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MULHERES EM MOVIMENTO: das bruxas europeias às militantes brasileiras até a época da redemocratização
Silse Teixeira de Freitas Lemo
Silse Teixeira de Freitas Lemo
MULHERES EM MOVIMENTO: das bruxas europeias às militantes brasileiras até a época da redemocratização
Revista de Políticas Públicas, vol. 22, pp. 815-830, 2018
Universidade Federal do Maranhão
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Resumo: O texto apresentado é construído a partir de pesquisa bibliográfica cujo objetivo é discutir a presença dos movimentos sociais feministas na sociedade brasileira até o período de democratização do Estado, na perspectiva das conquistas de direitos sociais para as mulheres. Apresenta o desenvolvimento das atividades dos movimentos sociais feministas na sociedade brasileira, das primeiras incursões até a sua participação na redemocratização do Estado brasileiro, após a ditadura militar. Aponta o protagonismo das mulheres nos movimentos feministas (é apontado) como responsável para se conseguir a conquista de uma sociedade menos injusta e desigual.

Palavras-chave:Movimentos sociais feministasMovimentos sociais feministas, mulheres mulheres, redemocratização redemocratização.

Abstract: The presented text is based on a bibliographical research whose objective is to discuss the presence of feminist social movements in brazilian society until the period of state democratization, in the perspective of the achievement of social rights for women. Introduce the development of the activities of feminist social movements in the Brazilian society, from the first incursions until its participation in the redemocratization of the Brazilian State, after the military dictatorship.The protagonism of women in the feminist movements is pointed out as responsible for achieving the conquest of a less unjust and unequal society.

Keywords: Feminist social movements, women, redemocratization.

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Mesas temáticas coordenadas

MULHERES EM MOVIMENTO: das bruxas europeias às militantes brasileiras até a época da redemocratização

Silse Teixeira de Freitas Lemo
Universidade Federal do Maranhão - UFMA, Brasil
Revista de Políticas Públicas, vol. 22, pp. 815-830, 2018
Universidade Federal do Maranhão

Recepção: 06 Março 2018

Aprovação: 16 Maio 2018

1 INTRODUÇÃO

Se existe uma expressão à altura do esforço na busca da compreensão da ideia de feminismo, pode-se dizer que é complexidade, no sentido amplo de multiplicidade e diversidade. Qualificativo forte, designa o esforço histórico, contínuo, persistente, aguerrido, tenaz e lúcido de grupos de mulheres empenhadas em alcançar desde os direitos humanos/sociais mais elementares, até o espaço político de efetiva participação nas decisões políticas definidoras da direção da sociedade. Para a boa compreensão das questões relacionadas ao feminismo é preciso esclarecer que a questão é plural, ou seja, são feminismos de diversas orientações políticas, os quais abrangem raça, etnia e geração. Essa complexidade se especifica na multiplicidade de aspectos a caracterizarem as desigualdades e injustiças que têm acometido mulheres, antes de tudo, pelo fato de serem mulheres. Desdobram-se em fatores pertinentes à condição histórica, social, econômica e cultural a tipificarem situações específicas de dominação, subordinação e exploração vividas em distintos contextos sociais, em diferentes épocas, posto que, em sua diversidade, a inferiorização das mulheres se inscreve como elemento estrutural das sociedades patriarcais.

Entende-se o patriarcado como categoria conceitual vigente, modelo social fundado na supremacia masculina, o qual naturaliza as determinações concedidas aos homens, uma vez que são os elementos superiores da espécie humana. (ARISTÓTELES, 2006).

Frente aos entraves para superação das condições de subalternidade, as mulheres têm resistido e assumido posições de enfrentamento às imposições limitadoras do seu protagonismo na sociedade. Grupos formados por mulheres assumem postura de luta com o propósito de conquistar reconhecimento social e político com enfrentamento à desqualificação e à reação da sociedade patriarcal capitalista. É preciso evocar o desempenho de militantes feministas (apesar de nem sempre assim serem nominadas) no percurso histórico para compreender que as mulheres não têm se submetido à desigualdade passivamente. Para realizar exercício elucidatório, entendido como função precípua das(os) estudiosas(os) sobre relações de gênero, o presente texto foi construído a partir de pesquisa bibliográfica, cujo objetivo é discutir a presença dos movimentos sociais feministas na sociedade brasileira até o período de democratização do Estado, após o período da ditadura militar, na perspectiva das conquistas de direitos para as mulheres e para o conjunto da população.

A estruturação do conteúdo se deu a partir de uma reflexão preambular de teor provocativo sobre as condições das mulheres em um período passado, correspondente à configuração da Europa, de onde provêm as influências sociais, econômicas, culturais e ideológicas incidentes na formação sócio-histórica brasileira. A seguir, posiciona-se a trajetória da ação feminista no Brasil, cujos resultados apontam para a efetividade do seu papel político na conquista de direitos humanos e sociais, da reivindicação para a conquista do voto até o protagonismo na participação das mulheres na Assembleia Constituinte, no fim da ditadura militar no Brasil. Trata-se de uma incursão reflexiva que inicia um estudo que deve ser ampliado até contemplar a contemporaneidade.

2 A LUTA DAS MULHERES EM DIREÇÃO AO RECONHECIMENTO SOCIAL E POLÍTICO

Recentemente, o livro A Imperatriz de Ferro: A Concubina que Criou a China Moderna, de Jung Chang (2014), traz nas primeiras páginas do texto biográfico de Cixi, a imperatriz, a informação de que numa das costumeiras escolhas de mulheres para o imperador da China, uma jovem de dezesseis anos fora por aquele selecionada para ocupar um lugar de concubina na corte, o que se tratava de notável honra. Ao imperador cabia o direito de escolher uma jovem para ser esposa, e quantas concubinas quisesse. Isso não causa sequer curiosidade por ser costume recorrente em várias sociedades mundo afora. Entretanto, merece atenção o texto a seguir: “Nos registros da corte ela figurava simplesmente ‘como a mulher da família Nala’, sem nenhum nome próprio – os nomes femininos eram considerados insignificantes demais para ser registrados.” (CHANG, 2014, p. 23, grifo nosso). O nome Cixi fora-lhe dado depois de ser aceita pelo imperador e passar a ser uma das suas concubinas. A afirmativa oferece um rol de significados que permite achegar-se ao quão irrelevante era a identidade feminina vista no descortinar histórico, posto que a China tradicional alinhava-se aos padrões de valores vigentes em distintas culturas, de caráter universal, embora se considere as particularidades que lhe são intrínsecas. No descrito, a importância das mulheres atinha-se ao sentido utilitário e biológico, assim como o dos animais domésticos como cabras e ovelhas, que não precisam ser nomeadas, identificadas ou reconhecidas como indivíduos. Atribuía-se valor material de cunho econômico e reprodutivo às mulheres e esse se afigurava como posse masculina, cercado de significados simbólicos a garantir tal condição.

É possível guiar a reflexão na perspectiva colocada por Bourdieu (2002), em A Dominação Masculina, quando é analisada a sociedade Cabila, de cultura berbere, situada na Argélia, de princípio ordenador androcêntrico, pelo qual se diferenciam expressões de masculino e feminino numa assimetria de relações hierarquicamente pautadas na superioridade dos homens. Bourdieu fornece tais elementos numa espécie de arqueologia do inconsciente no qual a presença androcêntrica subsiste em estruturas cognitivas e sociais. O olhar dirigiu-se à especificidade da cultura estudada, mas, por certo, as elaborações daí resultantes são instrumentais que permitem problematizar a recorrência de ações reveladoras da dominação masculina vigente, ora de forma explícita, ora velada, tanto na sociedade ocidental quanto na oriental, em diversas temporalidades.

O controle religioso e sociopolítico sobre as mulheres na Europa aumenta por volta do século XIV; impõe–se por meio de regulação das relações familiares ao considerá-las juridicamente incapazes e pela utilização das punições por feitiçaria. A caça às bruxas representou o empenho da sociedade patriarcal, sob os auspícios do tribunal religioso, de amortecer o ímpeto revolucionário das mulheres que em circunstâncias opressoras organizavam movimentos sociais e bradavam contra injustiças, contra a fome e participavam das lutas camponesas. Acresce-se a isso o conhecimento amplo que detinham no tratamento de doenças com suas ervas e poções, o que, potencialmente, tornavam-nas mais temíveis e suscetíveis às perseguições. O saber trocado e fortalecido nos encontros de mulheres camponesas foi combatido com controle férreo, tortura e condenação à morte na fogueira. (MURARO, 2014).

Tão intensa e furiosa perseguição atingiu milhares de mulheres pobres e levou-as à execução, a serem queimadas vivas. Tal terror ganha vulto no final do século XV e avança para o século seguinte com a morte de mulheres na Alemanha, Itália, França, Inglaterra, difundindo-se por toda a Europa. Informações colhidas por Muraro (2014) denunciam a execução de cem mil mulheres em quatro séculos, o que corresponde a oitenta e cinco por cento das pessoas – bruxas e bruxos condenados. A magnitude do fato marcou a história das mulheres no ocidente como destruição de formas de sublevação feminina ao tolher toda e qualquer forma de conhecimento não alcançável pelo controle do poder dominante. O pretenso aniquilamento das mulheres tidas como bruxas, ao contrário do pretendido, transformou-as em mitos pela inversão inspiradora na cultura popular, repositórios de qualidades como resistência, coragem e sabedoria.

Períodos históricos se sucedem com as revoluções cultural, econômica e política a alterarem substantivamente a sociedade com o desmoronamento de valores culturais teocêntricos e a ascensão do antropocentrismo; a expansão burguesa a determinar a economia com o crescimento urbano/industrial; e o Estado absolutista em queda com a divisão de poderes na política não contemplaram mudanças na vida das mulheres que permaneceram obscurecidas na secundarização da sociedade que reedita o patriarcalismo. É mister considerar, nesse largo lapso temporal, o protagonismo de vanguardistas como Cristina de Pisano (1363-1430) que escreveu o livro A Cidade das Damas, Olympe de Gouges (1748-1793) com a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, Mary Wollstonecraft com Reivindicação dos Direitos da Mulher (1759-1797). Essas mulheres representaram, como outras da sua época, o inconformismo e o anseio na busca de direitos, ao comprovarem, sem equívocos, a capacidade feminina de sentir, ver e compreender as construções socioculturais injustas, promovidas por leis feitas pelos homens e para os homens que naturalizam e promovem a sua inferiorização. Apontaram para direção futura que será empreendida na luta dos movimentos feministas no rumo da supressão das desigualdades.

A atuação de Mary Wollstonecraft, como escritora, marca, de certo modo, o nascimento do feminismo como movimento político, e sua publicação épica, Reivindicação dos Direitos da Mulher, situa emblematicamente a luta feminista no cenário sociocultural do predomínio da razão e da ciência como uma bandeira permanente na busca de justiça. Há coerência e antecipação da necessidade do reconhecimento da importância social do contingente feminino nos escritos revolucionários de Mary Wollstonecraft ainda no século XVIII, quando, após a Revolução Francesa, das mulheres foi subtraída a possibilidade da conquista do tão almejado status de cidadã, se considerado o entendimento vigente de como seres limitados e inferiores não deveriam alcançar o patamar na sociedade que as colocassem em condição de igualdade ao mais rude dos homens.

Afirma a perspicaz Wollstonecraft (2016, p. 25) que

[...] a educação negligenciada de meus semelhantes é a principal causa da miséria que deploro e de que as mulheres, em particular, são tornadas fracas e infelizes por uma variedade de causas concomitantes, originadas de uma conclusão precipitada. A conduta e as maneiras das mulheres são, de fato, a prova evidente de que a mente delas não se encontra num estado sadio; pois, tal como flores plantadas num solo rico demais, a força e a utilidade são sacrificadas à beleza, e suas folhas garbosas, após agradarem um olhar exigente, murcham e caem do galho, muito antes de atingirem a maturidade. Atribuo a causa desse florescimento estéril a um sistema de educação falso, extraído de livros sobre o assunto escrito por homens que, ao considerar as mulheres mais como fêmeas do que como criaturas humanas, estão mais ansiosos em torná-las damas sedutoras do que mães afetuosas e mães racionais.

À análise dessa autora, contribuem os aspectos apreendidos na questão educacional que aflora como determinante para a compreensão das desigualdades construídas e mantidas socialmente entre homens e mulheres. Destaca, em especial, a tarefa masculina de elaboração dos preceitos orientadores da educação da época, pela qual permanecem e são ratificados os elementos constitutivos das desigualdades. A sua compreensão é abrangente, ao situar o panorama educativo, como a envolver homens e mulheres, cuja deformação é um dos principais responsáveis por alimentar e manter ideias e atitudes equivocadas sobre a condição de ambos no cenário da época. O romantismo da sociedade inglesa de então aparece no seu trabalho como um ardil a aprisionar as mulheres nos liames de uma pretensa fragilidade e dependência emocional e material. É o subterfúgio justificador do domínio ancestral masculino que, sob o argumento da proteção às frágeis mulheres, as submetia e oprimia.

Outro aspecto a ser considerado é o papel da fêmea, intrínseco à condição feminina que se expressa além da função reprodutora para os demais espaços da existência das mulheres como o condicionante preferencial da sua situação de ser submissa e subalterna, posto que procriar tem sido a sua função precípua e motivo alegado para a realização do controle e vigilância sobre o seu corpo e vida. Concorrem para a afirmação e perpetuação dessa ordem, a moral sexista, o próprio cenário social da afirmação burguesa, que à época de Wollstonecraft (2016) ainda se afigurava como revolucionária, mas muito próxima de situar a sua dominância econômica e política na sociedade ocidental da época. Contudo, sob a cultivada aparência de docilidade, dependência e submissão, as mulheres eram chamadas à luta, quando eram úteis aos interesses de grupos em busca de poder econômico e político.

Essa utilidade se expressa nos momentos cruciais da vida social quando são chamadas à luta para atender os objetivos da supremacia masculina. Escreve a autora de O segundo Sexo: “Durante a liquidação da Revolução a mulher goza de uma liberdade anárquica. Mas, quando a sociedade se reorganiza, volta a ser duramente escravizada.” (BEAUVOIR, 1970, p. 141). Esses episódios de participação feminina, mesmo sem representarem mudança real no status quo, atuaram como flashes a iluminarem potenciais inspiradores para o futuro político dos movimentos feministas. Será necessária a persistência da atuação política articulada para alcançarem ganhos efetivos, e a continuidade histórica francesa trouxe resistência à emancipação das mulheres, pois,

[...] como todos os militares, Napoleão não quer ver na mulher senão uma mãe. Porém, herdeiro de uma revolução burguesa, deseja demolir a estrutura da sociedade e dar à mãe a preeminência da esposa [...] Entretanto, a própria mulher casada não encontra refúgio em sua dignidade de mãe; o paradoxo feudal perpetua-se. Solteira e casada são privadas da qualidade de cidadã [...] (BEAUVOIR, 1970, p. 143).

O que se depreende ao pontuar esses procedimentos é a existência ratificada de ações políticas de permanente destituição e subordinação das mulheres. A maternidade e a conjugalidade não as distingue socialmente; são meras condições de reprodução e manutenção da vida doméstica familiar sem a devida relevância para quem é essencial nesse processo: a mulher.

A Europa colonizara as novas terras ocupadas com a imposição do acervo cultural e técnico de que dispunha, no sentido de transposição dos resultados do seu processo civilizatório, aniquilara os elementos de origem local, na medida em que esses não fossem úteis aos seus propósitos de dominação. Na formação colonial impôs-se, com predominância, a reprodução do modelo familiar colonizador adequado às peculiaridades locais. Na sociedade brasileira, escravocrata, hierárquica e analfabeta, a existência precursora de Nísia Floresta (1810-1885) com o seu livro pioneiro, Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens, inspirado nas ideias de Mary Wollstonecraft, representará uma referência inspiradora primordial em direção à construção das lutas feministas no país. Acenava-se a disposição feminina para a busca de afirmação cidadã.

A inquietação das mulheres em direção ao reconhecimento social e político as conduz a aventurar-se no espaço público milenarmente negado pela inculcação ideológica de que o lugar da mulher é o interior da casa, do recolhimento:

A sedentariedade é uma virtude feminina, um dever das mulheres ligadas à terra, à família, ao lar. Penélope, as vestais, figuram seus antigos modelos, as que esperam e velam. Para Kant, a mulher é a casa. O direito doméstico assegura o triunfo da razão; ele enraíza e disciplina a mulher, abolindo toda vontade de fuga. Pois a mulher é uma rebelde em potencial, uma chama dançante, que é preciso capturar, impedir de escapar. (PERROT, 2015, p. 136).

O inconformismo com a situação de sucessivas negativas em facultar espaço na vida pública do Brasil para as brasileiras levou Leonilda Daltro a fundar o Partido Republicano Feminista, em 1910. Não abatera o ânimo das primeiras feministas do século XX, no Brasil, as derrotas na Assembleia Constituinte de 1891, que negou o voto às mulheres, sob a alegação de inconstitucionalidade ou pela justificativa de que estaria tal prerrogativa contemplada pela expressão cidadãos brasileiros, especificada no texto. (SOIHET, 2012). A resistência das autoridades políticas foi continuamente testada pelas intenções feministas, tendo, a partir de 1918, a militância de Bertha Lutz, apoiada por grupos de mulheres a reivindicarem trabalho, educação e o voto conquistado em 1932. Comunicavam pela imprensa temas sugestivos à emancipação das mulheres pelo caminho da educação, direitos iguais aos dos homens, chances semelhantes de preparação para o trabalho para ambos os sexos, com o objetivo de obtenção de salário idêntico. “Em 1920, Bertha Lutz e Maria Lacerda de Moura uniram-se para criar a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher [...] Era preciso que as mulheres recebessem ‘uma educação racional’ que as levasse à sua perfeita emancipação intelectual.” (SOIHET, 2012, p. 222).

A mineira Maria Lacerda de Moura, com quem Bertha Lutz consorcia interesses de luta pró-direitos para as mulheres, provém de Minas Gerais, professora de escola normal, escritora, jornalista, defensora da emancipação humana e feminina identifica e denuncía com veemência o totalitarismo fascista e o clericalismo. (MACEDO, 2003). Ocupa-se, além das questões relacionadas à emancipação feminina, “[...] à execração da moral sexual vigente, da educação sexual e da divisão sexual do trabalho.” (LEITE, 1983, p. 38). Apesar dos objetivos que aproximavam as duas líderes feministas, as divergências acabaram por distanciá-las, pois que Maria Lacerda de Moura questionava a prioridade das campanhas pelo direito ao voto, por entender que essa conquista beneficiaria majoritariamente mulheres integrantes das classes médias e elevadas. Tal benefício, na acepção daquela intelectual feminista, não provocaria “[...] maiores alterações na estrutura social do país.” (SOIHET, 2012, p. 222). Contudo, a existência de ambas as intelectuais na cena política brasileira qualifica as lutas feministas no seu nascedouro, dotando-as de significados ideológicos direcionados a avanços sociais e à liberação das mulheres brasileiras.

No período entre os anos de 1940 a 1960, as lutas feministas de cunho esquerdista objetivaram movimentar as mulheres no propósito de alcançarem uma condição mais justa em face das disparidades estruturais da sociedade no Brasil, com posicionamento crítico frente ao monolítico domínio capitalista. Entretanto, padeceram das mesmas dificuldades enfrentadas pelos movimentos políticos de esquerda aos quais estavam vinculados, “[...] ao invés de pautarem sua ação com base em análise da realidade brasileira, muitas vezes, utilizavam-se de esquemas prontos e, por isso, ineficazes” (SOIHET, 2012, p. 233). Acrescenta-se que

[...] a luta contra a discriminação sexual e a favor da emancipação feminina era considerada secundária e, de certo modo, perniciosa, já que contribuiria para retardar a luta pela conquista do objetivo principal – a instauração de uma sociedade sem classes (SOIHET, 2012, p. 234).

Diante do exposto, vê-se que os mecanismos políticos/ideológicos de que se dispunha para fortalecer as justas reivindicações das mulheres serviram mais para ocultar essa luta, sob a justificativa de que os problemas de desigualdades e injustiças enfrentados pelo contingente feminino finalizariam com a derrocada capitalista, como se a queda do capitalismo fosse uma panaceia aplicável ao conjunto de males dele decorrente.

Ao contrário do que se pode depreender em face do poder tradicional do patriarcado brasileiro, as mulheres têm assumido atitude de enfrentamento, movidas pela disposição de alcançar direitos, em movimentações pontuadas por modos distintos de expressão, níveis de radicalismo diferentes, e também ideologias distintas. O que marca as primeiras etapas de luta do século XX é a conquista elementar dos direitos políticos, o voto e a possibilidade de candidatar-se. É preciso entender o quadro sociopolítico da época para dimensionar o alcance da conquista ao abrir caminho para reivindicações mais amplas. Assim,

[...] essa primeira luta era pela cidadania em seu nível mais básico, Bertha Lutz e o Partido Republicano Feminino enfrentaram as exclusões da lei representaram diferentes manifestações da mesma luta, mas revelaram as suas diferenças: um feminismo bem comportado e um feminismo malcomportado. [...] O primeiro não afrontava poderes, mas buscava apoio neles. [...] O segundo era de enfrentamento: o feminismo ‘malcriado’ expressava-se nas passeatas, nos enfrentamentos na Justiça e nas atividades das mulheres livres-pensadoras [...] Somavam-se a elas as anarquistas radicais que traziam a educação para o mundo do trabalho, muito distante das preocupações das feministas de elite. (PINTO, 2003, p. 38).

Com o peso da política oligárquica brasileira, o ascenso dos movimentos de caráter feminista foi dificultado, mas não deixou de existir, quer entre as classes elitizadas, quer entre as trabalhadoras. (PINTO, 2003). O fato é que a permanência da chama a iluminar a intenção das lutas foi vivificada pelas próprias mudanças na sociedade, cada vez mais influenciada pelo processo de avanço industrial e urbanista.

Em 1963, a norte-americana feminista Betty Friedan lança a sua obra Mística Feminina na qual escreve:

A mulher estava recebendo educação cada vez mais elevada, de maneira que se sentia infeliz em seu papel de dona de casa. ‘De Freud a Frigidaire, de Sófocles a Spock, o caminho tornou-se acidentado’, declarava o New York Times (28 de junho de 1960). Inúmeras jovens casadas— nem todas, certamente — cuja educação as projetou no mundo das idéias, sentem-se sufocadas pela rotina da vida doméstica, achando-a incompatível com sua capacidade (FRIEDAN, 1971, p. 23).

Para além da revolução feminista causada entre as mulheres dos EUA, as reflexões de Betty Friedan (1971) inspiraram as mulheres brasileiras que viveram o paroxismo dos anos da ditadura militar, mas não fugiram da luta. O contra-ataque às iniciativas da busca emancipatória pelos setores conservadores e reacionários da época denunciavam a movimentação das norte-americanas e seus gestos simbólicos de rebeldia antipatriarcal como extremados, incompatíveis com o caráter feminino, atitudes de mulheres sem encantos e mal-amadas. Criou-se uma caricatura estigmatizada acerca da identidade das simpatizantes dos movimentos feministas, como forma de descaracterizar o seu interesse pela luta política e as reivindicações em prol das mulheres, ao subestimar a sua capacidade de análise e discernimento sobre as temáticas pelas quais lutavam.

Nos anos 1970 surgem em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, e possivelmente noutros lugares do Brasil, grupos feministas inspirados nos movimentos iniciantes no hemisfério norte, nos quais o elemento de identificação relacionava-se com interesses intelectuais e políticos. Uma metodologia revolucionária de divulgação de ideias foi utilizada por inspiração em práticas advindas do exterior. Tratava-se de

[...]grupos de consciência, também chamados de grupos de reflexão. Esses grupos eram constituídos apenas por mulheres [...]que se reuniam nas casas umas das outras, ou em lugares públicos, como cafés, escritórios, bares e bibliotecas, para discutir problemas específicos das mulheres e se contrapor ao machismo vigente (PEDRO, 2012, p. 241).

Por certo, a reunião dos pequenos grupos de mulheres, independente da autodenominação, constituiu-se em espaços privilegiados de trocas, de superação de medos e tabus cultivados sobre a vida pessoal, sexualidade e condição das mulheres na sociedade. Tais discussões incentivavam atuação mais ampla, na qual a expressão coletiva pudesse concorrer para a transformação das relações sociais opressoras em vigência, de maneira que o pessoal e privado convertia-se em público e político. Embora de caráter privado, algumas situações promoveram atividades públicas significativas. Ainda que não se possa precisar o número, Céli Pinto (2003, p. 49) afirma terem sido “[...] dezenas, certamente, talvez centenas. A dispersão do movimento feminista torna impossível recuperar o número preciso de grupos e sua localização pelo país”. Vale assinalar o empenho e a ousadia numa sociedade que subsistia num regime de força, no qual toda expressão política divergente ou questionadora era reprimida de modo rigoroso nos anos de chumbo. (SARTI, 2004).

Foram esforços que asseguraram a expansão dos feminismos, mesmo marcada pela polarização liberal versus marxista, pela qual se expressava a democracia contra a ditadura e proletariado contra burguesia. Com os percalços da imaturidade política e a dificuldade de autopercepção, as mulheres integrantes dos movimentos, orientadas pelo pensamento de esquerda, lutavam pelo direito das mulheres pertencentes à classe trabalhadora, sem elas próprias se darem conta da sua própria condição “[...] como objeto de discriminação. Esse foi um lento aprendizado para as mulheres de esquerda. Poderem se identificar como oprimidas sem pertencer ao proletariado.” (PINTO, 2003, p. 62).

Os anos 1980 foram marcados, no Brasil, pela anistia aos presos políticos, aos exilados e pela reforma partidária. À anistia juntou-se a diminuição dos atos repressores, aumento da liberalização com possibilidades de manifestações de ideias. Havia a esperança de gradual democratização do país. Nesse cenário, o movimento feminista, segundo Pinto (2003), ganha novas conformações ao se posicionarem as militantes entre Partido do movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e Partido dos Trabalhadores (PT) numa etapa de catalisação das atenções aos pleitos eletivos.

Divergências entre as feministas marcaram o período: certos grupos defendiam a institucionalização do movimento e aproximação com o Estado, enquanto outros entendiam tal atitude como cooptação. Consideravam a importância da autonomia como primordial. Temas como violência contra mulher e saúde passam a ser objeto de atuação de grupos feministas. Nesse mesmo período, criaram-se grupos do chamado feminismo acadêmico, orientados para o propósito de estudos e pesquisas sobre temáticas relacionadas às mulheres e outras implicações delas derivadas. Na década de 1980, houve expressiva movimentação dos grupos feministas cujas ações se materializaram na denúncia de violência contra a mulher; participação significativa na atividade sindical; criação de Conselhos Estaduais e Nacional da Condição Feminina (CNDM); instalação das Delegacias da Mulher; implantação dos Grupos de Estudo sobre Gênero nas instituições acadêmicas e organizações não governamentais; elaboração e implantação do Plano de Atenção Integral à Saúde da Mulher (AUAD, 2003). Foi o dinamismo das mulheres feministas que conseguiu os avanços registrados no decênio, com conquistas de significado na sociedade brasileira.

Também nessa década, em 1985, é criado o CNDM, resultado do empenho de militantes feministas junto a Tancredo Neves. Essa entidade teve papel estratégico operacional de importância capital nos trabalhos da Constituinte de 1988. O momento se constituiu em etapa decisiva para definição de direitos humanos e sociais, tanto àqueles ligados diretamente às necessidades e interesses das mulheres quanto aos da sociedade num sentido amplo. Embora o Legislativo brasileiro não tivesse representação feminista, considerado que as mulheres deputadas eram provenientes de partidos de direita, conservadores e refratários às questões relacionadas aos direitos das mulheres, a autoproclamada bancada feminina composta por vinte e seis mulheres apresentou trinta emendas, dentre as quais três provinham de movimentos de mulheres que propunham alargamento de direitos para a população feminina. Foi elaborada, dentre outros documentos, a Carta das Mulheres articulada pelo CNDM, organizada por um conjunto expressivo de mulheres militantes, cujo teor detinha um amplo significado de magnitude social:

O documento defendia a justiça social, a criação do Sistema Único de Saúde, o ensino gratuito em todos os níveis, autonomia sindical, reforma agrária, reforma tributária, negociação da dívida externa [...] detalhava as demandas em relação aos direitos da mulher no que se referia a trabalho, saúde, direitos de propriedade, sociedade conjugal entre outros. (PINTO, 2003, p. 75).

O comparecimento em massa de militantes feministas para acompanhar os trabalhos da Assembleia Constituinte com estratégias de pressão e a persistência na apresentação de temas considerados de primordial importância para o conjunto da sociedade deram corpo, significado e relevância ao movimento feminista brasileiro da época, como uma notável expressão de participação popular verdadeira e consciente a orientar a definição das questões que iriam reger a vida cidadã desde então.

Nesse aspecto, a luta das mulheres, por meio da militância nos movimentos feministas, tem sido um mecanismo fundamental para que, na sociedade contemporânea, obtenham-se respostas afirmativas no sentido de que sejam corrigidas as iniquidades perpetradas não só em relação às mulheres, mas também ao conjunto das classes trabalhadoras, ao longo da construção da sociedade desigual em que vivemos. Os episódios da vida nacional marcados pelo arbítrio, mas enfrentados com a resistência e a coragem coletiva das mulheres feministas, têm demonstrado que conquistas se obtêm com luta e ação política. Do início do século XX até a promulgação da Constituição de 1988, teve-se a constatação efetiva de que o esforço político organizado dos movimentos sociais feministas foram partícipes das conquistas democráticas alcançadas. Abriram espaços para que as mulheres se afirmem no caminho do reconhecimento justo do que lhes é devido.

3 ALGUMAS CONCLUSÕES

As mulheres durante a vigência das sociedades que a experiência humana registrou têm sido, em nome da diferença biológica e dos papéis sociais que lhes delegaram, submetidas a convenções culturais estabelecidas ao alvitre do domínio patriarcal. Essa supremacia construída a partir da tecnificação dos meios produtivos, da criação de formas mais requintadas de vida social e da instituição de hierarquias de controle da vida coletiva e da propriedade, relegou às mulheres o espaço reservado do âmbito doméstico, numa condição subalterna. Desse modo, a desigualdade convencionada tem acarretado em aniquilamento dos potenciais de desenvolvimento das mulheres, as quais poderiam servir à emancipação pessoal e ao desenvolvimento da humanidade.

Atitudes de não conformismo têm sido a arma de combate de mulheres a ganhar força com a instauração de movimentos feministas. Na história das lutas políticas brasileiras o feminismo vai obter resultados com a conquista do voto para as mulheres na década de 1930 e no reconhecimento da cidadania das mulheres na época. Embora as restrições de expressão acompanhassem as etapas políticas do Estado ditatorial em que o país viveu, as mulheres se organizavam como fora demonstrado no período militar que, paradoxalmente, teve o desenvolvimento dos movimentos feministas com suas faces diversificadas a demonstrarem o seu poder reivindicatório e político.

A efetiva comprovação da importância dos movimentos feministas para a sociedade brasileira, no seu conjunto, ficou expressa durante o período de realização da Assembleia Nacional Constituinte de 1988, época da redemocratização do país e da implantação de novas diretrizes para a vida social dos brasileiros. Foi no exemplo de participação cidadã que as militantes integrantes dos movimentos feministas demonstraram maturidade política pela luta de inserção de direitos humanos e sociais específicos e ampliados na Constituição que se construía.

Muito existe a se fazer e conquistar ao ser constatado que se vive um período de recrudescimento de violências e de injustiças a atacarem direitos humanos e sociais. Ao menos se sabe que, contemporaneamente, a luta política, consciente, conjunta, articulada acima das divergências sectárias, é a possibilidade que se dispõe para depurar as instituições corrompidas e devolver às mulheres, e amplamente à sociedade, aquilo que é seu, por direito: vida digna, respeito e oportunidade de realização. Contudo, prevalece a necessidade da luta, pois se sabe que nada nos foi dado. Tudo o que se alcançou foi duramente conquistado.

Material suplementar
REFERÊNCIAS
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BEAUVOIR, S. O segundo sexo: fatos e mitos. 4. ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970.
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