estado.
Até os anos 1960, os grupos de Bumba meu boi eram constantemente expulsos das áreas nobres e centrais da capital São Luís à base de força policial. Para ultrapassar essas barreiras físicas, o Boi teve que se enquadrar em alguns padrões de normalidade das elites, além de contar com a ajuda de políticos, passando por um processo de assepsia, em que elementos considerados grotescos, oriundos das culturas negras, sofreram adaptações. A figura de José Sarney é frequentemente apontada pelos brincantes como agente de intervenção no reconhecimento dos grupos de cultura popular (CARDOSO, 2013, 2016), numa narrativa quase mítica de valorização da cultura, reforçada pela mídia e por folcloristas, de que ele levou pela primeira vez as brincadeiras para se apresentar no Palácio dos Leões enquanto dirigia o Governo do Estado (1966-1970), num período em que era vigente a repressão às manifestações populares no Maranhão. Entendemos que esse reconhecimento oficial das culturas populares promovido por José Sarney pode ser interpretado não só como um ato de defesa da cultura das classes oprimidas da sociedade, mas também e, principalmente, como forma de legitimação do governante junto a esses segmentos populares e junto a seus pares intelectuais. Desde então, o bumba meu boi passa a ser apresentado como símbolo do Estado, inserido na programação dos atrativos turísticos do Maranhão, através de ações do Departamento Estadual de Turismo. O pagamento dos grupos consistia em alguns trocados, cachaça e convites para outras apresentações. José Sarney passou a ser considerado padrinho de diversas manifestações, sendo elogiado em várias toadas da época, como esta do Boi de Laurentino: “Deus conserve Zé Sarney no palácio dos leão, que tire seu tempo em paz, livre das pressiguição. Jesus tá lá no céu, na terra Senhor São João”.
Percebemos uma ressemantização dos conteúdos que faziam parte do processo criativo dos folguedos a partir da “[...] reelaboração simbólica das suas relações sociais.” (CANCLINI, 1983, p. 43), ou seja, as novas relações com a política (e o novo status propiciado por ela) geram novas práticas, estratégias e novos sentidos na cultura. Ao divulgar o Bumba-boi como símbolo de identidade regional, José Sarney ajusta a política cultural do Estado-nação – que manipulou traços étnicos para convertê-los em símbolos nacionais – para a esfera regional. Assim, processo análogo ao que ocorreu com os fenômenos do futebol, do samba, do carnaval e com a feijoada no Brasil, acontece com o Bumba-meu-boi no Maranhão. Nessas situações, o poder político tende a mascarar as contradições e os conflitos presentes no elemento étnico, que ganha status de cultura nacional e eufemiza o seu status étnico originário. (FRY, 1982).
Anos mais tarde (1995 a 2002, 2009 a 2014), a filha de José Sarney, Roseana Sarney, aperfeiçoa as estratégias desenvolvidas pelo pai no campo da cultura popular. Como identificamos (CARDOSO, 2013), há uma significativa ampliação burocrática dos órgãos de cultura no Executivo Estadual no primeiro governo de Roseana Sarney: de 9, passam para 17 unidades. Em 1999, observa-se um incremento ainda maior dos mecanismos de legitimação, através de órgãos de cultura, com 22 unidades oficiais, gerenciadas por Luís Henrique de Nazaré Bulcão, poeta, amigo da governadora e dirigente de um grupo de Boi, a Companhia Barrica Teatro de Rua.
Sendo o Secretário de Cultura oriundo da cultura popular, a primeira ação da gestão foi instituir em 1995 o instrumento do cachê4 para as manifestações culturais do Maranhão. Enquanto em governos anteriores, as brincadeiras aceitavam a cachaça e algum agrado do padrinho como pagamento pelas apresentações, a partir do Governo de Roseana Sarney, esse sistema de apoio sofisticou-se. O Estado realizou parcerias com grandes empresas, ALUMAR, VALE, TELEMAR, EMBRATUR, através da Lei Federal de Incentivo à Cultura (Lei Rouanet) que, com recursos da renúncia fiscal, passou a subsidiar o calendário oficial dos festejos populares. Com a institucionalização do cachê, foi necessário realizar o cadastro official dos grupos populares, que significa estar legalmente registrado com personalidade jurídica e identificado junto a um banco de dados do órgão de Cultura do Governo do Estado. Desse modo, em 1997, o Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho (ligado à Secretaria de Cultura) institui o cadastro oficial, ou seja, a obrigatoriedade do registro jurídico das manifestações culturais populares em troca de cachês pelas apresentações festivas (São João, Carnaval, Natal, Reveillon e outros).
Essas, entre outras estratégias promovidas pelo poder político hegemônico, contribuíram para a legitimação da governadora como a protetora da cultura popular do Maranhão, na esfera cultural, discurso bastante reforçado pelos meios de comunicação regionais. Cabe um parênteses de que a mídia pode ser usada como centro produtor e reprodutor de ideologias a favor de determinados grupos ou setores sociais, ora controlada por esses grupos, ora motivada por interesses econômicos, funcionando como verdadeiros aparelhos privados de hegemonia (GRAMSCI, 2000). No Maranhão, a política interfere diretamente na produção midiática. Durante seu mandato presidencial, José Sarney implantou o Sistema Mirante de Comunicação, o maior grupo privado de comunicação do Estado do Maranhão, como define o próprio site da empresa. É formado pela Rede Mirante de Televisão (fundada em 15 de março de 1987), pelo Jornal O Estado do Maranhão e pela Rádio Mirante FM e Rádio Mirante AM (somando 19 emissoras). Mesmo aquelas empresas que não são ligadas à família Sarney, acabam muitas vezes sendo influenciadas pelo seu poder econômico. Desse modo, há um terreno propício para que a mídia convencional local seja um locus de controle, que não é totalizante, nem exclusivo, mas que direciona opiniões e interfere na construção dos consensos.
Nesse contexto, o caráter contestatório do Bumba meu boi acabou sendo atenuado por uma estratégia de poder que o elegeu como símbolo de identidade local. Essa eleição ressignificou o auto do Bumba meu boi (que até início do século XX servia de denúncia, momento em que população podia falar das desigualdades): hoje, a crítica política raramente aparece nas toadas, cedendo lugar cada vez mais à exaltação das belezas naturais, do amor, do próprio grupo e de seu padrinho político-financeiro e a temáticas genéricas como preconceito, drogas, ecologia, futebol. Por meio da hegemonia, a ação estatal abrandou o caráter contestatório do Bumba meu boi, investindo em práticas discursivas que transformaram o folguedo em símbolo de identidade maranhense.
Os agentes assumem compromissos perante a administração pública, tanto para propagar a cultura local quanto para divulgar a imagem do político que os ajudou. Assim, o Bumba meu boi, expressão musical, cênica e de dança, originário das classes populares e periféricas, da cultura negra, perseguido e proibido, acaba sendo apropriado por políticos e pelas elites, aceito e veiculado midiaticamente como autêntico símbolo da cultura estadual, o Bumba foi introduzido em outros circuitos, ao ser incorporado pelo mercado de bens simbólicos e apropriado por ações estatais.
Marcelino Azevedo, amo do Boi de Guimarães, representante da cultura negra no Maranhão, reforça essa ideia ao contar sua experiência:
A gente novinho deixou na memória. [...] Já brincavam, mesmo escravos. O Boi nessa época não era como agora. Ele era reprimido e era proibido de brincar em algumas partes, em praça... Eles brincavam mais era no quilombo, eram tratado como baderneiro. É muito relativo isso. Depois, de uns tempos que eles [as elites locais] foram se acostumando e até quando eu comecei a brincar Boi [década de 50] eles já chamavam pra brincar na porta deles. Mas antigamente era um outro patamar. Hoje, não. O Boi tem que ser mais sofisticado. O vestiário dos brincantes tem que ser mais sofisticado. [...] Porque a gente saindo de Guimarães pra brincar um Boi aqui [na capital], a gente vai se encontrar com o turista. (informação verbal)5.
O brincante reconhece que o Boi conquistou um novo espaço na cultura local, sendo não só aceito como requisitado pelas elites durante as festas juninas, mas também como representante do Estado do Maranhão em eventos oficiais nacionais e internacionais e produto turístico que impulsiona a economia no Estado. No entanto, a moeda de troca para obter esse novo patamar, foi sofisticar a brincadeira para atender as exigências do mercado turístico e dos compromissos políticos.
A apropriação do Boi pelo Estado, pelo mercado, pelas elites urbanas compõe um movimento de perdas e ganhos para a brincadeira. De um lado, sofisticar a brincadeira significa estar atento para novas questões como a renovação das indumentárias anualmente, a gravação de CD para expandir a circulação em rádios e outras cidades, cumprir horários rígidos nas apresentações, transformar as brincadeiras dos terreiros em espetáculos de palco nos arraiais urbanos, entre outros fatores que ressignificam as relações comunitárias e familiares, as solidariedades tradicionais dos brincantes. Enfim, a experiência do brincante com seu fazer cultural passa a ser reconfigurada por relações contratuais, pelo tempo e espaço urbanos, pela lógica da sociabilidade em massa. Do outro lado da moeda, está o novo patamar alcançado pelo Bumba meu boi, que pode ser traduzido na maior visibilidade que a manifestação adquiriu na sociedade local e nacional, na cultura como fonte de trabalho e de renda para a comunidade, na profissionalização dos sujeitos, na possibilidade de os grupos de Boi tornarem-se espaços estratégicos de acesso às políticas públicas do poder executivo, como é o caso da política dos Pontos de Cultura promovida pelo Ministério da Cultura.
O Bumba meu boi tornou-se uma forma híbrida do popular (CANCLINI, 2011), em que uma cultura tradicional, de origem popular, periférica e rural, une-se sincreticamente a diversas modalidades de cultura urbana e massiva. O amo Marcelino Azevedo explica que para colocar em prática seus saberes e tradições oriundos de uma experiência rural e subalterna -, tem que pensar também em questões financeiras, materiais, contratuais e de produção da cultura oriundas da experiência urbana e massiva. Só para transportar o seu grupo de Bumba-boi, formado por 88 membros, da cidade de Guimarães para a capital, precisa contratar dois ônibus em São Luís:
Eu pago 18 mil reais de carro pra trabalhar uma temporada [junina] pra mim, e ganho 35 mil [por 10 apresentações no São João do Governo do Estado]. Ainda têm os instrumentos, as roupas. Eu que mando fazer tudinho: seja bordar, fazer Boi, tudo é pago! Não dá! E ainda tem a comida do pessoal aqui (informação verbal)6.
Apesar dessas reelaborações simbólicas e materiais, percebemos que os brincantes não só são apropriados pelo Estado e pelo mercado, mas também fazem apropriações da indústria cultural, da política e de outros circuitos com que dialoga em seu processo produtivo. Várias Leis foram acionadas por conta de lutas por direitos culturais demandadas pelo movimento organizado do Bumba meu boi, mas também da articulação dos grupos junto a agentes políticos específicos (vereadores, deputados, prefeitos, secretários, governadores) que têm influência nos processos de decisão. Exemplos: Lei Municipal nº 4.544/2005, Dia do Brincante; a Lei nº 4.487/2005 institui o nome da Avenida São Marçal, padroeiro do Bumba boi maranhense; a Lei nº 4.806/2007 intitula o Bumba boi Patrimônio Cultural Imaterial da cidade de São Luís; a Lei Federal nº 12.103, de 1º de dezembro de 2009 estabelece o Dia nacional do Bumba meu boi (30 de junho). A agência dos brincantes é um indicativo de que exerce algum poder junto à política oficial, ainda que relativizado e não comparado ao peso do poder estatal. Esse fato, junto a outros identificados em nossa pesquisa, sugere que não se deve falar numa simples dominação do Estado sobre a cultura popular, mas num jogo de disputas e trocas, em proporções diferenciadas, em que brincantes são sujeitos conscientes de seu poder político e desenvolvem táticas contra-hegemônicas, no sentido atribuído por Gramsci.
A ideia de contra-hegemonia de Gramsci considera diferentes formas de luta, inclusive abrangendo as formas não propriamente políticas e econômicas como atividades significativas na causa revolucionária da sociedade, podendo surgir de várias formas e oriundas de focos diversos. (MORAES, 2016). Ações contra-hegemônicas constituem instrumentos para criar uma nova forma ético-política, que denuncie e tente reverter as condições de subalternidade e marginalização impostas a muitos segmentos sociais pelo capitalismo. Trata-se de apresentar argumentações e valores alternativos às lógicas dominantes, aprofundando o conhecimento da realidade e a fim de desconstruir a racionalidade e historicidade dos modos de pensar (MORAES, 2016). O bumba meu boi apropria-se do capital cultural como pode e elabora suas condições de vida através de uma interação conflitiva com outros setores (CANCLINI, 1983), a partir do cotidiano de trabalho dos setores populares. Assim, apesar da força da política oficial que interferiu no teor das toadas, ainda há composições que apresentam crítica e contestação a acontecimentos pontuais do campo da política e da cena cultural local.Um exemplo é a toada Politricagem partidária, de Humberto, gravada em 2010, que denuncia a politicagem (politricagem), aqui entendida como uma prática política acionada por interesses pessoais e troca de favores: “O touro do Maracanã, quando urra acontece coisas que faz vergonha se contar. Bumba-boi já tem politricagem partidária descaracterizando a cultura popular. Contrário rolou, dividiu, multiplicou, quando tira os nove fora, o zero tem mais valor [...]”.
Reconhecendo-se um agente político, o antigo líder do Boi de Maracanã, Humberto de Maracanã, falecido em 2015, negociava benefícios para sua comunidade:
O bumba-boi vem de um povo sofrido, esse povo dificilmente tiveram condição de crescer financeiramente. Alguns melhoraram alguma coisa, mas é o mesmo povo humilde, assalariado. Aí, eles vêm e pedem. Na medida do possível a gente resolve. É um remédio... Quando o pessoal chega e vai pra casa a gente reconhece as dificuldades que eles passam, então a gente tem o cuidado, né, de dar pra cada um levar um provimento pra tomar um café em casa, outros querem remédio, um é pescador que tá com a canoa esbandalhada; outro é lavrador, tá precisando ajeitar a roça, alguma coisa a gente ajuda, tudo a gente faz. Até porque ele se desloca lá da casa dele e vem pra cá prestigiar pra dar essa força, vem somar, então isso sensibiliza a gente. (Informação verbal)7.
Os agentes de Bumba meu boi podem ter uma participação política atuante, desenvolvendo táticas de transformação da sua realidade social, como relata Humberto:
A gente foi tentando ver se conseguia fazer alguma coisa na comunidade: criamos uma escolinha, a comunidade é servida de saúde, tem o posto de saúde, tem água encanada, nós temos uma escolinha comunitária que funciona lá na sede, e o forte mesmo é o Boi, através do Boi é que a gente conseguiu manter essa relação forte com a comunidade e lá fora. (Informação verbal)8.
O Boi de Maracanã, enquanto instituição, buscou conseguir o Posto de Saúde do bairro, o sistema de abastecimento público de água, a implantação da Escola Comunitária São João Batista, que é mantida com recursos do Boi, a construção do Viva Maracanã (praça pública com infraestrutura para shows), oficinas de bordado e percussão para a comunidade, entre outras ações de interesse não só para o Boi enquanto manifestação ou festa popular, mas para os cidadãos do bairro. Os brincantes entendem que a dimensão comunicacional do Bumba meu boi se expressa também como uma forma de atuação política (não partidária), como é possível inferir da fala do comunicador do Boi, Malvino Maia:
O Boi é a maior referência cultural do Maracanã. É também um meio de divulgação do bairro, é um atrativo financeiro pra região. Por exemplo, nos nossos ensaios, temos a venda de bebida na Associação e também damos muita cachaça e conhaque pras pessoas. A alimentação você sabe que a gente distribui mesmo, já é uma tradição. Mas ali, ao redor da nossa festa, também ficam muitos comerciantes, vendendo sua cervejinha, seu churrasquinho, lanche, fogos de artifício... Tudo por causa do Boi. Então, eu entendo que isso é uma forma de retorno social pra comunidade que mora ali e que é tão carente. Tem também o Viva Maracanã [espaço público para eventos], que é mantido pela Associação, a gente empresta quando algum morador quer fazer um aniversário, um casamento... O que a gente quer em troca? Só que a população participe do nosso Boi (informação verbal)9.
Várias atividades são desenvolvidas no bairro e muitas pessoas vão visitar o lugar por causa do Boi, que se apresenta como um mediador das relações na comunidade de Maracanã. Os fluxos de recursos financeiros e de pessoas gerados em decorrência do processo produtivo do Boi (seus ensaios, festas, projetos sociais) constituem, na visão do comunicador, uma contrapartida social pela participação da comunidade na brincadeira. Concebemos o Bumba meu boi além de uma importante referência identitária para diversas comunidades no Maranhão, uma forma de mediação das políticas públicas estatais, originada na e para a sociedade civil, uma possibilidade de resistência das classes populares, um movimento potencialmente contra-hegemônico.
A hegemonia pode ser reelaborada num movimento contínuo e gradual de forças contrapostas, num longo processo de resistências e pequenas vitórias cumulativas, a partir da produção e circulação de conteúdos críticos que levem à reflexão e ao desmascaramento da realidade social, promovendo um rearranjo ou pelo menos uma alteração no que parecia estável e imutável, como nos ensina Moraes (2016) a partir da obra de Gramsci. Por mais que os movimentos dissonantes não obtenham o consenso, nem a divisão social de mundo segundo seus interesses, é preciso acreditar que os movimentos contra-hegemôncos são capazes de pelo menos reduzir o risco da permanente subordinação aos setores dominantes. Insistir na contra-hegemonia possibilita o surgimento de modelos alternativos ao sistema capitalista atual, ao sistema de gestão da cultura no Maranhão, pois uma hegemonia, por mais poder econômico e político que possua, jamais será total, exclusiva e inquestionável. Citamos como exemplo várias iniciativas de economia sustentável, de ações colaborativas, retorno a formas comunitárias de vivência em centros urbanos, campanhas de questionamento de padrões estéticos e de consumo e, no caso em estudo, o movimento do Bumba meu boi no Maranhão, que vem resistindo, dinamizando-se e atualizando-se há séculos na sociedade maranhense. Desde sua origem, o Bumba meu boi é híbrido: teve que aprender a negociar desde cedo, seja articulando a cultura opressora do colonizador às culturas de etnias oprimidas, seja conciliando suas interfaces sagrada e profana, num processo nada simples ou pacífico com a política oficial e com o mercado. Como buscamos explicar, o Bumba-boi ainda é uma forma de resistência e de trincheira (para usar um termo dos boieiros). Embora tenham perdido elementos étnicos e contestatórios, numa difícil e conflitiva negociação com os setores hegemônicos, aqui representados pela política e pelo mercado, os grupos de Boi assimilaram que eles são um forte elemento da identidade maranhense, da visualidade do estado e até do campo legislativo, a exemplo das leis que fortalecem um calendário cultural da cidade tendo o Boi como referência.
Isso contribui para tornar o Bumba meu boi um movimento cultural de peso, que estabelece uma nova forma de institucionalidade, caracterizada pela articulação da sociedade civil ou como uma experiência coletiva não enquadrada nas formas partidárias, como descreveu Martín-Barbero (2008). Assim, quando o assunto é reivindicar por direitos e melhorias sociais, o Boi pode ser considerado um novo agente político no Maranhão.