Mesas temáticas coordenadas
Recepção: 15 Março 2018
Aprovação: 16 Maio 2018
Resumo: O presente artigo é um relato da pesquisa-ação, em curso, da Defensoria Pública do Estado da Bahia, cujo objeto consiste em problematizar o grau de proteção social ofertada às pessoas idosas, interditadas, sem referência familiar, vivendo em Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI’s), sem fins lucrativos de Salvador/BA. Para tanto, estão sendo realizadas visitas técnicas in loco, consubstanciadas por entrevistas semiestruturadas com os gestores/as e residentes das ILPI’s. A sistematização dos dados aponta para o predomínio da refilantropização do capital, da fragilização do controle e da participação social, ratifica o fenômeno social da feminização da velhice, bem como evidencia a existência de exposição dos residentes a situações de violações de direitos e de violências específicas perpetradas contra as pessoas idosas institucionalizadas.
Palavras-chave: Idosos(as), ILPI’s, curadoria, refilantropização.
Abstract: The present article is a report of the ongoing action research from the Public Defender of the State of Bahia, which object is to problematize the degree of social protection offered to elderly people, interdicted, without family reference, living in Long-Term Institutions for the Elderly (ILPI’s) , in the city of Salvador/ BA. For that, technical visits are being carried out in loco, supported by semi-structured interviews with the managers and residents of the ILPI’s. The systematization of data points to the predominance of capital refilanthropization, weakening of control and social participation, ratifying the social phenomenon of the feminization of old age, as well as evidence of the existence of exposure of residents to situations of violations of rights and specific violence perpetrated against the institutionalized elderly.
Keywords: Elderly people, ILPI’s, curatorship, refilanthropization.
1 INTRODUÇÃO
Historicamente, a proteção social no Brasil divide-se em duas vertentes, a saber: a contributiva e a pública. Consoante à contributiva esta é originária do trabalho formal, vinculada à legislação previdenciária a partir da Lei Eloy Chaves (BRASIL, 1923). Tal nuance foi endossada pela Consolidação da Leis do Trabalho (CLT) (BRASIL, 1943) desde o século XX até as primeiras décadas do século XXI (BRASIL, 1995). Todavia, na contemporaneidade, encontra-se ameaçada pelas Reformas Trabalhista e Previdenciária. No que se refere à vertente pública, esta se respalda na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH, 1948), contudo, no Brasil é decretada como dever do Estado mediante promulgação da Carta Magna de 1988.
Entendendo que a proteção social no país, implementou-se mediante a operacionalização do ciclo das políticas públicas, podemos inferir que esta não se limita apenas a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), pois “[...]seu campo de ação não se refere, propriamente, à provisão de condições de reprodução social para restauração da força viva de trabalho humano.” (SPOSATI, 2013, p. 653). Desse modo, a proteção social deveria ser implementada a partir da intersetorialidade nas políticas públicas. Contudo, no que se refere às pessoas idosas, em regra, são efetivadas pela PNAS citada, mediante adoção do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), por meio dos serviços de Proteção Social Básica e Proteção Social Especial de Média e Alta Complexidade, sendo que este último se refere especificamente ao acolhimento/abrigamento institucional.
Apesar de a institucionalização das pessoas idosas, no Brasil, estar prevista como medida excepcional, conforme a Lei nº 10.741 de 1º de outubro de 2003, popularmente conhecida como Estatuto do Idoso, diante da agudização da pauperização nesta faixa etária, dos conflitos geracionais, do declínio funcional, a referida excepcionalidade transformou-se num guarda-chuva de múltiplas pontas tendo como sustentáculo a refilantropização do capital. Assim, visando garantir a proteção social aos idosos e também aos velhos da classe trabalhadora, o Estatuto supracitado dispõe em seu art. 49º, a respeito dos princípios que deverão ser adotados pela gestão das Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI’s), tendo em vista que:
As entidades que desenvolvam programas de institucionalização de longa permanência adotarão os seguintes princípios: I – preservação dos vínculos familiares; II – atendimento personalizado e em pequenos grupos; III – manutenção do idoso na mesma instituição, salvo em caso de força maior; IV – participação do idoso nas atividades comunitárias, de caráter interno e externo; V – observância dos direitos e garantias dos idosos; VI – preservação da identidade do idoso e oferecimento de ambiente de respeito e dignidade. Parágrafo único. O dirigente de instituição prestadora de atendimento ao idoso responderá civil e criminalmente pelos atos que praticar em detrimento do idoso, sem prejuízo das sanções administrativas. (BRASIL, 2003).
A referida legislação infraconstitucional, instrumento de extrema importância no enfretamento a todas as formas de violência contra a pessoa idosa, enlaça-se em outras Legislações Sociais e Políticas Públicas, a exemplo da Lei Orgânica da Assistência Social (1993), da Política Nacional do Idoso (1994), do Código Civil (2002), da Resolução da Diretoria Colegiada (ANVISA), Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 283, de 26 de setembro de 2005, do Novo Código de Processo Civil (2015) e na política pública de acesso à justiça, representada aqui pela Lei Complementar Estadual 26/2006, para viabilizar a mantença dos Direitos Humanos da pessoa idosa institucionalizada.
No tocante ao viés acadêmico, poucas são as teóricas/autoras que estudam a proteção social da pessoa idosa na integralidade desta temática, a exemplo: Medeiros (2007)Teixeira, (2008) e Delgado e Villa Flor (2012), haja vista a exigência do olhar intersetorial para a heterogeneidade do envelhecimento. Contudo, não se deve perder de vista o viés estruturante do capitalismo que conduz a velhice da classe trabalhadora à indigência substancial, pois diante da ‘‘[...] impossibilidade de reprodução social e de uma vida cheia de sentido e valor, na ordem do capital, principalmente, quando perde o valor de uso para o capital, em função da expropriação dos meios de produção e do tempo de vida.” (TEXEIRA, 2008, p. 64).
Desse modo, a investida nesta temática decorre de múltiplos fatores construídos no cotidiano laboral e acadêmico desta pesquisadora, fundamentando-se tanto na necessidade de promover na sociedade uma reflexão a partir da práxis do Serviço Social numa Curadoria, quanto nas evidências documentais construídas que remontam à banalização desta medida de proteção social.
Outrossim, justifica-se nos primeiros resultados encontrados pela pesquisa – ação Curatelando, a exemplo do descumprimento das normas de funcionamento pelas ILPI’S s/fins lucrativos de Salvador, bem como na compreensão da atribuição precípua da Curadoria Especial de Incapazes da Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE/BA) no sentido de promover proteção sociojurídica às pessoas legalmente incapazes sem representante legal, independentemente de questões etárias. (BAHIA, 2006).
Nesse ínterim, faremos, a seguir, um passeio pela história da proteção social no Brasil, suas vertentes, alcances e limites no que se refere ao instituto interdição e a institucionalização das pessoas idosas no país, sendo enfatizado o Município de Salvador. Sequencialmente, apresentar-se-á a pesquisa-ação1 Curatelando, bem como o projeto de intervenção oriundo desta, intitulado: Socorrer: fortalecendo o controle social junto às Organizações da Sociedade Civil (OSC) cuja finalidade seja o acolhimento institucional de pessoas adultas e idosas, ambos em curso na Especializada de Curadoria Especial da DPE-BA. Versaremos, ainda, sobre o objeto de estudo e o trabalho desenvolvido pelo serviço social da Curadoria Especial, seus objetivos, metodologia, sistematização de dados e amostragem dos primeiros resultados.
À guisa de conclusão, este artigo descreverá o panorama encontrado até o presente momento, na realidade das pessoas idosas, sem referência familiar, interditadas e residindo em ILPI’S s/fins lucrativos de Salvador.
2 PROTEÇÃO SOCIAL PARA PESSOAS IDOSAS NO BRASIL: vertentes e alcances
No Brasil, a proteção social direcionada às pessoas velhas tem suas bases históricas assentadas em duas vertentes, a saber: o acesso ao trabalho durante o curso da vida (DEBERT, 1999), ou a filantropia modulada pela Igreja Católica, inclusive pós-institucionalização do serviço social na década de 1930. No tocante à proteção social contributiva atrelada ao trabalho formal, esta foi iniciada a partir do século XX com a promulgação da Lei Eloy Chaves2 em 1923, expandindo-se com a criação dos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAP’s), em 1937, (BERING; BOSCHETTI, 2011), sendo ratificada por meio da promulgação da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), (1943).
Durante a década de 1960, momento das primeiras reformas previdenciárias, o país contou com o pioneirismo do Serviço Social do Comércio (SESC) na implementação da proteção social contributiva para os/as trabalhadores/as velhos/as, haja vista que a referida entidade fomentou a construção de grupos de convivência e atividades ocupacionais para as pessoas idosas rompendo com o modelo de assistência social voltado apenas para o asilamento (destas). (CAMARANO; PASINATO, 2004).
A referida inciativa apregoou-se nacionalmente para idosos previdenciários, através do Programa de Assistência ao Idoso (PAI)3, criado em parceria com o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) (1996) (BRASIL, 1995).
Vale salientar que a população trabalhadora envelhecida, mesmo na condição de contribuinte, para alcançar a proteção social nos casos de incapacidade precisava/ainda precisa atender aos critérios previstos na Previdência Social, tanto no que se refere à carência para ingresso no Regime, quanto de tempo de contribuição, (neste,) pois numa sociedade que se alimenta da mais valia do/a trabalhador/a não são as condições biopsicossocioculturais da pessoa velha que importam.
A década de 1980 pode ser considerada como marcante para o envelhecimento no mundo e no Brasil, pois no ano de 1982 aconteceu em Viena/AUT a Assembleia Mundial do Envelhecimento, da qual se originou o Plano de Ação Mundial sobre o Envelhecimento (PAME), subscrito pelo Brasil. Ademais, promulgou-se a Carta Magna vigente, ou seja, a Constituição Federal (CF) de 1988, que prevê a universalização dos direitos e implementação da política de proteção social, conforme previsto dentre os art. 194º e art. 204º da referida legislação.
2.1 Proteção Social Pública: em destaque a institucionalização e a interdição civil das pessoas idosas
A Proteção Social Pública no Brasil, a despeito das bases cristãs, parametrizou-se na década de 1940, na promulgação da DUDH em 1948, sendo este o marco legal que influenciou as Constituições dos países na formalização dos direitos da cidadania, além de ser, em âmbito internacional, o mecanismo que reconhece e confere a toda e qualquer pessoa a qualidade de sujeito de direito e a prerrogativa de proteção social, conforme assegura em seu artigo XXV:
Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948, p. 13).
Declarado o direito à proteção social independente de contribuições pecuniárias, tal documento é um marco na reafirmação da necessidade da participação do Estado no que tange à efetivação dos direitos fundamentais, além de inspirar as diretrizes para a Constituição de cada país, o que no cenário nacional só passa a ser realidade em 1988; todavia, além da Constituição de 1988, que garantiu um benefício mensal para as pessoas idosas em situação de vulnerabilidade, promulgou-se, anos mais tarde, um rol de políticas infraconstitucionais que regulamentaram esta atenção à velhice, a exemplo da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), em 1993, a Política Nacional do Idoso (PNI), em 1994, o Estatuto do Idoso, em 2003, e a Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa (PNSI), em 2006.
Entretanto, diante das mudanças demográficas acerca do envelhecimento, na qual a feminização da velhice despontou no país, onde cada região apresenta sua especificidade frente à temática, abordaremos a Bahia como referente do munícipio de Salvador, consoante a institucionalização das pessoas idosas, como veremos no quadro 1 extraído do último censo nacional (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2011), a seguir:
Depreende-se do quadro supracitado, primeiramente, que aproximadamente 1% (um por cento) do referido segmento etário munícipe de Salvador encontra-se residindo em ILPI’s, sendo que tal segmento tem um sexo predominante, a saber: o feminino. Desse modo, precisamos adotar a política pública de gênero como integrante da proteção social pública, pois “em uma sociedade na qual a velhice e até mesmo a ‘meia-idade’ – seja lá o que isso for – são impiedosamente tratadas, principalmente quando se pensa nelas na sua versão feminina.” (SARDENBERG, 2002, p. 1). No viés da institucionalização, se não houver participação e controle social, consubstanciaremos as novas performances de violência contra a mulher idosa, como veremos no próximo ponto deste texto.
Considerada pela sociedade capitalista como um problema social, a velhice, principalmente a das mulheres, haja vista o rompimento com a natureza feminina forjada nas relações de produção e reprodução social está no imaginário social atrelada à perda de capacidades físicas e mentais enfatizando aqui a discordância veemente com a relação direta que se faz, de modo banal e leviano, entre pessoa idosa e ausência de lucidez – por este motivo as pessoas idosas institucionalizadas estão suscetíveis à expropriação de sua autonomia, já que, a velhice, ainda que não dita diretamente, também faz parte do rol de pessoas passíveis de interdição civil, conforme afirma o art. 1.767º do Código Civil de 2002, atualmente vigente:
Estão sujeitos à curatela: I - aqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para os atos da vida civil; II - aqueles que, por outra causa duradoura, não puderem exprimir a sua vontade; III - os deficientes mentais, os ébrios habituais e os viciados em tóxicos; IV - os excepcionais sem completo desenvolvimento mental; V - os pródigos (BRASIL, 2002).
Prevista como medida que tem por finalidade precípua a concessão de proteção social àquelas pessoas consideradas incapazes e, por ter, atualmente, uma expressividade significativa quanto ao número de solicitações no que se refere às pessoas idosas, faz-se necessário que haja uma reflexão sobre as condições em que estão vivendo estes sujeitos interditados, sobretudo aqueles sem referência familiar, residindo em Instituições de Longa Permanência para Idosos sem fins lucrativos.
Assim, diante das reflexões quanto à Proteção Social Pública alhures citadas, bem como da necessidade de diagnosticar a situação de pessoas idosas institucionalizadas que se encontram interditadas civilmente, foi desenvolvido, através da Curadoria Especial de Incapazes da Defensoria Pública do Estado da Bahia, a pesquisa-ação Curatelando, a ser detalhada em seguida
2.2 “Curatelando”: operacionalizando a proteção social pública pela via da educação em direitos
A Defensoria Pública do Estado da Bahia tem a função de prestar assistência e orientação sociojurídica a quem dela necessitar, construindo resoluções extrajudiciais, quando for o caso, frente às demandas apresentadas aos seus órgãos de execução, primando pela efetivação da Proteção Social Pública das pessoas assistidas pela política pública de acesso à justiça. (BAHIA, 2006).
No que concerne a tal premissa institucional, esta é desenvolvida sistematicamente, através de ações itinerantes em articulação junto à comunidade laborativa institucional, bem como a outros órgãos das diversas esferas dos poderes, a saber: executivo, legislativo e judiciário. Promovendo, assim, educação em direitos aos munícipes da respectiva região, respaldada na intersetorialidade e transversalidade das políticas públicas.
Ademais, compreendendo que a finalidade da Curadoria Especial de Incapazes é a realização do atendimento integral de pessoas incapazes, sem representante legal, que se encontrem em situação de vulnerabilidade (BAHIA, 2006), pode-se endossar a necessidade da realização de busca ativa das demandas, haja vista que, quando se refere a pessoas idosas interditadas e institucionalizadas em ILPI’S s/ fins lucrativos, estas não possuem autonomia, tão pouco, vida social fora dos muros das ILPI’S (BRASIL, 2016). Urge, portanto, a implementação de projetos, in loco, para realizar a finalidade precípua do referido órgão de execução.
Ressalta-se que os dados secundários extraídos tanto do manual de atuação funcional O Ministério Público na Fiscalização das Instituições de Longa Permanência para Idosos (BRASIL, 2016), quanto da pesquisa perfil das ILPI’S de Salvador (BAHIA, 2016), denotam a ampliação do número de ILPI’S, respectivamente no Brasil e na Bahia, em particular no município de Salvador.
Concernente a este último, ressalta-se que consta na lista da Diretoria de Vigilância em Saúde da Vigilância Sanitária do Município (VISA) o quantitativo total de 27 ILPI’s. Além de ratificar a informação supracitada, o questionário aplicado na fase de execução da pesquisa-ação Curatelando identificou a predominância de determinada natureza jurídica, a saber: s/fins lucrativos, conforme demonstra o gráfico a seguir:
Pôde-se perceber o expressivo número de instituições que se autodeclaram Sem fins lucrativos, pois das 27 (vinte e sete) unidades visitadas pelo serviço social da Curadoria, 20 (vinte) ILPI’s se autodeclaram como entidades sem fins lucrativos, seguidas por 7 (sete) unidades autodeclaradas privadas e apenas uma instutição pública. Todavia, antes de analisar teoricamente a natureza jurídica evidenciada dentre as ILPI’s durante a coleta de dados alhures citada, faz-se necessário conceituá-la a partir do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC), que denomina como instituição sem fins lucrativos aquela:
[...] que não distribua entre os seus sócios ou associados, conselheiros, diretores, empregados, doadores ou terceiros eventuais resultados, sobras, excedentes operacionais, brutos ou líquidos, dividendos, isenções de qualquer natureza, participações ou parcelas do seu patrimônio, auferidos mediante o exercício de suas atividades, e que os apliques integralmente na consecução do respectivo objeto social, de forma imediata ou por meio da constituição de fundo patrimonial ou fundo de reserva. (BRASIL, 2014).
Infere-se, primeiramente, uma verdadeira expressão da refilantropização do capital (YAZBECK,1995), posto que no município de Salvador, no ultimo Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010) foi identificado, vivendo em domicílios coletivos, um total de 1707 pessoas idosas entre 60 e 100 anos de idades, das quais 1144 são mulheres, ou seja, além da feminização da velhice explicitada, podemos inferir que pouco mais de 1% da população idosa do município depende do referido serviço de proteção social – a institucionalização, porém a única ILPI pública do município denominada como Abrigo Dom Pedro II, dispõe apenas de 64 vagas (que estão ocupadas); além disso, a estrutura do imovél – que é tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) encontra-se degradado, violando, assim, as normas de funcionamento previstas na RDC nº 283, de 26 de setembro de 2005.
Sabendo se do acirramento da pauperização da classe trabalhadora durante a velhice, bem como da existência do declínio das condições salutares dos (das) anciãos (ãs) que inviabilizam que muitos destes se mantenham no seio familiar – quando esta família existe ou quando não há fragilização dos vínculos – traduz-se num total desrespeito ao segmento etário, materializado na existência de apenas um equipamento público para este fim, e, principalmente, no descumprimento do papel do Estado frente à implementação das politicas públicas.
Desse modo, para minorar os impactos do Estado mínimo, o Executivo Munipal, através da Secrataria Municipal de Proteção Social de Combate à Pobreza, estabelece convênios com ILPI’s sem fins lucrativos, mediante Termo de Cooperação Técnica, estabelecendo assim, a garantia de um número ínfimo de vagas, mediante transferência de recursos para as referidas Organizações da Sociedade Civil (OSC’s). Ressalta-se que no tocante a Salvador existem 3 (três) unidades s/ fins lucrativos conveniadas ao município. (BRASIL, 2003).
Depreende-se, assim, o continuísmo de ações pragmáticas, assistencialistas e de curtíssimo alcance, no que se refere à proteção social pública destinada à população idosa do município. Vale ressaltar que o convênio entre a esfera pública e a esfera privada sem fins lucrativos, para ser efetivado dentro do princípio da legalidade, já que se trata de Instituição Asilar, ou seja, de abrigamento, e, enquanto tal, tipificada como serviço da proteção social de alta complexidade junto à Política Nacional de Assistência Social (PNAS), demanda a certificação destas enquanto Entidade Social concedida pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) (BRASIL, 2004), mediante inscrição da referida instituição no Conselho Municipal de Assistência Social do município.
Contudo, a pesquisa institucional em curso na DPE/BA apontou para outro dado importante, no que se refere ao perfil das ILPI’s de Salvador, que os gestores destas desconhecem, quando não deslegitimam a importância da participação e do controle social realizada pelo Conselho de Direto, haja vista que, frente ao total de 27 (vinte e sete) ILPI’s, apenas 9 (nove) são inscritas no Conselho Municipal de Assistência Social de Salvador (CMASS), conforme gráfico abaixo:
Depreende-se, portanto, que as instituições sem fins lucrativos têm funcionado à revelia da normatização, ratificando, assim, a necessidade de estreitamento de relações entre o poder público, as Organizações da Sociedade Civil Organizada (OSC’s) e as instâncias de controle e participação social.
Tal ausência de intersetorialidade na execução da referida política pública culmina na transformação destes espaços de residência coletiva, em espaços de violação de direitos, nos quais se observam inúmeras instâncias utilizadas para ceifar a autonomia das pessoas idosas, a exemplo da banalização do Instituto da Interdição e Curatela.
Ressalta-se, inclusive, que tal instituto jurídico tem sido utilizado como instrumento viabilizador da subsistência dos residentes sem renda e sem referência familiar, conforme descrito por Ana Bock, quando relaciona a interdição com a manutenção e subsistência da pessoa interditada e dos seus entes, pois, quase sempre, o interdito é o provedor do domicílio em que reside: “[...] uma população muito pobre e portadora de transtorno mental tem feito um percurso que tem, na interdição judicial, a condição para que receba o Benefício de Prestação Continuada previsto na LOAS.” (BOCK, 2005, p. 7).
Ponderação, com ar de denúncia, também é ressaltada por Medeiros (2007, p. 37):
Exemplificativo da [...] situação, foi a constatação do crescimento do número de interdições entre a população de baixíssima renda, tendo como fator indutor, o recebimento do Beneficio de Prestação Continuada – BPC. Embora a Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS, em nenhum momento faça menção a essa exigência, interpretação errônea de normas operacionais do INSS, por inúmeras Agências desse instituto espalhadas pelo país, fazia com que fosse exigida a certidão de curatela quando a incapacidade para a vida independente e para o trabalho (conforme expressa a LOAS em seu Art. nº 20, § 2º) era ocasionado por doença ou deficiência mental.
Assim, é possível fazer elucubrações sobre quem são as pessoas velhas interditadas e residentes em ILPIs, mas, antes, é preciso compreender que a interdição civil, para além de uma ação composta por um autor, é uma ação conjunta, na qual a família ou o Ministério Público e a Curadoria Especial, no caso de pessoas sem referência familiar, a medicina, a jurisprudência e os peritos sociais responsabilizam-se pelo destino (presente e futuro) que terá a pessoa idosa.
Por esse motivo, a próxima etapa da pesquisa-ação nas ILPI’S consistiu na construção do projeto Socorrer, objetivando proporcionar às pessoas idosas curateladas, bem como aos gestores das Instituições, acesso às informações no tocante à proteção social dos/as anciãos/as. Em seguida, iniciaram-se as visitas técnicas, previamente agendadas, nas ILPI’S, as quais realizaramse a partir do dia 02 de maio de 2017, com previsão para término o mês de janeiro de 2018.
Durante as visitas é explicado aos gestores sobre a importância da pesquisa para mapear as pessoas idosas curateladas e prestar-lhes a devida proteção social; é explanado, também, o papel da Curadoria Especial de Incapazes, sendo, em seguida, realizada uma entrevista semiestruturada, com duração média de uma hora. Após o encerramento da entrevista, realiza-se uma primeira aproximação com as pessoas velhas interditadas, a fim de verificar a condição cognitiva destas para expressarem o grau de satisfação com os serviços prestados pelo ambiente onde residem.
Até o presente momento, com a sistematização de dados construída a partir das entrevistas e visitas da referida pesquisa-ação, constatamos a seguinte realidade: as pessoas idosas interditadas/ institucionalizadas em ILPI s/fins lucrativos são mulheres acima de 70 anos de idade, negras, com renda mensal de um salário mínimo. Estas variáveis são reflexos do fenômeno denominado de feminização da velhice (BRITTO DA MOTTA, 2009), mas expressam a necessidade de pensarmos o quanto a ideologia dominante coisifica as mulheres que não estão na fase (re) produtiva, nem têm possibilidades econômicas de atender à chamada reprivatização da velhice (DEBERT, 2004), cultuada através da juvenilização das idades e das novas tecnologias de imagem corpórea.
Nas ILPI’s visitadas, foram observados diversos níveis da normativa legal que dispõe sobre os parâmetros de instalação e funcionamento de Instituições Longa Permanência para Idosos, a saber: a RDC nº 283/2005. Ademais, presenciaram-se diversas roupagens de violações de direitos das pessoas idosas, ora perpetradas com naturalidade, a exemplo de quando as cuidadoras obrigam-nas a comer ou beber algo que não desejam, ora com negligência e maus-tratos, nas expressões de violência física perpetradas, geralmente, contra as mulheres.
Apesar de a visita técnica não possuir, em hipótese alguma, caráter fiscalizador, em uma das Instituições, a estada na unidade foi mais densa, pois, ao encontrarmos uma idosa com o lado esquerdo do corpo queimado – fato que havia ocorrido na madrugada da noite anterior (SIC) – se fez necessário a intervenção desta pesquisadora, priorizando-se, indubitavelmente, pela adoção das medidas cabíveis, a saber: requerer o devido atendimento de saúde, além da realização da notificação compulsória aos respectivos órgãos competentes para apurarem a possível ação de negligência, considerada, portanto, violência contra a pessoa idosa.
3 À GUISA DE CONCLUSÃO
Conclui-se, com a operacionalização da pesquisa-ação até o momento, que a despeito da existência da Política Nacional de Assistência Social, com equipamentos da proteção especial de alta complexidade (BRASIL, 2009), destinados ao abrigamento de pessoas idosas sem referencia familiar, estes estão sucateados, pois, além da ausência de estrutura adequada, de conhecimento técnico e teórico por parte dos Recursos Humanos, previstos na RDC nº 283/2005, as ILPI’S visitadas recebem pouca ou nenhuma intervenção do Estado de forma intersetorial (BRASIL, 2005).
Outrossim, relevante é perceber a ausência do controle social que deveria ser implementado pelos Conselhos de Direito, tanto da pessoa idosa quanto da Assistência Social, reportando as demandas à Vigilância Sanitária e ao Ministério Público, órgãos responsáveis pela fiscalização da efetividade das políticas públicas; todavia, o estigma da institucionalização, respaldado na segregação social, persiste.
Diante do exposto, bem como dos resultados já citados no corpo deste texto, faz-se necessária a solidificação desta pesquisa-ação como pratica institucional da Especializada de Curadoria Especial de Incapazes da DPE-BA, pois as ILPI’s s/fins lucrativos devem receber assessoria jurídica pública, assim como as pessoas idosas devem acessar a proteção social pública, preconizada na legislação social. Sendo possível, assim, atender estas demandas imediatas através da equipe multidisciplinar do referido órgão, além de suscitar modificações nas intervenções estatais através de ações civis públicas.
REFERÊNCIAS
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BAHIA. Perfil das ILPI’S de Salvador. Salvador, 2016. Pesquisa apresentada na Defensoria Pública do Estado.Disponível em:http://web2.defensoria.ba.def.br/portal/index. php?site=1&modulo=eva_conteudo&co_cod=15492. Acesso em: 30 maio 2017.
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BERING, E. R.; BOSCHETTI, I. E no Brasil? In: ______. Política Social: fundamentos e história. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2011. cap.2, pag. 71-81. (Biblioteca Básica de Serviço Social, v. 2).
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Notas