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HEGEMONIA EM GRAMSCI E ESTADO PARA O DELINEAMENTO DO CAMPO PÚBLICO DE COMUNICAÇÃO NO BRASIL1

Melissa Silva Moreira Rabêlo
Universidade Federal do Maranhão UFMA, Brasil

HEGEMONIA EM GRAMSCI E ESTADO PARA O DELINEAMENTO DO CAMPO PÚBLICO DE COMUNICAÇÃO NO BRASIL1

Revista de Políticas Públicas, vol. 22, pp. 759-774, 2018

Universidade Federal do Maranhão

Recepção: 16 Março 2018

Aprovação: 16 Maio 2018

Resumo: O artigo destaca os conceitos de hegemonia e indústria cultural no entendimento do delineamento do campo público de comunicação no Brasil. O papel do Estado como principal instrumento de articulação entre os entes públicos e privados no setor de radiodifusão no Brasil. Aponta o potencial papel democratizante dos meios de comunicação pública.

Palavras-chave: Hegemonia, indústria cultural, TV pública, radiodifusão.

Abstract: The article highlights the concepts of hegemony and cultural industry to understand how the public field was configured in Brazil. The paper of state as main instrument to articulation public and privates sectors in the Brazilian´s broadcasting system. It points out the potential democratizing role of the public media.

Keywords: Hegemony, cultural industry, public TV, broadcasting.

1 INTRODUÇÃO

A experiência no setor de radiodifusão no Brasil mostra que durante os sucessivos governos democráticos, os interesses de grupos econômicos dominantes e de agentes políticos foram privilegiados em relação ao interesse do público, apesar de a televisão e o rádio, desde o início, serem considerados um serviço público, explorado por meio de concessão outorgada pelo Estado. Assim, a televisão surge como um empreendimento comercial e somente 18 anos depois da inauguração da TV Tupi, surge a TV pública no Brasil, quando a televisão já estava consolidada como o mais importante instrumento da indústria cultural no país.

Pela própria configuração do campo da comunicação de massa estabelecido desde o início como negócio, a presença do interesse privado, em detrimento do interesse público no setor, é relevante. Com isso, a construção de uma lógica própria e hegemônica foi inevitável. Essa lógica contraditória, em princípio, é inerente à parcialidade do capitalismo, que com a inovação tecnológica garante, cada vez mais, a legitimidade do sistema de dominação. A esfera econômica mantém predominância no processo histórico de expansão do capitalismo, o que demonstra que “[...] o capital consegue impor sua lógica de expansão ao conjunto de uma sociedade, o que não se dá sem lutas e resistências, podendo advir da própria lógica contraditória do capital.” (BRITTOS; BOLAÑO, 2007, p. 50). Temos, portanto, que destacar que a expansão não se dá apenas na cultura de dominação, mas também em culturas de resistências, que se valem também da Indústria Cultural, mas sem muita voz e vez nesse espaço. A televisão pública no Brasil tenta por muito tempo se desvencilhar do ideal educacional que a caracterizou por longos anos, para apresentar uma modelo de televisão mais plural e ampla, adequada à nova realidade midiática permeada por tecnologias interativas.

Observando essas questões e a existência da dinâmica histórica da esfera pública burguesa, é preciso agora compreender a posição ocupada pelos meios de comunicação de massa nesse processo, além da dinâmica estabelecida entre hegemonia, mídia e Estado.

2 APONTAMENTOS SOBRE O PAPEL DO ESTADO NO CAMPO DA COMUNICAÇÃO NO BRASIL

É preciso traçar alguns paralelos acerca da concepção de Estado, já que este se apresenta como elemento fundamental nessa discussão. Isso porque, as políticas estabelecidas para o campo público de comunicação devem também ser percebidas como políticas de Estado, para que, de fato, se configurem como políticas sólidas para a criação, desenvolvimento e fortalecimento do setor.

O Estado moderno se apresenta como uma forma de organização de poder peculiar, que tem como principal diferenciação a progressiva centralização do poder, que permite entender de forma ampla as relações políticas. Os traços essenciais dessa concepção versam sobre o princípio da territorialidade e progressiva aquisição da impessoalidade do comando político.

A história do surgimento do Estado moderno é a história desta tensão: do sistema policêntrico e complexo dos senhorios de origem feudal se chega ao Estado territorial concentrado e unitário através da chamada racionalização da gestão do poder e da própria organização política imposta pela evolução das condições históricas materiais. (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1992, p. 426).

Os aspectos relativos à universalidade e à ruptura religiosa (que ainda regia a vida política do Ocidente) foram fundamentais para uma organização de poder, que estava em conformidade com os novos interesses políticos que começavam a se apresentar. O Estado, como ordem política, passa a se configurar.

A unidade de comando, a territorialidade do mesmo, o seu exercício através de um corpo qualificado de auxiliares “técnicos” são exigências de segurança e de eficiência para os estratos da população que de uma parte não conseguem desenvolver suas relações sociais e econômicas no esquema das antigas estruturas organizacionais e por outra individuam, com clareza, na persistência do conflito social, o maior obstáculo à própria afirmação. (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1992, p. 427).

Sendo assim, o Estado passa da concepção da ordem como hierarquia prefixada e imutável, para o estabelecimento de uma ordem de organização de poder, pautado em procedimentos técnicos preestabelecidos, regidos pela prevenção e neutralização de conflitos e, por fim, reconhecido como próprias pela estrutura social.

Buscando compreender o papel do Estado nas relações entre o público e o privado, vale ressaltar quatro funções desempenhadas pelo Estado contemporâneo, apresentadas por Bobbio, Matteucci e Pasquino (1992), na Teoria Marxista do Estado. Primeiro, a criação das condições materiais genéricas de produção; segundo, determinação e salvaguarda do sistema geral das leis que compreendem as relações dos sujeitos jurídicos na sociedade capitalista; terceiro, regulamentação dos conflitos entre trabalho assalariado e capital; quarto, e último, segurança e expansão do capital nacional total no mercado capitalista mundial.

Dessa forma, percebe-se toda a movimentação histórica do Estado na manutenção dos meios de comunicação de massa nas mãos do grande capital. Ele foi essencial articulador para essa realidade, e, ainda hoje, se apresenta como tal, deixando claro o papel fundamental da mídia no âmbito ideológico do poder.

Para termos uma ideia, tomamos como base a obra de Wilson Gomes (2004), intitulada Transformações da política na era da comunicação de massa, que descreve a evolução da relação entre os meios de comunicação e o Estado, indicando alguns modelos e o momento histórico em que cada um acontece.

Observa-se, principalmente, o primeiro modelo da relação entre a política e a comunicação de massa apresentado por Gomes (2004), que estabelece que a comunicação de massa existia basicamente na forma de imprensa. Ao se resgatar o momento de formação da esfera pública burguesa no século XVIII, o que se vê é a formação de uma imprensa de opinião como fundamental instrumento da esfera pública. Essa imprensa encontrava-se fora da esfera estrita da política do Estado Absolutista e era o objeto capaz de proporcionar a discussão pública, criticando as decisões políticas da época. Essa imprensa de opinião nasce, portanto, burguesa, no interior da própria esfera civil e servia para defender seus interesses, apresentando-se hostil à esfera restrita política e contra o Estado aristocrático. Gomes (2004, p. 45) chama atenção que “[...] nem por isso é um campo autônomo em face da política”, na verdade ela se constituiu a partir da necessidade de publicidade, já que a imprensa na ocasião era capaz de proporcionar a discussão pública da política realizada fora da esfera restrita da política.

Quando os burgueses conquistam o Estado e as esferas de decisão política, a relação estabelecida até então entre imprensa e Estado precisava ser reconsiderada. A questão da unânime hostilidade à esfera política restrita não pôde ser estabelecida mais nos mesmos termos, visto que a classe à qual a imprensa estava ligada era a mesma que assumiu o controle do Estado contra o qual polemizava. Podemos considerar este o início da relação de interesses entre a burguesia, agora no controle do Estado, e os meios de comunicação de massa.

Com a conquista do Estado, as relações que começam a ser traçadas com a esfera política restrita promovem uma divisão nas esferas da própria classe burguesa. Grupos distintos no governo e na oposição surgem no interior da classe, o que os órgãos da imprensa e os partidos políticos também acompanham. O que antes era uma única imprensa que tornava público e acompanhava as ações do Estado, agora tinha em sua composição dois grupos distintos: um do governo e outro da oposição.

Mais uma vez é observado o início de outra importante relação que se encontra até hoje: a relação entre Estado e imprensa/mídia (meios de comunicação de massa). Relação também permeada de interesses e que ao longo do desenvolvimento do Estado democrático moderno, prevê a alternância de poder, a imprensa passa a se dividir entre periódicos governistas e periódicos de oposição. Gomes (2004) chama atenção mais uma vez a este aspecto, explicando que é por isso mesmo que a imprensa deixa de ser instrumento da esfera pública e representante de interesses da esfera civil.

Assim, percebe-se que os meios de comunicação de massa sempre estiveram relacionados a órgãos ou instituições civis, ora responsáveis em publicizar ações de um Estado aristocrático e absolutista, ora para promover a inclusão de uma esfera pública em decisões, antes restrita a uma esfera política, ainda servindo para possibilitar a discussão entre os atores sociais e, finalmente, comprometida com determinados interesses burgueses quando estes começam a participar do Estado.

O que se pretende aqui é adotar uma abordagem que demonstre como as relações travadas desde o início, entre Estado e meios de comunicação privados, ainda são elementos de entrave para, por exemplo, um amplo processo de redemocratização do setor de comunicação, a própria regulação do setor, a participação efetiva da sociedade nos meios de comunicação de massa como agentes ativos, e não passivos, e a quebra do grande domínio hegemônico e ideológico promovido por esse sistema privado, em detrimento do público.

3 O PAPEL DA HEGEMONIA E OS CONCEITOS DE INDÚSTRIA CULTURAL

Buscam-se, nesse item, fundamentos nos estudos de Gramsci e alguns teóricos da Escola de Frankfurt, especialmente Teodor Adorno e Max Horkheimer (1985), para se traçar uma discussão acerca dos conceitos de hegemonia e Indústria Cultural, que orientam os entendimentos sobre o papel dos meios de comunicação na sociedade. Isso é possível já que os teóricos anteriormente citados compreendem que o papel dos meios de comunicação nas sociedades contemporâneas tem importância relevante para a manutenção de interesses, dominantes ou não.

Com Gramsci entende-se a sociedade como um todo orgânico e unitário, explicada (mas não reduzida) a partir de uma base econômica, onde pode ser observada a ação política e da própria hegemonia. O conceito de hegemonia se amplia em Gramsci em relação a Lênin, na medida em que não o liga apenas à sociedade política (responsável pelo monopólio legal da burocracia, da repressão e da violência, a partir de um conjunto de mecanismos), mas engloba a primazia da sociedade civil e o conceito de aparelhos de hegemonia, que, além do partido, apresenta todas as instituições da sociedade civil que mantêm relação qualquer na elaboração e difusão da cultura.

Essa sociedade civil é caracterizada por ser uma esfera intermediária que está entre o Estado, que diz representar o interesse público, e os indivíduos atomizados no mundo da produção. Esta é uma esfera pluralista de organizações, sujeitos coletivos, em luta ou aliança entre si. É o campo dos aparelhos privados de hegemonia, como aponta Gramsci. Segundo o autor, após o liberalismo, as instâncias ideológicas passam a ser algo privado em relação ao público. O Estado não determina mais a religião ou a visão de mundo. Agora, as igrejas, universidades, sindicatos, imprensa de opinião formam os aparelhos privados de hegemonia, em função da intensificação das lutas sociais, fazendo com que velhos aparelhos ideológicos do Estado agora se tornem autônomos, fazendo parte da sociedade civil, sendo portadores materiais de cultura, de ideologias.

Seguindo as ideias de Marx sobre Estado, Gramsci determina uma nova visão para o conceito: o Estado no sentido restrito e o Estado no sentido amplo (Estado integral). Segundo Marx (apud LENINE, 1980, p. 226) “o Estado é um órgão de dominação de classe, um órgão de opressão de uma classe por outra, é a criação da ordem que legaliza e consolida esta opressão, moderando o conflito de classes”, o que Gramsci chama de Estado restrito. Sua principal função seria a manutenção da divisão de classes, a fim de garantir os interesses da classe que domina as outras classes. Gramsci então desenvolve um conceito mais complexo e elaborado (Estado amplo ou integral), entendendo o Estado como força e consenso. Ou seja, mesmo estando a serviço da classe dominante, o Estado não se mantém apenas pela força e pela coerção legal, sendo necessário que esta dominação se desenvolva de forma mais sutil e eficaz. Para isso, deve se utilizar de diversos meios e sistemas que estão, aparentemente, fora da estrutura estatal coercitiva. Na concepção gramsciana o Estado “[...] não é algo impermeável às lutas de classe, mas é atravessado por ela.” (SIMIONATTO, 1995, p. 64). O Estado é um ser que tudo envolve, composto pela sociedade política e pela sociedade civil. Essa relação dialética, presente em cada formação social, constitui, portanto, o Estado ampliado de Gramsci.

Sendo assim,

Gramsci via a sociedade civil estruturada pelos aparelhos privados de hegemonia, como alternativa viável de produção de novas hegemonias emancipatórias, na medida em que subentendia um relativo equilíbrio entre esses aparelhos, da igreja à escola, dos sindicatos à imprensa de opinião ainda não totalmente comercializada (RAMOS, 2005, p. 62).

Gramsci (2001, p. 248) afirma que “[...] a hegemonia nasce da fábrica e necessita apenas, para ser exercida, de uma quantidade mínima de intermediários profissionais da política e da ideologia”. Segundo o autor, a hegemonia de uma classe é caracterizada a partir de sua capacidade de subordinar intelectualmente as demais, através basicamente da persuasão e da educação no seu sentido mais amplo. Para a conquista da hegemonia é necessário que essa classe se apresente como aquela capaz de representar e atender aos interesses e valores de toda a sociedade, obtendo, assim, o consentimento voluntário e a anuência espontânea que garantirá sua unidade. É importante também que esse bloco social se mantenha articulado e coeso. Com a sociedade civil, Gramsci indica outras instituições responsáveis pela disseminação de valores simbólicos e ideológicos, indispensáveis para manutenção da hegemonia, o que fortalece teoricamente a discussão realizada neste estudo.

Se buscarmos ao longo da história as experiências brasileiras no campo da comunicação pública, notadamente a televisão, percebe-se uma grande fragilidade do setor, em comparação ao campo privado. Este conceito de hegemonia pautado por Gramsci nos faz compreender o posicionamento passivo da sociedade durante muitos anos, diante do avanço e fortalecimento da comunicação privada, já que os grupos dominantes (detentores da maioria dos canais de comunicação comerciais do Brasil) disseminam claramente valores simbólicos e ideológicos próprios, que são apropriados por todos como sendo seus. Segundo Enzensberger (2003, p.11)2:

Com o desenvolvimento das mídias eletrônicas, a indústria da consciência tornou-se o marca-passo do desenvolvimento socioeconômico das sociedades industriais tardias. Ela invade todos os outros setores da produção e assume cada vez mais funções de comando e de controle, determinando o padrão da tecnologia dominante.

Para Gramsci, a questão da manutenção, ou conquista, da hegemonia está intimamente relacionada à utilização de instituições culturais que servem de repasse a uma ideologia dominante, como a Escola, a Igreja e os meios de comunicação, “[...] demonstrando nesse momento que a direção desses aparelhos serve à dominação, por determinar um estado de passividade moral e política.” (COUTO, 2003, p. 31). Essa relação é entendida “[...] no sentido da hegemonia política e cultural de um grupo social sobre toda a sociedade, como conteúdo ético do Estado.” (GRAMSCI, 2000, p.225).

Os meios de comunicação podem ser utilizados para essa manutenção hegemônica tanto devido a uma postura Estatal, escolhida pelo governo, quanto no exercício da manipulação por grupos privados de produção e exploração de bens culturais, como fica claro no caso brasileiro. Mas vale chamar atenção ao fato de que as classes subalternas também buscam a inversão para a classe hegemônica, e sob essa ótica, essa disputa deve se dar, além das esferas econômicas e políticas, na esfera cultural, dando significação aos meios de comunicação pública na sociedade contemporânea. Ou seja, os meios públicos (aparelhos de hegemonia) podem ser espaços legítimos para que as classes dominadas invertam sua posição em relação à estrutura hegemônica dominante dos meios privados, a partir da difusão de valores e ideologias próprias.

Para o autor, seria possível constituir o cidadão por intermédio dos meios de comunicação, visto que estes constituem um dos elementos que possibilitam que a superestrutura inverta a hegemonia da estrutura. A mídia (utilizada aqui como sinônimo para meios de comunicação) surgiu como espaço de luta política fundamental na construção da contra-hegemonia.

O que Gramsci não antecipou foi o fato de que a imprensa iria se modificar de forma rápida e progressiva: os jornais de opinião logo iriam dar espaço aos jornais de massa, comerciais, e em pouco tempo, para um rádio e uma televisão igualmente massificados e muito mais financiados pelas instituições comerciais privadas. Isso porque os meios de comunicação são capazes de transformar rapidamente “[...] mercadoria em ideologia, mercado em democracia, consumismo em cidadania.” (RAMOS, 2005, p. 63).

Com os autores da Escola de Frankfurt3 surge o conceito de Indústria Cultural que busca diferenciar cultura de massa (oriunda da própria massa, para eles) e uma cultura própria dos meios de comunicação, imposta por eles. Tinha inicialmente uma concepção privada, ficando o Estado como espectador, porém, mais tarde, essa participação é ampliada como admitem os teóricos de Frankfurt. Dessa forma, trata-se agora da produção em série de padrões culturais “[...] passando a exploração comercial dos chamados bens culturais a reforçar a dominação técnica, imposição do sistema, e a gerar passividade no público.” (COUTO, 2003, p. 35).

A crítica desenvolvida pelos frankfurtianos é oriunda de uma crítica ao Iluminismo que, por um lado, mostra o rompimento do homem com o mundo mágico, da emoção; por outro, mostra que a utilização da razão e da tecnologia prende o homem, impossibilitando a evolução da sociedade. Nesse sentido, a racionalidade técnica, nos moldes capitalistas, não garante a autodeterminação dos indivíduos, pelo contrário, os submete à dominação econômica, os impedindo de ir contra o sistema estabelecido, surgindo daí o termo Indústria Cultural. A ampliação do intervencionismo estatal em conjunto com a transformação da ciência e tecnologia em progresso e bem-estar tornam-se indispensáveis para o avanço do Estado capitalista moderno, alterando a forma de legitimação e poder.

É fato que a mídia é hoje o palco onde se desenvolve o espetáculo de interesses e se observa a participação ativa desta na construção da realidade. O poder econômico controla o poder midiático e os dois sobrepujam o poder político, o que nos permite observar a parcialidade clara e não aleatória de interesses. Isso pode ser considerado inclusive antidemocrático, visto que o poder político é eleito nas urnas, o poder econômico e midiático não.

Dessa forma, observa-se que o caráter público intrínseco à mídia é a principal via de socialização de informações, mas o que se tem na realidade é esse espaço sendo dominado por interesses privados, por empresas privadas, o que desvirtua e contamina seu papel principal.

Para alguns autores, como Eugênio Bucci (2010)4, o papel da comunicação desenvolvida por meios privados/comerciais de comunicação tem função fundamental de expressão social dentro de uma sociedade democrática. Mas somente esses veículos não suprem todas as necessidades da comunicação social. Nesse momento, o papel dos meios públicos de comunicação se torna essencial, já que através deles se permitem determinados aprofundamentos, o que não acontece com os canais privados devido ao seu modelo comercial. Para Bucci (2010), a TV pública deveria se especializar nas coisas que são incompatíveis com o modelo comercial de televisão: ser independente da audiência, independente de inserções de breaks comerciais, dentre outros.

Porém, o que vem sendo observado é a utilização da televisão como um dos principais meios de construção hegemônica, com destaque ao que se refere à formação de percepções da realidade, formação de valores e condutas. A mídia seria inicialmente um instrumento neutro, que ao longo dos anos foi utilizada para legitimar certos aspectos de interesse da classe dominante (que envolvem vários motivos históricos), constituindo uma identidade manipuladora e individualista (voltada aos interesses de poucos), incapaz de ser formadora ou educadora.

É sabido que a lógica empregada pelos meios de comunicação remete à lógica do capital hegemônico desde seu surgimento. “Os meios de comunicação de massa têm acompanhado o desenvolvimento do modelo de produção capitalista desde o século XIX, como condição indispensável da expansão de tal sistema socioeconômico.” (AZEVEDO et al, 2010, p. 1).

4 CONCLUSÃO

Percebe-se, todavia, que as políticas de comunicação adotadas em toda essa trajetória se constituem em aperfeiçoamentos do Estado democrático de direito (Estado burguês), mas que não se preocupava em superar o modelo de produção e formação social capitalista.

Para Brittos e Bolaño (2005) é preciso entender o papel do Estado na Indústria Cultural. Eles afirmam que “[...] no caso da informação e cultura, seu caráter de classe e sua função de suporte à acumulação do capital também precisam aparecer não como dominação, mas como expressão dos interesses gerais.” (BRITTOS; BOLAÑO, 2005, p. 7).

Na perspectiva de Bolaño, o Estado se apresenta como um capitalista coletivo ideal, o qual garante os interesses gerais do capital através da propaganda em contraposição aos interesses individuais, não só do capital concorrente como também dos grupos que disputam política e ideologicamente no âmbito do aparelho do Estado.

Assim, diante da dificuldade inerente à lógica capitalista de produção de informação que supere os interesses individuais, “[...] o Estado constitui um aparato próprio dentro da Indústria Cultural: os meios de comunicação públicos.” (VALENTE, 2008, p. 9).

Assim, poder-se-ia apontar uma dupla personalidade dos meios de comunicação públicos: são aparelhos ideológicos, mas que, para cumprir esta função, precisam estar bem posicionados na organização da produção, distribuição e consumo de informação e cultura (VALENTE, 2008, p. 9).

Diante do caso brasileiro, o que se via era uma comunicação pública realizada pelo Estado com finalidades propagandísticas, com vistas à disseminação da ideologia dominante no intuito de obter consensos que legitimassem a essência desigual do sistema. Essa comunicação pública era realizada por emissoras do campo público, formado por canais educativos, universitários, comunitários e estatais, que mantinham relação de dependência política e econômica com as gestões governamentais.

Sabemos, porém, que essa ideologia não atravessa de forma linear a sociedade, ela é constituída pela luta de classes. Tanto nos meios de comunicação em geral, como, mais especificamente, na televisão.

Toda essa discussão ainda pode ser corroborada quando observamos que a ligação entre Estado e empresários remete à origem do próprio Estado. Na tradição marxista, o Estado é concebido como instrumento de dominação de classe, expressão da capacidade de uma delas se impor sobre o conjunto social.

Para apresentar as tendências das políticas públicas de comunicação no Brasil, observando o sistema público de comunicação, especificamente a televisão pública brasileira, torna-se necessário também apresentar pontos de discussão que remetam à relação entre o Estado e esses meios. Uma trajetória recente, mas marcada pelo jogo político e econômico do setor.

Vê-se muitas vezes certa confusão na fala do Estado quando se refere à questão pública. Quando anunciada a implementação de um sistema público de comunicação por parte do governo federal em 2007, o que se viu foi uma rede estatal já existente tomar o papel de uma possível rede pública de comunicação. Isso trouxe antigas divergências conceituais na compreensão do que seria público e o que seria estatal.

Segundo Silva (2001, p. 128): “O estado de direito burguês como a esfera pública, enquanto seus princípios constitutivos são meros artifícios ideológicos – aquilo que esta última promete não pode ser conseguido enquanto subsistir a separação entre a sociedade civil e estado”.

Precisa-se ainda atentar para a diferenciação entre público e estatal, uma vez que para que um sistema efetivamente público de comunicação se apresente como tal é necessário independência ideológica e econômica, principalmente. Sabe-se que público não é o mesmo que estatal. Público se refere à coletividade, destinado ao povo, para todos; já estatal é relativo ao Estado. E sabe-se, ainda, que nem público, nem estatal existiria sem o privado, mas o equilíbrio entre os modelos de radiodifusão (conforme orienta nossa Constituição) pode garantir certa democratização no campo da comunicação brasileira.

Por pouco tempo, os grupos e entidades organizadas pela luta de um campo de comunicação efetivamente público, portanto de todos, vislumbrou a possibilidade de maior inserção da sociedade civil no setor, através da instauração da nossa primeira TV institucionalmente pública, a TV Brasil, emissora da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Porém, pouco tempo foi necessário para perceber que as forças que dominavam, e ainda dominam este setor, não deixariam que um campo tão ideologicamente estratégico, saísse do controle do capital. Dessa forma, ainda vimos que a comunicação pública tem sido tratada como instrumento político de grupos que estão no poder, não possibilitando a tão necessária democratização do setor. Isso porque, sabe-se que os meios de comunicação de massa são hoje, na sociedade, instrumentos essenciais da esfera pública para construção hegemônica e, paradoxalmente, para determinação do espaço democrático. Mas, apesar dos inúmeros indícios do contrário, o próprio Gramsci, após considerar o papel da hegemonia numa direção intelectual e moral, “[...] devendo ser exercida no campo das ideias e da cultura, capacitando a classe subalterna à conquista do consenso, ou a dominante à mudança do mesmo.” (COUTO, 2009, p. 67), revela que, através da concepção dialética, é possível a disputa pela hegemonia também pelas classes subalternas na busca pela inversão para classe hegemônica, mesmo considerando que há uma rede articulada de instituições culturais, denominada pelo autor como aparelhos privados de hegemonia, incluindo-se aí Escola, Igreja e os meios de comunicação, que “[...] objetivam a persuasão, o convencimento, a subordinação passiva, por intermédio da ideologia.” (COUTO, 2009,p. 68). Destacamos, portanto, que mesmo considerando o poderio de uma classe hegemônica, obtida pela dominação ideológica dos meios de comunicação, visão dos autores Adorno e Horkheimer, é possível indicar que os próprios meios não poderiam ser utilizados apenas para a manutenção da ordem já estabelecida, conforme salientam Benjamin e Gramsci.

Certo que, o poder hegemônico não se constrói senão pela dominação ideológica, movimentos analisados durante a pesquisa de doutorado que originou este estudo, indicados ao longo da história, nos remete ao sinal de que há um esforço coletivo em inverter valores próprios das classes dominantes em valores apreendidos pelas classes subalternas como sendo deles, o que garante até os dias de hoje, a manutenção do campo da comunicação de massa nas mãos do grande capital. A TV pública, contudo, poderia atuar como força contra-hegemônica ao possibilitar acesso às diversas organizações da sociedade civil ao meio de comunicação de massa que possui maior alcance em nossa realidade, permitindo importante contraponto em relação à construção do consenso, determinado no campo de atuação da ideologia na sociedade civil (GRAMSCI, 1991), onde os aparelhos privados de hegemonia exercem sua influência.

No percurso da pesquisa, o esforço de reflexão e análise acerca da realidade social, ambiente no qual estão inseridos princípios de democratização, interesse público e meios de comunicação de massa na contemporaneidade, traz necessário destaque às condições percebidas ao longo dos estudos sobre o campo público de comunicação no Brasil, notadamente a TV Pública. Necessário observar, ainda, que os meios de comunicação de massa são hoje na sociedade, instrumentos essenciais da esfera pública para construção hegemônica e, paradoxalmente, para determinação do espaço democrático.

Dito isso, observamos, contudo, que a falta de regulamentação no setor prejudica sobremaneira o reconhecimento da necessidade da existência de uma pluralidade de interesses no campo da comunicação social. A efetiva democratização do campo comunicacional, passa, obrigatoriamente, pelo estabelecimento de uma regulamentação capaz de suprir as demandas atuais e que seja capaz de garantir participação plural e diversificada no setor, ou seja, garantir o princípio da complementaridade. Grupos dominantes ainda se utilizam de manobras escusas para levar a discussão para outro lado, o da censura e da liberdade de imprensa, mantendo assim, a situação sob seu domínio.

REFERÊNCIAS

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Notas

1 Artigo oriundo das pesquisas realizadas durante o doutorado em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), intitulada TV Privada de acesso amplo x TV Pública de acesso restrito: contradições das políticas de comunicação no Brasil, defendido em 2016.
2 No livro Uma teoria dos meios de comunicação, desenvolve a conceito de Indústria da Consciência para denominar os meios de comunicação de massa.
3 Denominação genérica dada ao Instituto de Pesquisa Social, na cidade de Frankfurt, na Alemanha. Reuniu estudiosos que foram responsáveis pela produção de trabalhos importantes no âmbito da cultura e sociedade de massa, tendo como destaques: Teodor Adorno, Max Horkheimer, Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Jurgem Habermas, entre outros.
4 Eugênio Bucci é Jornalista, doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo e professor do curso de jornalismo da mesma instituição. É ainda membro do conselho curador da Fundação Padre Anchieta (mantenedora da TV Cultura) e colaborador do Jornal O Estado de São Paulo e do site Observatório da Imprensa.
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