Resumo: A análise das desigualdades sistêmicas não só entre mulheres e homens, mas entre as próprias mulheres, tem possibilitado importantes questionamentos sobre o processo de organização feminina em contextos bem diferenciados daqueles que marcaram as produções ocidentais. Em África as mobilizações pela emancipação feminina tiveram lugar nos movimentos de independência; frente às imposições colonialistas as mulheres buscaram lutar pelas organizações autônomas e os sistemas de autogoverno que controlavam. Essa ativa participação resultou na criação de ligas feministas dentro dos movimentos de libertação, cujo objetivo era genderizar as lutas e chamar a atenção para as relações sociais e de poder ali existentes. Nesse sentido, o presente texto toma como foco de abordagem o processo de luta e as formas de organização femininas nos países africanos de fala oficial portuguesa, especialmente, Guiné Bissau, Moçambique e Cabo Verde, a fim de analisar as estratégias de empoderamento e emancipação por elas instituídas.
Palavras-chave:OrganizaçõesOrganizações, Mulheres Mulheres, África África.
Abstract: The analysis of systemic inequalities between women and men, but among women themselves, has made possible important questions about the process of women's organization in different contexts. In Africa the mobilizations for the feminine emancipation emerged in the independence movements, the colonial impositions demanded that women fight for the autonomous organizations and the systems of self-government. This active participation resulted in the creation of feminist leagues within the liberation movements and called attention to the power relations. In this sense, the present text focuses on the process of struggle and the forms of women's organization in countries of portuguese colonization, especially, Guinea Bissau, Mozambique and Cape Verde
Keywords: Organization, women, Africa.
Mesas temáticas coordenadas
LUTAS E FORMAS DE ORGANIZAÇÃO FEMININA EM ÁFRICA: considerações sobre Guiné-Bissau, Moçambique e Cabo Verde
Recepção: 15 Março 2018
Aprovação: 16 Maio 2018
Nos países, onde pouquíssimas mulheres, e mesmo poucos homens, haviam experimentado a Declaração dos Direitos Humanos, sentiu-se a necessidade de chamar a atenção para realidades de lutas vividas em contextos diferentes daqueles experimentados no ocidente. Nos anos de 1980, teóricas dos chamados países em desenvolvimento, assim como as mulheres negras e indígenas, imigrantes no Ocidente, começaram a impulsionar questionamentos dentro do movimento feminista. Os pontos levantados para o debate diziam respeito às políticas da diferença, não apenas entre as mulheres e homens, mas entre as mulheres de diferentes raças/etnias, religiões, classe social, origem, orientação sexual e geração.
Naquela conjuntura o movimento de mulheres passou a ganhar força em vários países africanos. Já nos anos de 1990, é possível observar o crescimento de trabalhos cujos principais temas versavam sobre colonialismo, masculinidades, casamentos e relações de parentesco, associação de mulheres e lutas nacionalistas, reconfiguração dos papéis de gênero, dentre outros. É, sobretudo no contexto de luta pela independência política, de constituição da identidade nacional e modernização social, que os movimentos pela emancipação feminina emergem. De acordo com Isabel Casimiro (2004, p. 49), os debates em torno do feminismo e do movimento de mulheres em África estão situados a partir de quatro frentes:
a) do movimento endógeno de mulheres que teria caracterizado grande parte das sociedades africanas;
b) da resistência anti-colonial;
c) como produto direto do movimento de libertação nacional, que criou espaços para as mulheres transformarem as posições anteriormente defendidas sobre a mulher na sociedade, nos seus papéis de mãe, esposa e filha subserviente e obediente;
d) e como resultado do grupo de mulheres profissionais e educadas nas universidades, tanto em África, como no estrangeiro, mulheres independentes do ponto de vista econômico e que gradualmente foram adquirindo visibilidade pela sua participação em organizações de diversos tipos.
Essas frentes de mobilização representavam uma mistura de correntes feministas endógenas, liberal, radical, socialista, marxista e do feminismo negro da diáspora, todas propondo lutar pela emancipação feminina em suas sociedades. Em relação às organizações endógenas, Amadiune (1997, p. 109) acrescenta que de uma forma geral os movimentos sociais em África precisam ser pensados sob um novo prisma.
A perspectiva dominante tem visto o poder em termos individuais, onde grupos sociais buscam a cidadania efetiva a partir do sistema estatal, mesmo que o objetivo de alguns movimentos, em termos ideológicos, seja mudar ideologicamente o estado. [...] Em relação as comunidades africanas, que nunca quiseram fazer parte de um sistema estatal, há um outro movimento – ainda pouco analisado. Este envolve outro conceito de poder – os movimentos anti-poder que simplesmente procuram defender e manter a sua autonomia.
Para a autora, os movimentos de mulheres africanas precisam ser analisados a partir de outra concepção de poder, na medida em que tradicionalmente elas possuíam organizações autônomas e sistemas de autogoverno, que necessariamente não dependiam do Estado para que se efetivassem ou mesmo organizassem a vida na comunidade. A luta das mulheres girava em torno da preservação destas instituições. No entanto, a imposição do regime colonial e a atividade missionária, paulatinamente, foram modificando as estruturas familiares existentes, reduzindo a autonomia e a mobilidade dos grupos domésticos. Assim, o centro da atividade política, ligado às trocas entre os grupos e a comunidade, foi transferido para os distritos ou Estados.
A partir de então, impuseram-se novos sistemas e as mulheres acabaram por ser as mais afetadas, uma vez que as autoridades coloniais reconheciam apenas os homens como líderes. Em algumas regiões desapareceram os conselhos e as organizações locais que no período pré-colonial tinham a representação feminina como essencial para proteger os seus interesses. Amadiune (1997) destaca a matricentralidade como um importante sistema social, político e econômico existente nas sociedades africanas, em que as mulheres controlavam as atividades agrícolas, religiosas e comerciais. Este sistema, segundo a autora, não era igual ao patriarcado, mas ambos conviviam compartilhando e cooperando no mesmo espaço social.
A base fundamental do matriarcado era o agregado familiar e não a família, o que fez com que as mulheres detivessem uma proeminência nas estruturas sociais africanas, tais como as organizações ligadas às atividades comerciais. Daí o fato de ter existido uma luta permanente para manter o controle dos mercados, a espinha dorsal da economia africana. Catherine Acholonu (1995) assinala que nas sociedades tradicionais as mulheres não viviam em desvantagem com relação aos homens. Tais visões seriam resultantes das dinâmicas coloniais e provindas da ideologia cristã e do islã. Acholonu (1995) propõe o conceito de motherism para se pensar o lugar ocupado pelas mulheres em África, e também como alternativa ao feminismo ocidental. Motherism congrega as noções de maternidade, natureza e sustento. (LEWIS, 2001).
No entanto, algumas outras autoras como Rosaldo (1974), chamam atenção de que é preciso melhor problematizar a constituição das sociedades matrilineares. Uma vez que embora essas mulheres conseguissem obter, em alguns contextos, uma importância significativa, o domínio público continuava sendo um espaço político dos homens, detentores do poder. Dessa forma, a participação política continuava restrita ao nível da família e do grupo doméstico. (CASIMIRO, 2004). As múltiplas visões e percepções quanto ao lugar ocupado pelas mulheres nas sociedades africanas, e mesmo as diversas formas de autoafirmação, são ilustrativas da complexidade dos movimentos políticos instituídos em vários destes países; da mesma forma, as frentes de luta e questões centrais levadas a cabo têm suscitado intensos debates.
Desiree Lewis (2001) chama atenção que desde o início do processo de organização política, entre os anos de 1980 e 1990, teóricas africanas importantes como Pumla Gqola e Amina Mana, já levantavam questionamentos centrais ao movimento organizativo, como por exemplo, o que é ser uma feminista africana e quais as formas específicas de identificação em África e na diáspora. Estas autoras também trouxeram à tona reflexões quanto a outras denominações que frequentemente são acionadas, tais como womanism1, feminismo negro e feminismo pós-colonial. Isso em muito se deve aos primeiros discursos produzidos pelas feministas ocidentais que caracterizavam as mulheres africanas como vítimas da opressão masculina, submissas e sem voz. É a partir deste momento que intelectuais africanas começaram a falar da sua própria realidade. E, sobretudo, propor formas outras de organização e mobilização. Na perspectiva de algumas delas, por exemplo, é possível combinar maternidade e carreira, autonomia e apoio mútuo entre homens e mulheres.
Em meio ao processo de ampliação das abordagens que tratam das experiências percebidas no continente africano, muitas teóricas têm reforçado a necessidade de trabalhar as conexões entre gênero, imperialismo e raça, como forma de alargar as abordagens que a priori foram instituídas pelas feministas ocidentais. De certa forma, tais análises dialogam com as questões propostas pelo feminismo pós-colonial (quanto aos efeitos do colonialismo), pelo feminismo negro norte-americano (inclusão de raça e classe) ou mesmo o womanism. No entanto, persistiam as denúncias quanto a ausência, no seio destes movimentos, de debates que tratassem das problemáticas por elas vivenciadas. Chikwenye Ogunyemi, escritora nigeriana, de uma forma geral concorda com o womanism, mas traz à tona algumas questões não incorporadas por Walker e que precisam ser pensadas ao se tratar das sociedades africanas, como por exemplo, a diversidade cultural lá existe e as leis tradicionais2.
De fato, tais formas diversas de percepção e análise têm gerado uma certa resistência quanto ao ser feminista em África, e muitas vezes isso se refere às particulares que são inerentes às relações estabelecidas entre os homens e as mulheres, ou entre as próprias mulheres, em contextos múltiplos e diversos. Cabe ressaltar que mesmo o feminismo constituído no ocidental é marcado por essa diversidade de foco e abordagens.
Um aspecto que é comum, de facto, é a posição antifeminista de muitas escritoras africanas, embora, como já referimos, elas próprias revelam algumas incertezas quanto à atitude a tomar face ao termo feminismo. Mas esta reação conjunta antifeminista, por sua vez, deriva de um entendimento estereotipado do que é o feminismo ocidental, o qual, na verdade, também é heterogêneo. No entanto, ele é habitualmente equiparado, de modo abusivo, ao feminismo radical e às suas posições extremadas (ódio aos homens, rejeição do casamento e da maternidade, com preferência pelo amor lésbico), num empenhamento que apenas visa inverter as relações de poder relativas ao gênero. O feminismo, assim encarado, é obviamente algo que é estranho aos impulsos sociais de África. Além disso, é rejeitado por manter-se alheado das tradições e preocupações especificamente africanas (BAMISILE, 2013, p. 264).
Um aspecto que é comum, de facto, é a posição antifeminista de muitas escritoras africanas, embora, como já referimos, elas próprias revelam algumas incertezas quanto à atitude a tomar face ao termo feminismo. Mas esta reação conjunta antifeminista, por sua vez, deriva de um entendimento estereotipado do que é o feminismo ocidental, o qual, na verdade, também é heterogêneo. No entanto, ele é habitualmente equiparado, de modo abusivo, ao feminismo radical e às suas posições extremadas (ódio aos homens, rejeição do casamento e da maternidade, com preferência pelo amor lésbico), num empenhamento que apenas visa inverter as relações de poder relativas ao gênero. O feminismo, assim encarado, é obviamente algo que é estranho aos impulsos sociais de África. Além disso, é rejeitado por manter-se alheado das tradições e preocupações especificamente africanas (BAMISILE, 2013, p. 264).
Não obstante, nos últimos anos, teóricas como Chimamanda Adchie (2015), têm procurado levantar a bandeira do feminismo em África, com a evocação sejamos todas feministas, mas sem perder de vista essas especificidades. Vale ressaltar ainda que a identificação, ou não, como feminista, não exclui a necessidade de mobilização e lutas por direitos. Dessa forma, têm surgido organizações que buscam impulsar não apenas a produção intelectual, como também as cooperações entre as mulheres de diferentes países, como por exemplo, o African Gender Institute3 que desde 1999 tem atuado no desenvolvimento de projetos voltados para a resolução de conflitos e construção da paz, acesso a terra e formas de subsistência, saúde, diretos sexuais e reprodutivos, violência de gênero e tecnologias eletrônicas. Outra importante iniciativa se refere ao African Feminist Forum4, que foi fundado em 2008, por mulheres que se autodeclaram feministas, com o objetivo de criar uma plataforma regional que possa agregar iniciativas de ativistas e possibilitar a troca de sinergias feministas entre vários países.
Frente ao contexto acima exposto, importa ressaltar que a despeito das especificidades, a ativa participação das mulheres resultou na criação de ligas e organizações femininas no interior dos movimentos de libertação em vários países, cujo objetivo era genderizar as lutas e chamar a atenção para as relações sociais e de poder estabelecidas entre homens e mulheres. Este processo iniciado por volta dos anos de 1970, apesar de ter sido marcado por algumas contradições, tem contribuído de forma significativa para muitas das conquistas observadas nos dias atuais. Vejamos então como se deu o processo de organização feminina e as lutas instituídas pelas mulheres nos países de colonização portuguesa em África, particularmente, em Guiné Bissau, Moçambique e Cabo Verde.
De acordo com Patrícia Gomes (2015), no contexto pós-independência os problemas que as mulheres africanas enfrentavam como condicionantes para a sua emancipação eram, substancial e formalmente, diferentes daqueles que as mulheres do mundo ocidental haviam experimentado. Nesse sentido, foi significativo o debate, a partir dos anos de 1980, sobre temas voltados para as questões de gênero, sobretudo, no sentido de questionar a aplicabilidade e a eficácia de alguns conceitos universalmente utilizados no mundo acadêmico, mas fundamentalmente de matriz ocidental, para explicar as realidades históricas e socioculturais de África.
No contexto da independência em Guiné-Bissau, a contribuição das mulheres foi importante e permitiu alcançar objetivos em termos da organização de novas instituições. A participação efetiva no movimento de libertação também possibilitou, de forma positiva, a mudança das mentalidades sociais, sobretudo nos meios rurais, em que existia uma maior resistência quanto à presença feminina nos lugares de decisão. De acordo com a autora, as lutas de libertação trouxeram mudanças importantes, especialmente no âmbito educacional: centenas de crianças, independentemente do sexo, foram escolarizadas. Nesse processo, as mulheres se destacaram tendo participado ativamente nos diversos programas implementados, como professoras e formadoras, apesar do seu papel ter se limitado aos âmbitos considerados tipicamente femininos como educação, saúde, transporte e preparação de alimentos.
No âmbito da luta armada instituída pelo Partido Africano para independência Guiné e Cabo Verde (PAIGC), as milícias constituíram um importante mecanismo de emancipação e de ascensão social. Muitas mulheres foram formadas e exerceram funções nas Forças Armadas Locais (FAL) e passaram a cumprir missões de guerra, onde é possível citar nomes importantes, tais como Carmem Pereira, Teodora Inácia Gomes e Paula Fortes. No ano de 1964, foi criada a União Democrática das Mulheres da Guiné e Cabo Verde (UDEMU), um dos principais braços do PAIGC no âmbito da luta pela emancipação política.
Gomes (2015) acrescenta ainda que no contexto pós-independência5, precisamente no II Congresso do PAIGC, foram discutidos temas relativos à participação política das mulheres no novo Estado (a formação política e ideológica, a transformação das relações sociais, o discurso, a prática e os obstáculos do processo de emancipação), quanto à família (as leis, os costumes e as tradições, a união de fato, o casamento tradicional, a escolaridade, as problemáticas do sistema de educação) ao desenvolvimento e ao papel das mulheres nas diferentes realidades sociais (importância na agricultura e na produção alimentar, a divisão social do trabalho nas diferentes realidades étnicas, as contradições do sistema produtivo, em relação às mulheres, a produção artesanal), e à saúde (o seu papel como educadora na comunidade, os programas estatais no domínio dos cuidados primários de saúde, o casamento precoce e a circuncisão, a mortalidade materno-infantil e o planejamento familiar).
Todavia, apesar da intensa participação no contexto anterior e posterior à independência, as mulheres foram relegadas a uma posição de subordinação e fragilidade, sobretudo na esfera política e nos postos de decisão. Nas palavras de Maria Domingues (2010), apesar do envolvimento das mulheres guineenses nas lutas de libertação nacional, a situação de marginalização continuou após a independência. Os ideais de igualdade propagados pelo PAIGC não modificaram a realidade vivida pelas mulheres, especialmente, aquelas das áreas rurais. A autora destaca ainda como as concepções ocidentais, instituídas durante a colonização, também contribuíram para a degradação da condição feminina.
A concepção colonial da família africana enquanto espaço de partilha, altruísmo, reciprocidade e redistribuição, pressupondo que os seus membros se beneficiavam igualmente dos recursos e rendimentos, ignorando as hierarquias de gênero e de idade, afectaram os direitos à terra, o trabalho agrícola e doméstico, posse dos cereais e obrigações em providenciar alimentação e rendimentos. Ao assumirem que os chefes são por definição um homem, as políticas intervencionistas coloniais, tendo como alvo a família (onde se subsumia a mulher), através do seu chefe masculino constituíram um outro factor importante da deterioração do estatuto e condições de vida das mulheres na Guiné-Bissau. (DOMINGUES, 2010, p. 174).
Um debate importante que permeou o processo de mobilização feminina, não apenas na Guiné Bissau, como também em Moçambique e Cabo Verde, se refere às denúncias das heranças nefastas do colonialismo, que perduraram mesmo após a independência. Ao analisar o contexto moçambicano, Signe Arnfred (2015) analisa como a modernização econômica e as mudanças religiosas acabaram por modificar elementos constituintes destas sociedades que passaram por um processo de reconfiguração frente aos ideais colonialistas, como por exemplo, a noção de coletividade que passou a dar lugar ao individualismo, bem como a noção de agregado familiar paulatinamente substituído pela família nuclear. Tais concepções, conforme já apresentado anteriormente, afetavam diretamente os espaços de representatividade feminina.
Não obstante, se tornou perceptível uma acentuada descontinuidade em relação aos objetivos da luta armada, principalmente nos campos da educação e da saúde. Apesar de o governo guineense ter assinado em 1985, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAWO), o contexto atual marcado pela instabilidade política vivenciada no país, não tem possibilitado mudanças significativas, o que por outro lado, tem exigido um reforço do movimento organizativo outrora instituído. Em 2008, foi criada a Plataforma Política das Mulheres de Guiné-Bissau, que agrega todas as associações femininas existentes no país, e tem como objetivo estimular a inclusão das mulheres nos espaços políticos.
Além disso, o Gabinete Integrado das Nações Unidas para Consolidação da Paz na Guiné-Bissau (UNIOGBIS)6, através da seção voltada para os Assuntos Políticos, Gênero e Informação Pública, tem procurado capacitar as guineenses quanto à participação efetiva na tomada de decisão e inserção na esfera política. Dentre as principais recomendações é possível citar a concessão de linhas de crédito exclusivas para as mulheres, criação de observatórios das organizações femininas, fóruns e redes associativas. Sem dúvida, a garantia e o acesso efetivo a algum tipo de remuneração econômica constituem o prelúdio para o processo de emancipação feminina, especialmente numa realidade em que as mulheres continuam excluídas do mercado de trabalho.
Em Moçambique, este processo de organização também surgiu como desdobramento da luta pela independência. A Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) deteve papel importante ao considerar a autonomia feminina como um fator fundamental para a emancipação do país, em 1975. Ao analisar os discursos de Samora Machel, Jacimara Santana (2009) demonstra como na visão do então presidente do partido, a emancipação feminina só seria possível mediante a participação das mulheres na revolução.
Segundo Machel, para uns, a prioridade naquele momento deveria ser a destruição das estruturas do colonialismo, sendo a emancipação das mulheres uma tarefa secundária e algo que deveria ser tratado após a independência e quando o país pudesse contar com uma base econômica, social e educacional sólida. Na visão de outros, investir na emancipação das mulheres exigia um sistema educacional estruturado, pois isso implicava não somente em alfabetizá-las, mas conscientizá-las das novas concepções relativas à identidade da mulher revolucionária, uma vez que a maioria ainda se encontrava muito “apegada à tradição”. (SANTANA, 2009, p. 81).
Além de se contraporem às imposições colonialistas, as mulheres moçambicanas também exerceram papel estratégico na propaganda anticolonial, inclusive pegaram em armas, assim como na Guiné Bissau. Este foi o caso de Josina Machel, que se filiou a FRELIMO em 1965. Ela chegou a ocupar cargos de importância, como a chefia do Departamento de Relações Exteriores e Assuntos Sociais, além de ter procurado expor as dificuldades vivenciadas pelas mulheres na revolução. Além de Josina, a autora assinala que outras mulheres tiveram ativa participação na luta armada; prova disso foi a criação do primeiro Destacamento Feminino, em 1966, composto por mulheres camponesas que intencionavam lutar pelas suas famílias.
Isabel Casimiro (2015) acrescenta ainda que a emergência das associações de mulheres está diretamente ligada a vários aspectos que compõem a história do país nas últimas décadas. Algumas organizações surgiram dos projetos de desenvolvimento instituídos pelo estado e outras de iniciativas de grupos específicos que buscavam formas mais concretas de sobrevivência. Sem dúvida, os anos de 1980 foram cruciais para a emergência de entidades, com ou sem fins lucrativos, em diversas áreas, tais como:
[...] o Desenvolvimento da Família (AMODEFA), 1989; de Mulheres Empresarias e Executivas (ACTIVA), 1990; para o Desenvolvimento Rural (AMRU), 1991; das Donas de Casa (ADOCA), 1992; mas também para a defesa dos direitos humanos da mulher (MULEIDE), a primeira organização sobre direitos humanos a surgir, em Moçambique, 1991. No geral, são organizações que se criam em torno de áreas ligadas à mulher, no âmbito da divisão sexual e social do trabalho, da construção da identidade feminina, das relações sociais, e de poder existentes. Estão neste grupo as organizações ligadas à saúde materno-infantil e planeamento familiar, à defesa e protecção da criança, à educação, às donas de casa, ao desenvolvimento rural e comunitário, para a defesa dos direitos humanos das mulheres, e por diferentes categorias sócio-profissionais (empresarias e executivas, professoras, profissionais das carreiras jurídicas, funcionárias públicas), organizações ligadas à questão da terra – associações e cooperativas de camponeses – e ambiente. (CASIMIRO, 2015, p. 52).
Casimiro (2015) destaca a criação, em 1993, do Fórum Mulher – Coordenação para Mulher no Desenvolvimento, uma rede de 80 associações, sindicatos, organizações comunitárias de base, instituições do governo, e internacionais, com sede em Maputo. O Fórum Mulher foi constituído com o objetivo de lutar pela liberdade e igualdade da mulher, a partir de parcerias com associações nacionais e internacionais, agências das Nações Unidas, bem como organizações governamentais, religiosas, de camponeses, de operários, de empresários, cooperativas, sindicatos, e ligas femininas de partidos políticos.
Dentre os principais desafios e ações que foram elaborados pelo Plano Estratégico (2009-2013), é possível destacar: o combate à violência baseada no gênero; a economia de gênero para o empoderamento econômico das mulheres; a luta pelos direitos sexuais e reprodutivos, e educação não sexista; a melhoria da participação política das mulheres em todos os níveis; e o reforço da capacidade institucional do fórum e seus membros. (CASIMIRO, 2015). De uma forma geral, e em relação aos países aqui analisados, Moçambique tem se destacado no que se refere à garantia dos direitos das mulheres. Todavia, ainda não existe uma real paridade entre homens e mulheres no tocante à participação política. (OSÓRIO; MACUÁCUA, 2015).
Em Cabo Verde, país que possui uma trajetória emancipatória atrelada ao contexto guineense, as mulheres têm conseguido ao longo dos anos vivenciar uma realidade política bem mais expressiva. É possível localizar desde o regime colonial, importantes iniciativas femininas como forma de se contrapor ao colonialismo, como por exemplo, a Revolta de Ribeirão Manuel, ocorrida em 1910, na região de Assomada, interior da Ilha de Santiago. Este movimento foi levado a cabo por mulheres insatisfeitas com as imposições do governo português, sobretudo por não terem o direito de recolher os frutos da pulgueira, por elas produzidos. Ana Veiga ficou conhecida por assumir lugar de importância no movimento, e por trazer à tona o que posteriormente foi reconhecido como consciência nacional independentista.
No que se refere à participação feminina na luta armada, Angela Coutinho (2011) cita nomes como Maria da Luz Boal, mais conhecida como Lilica Boal, que foi diretora da Escola Piloto em Conakry, e Dulce Almada Duarte. A autora também relata a participação da engenheira agrônoma portuguesa Maria Helena de Ataíde Vilhena Rodrigues. A partir da análise dos inúmeros processos da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), Coutinho (2011) ressalta que muitas mulheres cabo-verdianas são citadas nos documentos, embora nem sempre seja possível identificar o envolvimento direto nas atividades do PAIGC. Na maioria dos casos são mães, esposas ou namoradas, que passaram a ter as suas vidas perseguidas e controladas pelo envolvimento com os prisioneiros políticos7.
Não obstante, a participação nas fileiras do partido, o processo de organização feminina no país, de acordo com Carla Carvalho (2015), data dos anos de 1974, contexto de luta política, em que foi criada a Comissão Nacional Organizadora das Mulheres de Cabo Verde (CNOMCV), conhecida desde 1981, como a Organização das Mulheres de Cabo Verde (OMCV). Esta comissão contribuiu de forma significativa para a ampliação das políticas públicas emancipatórias, particularmente, aquelas ligadas à educação, saúde reprodutiva e promoção de leis legitimadoras dos direitos das mulheres.
Em 1994 foi criado o Instituto da Condição Feminina (ICF), com o objetivo de zelar pela criação de condições e mecanismos institucionais que assegurassem os direitos das mulheres. A partir de 2006, o ICF transformou-se no Instituto Cabo-verdiano para a Igualdade e Equidade do Gênero (ICIEG), que segundo a autora, passou a apresentar uma abordagem mais específica quanto à relação entre homens e mulheres, visando a promoção da igualdade e equidade a partir da inserção da problemática de gênero na elaboração de políticas públicas.
[...] várias outras organizações da sociedade civil surgiram, entre as décadas de 1990 e 2000, buscando promover a igualdade entre homens e mulheres, através da promoção de oportunidades iguais de acesso a bens e serviços (saúde, emprego, escolarização, etc.); impulsionar a igualdade nas instâncias de poder, contribuindo para a eliminação da discriminação e violência contra as mulheres, em particular, e fomentar uma cultura de igualdade nas várias esferas da vida. (CARVALHO, 2015, p. 143).
Marzia Grassi (2003) acrescenta que desde a independência, em especial a partir dos anos 1990, o país vem adotando, como estratégia de desenvolvimento, a inserção de forma dinâmica na economia mundial, com o intuito de proporcionar emprego e renda a uma grande parcela da população empobrecida. Na primeira fase de implementação do Plano Nacional de Luta contra a Pobreza, de 1999, ficou definido que o combate a pobreza no grupo de mulheres seria uma das principais medidas políticas a serem seguidas, particularmente, entre aquelas chefes de família, através da integração nos círculos econômicos; alfabetização e formação profissional; reforço da educação e da saúde, notadamente, a saúde reprodutiva.
O Programa de luta contra a pobreza tem forte ligação com o Instituto da Condição Feminina. Ao analisar os dados do Documento de Estratégia de Crescimento e Redução da Pobreza (DECRP), Furtado (2008, p. 20) ressalta que:
a) a grande pobreza é sobretudo rural, embora tenha também aumentado nas zonas urbanas; b) a incidência da pobreza é maior quando o chefe da família é mulher; c) a pobreza aumenta com a dimensão da família; d) a influência da educação na determinação da pobreza é significativa; e) o desemprego afeta de forma mais acentuada os pobres do que os não pobres; f) é entre os trabalhadores da agricultura e da pesca que existe maior propensão para ser pobre.
No entanto, nos últimos anos os níveis educacionais alcançaram indicadores satisfatórios, possibilitando um maior acesso da população à educação. Isso se reflete no aumento das taxas de alfabetização e, de acesso ao ensino básico, secundário e superior. Todavia, esse crescimento não tem modificado de forma precisa os índices de pobreza, especialmente, entre as mulheres. Ao analisar a questão da pobreza entre os agregados familiares chefiados por mulheres, Furtado (2008) assinala que embora os índices de analfabetismo tenham se tornado menos desiguais entre homens (17%) e mulheres (19%), à medida que aumenta o nível de escolaridade os agregados chefiados por homens estão mais representados: 10% destes completaram o ensino secundário, contra 5% das mulheres.
Nos últimos anos o processo de mobilização feminina tem resultado em ganhos importantes no país, prova disso são algumas mudanças na legislação, tais como os Planos Nacionais de Igualdade e Equidade de Gênero (PNIEG) e os Planos Nacionais de Combate à Violência Baseada no Gênero (PNVBG), que tem possibilitado uma maior visibilidade aos problemas voltados para a questão das mulheres, provocando mudanças significativas na estrutura social, política, cultural e econômica do país. (CARVALHO, 2015). Todavia, as mulheres continuam excluídas do mercado formal de trabalho8 e se voltam para atividades de menor remuneração, além disso, é possível identificar a sub-representação feminina no legislativo. (MONTEIRO, 2009).
Como foi possível perceber, o processo de lutas e as organizações de mulheres em África, emergiu dos questionamentos quanto à legitimidade do poder político masculino, pela luta contra as opressões de gênero e contra as leis sexistas vigentes em vários países. É também nos anos de 1960 que surge o Pan-African Women’s Liberation Organization (PAWLO), que tinha como objetivo situar as problemáticas de gênero como uma questão importante nas agendas sociais, especialmente, no âmbito das lutas nacionalistas e anti-coloniais. Naquele contexto, as mulheres assumiram uma posição mais radical contra a política colonial e a exploração da maioria da população negra.
Todavia, ao longo dos anos, e mesmo no contexto pós-independência, as entidades e organizações diretamente voltadas para as questões das mulheres têm ganhado novos formatos e frentes de lutas. Atualmente, podemos falar não apenas de um feminismo africano, mas de feminismos africanos, devido à diversidade de questões evocadas ao longo de todo o contexto de mobilização. Isso sem falar das inúmeras outras correntes que compartilham a proposta de luta e garantia de direito das mulheres. A despeito dos avanços adquiridos, sobretudo no tocante à aprovação de leis que visam garantir o exercício pleno da cidadania e combate à violência baseada no gênero, a questão política e a inserção nos altos estratos de poder continuam sendo os principais desafios do movimento de mulheres em África, especialmente nos países aqui analisados.
A questão da inserção no mercado de trabalho e garantia da emancipação econômica também constitui uma das principais bandeiras de luta. A perspectiva do empowerment que toma corpo nos anos de 1980, e que acabou por ocupar lugar de destaque em várias regiões do continente africano, visa criar condições para que as mulheres possam ter acesso aos recursos, bem como reforçar a sua autonomia e livre escolha. Para atingir estes fins propõe métodos participativos, mobilizando as organizações de mulheres, especialmente as organizações de base, de forma a reforçar a sua autossuficiência.
É também na década de 1990 que surgem os debates sobre gênero e desenvolvimento como alternativa potencial às mudanças econômicas almejadas. No entanto, tal proposta, por si, não conseguiu abarcar as especificidades das sociedades africanas. Da mesma forma a imposição de modelos que não comportam as realidades locais em muito comprometeu este processo de mudança. Por exemplo, em vários países as atividades desenvolvidas em feiras e mercados acabam por constituir a principal via de manutenção econômica das famílias, sobretudo aquelas chefiadas por mulheres. Estas atividades estão inseridas na informalidade, o que parece constituir algo inconcebível para as teóricas desenvolvimentistas, que buscam formas mais rígidas de controle econômico.
Nos últimos anos, propostas alternativas de mobilização têm ganhado cada vez mais força; é possível observar uma maior politização na vida cotidiana, assim como o protagonismo feminino nos espaços legislativos e no campo político-partidários. Entretanto, muito ainda precisa ser feito, tendo em vista que a maioria das mulheres continua numa situação de desvantagem ao nível do emprego, saúde, acesso à justiça, representação política e participação nos espaços de decisão de maior importância. Não obstante o futuro de incerteza, a conjuntura atual destes países apresenta dados animadores quanto às propostas de mudança. As lutas e mobilizações continuam...