Resumo: O objetivo deste trabalho é o de analisar sob a égide das transformações atuais do capital, a lógica do genocídio de negros e negras. Tal análise está embasada em Karl Marx(2011; 2013), Robert Kurz(1992), Mészaros(2005) que partem da análise do fetichismo da mercadoria para apreender as contradições da sociedade burguesa e, com isso, possibilita conhecer as pilastras socioeconômicas onde o racismo se assenta. O capitalismo aqui é analisado sob a chave da barbárie (MENEGAT, 2006) cujas crises levam à formação de uma grande massa sobrante e tentativas de controle social e o acirramento do genocídio, através da necropolítica, uma nova forma social de existência para controlar e eliminar uma massa sem função para o capital (MBEMBE, 2011).
Palavras-chave:RacismoRacismo, capitalismo capitalismo, barbárie barbárie, necropolítica necropolítica, genocídio de negros e negras genocídio de negros e negras.
Abstract: This paper aims to analyze black´s genocide logic due to capital actual transformations. This study is based on Karl Marx (2011; 2013), Robert Kurz (1992),Mészaros (2005) analysis of merchandise´s fetishism, in order to understand bourgeois society contradictions and socioeconomic basement where racism is set. Barbarism is the key to analyse contemporary capitalism(MENEGAT, 2006), whose crisis produced from one side a big excessed population mass and from the other side social control attempts and the raise of genocide, trough necropolitics , a solution to control and eliminate physically this mass who have not function for capital reproduction(MBEMBE, 2011).
Keywords: Racism, capitalism, barbarism, necropolitics, black´s genocide.
Mesas temáticas coordenadas
RACISMO E NECROPOLÍTICA: a lógica do genocídio de negros e negras no Brasil contemporâneo1
Recepção: 15 Março 2018
Aprovação: 16 Maio 2018
A ideia de que o sistema capitalista levaria à integração de negros e negras não se efetivou, ao contrário, na atualidade, com o capital em crise, o racismo se revela cada vez mais adequado às novas formas de produção, atuando nas práticas de controle nas relações sociais capitalistas.
Nos Estados Unidos da América, o assassinato de negros e negras pela polícia continua. Afora o fato de que milhares vêm sendo encarcerados no complexo industrial-carcerário norte-americano. Nesse país, considerado modelo de desenvolvimento e prosperidade, a população negra, cuja porcentagem total chega aos 12%, corresponde a 75% dos presos. Com o novo presidente Donald Trump, nenhum horizonte de paz está delineado; ao contrário, muros e ataques a religiosos e a imigrantes conformam um novo apartheid, mantendo caminho para o separatismo, para a continuidade da militarização e das guerras.
Na Europa, de acordo com dados da Organização das Nações Unidas de 2015, cerca de 750 mil imigrantes e refugiados aportaram na Europa pelo Mediterrâneo; no referido ano, desses, 3,4 mil morreram ou estão desaparecidos. Aqueles que sobrevivem são dirigidos para os chamados alojamentos, mais semelhantes às prisões, do que a qualquer outro espaço de acolhimento de refugiados de catástrofes produzidas justamente pela expansão do ocidente por outros continentes. Lá esses imigrantes passam anos e anos até que a União Europeia faça uma investigação sobre suas vidas e os mandem de volta. Na contramão dos acordos internacionais, a guerra contra o terrorismo se converte em mais genocídio de negros e negras, além de outras populações não brancas. O racismo continua a crescer em todo o mundo, assim como o sexismo, a intolerância religiosa, a xenofobia, a homo e a transfobia.
Negros representam 545 da população brasileira, entendendo aqui a soma dos pretos e pardos. Entretanto, o grau das desigualdades raciais no Brasil é assustador em vários indicadores sociais. Todas as políticas públicas afirmativas não têm alterado de fato o assombroso quadro da condição social do negro no país que, historicamente, vem sofrendo com os efeitos do capitalismo e que nesse tempo de crise foi piorando. 2
Acontece que o capitalismo, enquanto sistema mundial produtor de mercadorias, deixou vários povos destruídos, entre eles, africanos historicamente discriminados, inferiorizados, tratados como coisa, mercadoria e são aqueles mais viáveis politicamente para o capital impor seu controle e eliminação no processo de reprodução do capital.
O processo de integração de negras e negros registrado ao longo do desenvolvimento do capitalismo foi possível enquanto eles eram indispensáveis para seu desenvolvimento e mundialização. Contudo, à medida que a força de trabalho foi se tornando obsoleta, negros e negras tornaram-se prescindíveis, passando a compor o maior número nas estatísticas de desemprego, não mais conjuntural, mas estrutural do capitalismo; sem falar do genocídio. Dessa forma, questiona-se: de que maneira essa realidade se inscreve no contexto do capitalismo contemporâneo, ou seja, qual o lugar do negro hoje?
Na configuração hodierna do capitalismo, o capital fictício atua numa incessante concorrência criada pelo capital entre a força de trabalho na busca por emprego. Porém, como este se encontra cada vez mais escasso, ela elimina quantidades cada vez maiores de trabalho vivo, aumentando o peso do trabalho morto na composição orgânica do capital, e a produção de valor vai ficando insuficiente para valorizar o capital acumulado. Dessa maneira, a estrutura da força de trabalho muda a nível mundial, e a chamada massa sobrante apresenta-se em expansão.
Nesse novo contexto do capital foram desenhadas novas estratégias de defesa dessa relação social e de suas instituições como a gestão da barbárie, uma prioridade das estratégias de controle dessa força de trabalho sobrante que, no entanto, está em colapso.
Assim, o objetivo deste trabalho é o de analisar sob a égide das transformações atuais do capital, a questão racial na contemporaneidade, como mais uma forma de agravamento do genocídio de negros e negras numa sociedade desintegrada. A intenção é contribuir com uma crítica materialista do racismo, uma vez que o racismo está conectado com as relações de produção alienadas e fetichizadas, embora não seja necessariamente seu reflexo. No entanto como diz o martinicano Franz Fanon no livro Em defesa da Revolução (1983) a desalienação do negro supõe uma tomada de consciência das realidades econômicas e sociais de onde se está inserido.
O Capitalismo é uma forma específica de vida social originada na Europa ocidental que se realiza por meio da barbárie. É um sistema mundial que teve origem na Inglaterra entre os séculos XV-XVI. Enquanto sistema funciona num processo onde o todo e as partes estão articuladas para repetidas tentativas de reprodução de capital, isto é, um conjunto de processos para produzir bens materiais indispensáveis para a existência humana.
O capitalismo visa à produção de um excedente de trabalho que transformando mercadorias de várias naturezas, tem como finalidade a transformação de capital em mais capital com fins de acumulação. O capital é valor. Para Marx (2011), valor tem sentido econômico e significa a quantidade de trabalho humano abstrato socialmente necessário medido em tempo e dinheiro. Ou seja, é a medida que a sociedade burguesa utiliza para medir o valor das mercadorias produzidas com o trabalho humano.
De acordo com Marx (2011), no capitalismo, a produção de valor ocorre quando passa a haver a compra e venda da mercadoria força de trabalho, identificada como a única mercadoria capaz de criar mais valor. Tal produção não surgiu na sociedade capitalista, havia produção de valor em outras formações sociais, porém, somente na sociedade burguesa ela alcança seu apogeu, tornando-se o núcleo da produção capitalista.
No escravismo antigo e no feudalismo a produção de valor existia de forma embrionária, porém foi através do comércio relativamente amplo, que a tornou viável e o dinheiro foi seu ponto de partida. O capital nasce do dinheiro, produto final da circulação das mercadorias. O dinheiro é a primeira forma em que aparece o capital, é o seu ponto de partida. Porém, o dinheiro já é capital, mas somente capital comercial circulante, ainda não é o fundamento da produção e está condicionado apenas por essa circulação simples orientada exclusivamente para o consumo. (MARX, 2012).
No entanto, é na circulação mais desenvolvida aquela que tem como ponto de partida a produção de mercadoria pelo trabalho que cria valores de troca, mas dessa vez de modo tal que a produção pressupõe a circulação como momento desenvolvido e aparece como processo contínuo que põe a circulação e dela retorna continuamente a si mesmo, para pô-la novamente.
Assim, a circulação deu lugar a uma produção que colocou valores de troca como seu conteúdo exclusivo. Foi o aumento da produção que levou a divisão do trabalho na Inglaterra no início do século XVI e com isso o modo de produção foi modificado, de feudalismo para capitalismo, dissolvendo todas as antigas relações econômicas e sociais a ele correspondentes. (MARX, 2012).
O capitalismo existe para produção de valor; ele precisa fazer isso permanentemente, senão se autodestrói. O valor é produzido com os capitalistas em competição, disputando entre si a apropriação do lucro, porém para que essa apropriação seja maior do que seu concorrente, ele precisa diminuir a quantidade de força de trabalho utilizada na produção das mercadorias e ele faz isso utilizando tecnologias cada vez mais avançadas.
Se considerarmos o capital social global, ora o movimento de sua acumulação provoca uma variação periódica, ora seus elementos se distribuem simultaneamente entre as diferentes esferas da produção. Em algumas dessas esferas ocorre, e decorrência da mera concentração, uma variação na composição orgânica do capital sem aumentar sua grandeza absoluta; em outras, o crescimento absoluto do capital está vinculado ao decréscimo absoluto de seu componente variável ou da força de trabalho por ele absorvida; em outras, ora o capital continua a crescer sobre sua base técnica dada e atrai força de trabalho suplementar em proporção ao seu próprio crescimento, ora ocorre uma mudança orgânica e seu componente variável se contrai; em todas as esferas, o crescimento da parte variável do capital e, portanto, do número de trabalhadores ocupados, vincula-se sempre a violentas flutuações e à produção transitória de superpopulação, quer esta adote agora a forma mais notória de repulsão dos trabalhadores já ocupados anteriormente, quer a forma menos evidente, mas não menos eficaz, de um absorção mais dificultosa da população trabalhadora suplementar mediante os canais habituais. Juntamente com a grandeza do capital social já em funcionamento e com o grau de seu crescimento, com a ampliação da escala de produção e da massa dos trabalhadores postos em movimento, com o desenvolvimento da força produtiva de seu trabalho, com o fluxo mais amplo e mais pleno de todos os mananciais da riqueza, amplia-se também a escala em que uma maior repulsão desses mesmos trabalhadores, aumenta a velocidade das mudanças na composição orgânica do capital e me sua forma técnica, e dilata-se o âmbito das esferas da produção que são atingidas por essas mudanças, ora simultânea, ora alternadamente. Assim, com a acumulação do capital produzida por ela mesma, a população trabalhadora produz, em volume crescente, os meios que a tornam relativamente supranumerária [supérflua]. (MARX, 2013,p. 705-706, grifo nosso).
Assim, após essa longa passagem, é possível observar que, contraditoriamente, no mesmo processo de produção de valor com o emprego maior de recursos mecanizados, o capital também precisa eliminar a fonte da produção de valor, que é o trabalho humano produzindo uma população excedente ou exército industrial de reserva, como produto necessário da acumulação capitalista e da produção de riqueza nesse sistema.
Tal conceito explica que há uma massa humana que o capital utiliza como força de trabalho segundo suas necessidades; um núcleo ele utiliza permanentemente, são os trabalhadores qualificados que funcionam o tempo inteiro mesmo quando a economia não está em crescimento; há, ainda, uma parte que o capital incorpora nos momentos de crescimento econômico, e uma parte chamada de lazarentos, que o capital não incorpora nunca. É uma massa que sobra, pequena no tempo histórico em que o capital funcionava razoavelmente bem.
Acontece que quando há o aumento da produtividade, a capacidade do capitalismo absorver trabalho produtor de valor se reduz, e a força de trabalho disponível torna-se cada vez mais desnecessária, causando o desemprego, subempregos, sujeitos supérfluos, massa sobrante crescente, reconfigurando o exército industrial de reserva que vai mudar sua composição interna o capital vai precisar de um pequeno núcleo de trabalhadores muito qualificados, em alguns momentos emprega um número maior e o que sobra é um grande número de massas humanas. O resultado desse processo será a crise e o colapso do sistema.
Para o alemão Robert Kurz (1992), no livro O colapso da modernização, essa crise já começou com a derrocada dos países socialistas, assim como os países do terceiro mundo que passaram por processo de desindustrialização e endividamento para se modernizar. Esse débâcle representa o início da crise do próprio sistema capitalista. Porém, ainda segundo Kurz (1992), as relações com o mercado mundial dinamizariam a crise, e essa latente crise interna se agravaria dramaticamente pela pressão externa do mercado mundial.
O monopólio estatal do comércio exterior não muda absolutamente nada no fato de que a mercadoria do “socialismo real”, ao chegar ao mercado mundial, tem de sujeitar-se às leis deste, independentemente de suas leis próprias (diferentes das primeiras e invertidas). O mercado mundial, em primeiro lugar uma metaesfera da produção de mercadorias das economias nacionais, impões progressivamente em um contexto global a lei da produtividade, descrita por Marx. Vem a se constituir como um padrão mundial “do trabalho socialmente necessário na média” que obviamente não se orienta pelas economias nacionais mais atrasadas, mas sim pelas mais avançadas. Assim surge a possibilidade de que, para um número crescente de mercadorias, difira na economia interna e no nível do mercado mundial o “trabalho socialmente necessário na média”, mas sem que se estabeleça no contexto global uma média ideal; o que se impõe por toda parte é o padrão da produtividade mais alta. (KURZ, 1992, p. 123).
Enquanto o capitalismo funcionava razoavelmente bem no século XIX início do XX, o atraso na produtividade não se refletia na reprodução interna como dinâmica da crise e o sistema ainda poderia incorporar permanentemente força de trabalho na produção, aumentando, assim, a produção e a acumulação de capital. Foi ao longo da Terceira Revolução Tecnocientífica que o movimento contraditório do capital alcança nível qualitativamente novo e demonstra seu limite interno. O capital não precisa mais de braços humanos para produção de valor, transformando esses braços humanos em uma grande massa sobrante, isto é, em uma massa humana sem qualquer perspectiva histórica de o capital vir a incorporá-la, mesmo se ressentindo da produção de lucro.
Se no pós-guerra o capitalismo ainda pôde atender a algumas reivindicações dos trabalhadores como forma de garantir o funcionamento do mercado, essa fase do capitalismo demonstra seus limites estruturais, obstacularizadas desde a década de 60. (MÉSZAROS,2005). Dessa forma, fica explícito o colapso desse projeto de sociedade que não é capaz de solucionar os problemas da desigualdade, das opressões que continuam a reger essa sociedade porque são seus fundamentos. Para Mézsaros (2005), a crise é estrutural global de esgotamento do sistema, mas também de uma série de elementos vitais para a sua manutenção como a natureza, o trabalho social e as instituições sociais do capitalismo de controle social, inerentemente violentas e agressivas, construídas para prescrever a guerra.
Para Menegat (2006), não há mais como o capitalismo existir senão através da crise. O capitalismo é a crise. Esta é o limite dessa forma social histórica que só vai continuar existindo por aquilo que produz de destrutivo, de barbárie, isto é, de esgotamento civilizatório.
[...] houve mudanças na manifestação da ‘regressão à barbárie’ que podem ser observadas no desenvolvimento histórico mais recente do capital permitindo-nos falar numa tendência permanente à barbárie – não mais momentânea -, com traços conceituais mais nítidos do que nos períodos precedentes. Esses traços podem ser entendidos a partir do contexto no qual se dá hoje a valorização do capital, que tem dividido todos os países do mundo em nichos de incluídos e legiões de excluídos, trazendo as formas de uma regressão que vai das manifestações da cultura de nossa época até o debate da política, em que o irracionalismo volta a irromper com uma desenvoltura não imaginada nas primeiras décadas do pós II Guerra Mundial. (MENEGAT, 2006, p. 27).
Como é possível observar, no atual estágio do capitalismo a barbárie se apresenta não somente como algo momentâneo para destruir forças produtivas, mas como uma ameaça permanente do capital para o conjunto da sociedade. Ela é o próprio modo de ser do capitalismo. Este só se reproduz através da barbárie.
[...] no capitalismo da atualidade da barbárie, marcado pelas ruínas das derrotas das revoluções, a exclusão de milhões de seres humanos dessa esfera do mundo social cria formas de sociabilidade em decomposição, como o desemprego estrutural e a criminalidade, por exemplo, que, definitivamente, não podem ser vistos como uma anomia. Por essa razão, esses fenômenos que desvelam a própria verdade dessa sociedade – a de ser uma estrutura social amparada por um aparato de exclusão por meio da violência – devem ser levados em consideração na análise e criação do novo poder espiritual. Igualmente, velhas formas de opressão, como a discriminação racial e os privilégios de gênero – que, embora sua origem transcenda essa sociedade devem ser superadas para que de fato se possa presenciar uma nova fundação da vida social -, ressurgem nesses tempos com força inaudita. (MENEGAT, 2006, p. 41).
Desse modo, o desemprego estrutural e a criminalidade são sintomas da crise, assim como o genocídio de negros e negras que ressurge nesse contexto de regressão social onde a exclusão é registrada através da violência. Este é instrumento do Estado para o controle e eliminação física das massas sobrantes. É nesse sentido, que a lógica do capital se expressa na questão racial; o genocídio é uma solução para controlar e eliminar uma massa sem função. Desde a década de 70 o genocídio está cada vez mais em curso, e este processo genocida já foi visto no mundo inteiro.
De acordo com o antropólogo da Universidade do Texas nos EUA, João Vargas (2010, p. 4) o genocídio de negros e negras é a característica fundante da diáspora africana, “[...] constitui o sustentáculo, a base de onde as variadas manifestações de negritude que definem a diáspora são construídas”.
Para argumentar essa interessante tese, o autor analisa algumas manifestações contemporâneas de genocídio negro no Brasil e nos EUA que incluem altos índices de encarceramento, brutalidade policial, mortalidade infantil elevada, tratamento médico deficiente, ausência de uma educação que dê oportunidades econômicas, a violência diária nos centros das cidades e a depressão crônica, mostrando que o genocídio vai além das políticas oficiais sistemáticas; envolve ações mais perceptíveis e igualmente eficazes representações compartilhadas dos negros que os desumanizam e justificam sua marginalização maciça e morte prematura. (VARGAS, 2010). Assim, falar em genocídio para o autor seria falar de
[...] uma constelação de fenômenos que variam desde as formas diárias de discriminação particularizada à marginalização estrutural (segregação residencial, desemprego, acesso barrado ao crédito), à morte historicamente persistente daqueles julgados menos do que o ser humano, as políticas globais conectadas ao Estado e ao conhecimento cultural (RINANTO, 2001 apud VARGAS, 2010, p. 50)
Como visto, o capitalismo é violência, é genocídio e envolve variados fenômenos antinegros nos níveis estrutural, sociocultural, simbólico e físico. O Capitalismo é genocida. E o que isto significa? Que essas massas sobrantes não têm lugar nem função na sociedade burguesa, e que elas precisam ser eliminadas. Esta é expressão da crise estrutural do capitalismo na questão racial e isso não tem como ser controlado, e tende a crescer cada vez mais, pois
[...] nós precisamos primeiramente destruir nossas arquiteturas institucionais e culturais atuais. Se o genocídio antinegro está no cerne da autocompreensão de nossa sociedade, se está no cerne do significado de nossos padrões éticos e, certamente , é a fundação dos sistemas políticos modernos nas Américas, especialmente aqueles com um passado nas economias escravistas, dependentes da exploração e da desumanização máximas de trabalhadores africanos, então são as próprias relações de poder e os instrumentos cognitivos que sustentam nossos sistemas políticos que precisam ser desconstruídos. Enquanto o genocídio antinegros está no centro das fundações da nossa sociedade, este também está no núcleo de nossa cognição – nós damos sentido e buscamos a boa sociedade, muitas vezes inintencionalmente, de acordo com as frequentes e silenciosas expectativas de que negros não são inteiramente seres humanos e consequentemente não são dignos da completa inclusão nesta sociedade. Nós somente superaremos isso quando e se nossa sociedade, nossas coletividades e nossas subjetividades forem radicalmente nos livrando das premissas que exigem, perpetuam e também nos dessensibilizam quanto às manifestações do genocídio antinegros. Tal transformação radical é revolução. (VARGAS, 2010, p. 60).
Portanto, se o genocídio antinegro está no cerne da sociedade capitalista, por que negros e negras devem acreditar numa suposta integração nessa sociedade? Como exposto acima, o genocídio está no cerne das nossas estruturas sociais, dos nossos padrões éticos e dos sistemas políticos, e são negros e negras que são considerados bandidos, vagabundos, marginais, fábrica de marginais, assassinos, traficantes, etc. como aponta Shakur (1973, p. 2)
A expectativa de vida Negra é muito menor do que a branca e eles fazem seu melhor para nos matar antes mesmo de nós termos nascido. Nós somos queimados vivos em armadilhas de fogo. Nossos irmãos e irmãs em overdose de heroína e metadona diariamente. Nossos bebês morrem de envenenamento por chumbo. Milhões de pessoas Negras morreram como resultado de assistência médica indecente. Isso é assassinato. Mas eles têm a ousadia de nos chamar de assassinos.
A autora está falando dos EUA, que mesmo na década de 70, após o final da segregação racial, negros e negras eram os que mais tinham expectativa de vida baixa, morriam por violência policial, por drogas, por falta de assistência médica, ou seja, sofriam do genocídio sistemático naquele país, por parte do estado e suas leis e instituições.
Não obstante, indicadores que incluem emprego, saúde e educação mostram que a questão social de negras e negros nesse país são os piores nos últimos 25 anos. Importante colocar que nos EUA acreditou-se que com mais capitalismo a minoria negra seria socialmente integrada; mas não se deu dessa forma, posto que o racismo segue forte, o que pode ser visto em pesquisa sobre a situação do negro nesse país, nos altos índices de encarceramentos em massa de negros, chegando a cerca de 2 milhões de presos em nome da chamada guerra contra as drogas, o que tem sido surpreendente.
De acordo com a jurista norte-americana Michelle Alexander (2017, p. 110, grifo nosso), no seu livro A nova segregação: racismo e encarceramento em massa, a chamada guerra às drogas é a causa mais importante para explosão das taxas de encarceramento nos EUA, “[...] há mais pessoas nas prisões hoje apenas por crimes de drogas do que havia pessoas encarceradas por todos os motivos em 1980. Nada contribuiu mais para o encarceramento em massa sistemático das pessoas não brancas nos EUA do que a Guerra às Drogas”.
Esse país tem a maior taxa de encarceramento em massa, do mundo, superando aqueles altamente repressivos como a Rússia, a China e o Irã. “Na Alemanha, 93 pessoas estão presas por cada 100.000 adultos e crianças. Nos Estados Unidos, a taxa é de aproximadamente oito vezes, ou 750 por 100.000.” (ALEXANDER, 2010, p. 9).
Afora os diferentes casos de morte, sendo os últimos casos emblemáticos os de Trayvon Martin em 2013; Gray em Baltimore; Trayvon Martin na Flórida e Michael Brown em Ferguson, Missouri apenas alguns exemplos3.
Mas a violência se estende ao Brasil, onde a carne feminina negra também é que vai de graça para os presídios, e as negras são as maiores vítimas de estupro. Segundo o Infopen, a população prisional brasileira no Sistema Penitenciário, duas em cada três presas, são negras. Em 2014 eram 579.781 pessoas, levando em consideração as prisões estaduais e federais. Desse total, 37.380 são mulheres; o Brasil está em quinto lugar na lista dos 20 países com maior população prisional feminina do mundo, em 2014, atrás dos Estados Unidos (205.400 detentas), da China (103.766) Rússia (53.304) e Tailândia (44.751). 50% das mulheres têm de 18 a 29 anos. (BRASIL, 2016).
No Brasil uma mulher é estuprada a cada 11 minutos e, segundo dados do IPEA de 2013, 51% das vítimas de violência sexual são mulheres negras. Sem falar o número dos chamados estupros coletivos.
De acordo com Ângela Davis (2016), no livro Mulheres Raça e Classe, a chamada cultura do estupro4 de hoje, vem desde o período da escravidão na base da licença para violar as mulheres negras; durante a escravatura estava o poder econômico dos escravagistas, por isso a classe estruturada pela sociedade capitalista também abriga um incentivo para violar. Ângela Davis (2016) mostra, portanto, como desde o período da escravidão somos nós mulheres negras as mais acometidas pela exploração econômica, o machismo e o sexismo. A autora está criticando a ideia de mulher como categoria universal do movimento feminista branco/europeu ao mostrar que a realidade da mulher negra era diferente da mulher branca, e que as primeiras não estavam restritas às funções domésticas do mesmo modo que as mulheres brancas.
Nesse sentido, vê-se que ainda hoje é preciso discutir de qual mulher estamos falando e de qual feminismo também, posto que também as mulheres negras são aquelas que mais sofremos com a desigualdade social, as mais atendidas pelos programas de transferência de renda, como bolsa família no Brasil, somos a parcela mais pobre da população brasileira, também somos 42%, como diarista recebendo R$ 5,34 pela hora trabalhada, e a não negra ganha R$ 6,94, além de a maioria atuar no trabalho terceirizado no Brasil, recebendo salários inferiores aos brancos que exercem as mesmas funções. (NÓS MULHERES DA PERIFERIA, 2015). Essa é a realidade vivida pelas mulheres negras na sociedade capitalista, no mercado de trabalho, na educação, na política, nos níveis de violência, etc.; uma realidade que por muito tempo vem sendo silenciada por parte das feministas ocidentais numa tentativa superficial e racista de homogeneizar as mulheres. Tais relações sociais de sexo e raça “[...] não estão simplesmente associadas, mas sim consubstanciadas como estruturas da sociedade patriarcal-racista-capitalista.” (CISNE, 2014, p. 252).
Somos cerca de 30% da população brasileira; pensar Mulher negra na lógica do capital não é dividir as mulheres, mas deixar de hierarquizar e universalizar as mulheres, como fez o feminismo branco ocidental e pensar a pauta da mulher negra atrelada com a pauta do anticapitalismo e do antimachismo, assim como da anti-homofobia e a antitransfobia.
Como se tentou demonstrar até aqui, a violência está no cerne das nossas estruturas sociais, dos nossos padrões éticos e dos sistemas políticos modernos nas Américas. E permanece com novas funções, pois não se trata mais dessas massas servirem como muleta para o capital, mas de estarem estruturalmente (na lógica interna do capital) e historicamente (conjunturalmente) excluídas do mundo do trabalho. Isto significa dizer que, devido ao atual estágio de desenvolvimento do capitalismo em nível mundial, elas não estão incorporadas na produção de valor,
Assim, essa grande massa sobrante é considerada fora-da-lei, e está fora do Direito, ao mesmo tempo que está incluída nele quando é morta ou presa, muitas vezes, impunemente. Tal quadro de mortes, prisões, criminalização se constitui paradigma da necropolítica, uma vez que proporciona uma distribuição racional da morte através de aparatos em torno da figura do inimigo social e que garante a impunidade daqueles que gerem estas práticas em nome da defesa da sociedade. (MBEMBE, 2011).
Achille Mbmebe é um pensador pós-colonial, historiador e cientista político, nascido em Camarões. Foi secretário-executivo do Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais na África (CODESRIA) e diretor de investigação do Witwatersrand Institute of Social and Economic Research, em Johannesburg no ano de 2011. Algumas de suas obras são: o livro De la poscolonie: essai sur l’imagination politique dans l’Afrique contemporaine (1999); Sortir de la grand nuit – essai sur l’Áfrique décolonisée (2010), Crítica da razão negra (2013), seu livro mais famoso, além de artigos e entrevistas, a exemplo do artigo Necropolitcs, texto seminal onde o autor apresenta os argumentos para elaboração desse conceito.
Necroplítica foi publicado pela primeira vez em 2003 na revista americana Public Culture, com o título original Necropolitcs; depois, na revista francesa Raisons politiques: estudes de pensée politique em 2006; também foi republicado na coletânea Foucault in an Age of Terror: Essays on Biopolitics and the Defende of Society, em 2008 e em 2011 pela editora Mesulina, junto com outro artigo também de sua autoria Do governo privado indireto, cujo objetivo é apresentar a lógica das formas de dominação na África pós-colonização.
Trata-se de um termo muito complexo utilizado pelo autor para pensar a lógica da política de guerra e terror ao inimigo, colocada no mundo pelos EUA, depois do ataque às Torres Gêmeas, na cidade de Nova York, em 11 de setembro do ano de 2011.
O termo “necropolítica”, o usei, pela primeira vez, em um artigo que foi publicado na Cultura Publica, em 2003, uma publicação estadunidense. Havia escrito o artigo imediatamente após o 9/11, enquanto os Estados Unidos e seus aliados desencadearam a guerra contra o terror que logo resultaria em forma renovadas de ocupação militar de terras distantes e em sua maioria não-ocidentais, assim como o que eu chamaria de a “planetarização” da contra-insurgência, uma técnica que foi aperfeiçoada durante as guerras de resistência anticoloniais, sobretudo no Vietnam e Argélia. Antes do 9/11 vários acadêmicos e pensadores buscavam novos vocabulários e tentavam aproveitar novos recursos críticos com o objetivo de dar contas do que deveríamos chamar “as depredações da globalização neoliberal”. Eu diria que isto começou muito antes do 9/11 e que tomou muito impulso em seu despertar. Então, “as depredações da globalização neoliberal”, as formas de violência que implica, inclusive, a privatização da esfera pública, o fortalecimento do estado, e mais além sua reestruturação econômica e política pelo capital global. (MBEMBE, 2012, p. 132 tradução nossa).
Dessa maneira, o termo necropolítica tem a ver com regimes de distribuição (desigual) da morte e as funções assassinas ou de morte do Estado. Refere-se, pois, a um tipo de política entendida como o trabalho de morte na produção de um mundo em que se termina com o limite da morte. É a presença da morte que define esse mundo da violência “[...] A presença da morte é precisamente o que define esse mundo de violência, um mundo de violência em que o soberano é aquele que é como se não fosse a morte.” (MBEMBE, 2011, p. 137).
Para desenvolver sua argumentação, o autor irá se basear em intelectuais como Giorgio Agamben e seu conceito de estado de exceção, Michel Foucault e sua biopolítica, bem como resgatar o debate sobre soberania e multidão de Antonio Negri, entre outros, para dialogar com um discurso norte-americano de defesa da guerra e da militarização por parte dos EUA. Porém, o mesmo autor assume que a genealogia da palavra é bem mais profunda e está relacionada com a colonização.
Aí reside a importância das argumentações de Mbembe (2011), ao discutir a necropolítica, que busca pensar três questões fundamentais, a saber: contextos em que o estado de exceção se torna normal, ou ao menos não é mais a exceção; para tratar aquelas figuras de soberania cujo projeto central é a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material dos corpos e populações humanas subjugados como descartáveis ou supérfluos e também para tratar das figuras de soberania nas quais o poder, o governo se referem ou apelam de maneira continua à emergência e à noção ficcionalizada ou fantasmática do inimigo. (MBEMBE, 2012).
De acordo com Mbembe (2011), apoiado nos estudos de Foucault, houve uma passagem da biopolítica, isto é, da gestão da vida e da morte pelo poder que regulamenta os sujeitos através de dispositivos que visam um conjunto de processos como a proporção dos nascimentos e dos óbitos, a taxa de reprodução, fecundidade da população; para a regulamentação não mais da vida, mas da morte, por essa razão, necropolítica. As consequências disso é o extremismo “Las tecnologias de destruicíon son ahora más tactils, más anotómicas y sensoriales, en um contexto en el que se decide entre la vida y la muerte.” (MBEMBE, 2011, p. 63).
Dessa maneira, a passagem da biopolítica para a necropolítica acarreta consequências trágicas; as técnicas de exercício de autoridade policial e de disciplina e a eleição entre obediência e hipocrisia são substituídas por alternativas mais trágicas. (MBEMEBE, 2011).
Além das prisões e das mortes, o proibicionismo também vem sendo utilizado como dispositivo de necropolítica, uma vez que tem servido para justificar a violência a determinados grupos étnico-raciais como a juventude negra e periférica, principal vitima da atual política sobre drogas. (RIBEIRO JÚNIOR, 2016). Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2017) revelaram que um em cada quatro presos foi condenado por roubo ou tráfico de drogas. Em números absolutos, o Brasil possui cerca de 200 mil pessoas atrás das grades devido à repressão; esta realidade é maior nas prisões femininas, conformando que quase metade das mulheres encarceradas é por algum motivo relacionado ao tráfico de drogas e à política de repressão.
Dessa forma, o genocídio (incluindo também a militarização das favelas), é ativado como um novo patamar de administrar a massa sobrante na crise da sociedade do trabalho abstrato. Nesse processo de desmoronamento do capitalismo essa massa vai sendo cada vez mais empurrada para fora do Estado de Direito. Tudo isso faz parte do extermínio pelo extermínio, não tendo qualquer outra finalidade, num processo de ‘exclusão inclusiva’ “[...] cuja estrutura se polariza na definição de uma ‘vida indigna de viver’, por um lado, e na projeção fantasmática de um principio de ‘raça alienígena’ que tem de se exterminar, por outro.” (KURZ, 2003, p. 362 apud SHOLZ, 2014, p. 19).
A violência passou a ser endêmica com um acentuado aumento do número de mortes e encarcerados, militarização com índices de uma guerra. Ao que tudo indica continuaremos prisioneiros da barbárie.
O capitalismo chegou num momento em que a Terceira Revolução Técnico-cientifica o fez poupar aquilo que é seu fundamento, o trabalho vivo; isso ocorreu de tal modo que o capital já não encontra mais condições de manter essa lógica. Por essa razão, desde a década de 70/80 o capital entrou em crise, numa crise, não de superprodução, mas uma crise estrutural que demonstra o limite dessa forma social histórica que continua a existir através da barbárie.
Barbárie diz respeito ao esgotamento civilizatório do sistema capitalista cuja proposta estava pautada na universalização do trabalho livre. O trabalho como elemento de criação da riqueza e que, como vimos, vem sendo deslocado, sendo substituído em larga escala por procedimentos cada vez mais automatizados. Isso leva a grandes implicações sociais e políticas em função desses processos contraditórios do próprio sistema capitalista, os mesmos mecanismos utilizados para a reprodução do capital favorecem a formação de uma massa sobrante, levando a uma regressão social, a um capitalismo de barbárie, destrutivo que se volta contra a forma fetichista, mas também ao aumento do genocídio de negros e negras.
Nesse sentido, o que resta é a opressão, o genocídio, o encarceramento em massa, a militarização, etc. que ressurgem com novas funcionalidades, ou seja, uma sociedade em ruínas. Ao desenvolver este trabalho, levou-se em consideração alguns países da diáspora africana, e o grande contingente de negras e negras desses países que compõem o grande número da massa sobrante, foco das políticas genocidas de uma sociedade colapsada. A partir dessa discussão, percebe-se a importância de (re) colocar esse debate de raça e gênero em relevo numa perspectiva do feminismo negro anticapitalista, como fez Ângela Davis (2016), sem hierarquizar as lutas, ou como dito por outra feminista negra norteamericana, Audre Lorde Não existe hierarquia de opressão.
O genocídio contra negros e negras passou por uma transformação histórica e que hoje se constitui outra face do racismo; e já não é mais para incluí-los marginalmente no mundo do trabalho, mas controlar e eliminá-los completamente da sociedade burguesa branca e heteropatriarcal.