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APONTAMENTOS SOBRE AS REPRESENTAÇÕES DAS MULHERES NEGRAS: luta e resistência
Revista de Políticas Públicas, vol. 22, pp. 1007-1020, 2018
Universidade Federal do Maranhão

Mesas temáticas coordenadas


Recepção: 26 Março 2018

Aprovação: 09 Maio 2018

Resumo: O presente artigo é fruto de pesquisa dissertativa realizada entre 2015 e 2016 durante o curso de mestrado em Políticas Públicas da Universidade Federal do Maranhão. O objetivo deste trabalho é resgatar o contexto de luta e resistência das mulheres negras, além das construções teóricas envoltas na concepção de ser mulher negra a partir de um olhar relacional das dinâmicas sociais, uma vez que as ações coletivas das mulheres se deu com base em uma outra história. Traz uma análise interpretativa embasada em teóricas e ativistas negras como Angela Davis (2016), Luiza Bairros (2006), Sueli Carneiro (2006), dentre outras, a fim de compreender as estratégias de resistência e reafirmação da identidade à luz daquelas que foram coadjuvantes da historiografia brasileira.

Palavras-chave: Mulheres Negras, Resistência, Protagonismo, Identidade.

Abstract: The present article is the result of a dissertation research carried out between 2015 and 2016 during the Master's course in Public Policies of the Federal University of Maranhão. The objective of this paper is to recover the context of struggle and resistance of black womem, as well as the theoretical constructions involved in the conception of being a black woman from a relational view of social dynamics once the collective actions of women gave based on another story. It presents an interpretative analysis based on black theoreticians and activists such as Angela Davis (2016), Luiza Bairros (2006), Sueli Carneiro (2006), among others, in order to understand the strategies of resistance and reaffirmation of the identity in the light of those that were coadjuvant of Brazilian historiography.

Keywords: Black women, resistance, protagonism, identity.

1 INTRODUÇÃO

Pode parecer um tanto repetitivo dizer que a História do Brasil foi redigida por grupos dominantes do poder, mas reafirmá-la é um ato concreto de resistência e de negação à história dita oficial. Por muito tempo negros (as) foram invisibilizados(as) da historiografia brasileira, ou, quando apresentados (as), eram subjugados (as), coisificados (as) e objetificados (as) pelo sistema colonial escravista cujo objetivo principal era assegurar a sua normalidade estrutural.

O presente artigo apresenta reflexões a partir da pesquisa dissertativa realizada entre 2015 e 2016 sobre a construção da identidade de mulheres negras que participam dos projetos desenvolvidos pelo Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN) , mais precisamente com o Bloco Afro Akomabu1. Considerando a amplitude e as ramificações que a pesquisa em si proporciona, dar-se-á enfoque no contexto de luta e resistência das mulheres negras, revelando seu protagonismo em face do ocultamento histórico.

Compreendendo que todo e qualquer tipo de opressão possui como marcadores a tríade: raça, classe e gênero, por conseguinte, base das desigualdades sociais. (DAVIS, 2016). O estudo sobre a temática revela ainda dois aspectos: a mulher negra é triplamente explorada e a principal vitima da naturalização das opressões.

2 AS MARCAS DE UM PASSADO ESCRAVISTA

Negras escravizadas laboravam em pé de igualdade com seus pares, ocupando-se da plantação e colheita dos gêneros alimentícios, da criação do gado e dentro, da casa-grande, cuidando dos serviços domésticos, da criação dos filhos(as) das senhoras e, por vezes, servindo de objeto para saciar os apetites sexuais dos senhores. “[...] O estupro era uma arma de dominação, uma arma de repressão, cujo objetivo oculto era aniquilar o desejo das escravas de resistir e, nesse processo, desmoralizar seus companheiros. [...]” (DAVIS, 2016, p. 36).

A coisificação da mulher negra revela a justificativa da escravidão intensa no Brasil. Os ganhos produtivos, enquanto massa de manobra de crescimento da colônia, aliados à reprodução no sentido macro de procriação biológica da raça fizeram da mulher negra a incubadora dos futuros escravizados(as) e a mãe-preta do nhonhô2.

Angela Davis (2016), no livro Mulheres, Raça e Classe, traça um panorama histórico e crítico sobre a luta antirracista e a luta feminista no cenário estadunidense. Faz um percurso histórico partindo do legado da escravidão, a interseccionalidade3 entre classe, raça e gênero e a luta da mulher negra para emancipação. Em um determinado momento do livro ela descreve a sofrida dor da mãe-preta.

Na fazenda a que me refiro, as mulheres que tinham bebês em fase de amamentação sofriam muito quando suas mamas enchiam de leite, enquanto as crianças ficavam em casa. Por isso elas não conseguiam acompanhar o ritmo dos outros: vi o feitor espancá-las com o chicote de couro cru até que sangue e leite escorressem, misturados, de suas mamas. (DAVIS, 2016, p. 26).

A negação da subjetividade da mulher negra condicionava, sobretudo, as relações afetivas. Existia uma dicotomia profunda entre ser mãe e ser mãe-preta, invisibilizando, por exemplo, as relações entre mãe/pai-escravo(a) e suas crias, ou homem-mulher escravizados(as). As representações sociais negativas sobre as mulheres negras permanecem na sociedade atual, nos escritos, na academia, no senso comum, criando o imaginário da mulher negra mulata, amante, empregada doméstica e tantas outras derivações impostas e determinantes da dimensão sexista e racista na sociedade capitalista que mantém o estigma da mukama4 tal qual foram vivenciadas pelas mulheres negras no século XIX.

Pensando no sentido macro das relações patriarcais o corpo é determinante enquanto espaço privado do homem. A erotização e a violência são até hoje marcas da naturalização da coisificação da mulher negra. Ana Cláudia Pacheco (2008) em sua tese Branca para casar, mulata para f... e negra para trabalhar (ressignificação do ditado popular da época colonial: preta pra cozinhar, mulata pra fornicar e branca pra casar) discute a solidão da mulher negra enquanto escolha afetiva. Afirma que no Brasil os marcadores do racismo e do sexismo são ideologias e práticas socioculturais reguladores das preferências afetivas individuais.

Ressalta que o patriarcado é uma relação de poder para além da concepção de família, uma vez que se materializa na relação do poder colonial. A sexualidade da mulher escravizada não está a serviço da procriação da família branca, mas na supremacia do poder do macho reprodutor e dominador. Apesar de não aprofundar o termo tal qual aprofunda a categoria gênero, ela acredita que ambos são determinantes para a estereotipação dos papéis sociais entregue às mulheres negras ainda hoje presentes nas escolhas afetivas.

A exaltação da mulher negra enquanto objeto cumpre o papel único e exclusivo de justificativa das violências por elas sofridas no passado e no presente. Convém apontar que o termo dominação-exploração não se restringe somente ao homem branco opressor; parte também das torturas, humilhações e violências e violações das senhoras brancas.

[...] ao investigar as ações empreendidas pelas mulheres negras contra o regime escravista (o suicídio, o infanticídio, as fugas, os aquilombamentos, assassinatos etc.) se constata que as práticas de resistência ao escravismo também foram constituídas pelo gênero. Ou seja, tiveram atos que foram realizados majoritariamente ou exclusivamente por mulheres, a exemplo do aborto. Até porque, retirar a própria vida ou a vida de um filho, além de se efetivar como subtração de lucros dos exploradores da mão de obra escrava, representava um complexo exercício de enfrentamento a um sistema violento que negava a humanidade deste grupo devido à sua condição de gênero e raça. Essas práticas de resistência foram constantes. (SANTOS, 2016, p. 22).

As revoltas e resistências são frutos da coletividade, afirmação da dignidade frente aos dissensos sociais e culturais. A importância das mulheres negras guerreiras é algo a ser reconhecido, como destaca Carneiro (2006, p. 30):

Elas eram indispensáveis: na provisão de alimentos; no trabalho agrícola, na confecção de roupas e utensílios. Além de combaterem lado a lado com os homens e participarem dos ataques a plantações vizinhas, elas exerciam funções logísticas levando pólvoras e armamentos, removendo e cuidando dos feridos. Algumas chegaram a ser chefes de Quilombos, havendo notícias de Quilombos só de mulheres!!!Como o chefiado por Felipa Maria Aranha, na Região Amazônica .

Considerando que o processo de resistência é uma luta coletiva e luta individual, Davis (2016) acredita que, de certo, boa parte das mulheres possuía consciência das suas condições, de que eram a todo o momento, subjugadas. Da sua existência elas tiravam a força para lutar, uma autossuficiência necessária.

[...] essas mulheres podem ter aprendido a extrair das circunstâncias opressoras de sua vida a força necessária para resistir à desumanização diária da escravidão. A consciência que tinham de sua capacidade ilimitada para o trabalho pesado pode ter dado a elas a confiança em sua habilidade para lutar por si mesmas, sua família e seu povo. (DAVIS, 2016, p. 24).

Cownling (2012) justifica a visão de libertação para essas mulheres a partir de quatro hipóteses: a ideia de controle de sua própria mobilidade; preservação da sua vida e dos demais grupos familiares, principalmente dos filhos(as); garantia dos direitos sexuais em defesa dos atos de estupros e autonomia das condições de trabalho, moradia e renda. Apesar da visão harmoniosa e hierárquica que a historiografia brasileira passa enquanto dádiva e gratidão da Redentora (adjetivo utilizado para enaltecer os feitos da segunda filha do imperador D.Pedro II, a Princesa Isabel), na prática o processo abolicionista não visualizou meios de integração do(a) negro(a) na sociedade, conforme comenta Fernandes (2008, p. 29)

Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja ou qualquer outra instituição assumisse encargos especiais, que tivessem por objeto prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho. O liberto se viu convertido, sumária e abruptamente, em senhor de si mesmo, tornando-se responsável por sua pessoa e por seus dependentes, embora não dispusesse de meios materiais e morais para realizar essas proezas nos quadros de uma economia competitiva.

A escolarização de meninas(os) negras(os) também é questionável. Araújo (2013), ao pesquisar sobre a escolarização de meninas negras no Maranhão entre 1855 e 1870, constatou que a escola no período imperial funcionava como aparelho reprodutor e fortalecedor do estado enquanto forma de manutenção do sistema patriarcal. “A escola do século XIX pode ser caracterizada como uma instituição que transitava entre a continuidade do ambiente doméstico e a consagração de um modelo institucional que substituía o papel desempenhado pela família.” (ARAÚJO, 2013, p. 17).

São Luís, capital da Província do Maranhão, assim como outros estados, era uma sociedade completamente contraditória, visto que entendiam o problema da escravidão enquanto sinônimo de atraso, mas aceitavam perfeitamente as práticas cruéis. Com as relações familiares escravagistas, a concepção de educação para o trabalho e para integração social, crianças negras eram instruídas para o trabalho doméstico, pois este foi o papel a elas delegado.

A infância de meninas negras no Maranhão provincial tem seus contornos traçados na insatisfação em educá-las. Insatisfação deveras velada, e confundida com proibições por parte da legislação, constituindo, portanto, a negação da instrução desde a sua infância, isto se deve porque a cor da pele escura e a origem de escravizado foram interpretados no Brasil como características abomináveis, quando se devia abominar o sistema que submeteu os negros a situações desumanas. (ARAÚJO, 2013, p. 55).

O final do século XIX e início do século XX foi um período marcado pela ideologia do branqueamento no qual se defendia a superioridade de uma raça em detrimento de outra. A miscigenação seria a válvula de escape para a melhoria das raças inferiores, acreditando-se que a raça branca era a solução, por ser dominante. Alguns teóricos defendiam essa tese, sobretudo no campo da medicina e da criminologia.

Destaca-se nesse período, Nina Rodrigues, médico brasileiro contrário à mestiçagem e defensor da concepção de raça pura. Na época estava em vigor em outros países como Estados Unidos, Grã Bretanha, Rússia, Alemanha, França o movimento eugenista que visava à melhoria da raça humana, tirando da sociedade as impurezas provenientes das características das raças indesejáveis.

Em 1890 o governo provisório baixou decreto na qual determinava o perfil de imigrantes livres para entrada no país, determinando, entre outras características, “[...] que os imigrantes tivessem capacidade para o trabalho; que não estivessem sendo processados por crime; que não fossem oriundos da África ou Ásia, entre outras coisas.” (NEVES, 2008, p. 243). Nina Rodrigues nasceu em São Luís do Maranhão, fez a graduação em medicina na Bahia e voltou à cidade natal para atuar na clínica médica, onde pesquisou doenças como lepra e sua relação com a raça, com base na população maranhense da época, começando seus estudos nas classificações raciais. No campo da antropologia criminal propôs estudos científicos ligando os fatores do crime à categoria raça, com o objetivo de identificar o perfil do criminoso.

Preocupou-se em traçar a diferença entre raças puras e raças cruzadas, sendo consideradas como primeiras, as raças: negra, branca e vermelha; já a mestiça (ou raça cruzada) é vista pelo cientista como inferior, e os indivíduos que a constituíam não poderiam evoluir e seriam sempre violentos e impulsivos, pois “[...] o mestiçamento não faz mais do que retardar a eliminação do sangue branco.” (RODRIGUES, 1935, p. 25). Embora o conceito biológico de raça tenha sido desconstruído pela própria ciência a partir do século XX, ele ainda permeia o campo social, político e ideológico, transcendendo o caráter técnico-cientifico empregado pelos defensores da raça pura.

Para Munanga (2003, p. 6),

Os conceitos de negro, branco e mestiço não significam a mesma coisa nos Estados Unidos, no Brasil, na África do Sul, na Inglaterra, etc. Por isso que o conteúdo dessas palavras é etno-semântico, político-ideológico e não biológico. Se na cabeça de um geneticista contemporâneo ou de um biólogo molecular a raça não existe, no imaginário e na representação coletiva de diversas populações contemporâneas existem ainda raças fictícias e outras construídas a partir das diferenças fenotípicas como a cor da pele e outros critérios morfológicos. É a partir dessas raças fictícias ou “raças sociais” que se reproduzem e se mantêm os racismos populares.

As resistências dos homens negros e, em particular, da mulher negra, contra as opressões históricas, só reforçam a intencionalidade da luta. As mulheres negras eram iguais aos seus companheiros na opressão, mas indiferentes nos castigos infligidos a elas. A tríade exploração, humilhação, opressão demonstra a relação direta entre tempos passados e o presente, visto que o enorme espaço que o trabalho ocupa hoje na vida das mulheres negras segue padrões estabelecidos nos primórdios da escravidão. Ainda hoje mulheres negras são violentadas, estupradas e massacradas dentro e fora de casa; vivem a aniquilação nas políticas públicas, na educação, saúde, emprego e moradia; têm seus filhos(as) retirados(as) das suas entranhas pelo sistema capitalista, pois são os(as) negros(as) que compõe, o maior número do encarceramento no Brasil5.

A narrativa ora apresentada buscou o passado para reafirmar o presente, mostrando o silenciamento da história oficial heteronormativa sobre as mulheres negras enquanto sujeitos históricos. Compreender o que é ser mulher e negra, a partir de um contexto, é ir além das convenções historiográficas.

3 RESSIGNIFICANDO OS PAPÉIS SOCIAIS: mulheres negras na luta contra o racismo, o machismo e o sexismo nos variados espaços de poder

Trilhar os caminhos da intelectualidade não é tarefa fácil, principalmente para as mulheres negras. A busca pela alfabetização no período da escravidão e no pós-escravidão tem origem nas mais diferentes escolhas, e uma delas é a sobrevivência à sua própria infância sofrida e a infância de tantas outras pessoas negras. Como outrora dissera Maria Firmina dos Reis: A mente, isso, sim! Ninguém pode escravizar6.

Sem dissociar o trabalho intelectual da militância política, mulheres negras sofrem com a falta de reconhecimento dos impactos de gênero e das ideias sexistas que moldam os papéis sociais.

Apesar do testemunho histórico de que as negras sempre desempenharam um papel importante como professoras, pensadoras criticas e teóricas culturais na vida negra em particular nas comunidades negras segregadas, muito pouco se escreveu sobre intelectuais negras. Quando a maioria dos negros pensa em grandes mentes quase sempre invoca imagens masculinas. (HOOKS, 1995, p. 466).

A subordinação sexista e racista na vida das mulheres negras obscurece obras das nossas intelectuais, atuando em paralelo aos estereótipos socialmente construídos da mulher só corpo, sem mente. A insistência cultural com a aceitação dos papéis historicamente sistematizados talvez seja um dos entraves para a visibilização das produções intelectuais negras, contudo, o maior deles é, sem dúvida, a apropriação dos valores pelas mulheres negras. Hooks (1995, p. 470) cita seu exemplo:

[...] Na infância se eu não pusesse os trabalhos domésticos acima dos prazeres de ler e pensar os adultos ameaçavam me punir queimando meus livros, proibindo-me de ler. [...] Na idade adulta passei anos julgando (e por isso fazendo com que fosse) importante para mim terminar qualquer outra tarefa por mais inconseqüente que pudesse ser para só depois me dedicar ao trabalho intelectual. Claro muitas vezes eu chegava no espaço destinado a esse trabalho cansada, exausta e sem energia [...]

Nesse sentido, o sexismo secundariza o trabalho intelectual em detrimento do cuidado com a casa e com a família. Decerto, mesmo aquelas que possuem tempo para o laboro intelectual encontram percalços dentro do seio familiar e na academia, pois a garantia de que seus trabalhos serão valorizados é incerto. Para os homens a liberdade sempre foi garantida; uma autonomia de ingressar no mundo das artes, das letras, sem abstenções.

O próprio patriarcado capitalista, branco e heteronormativo nega as produções de escritoras negras tornando esse espaço um domínio privado nos quais poucos possuem vez e voz. Permanecer vigilantes perante o contexto social capitalista de viés patriarcal e, com certeza constitui ferramenta de resistência em tempos atuais, por isso a descolonização das mentes é substrato do ideal coletivo de empoderamento feminino7. “O trabalho intelectual é uma parte necessária da luta pela libertação fundamental para os esforços de todas as pessoas oprimidas e/ou exploradas que passariam de objeto a sujeito que descolonizariam e libertariam suas mentes.” (HOOKS, 1995, p. 466).

Somos sujeitos coletivos de uma história e, por essa única razão, precisamos falar sobre o hetero-patriarcado e sobre o racismo epistêmico, por possuírem a base alicerçada no predomínio do poder por uma única voz, autoritária, verdadeira, neutra cientificamente e objetiva. A construção unidimensional do conhecimento é um dos fatores que impedem o crescimento das produções acadêmicas das mulheres e, sobretudo, das mulheres negras. As opressões de raça e de gênero são variantes de um constructo social, ideologicamente criado e puramente naturalizado, fragilizando formas de resistência, sobretudo aquelas contra o próprio sistema, o enfretamento à violência e à exploração.

O movimento feminista surge com o objetivo de superar o enfoque androcêntrico presente na sociedade, na qual o homem é o ser e a mulher o outro, ou o segundo sexo, parafraseando Simone de Beauvoir (2009). O feminismo consegue teorizar suas próprias reflexões com base nas experiências sociais, revertendo-as em críticas sociais; a categoria gênero como forma de analítico-crítico e relações de poder inseridas nas estruturas sociais. Sobre gênero, Joan Scott (1995, p. 5) alerta que:

Ele exige a análise não só da relação entre experiências masculinas e femininas no passado, mas também a ligação entre a história do passado e as práticas históricas atuais. Como é que o gênero funciona nas relações sociais humanas? Como é que o gênero dá um sentido à organização e à percepção do conhecimento histórico? As respostas dependem do gênero como categoria de análise.

Com base nessas questões, os estudos feministas formularam críticas frente às naturalizações enraizadas na sociedade, sobretudo com relação à concepção de patriarcado enquanto forma de dominação masculina.

Sem dúvida, nas décadas de 1960 e 1970 do século XX, no Brasil, emergiram novos campos de estudos dentro da perspectiva do feminismo. Novas vozes ecoaram fazendo críticas à categoria mulher (de) (a que mulher nos referimos?) e aos discursos hegemônicos engessados no biótipo ideal de cidadão (branco, heterossexual, cristão, de classe média).

Enegrecer o feminismo foi uma expressão utilizada por Sueli Carneiro, em seu artigo Mulheres em movimento, para ressaltar a insuficiência teórica, analítica e prática das diferentes expressões do feminismo no Brasil, a pluralidade cultural escamoteada e negligenciada por um ideal de padrão diferente daquela vivida e sentida pelas mulheres negras.

Ao politizar as desigualdades de gênero, o feminismo transforma as mulheres em novos sujeitos políticos. Essa condição faz com esses sujeitos assumam, a partir do lugar em que estão inseridos, diversos olhares que desencadeiam processos particulares subjacentes na luta de cada grupo particular. Ou seja, grupos de mulheres indígenas e grupos de mulheres negras, por exemplo, possuem demandas específicas que, essencialmente, não podem ser tratadas, exclusivamente, sob a rubrica da questão de gênero se esta não levar em conta as especificidades que definem o ser mulher neste e naquele caso (CARNEIRO, 2003, p. 119).

As demarcações de Sueli Carneiro (2003) apontam para outros potencializadores da opressão como as de classe, de raça, de orientação sexual e de geração; por isso a necessidade do feminismo escrito no plural. Vale ressaltar que as críticas referidas para o movimento feminista também foram feitas para o movimento negro, uma vez que o silenciamento das questões de gênero permeava o convívio com os pares, ou literalmente, a violência de gênero. Por isso a necessidade de se perceber o feminismo negro como forma epistêmica, uma alternativa de ruptura com a hegemonia soberana do saber.

[...] O feminismo negro se coloca como uma epistemologia potencialmente subversiva tanto no âmbito teórico como político. Primeiro, por afrontar a hegemonia da dominação masculina e a hegemonia da cultura branca exclusivista; segundo, por questionar a invisibilidade das mulheres negras não somente enquanto sujeitos de pesquisa, mas também como referências teóricas; e, terceiro, por reivindicar o empoderamento do grupo. [...] (SANTOS, 2016, p. 17).

A epistemologia que paira nas ações e proposições do feminismo negro precisa ser vista tanto no campo teórico como no campo prático. A interseccionalidade entre as formas de opressão reforça a luta coletiva das mulheres negras em seus diferentes modos de resistir e nos mais diversos espaços de poder. A violência simbólica encontra-se em todas as esferas da dupla dominação-exploração; para a mulher negra está na ausência de representações, na negação da sua história e na recusa de sua existência.

4 CONCLUSÃO

Ao longo da pesquisa evidenciou-se o protagonismo das mulheres negras na construção histórica do Brasil, apesar dos silenciamentos de suas demandas e contribuições. Elas salientaram a emergência do Movimento Negro no país, problematizando a questão de gênero no decorrer do processo. Da mesma forma questionaram posicionamentos do movimento feminista, inserindo em suas bandeiras de luta as categorias raça/etnia.

Trilhando os caminhos da intelectualidade, enfrentam, assim, a duras penas, a falta de reconhecimento de seus escritos na academia e no ambiente escolar. Os estereótipos historicamente construídos e o racismo propriamente dito moldam o pensamento brasileiro e delimitam os espaços sociais da mulher negra. Ao se deparar com os efeitos do epistemicídio, as mulheres negras reforçam a luta coletiva e apontam para a necessidade de se compreender as desigualdades de gênero a partir do todo social.

O Racismo por omissão é, portanto, a tendência de invisibilizar os escritos de autoras e pesquisadoras negras, implicando na inserção histórica de uma análise distorcida do protagonismo negro feminino. A falta de traduções de intelectuais negras estadunidenses é um exemplo. O livro de Ângela Davis, Mulheres, Raça e Classe, foi escrito na versão original (inglês) em 1983, porém a versão para o português do Brasil chega ao país somente após 33 anos. O mesmo acontece com os escritos por Carolina Maria de Jesus e Maria Firmina dos Reis – pouco conhecidos na academia e no ambiente escolar. Por que a dificuldade em adquirir e discutir sobre as produções de mulheres negras? O que tem nas obras dessas e de tantas outras escritoras que impede a circulação ampla no mercado editorial? O epistemicídio (omissão racial) não pode ser visto de forma isolada e independente do todo social, do caráter amplo e dimensional das questões sociais brasileiras, posto que a invisibilidade das contribuições das mulheres negras para a formação da sociedade brasileira e o descompasso nas contradições históricas – que insistem em categorizar a mulher negra enquanto corpo – têm como consequência direta o feminicídio de muitas mulheres negras.

REFERÊNCIAS

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BAIRROS, L. Lembrando Lélia Gonzáles. In: WERNECK, J.; MENDONÇA, M.; WHITE, E. C. (Org.). O Livro da saúde das mulheres negras: nossos passos vêm de longe. Rio de Janeiro: Pallas: Crioula, 2006. p. 42-61.

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Notas

1 Com a dissertação: Mulheres Negras e Relações de Gênero: narrativas de construção da identidade de mulheres negras participantes do Bloco Afro Akomabu do Centro de Cultura Negra do Maranhão, pode-se compreender a atuação do primeiro bloco afro criado no estado (em 1984) com o foco nas relações de gênero. Akomabu significa a cultura não deve morrer e constitui como mecanismo de valorização e resgate da autoestima da população negra maranhense e de bandeira de luta do CCN.
2 Mulheres negras grávidas não eram isentas do trabalho, muito menos redução nos ritmos das atividades. Como forma de livrar seus filhos da desestruturação do sistema, algumas mulheres negras cometiam o infanticídio, enquanto ato também de resistência, quer pelas condições a elas expostas, quer por um ato de salvaguarda de seus filhos da situação. Para Giacomini (2013, p. 30) “[...] não é certamente por acaso que a discussão acerca da natureza da escravidão no Brasil tenha partido necessariamente de diferentes visões acerca da reprodução escrava”.
3 Traz a noção de intersecção entre raça, classe e gênero como forma de não hierarquização das opressões, ou seja, para construção de uma sociedade melhor, ou pelo menos a idealização de uma, é necessário o pensar a tríade relacionalmente
4 Termo de origem africana, refere-se tanto à escrava negra empregada doméstica, que era posta como ama de leite dos filhos das senhoras ou como a amante, objeto sexual do senhor. Ver Bairros (2006). As mukamas do passado podem ser percebidas como as trabalhadoras domésticas, profissão onde as mulheres negras se inserem em maior número no Brasil.
5 O Mapa do encarceramento do país, publicado em 2015, mostra perfil da população carcerária no Brasil, os jovens representam 54,8% da população carcerária brasileira, sendo 58,4% destes são negros (as) (BRASIL, 2015).
6 Primeira romancista negra brasileira e maranhense, foi também educadora.
7 Enquanto significado coletivo, colocando as mulheres negras enquanto sujeitos ativos da sociedade. Empoderar-se é criar estratégias cotidianas de combate ao racismo, ao sexismo e ao machismo com olhar para um comprometimento com a luta pela equidade.


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