Resumo: Analisa-se, por meio da sociologia reflexiva e ampla revisão de literatura, as manifestações da violência estrutural em ambiência de riscos e incertezas, investigando seus fundamentos e marcos teóricos conceituais. Realça-se a necessária inserção das discussões acerca desse fenômeno na pauta contemporânea bem como as reflexões para a visibilidade política historicamente negligenciada.
Palavras-chave:ViolênciasViolências, destituições destituições, subjetividades subjetividades.
Abstract: Analized through the reflexive sociology and extensive literature review, the manifestations of structural violence in the ambience of risks and uncertaintiesare investigated, investigating its foundations and theoretical conceptual frameworks. It is highlighted the necessary insertion of the discussions about this phenomenon in the contemporary agenda as well as the reflections for historically neglected political visibility.
Keywords: Violence, dismissals, subjectivities.
Mesas temáticas coordenadas
AFIRMAÇÃO E DESTITUIÇÃO DE SUBJETIVIDADES: a (in)visibilidade da violência estrutural na perspectiva da demodiversidade contemporânea
Recepção: 20 Março 2018
Aprovação: 09 Maio 2018
Discussão situada na ambiência conturbada de crise entre paradigmas1 na contemporaneidade fluida (BAUMAN, 2013), de riscos, incertezas2, informação rápida e marcada pelo medo3 e pela insegurança;4 não obstante também pautar-se na busca de tentativas políticas de concretização de direitos multidimensionais comprometidos com a pessoa humana5 e com o respeito à pluralidade da vida, a violência estrutural gera reflexões novas na medida em que insere na pauta questões tidas como tabus ou feito paradigma historicamente invisível.
Com efeito, o conceito de paradigma não contempla a linearidade temporal, a sucessão pura e simples de uma concepção por outra tampouco a substituição de um modelo científico por outro considerado mais atual ou verdadeiro. (KUHN, 2003). Pelo contrário, entende-se que
[...] não só não se sustenta uma noção de linearidade progressiva, como é perfeitamente possível que mais de um paradigma possa conviver simultaneamente, cada qual invocando para si primazia ao apresentar soluções para problemas que lhe são apresentados [...] Assim, é que um novo paradigma além de introduzir inovações, não raras vezes mantém elementos de paradigmas passados que ainda se mostrem compatíveis e condizentes com o modelo proposto. (KUHN, 2003, p. 31-32).
Esse tempo de desassossego fomenta a produção de novos sistemas, marcados pelo hibridismo e pelo distanciamento do estado de pureza e neutralidade científica, apontando a construção de novos caminhos, comprometidos ideologicamente com contrários e elementos, a priori, paradoxais. Nessa arena contraditória, configura-se uma sociedade da vigilância6, punitiva e disciplinar, estruturalmente desigual, nos moldes de um Estado Constitucional permeado por valores e princípios de justiça dialeticamente construídos, ratificando uma política geral da verdade que consagra formas diversas de poder
[...] a verdade não está fora do poder nem carece de poder (ela não é, apesar do mito cuja história e função seria necessário analisar, a recompensa dos espíritos livres, ou a filha das longas solidões, ou o privilégio daqueles que souberam libertar-se). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a coerções múltiplas. E ela possui nele efeitos regrados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ da verdade, isto é, os tipos de discurso que ela aceita e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros ou falsos, a maneira como se sancionam uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm a função de dizer o que funciona como verdadeiro [...]. (FOUCAULT, 2014, p. 112, grifo nosso).
Nesse ambiente de múltiplas relações e determinações, marcado pela tensão entre o mundo da razão e da cultura; entre o mundo objetivo e o mundo da subjetividade, nos moldes de Touraine (1992), demarca-se o campo social7 para análise da violência.8 Entende-se, por seu turno, que essa análise
[...] deve ser apreendida através de uma de suas novidades radicais: o fato de ser, ao mesmo tempo globalizada, posto que relativa a fenômenos planetários, e localizada; geral, e para utilizar o termo de Hans Magnus Enzensberger (1995), molecular: ela própria mundializada, e fragmentada ou eclodida. Ela não é forçosamente diferente segundo se considere o centro ou a periferia, noções que ela veio contribuir para enfraquecer [...] Esse caráter singular da violência contemporânea nos obriga a refletir ainda mais, indo de um extremo sociohistórico, a outro, centrado na pessoa. A violência nos interroga, não porque, mais do que em outros momentos, caminharíamos para o caos generalizado, ou porque, mais do que em outros momentos estaríamos mergulhados na incerteza crescente do pós-Guerra Fria, mas porque devemos aprender a concebê-la de outra forma, com a mais viva consciência de uma nova situação histórica e política. (TOURAINE, 1992, p. 28, grifo nosso).
Assim, o problema central do presente texto gira em torno da (in)visibilidade da violência estrutural. Com uso da sociologia reflexiva em Bourdieu e Foucault, por meio de técnicas de pesquisa bibliográfica, objetiva-se discutir os fundamentos e características da violência estrutural considerando a ambiência contemporânea de diversas manifestações de violências, razão para destituição das diversas subjetividades bem como motivo para a reflexão científica voltada à reconstrução de um ambiente plural e de respeito às diversas formas de vida.
Pertencendo a violência ao âmbito político dos negócios humanos (ARENDT, 2014), concebe-se, com Galtung (1996, p. 101), que a violência está presente quando os indivíduos são persuadidos de tal modo que suas realizações efetivas, somáticas e mentais, ficam aquém de suas realizações potenciais. Assim, “[...] a violência pode assumir uma feição extrema, ilimitada, relacionada com um desejo, frustrado, de aceder aos frutos da modernidade e sem que se trate de utilizá-los como recurso para alcançar determinados fins”.
A violência é um fenômeno multifacetado, gerando, pois, consequências para os variados sujeitos e instituições na contemporaneidade dialética (REALE, 2010), no plano interno e no cenário internacional9; é um sério entrave para os governos democráticos10 (CENTRO INTERNACIONAL DE INVESTIGAÇÃO E INFORMAÇÃO PARA A PAZ, 2002; PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2006); é um problema para a saúde pública (PERES, 2008) que repercute em altos custos no sistema sanitário; é indicativo de fragilização do processo civilizatório e dos arranjos democráticos11 (ELIAS, 2005; O’DONNELL, 1999); é causa para afastamento de investimentos (GLAESER, 2007).12 Logo, coaduna-se com o entendimento de que
O estado de paz das diferentes nações é especialmente importante na atualidade. Se uma sociedade se move mais em direção da violência do que da paz, isso significa a perda de vidas humanas e materiais, custos econômicos, impossibilidade de uma ordem política e a erosão de valores de convivência e integração sociais (CENTRO INTERNACIONAL DE INVESTIGAÇÃO E INFORMAÇÃO PARA A PAZ, 2002, p. 22).
Em diálogo com a complexa e tensa relação da histórica ambiência de guerra e paz até aqui delineada, uma tipologia estudada pelo Centro Internacional de Investigação para a Paz (CIIIP) categorizou as manifestações de violências conforme o maior e o menor grau de (in)visibilidade na contemporaneidade. Assim, foram
[...] identificadas como violências visíveis os tipos coletivo e institucional. Em segundo lugar, temos as violências invisíveis que abarcam todos os tipos de violência estrutural e cultural. Por último, numa situação intermediária de violência semi-invisível ou parcialmente visível, temos a violência social (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2002, p. 33).
Considerando a paz como um dos problemas fundamentais na contemporaneidade13, visto que dessa depende a própria sobrevivência da humanidade (BOBBIO, 2000); também elaborada por Galtung (1996), outra tipologia é a que distingue as violências a partir de duas grandes categorias de paz: a paz positiva e a paz negativa. A paz negativa está relacionada com a ausência de violência direta e pessoal; e a positiva refere-se à inexistência de violência estrutural e indireta e que, para Bobbio (2003, p. 146), “[...] é a que se pode instaurar somente por meio de uma radical mudança social ou que, pelo menos, deve caminhar pari passu com a promoção da justiça social, a eliminação das desigualdades etc.”. Utilizando essa tipologia, o Centro Internacional de Investigação e Informação para a Paz (2002, p. 25, grifo nosso) apregoa:
[...] esta conceituação representa um grande avanço nos estudos sobre a Paz. Com base nisso, é possível compreender que a paz não significa apenas a ausência de guerra, mas também a ausência de outros tipos de violência que limitam ou impedem uma relação de proximidade entre realidade e potencialidade. A violência estrutural ocorre quando por motivos alheios a nossa vontade não somos o que poderíamos ser ou não temos o que deveríamos ter.
A violência direta é a manifestada pelo ataque aos bens jurídicos14, goza de visibilidade e é passível de um controle imediato. Pode ser exercida pela sociedade coletivamente ou por grupos específicos, de maneira ativa e declarada e sua repressão é viável por mecanismos repressivos. (ANDRADE, 2015). Também seria direta e visível a violência praticada pelas instituições estatais legitimadas para o uso da força quando essas, segundo o Centro Internacional de Investigação e Informação para a Paz (2002), de maneira abstrata priorizam a cultura da repressão e investem no crescimento das tecnologias de destruição e em processos armamentistas.
Já a violência estrutural,15 entretanto, é oculta, pouco reconhecida e parcamente discutida pela sociedade; contempla alguns interesses e influencia a atuação do Estado, inclusive, no que tange a própria atividade de controle.
A invisibilidade é nota característica desse tipo de violência que se transveste de um poder simbólico16 a ser desmascarado a partir da análise acerca das estruturas de dominação. Constitui, pois, uma forma particular de violência simbólica que “[...] contém o reconhecimento tácito da dominação que está implicada no desconhecimento dos fundamentos verdadeiros da dominação.” (BOURDIEU, 2011, p. 21).
A violência estrutural manifesta-se dentro das estruturas sociais quando há repartição desigual de poder e, consequentemente, possibilidades diferentes de vida e desenvolvimento humano.
O CIIIP – refletindo as categorias metodológicas sobre paz elaborada por Galtung (1996) – expõe que por essa manifestação da violência percebeu-se que além dos recursos distribuídos desigualmente, são também desigualmente repartidos o poder de decisão sobre a distribuição dos recursos.
Com efeito, em sentido amplo, a fórmula geral que está por trás da violência estrutural é a desigualdade (CENTRO INTERNACIONAL DE INVESTIGAÇÃO E INFORMAÇÃO PARA A PAZ, 2002). Essa desigualdade, todavia, não é necessariamente anormal. Conforme Baratta (2002, p. 63), “[...] dentro de certo limites quantitativos, em que não atinge o nível crítico da anomia, [é] um elemento funcional ineliminável da estrutura social”. Frisa-se, com o mesmo autor, “[...] a desproporção que pode existir entre os fins culturalmente reconhecidos como válidos e os meios legítimos, à disposição do indivíduo para alcançá-los, está na origem dos comportamentos desviantes”.
Assim, a violência estrutural,17 como tipologia ainda pouco estudada, indica que a violência não pode ser entendida apenas em sede de comportamento agressivo; mas como fenômeno que decorre das relações desiguais em sociedade,18 locus situado sobretudo em democracias aparentes (WACQUANT, 2012), formais, declaradora de direitos19 pifiamente efetivados (ANDRADE, 2003). Para o Centro Internacional de Investigação e Informação para a Paz (2002, p. 104, grifo nosso),
Na medida em que uma sociedade possui elevados índices de distribuição negativa da riqueza e que limita a participação dos indivíduos nas decisões – principalmente mas não exclusivamente – no plano econômico, a violência estrutural é ainda maior. Iniquidade, marginalidade e exclusão são termos por meio dos quais a literatura especializada tem se referido ao fenômeno. Desde esse ponto de vista, a não realização dessas dimensões supõe que os indivíduos se encontram impossibilitados de obter níveis minimamente satisfatórios de qualidade de vida, daí ela fazer parte da problemática que envolve a paz e a violência [...] quando se observa a violência estrutural e se selecionam os indicadores, levam-se em consideração dimensões relativas ao acesso à educação, saúde, oportunidades de mobilidade social, outros fatores decorrentes da distribuição dos benefícios do desenvolvimento econômico relacionados à qualidade de vida e dimensões relativas à posse de ativos ou capital mobilizável pelos núcleos familiares ou pelos indivíduos [...]. Além desse aspecto é necessário enfatizar que ao mesmo tempo que a desigualdade econômica se constitui num determinado tipo de violência, ela também se relaciona com outros tipos. Nesse sentido, pode-se afirmar que tal desigualdade pode incrementar a desintegração social, diminuir as forças de ação solidária ou cooperativas, aumentar a desconfiança mútua e dificultar os processos de governabilidade e os acordos políticos.
A partir dos estudos sobre a paz em Galtung (1996, p. 28, grifo nosso), destaca-se sobre a invisibilidade20 da violência estrutural. Para ele, previsivelmente, não se estranha
[...] que a atenção tenha sido centrada na violência pessoal e não na estrutural. A violência pessoal é visível. O objeto da violência pessoal com frequência sente a violência e pode se queixar, enquanto o objeto da violência estrutural pode ser persuadido a não vê-la de nenhum modo. A violência pessoal promove mudança e dinamismo; não apenas espuma sobre as ondas, mas ondas em águas que em outras circunstâncias seriam calmas. A violência estrutural é silenciosa, não se mostra; é essencialmente estática, é como água parada.
Contextualizado, para Baratta (1993, p. 4-5), a violência estrutural é
[...] a repressão das necessidades reais e, portanto, dos direitos humanos no seu conteúdo histórico-social [...] potencialidades de existência e qualidade de vida das pessoas, dos grupos, dos povos que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento da capacidade de produção material e cultural numa formação econômico-social.
Sob a ótica sociocultural, sem dúvida, a violência constitui uma importante e desafiadora expressão da questão social. Consoante Telles (1999, p. 85), ao utilizar tal categoria na expectativa da máxima efetividade de uma ambiência de realização das inúmeras potencialidades dos sujeitos
[...] estamos realizando uma análise na perspectiva da situação em que se encontra a maioria da população – aquela que só tem na venda de sua força de trabalho os meios para garantir sua sobrevivência. É ressaltar as diferenças entre trabalhadores e capitalistas, no acesso a direitos, nas condições de vida; é analisar as desigualdades e buscar formas de superá-las. É entender as causas das desigualdades e o que essas desigualdades produzem na sociedade e na subjetividade dos homens.
Revelou-se, por conseguinte, a necessidade de ordenamentos sociais mais justos, assim como denunciou a parca atuação estatal no cumprimento de um projeto de equilíbrio e atenuação das diferenças na vida em sociedade21, superando o estigmatizante22 controle penal da subcidadania (CARVALHO, 2014). Nessa linha, o Centro Internacional de Investigação e Informação para a Paz (2002, p. 40, grifo nosso),
[...] a hiperconcentração de capitais, informação e tecnologia nos centros de poder produz um abismo cada vez maior entre os países ricos e pobres, entre os Estados e internamente a eles. Esse contexto produz contingentes cada vez maiores de excluídos, que vão ficando à margem do emprego e da satisfação das necessidades básicas, ficando assim cada vez mais expostos a formas de sobrevivência anômicas marginais, criminais e não-convencionais. É dessa forma que se produz a cultura da violência associada aos grandes centros, cada vez mais superpovoados, em decorrência da desestruturação do núcleo familiar rural e das migrações das populações do campo para os centros urbanos. É dentro desse panorama que se manifestam também as tensões culturais, fruto dos grandes contingentes de discriminados pelo mundo do consumo. A difusão pelos monopólios da comunicação de um modo de vida idealizado e próprio ‘aos países democráticos, seculares e em constante desenvolvimento econômico’ entra em choque com outras identidades próximas do autoritarismo, do fundamentalismo e particularmente permeadas por uma desigualdade básica.
Demarcou-se, pois, um ambiente contemporâneo – especialmente no Brasil – no qual vários riscos23 e incertezas concorrem para sua configuração como consequência de uma modernização desigual24 e não refletida, na qual manifestam-se, perenemente, as contradições fundamentais do sistema econômico e de produção capitalista, configurando aqui uma permanente máquina de moer gente. (RIBEIRO, 2009)25 transvestida em política criminal de controle, combate e contenção26.
Decerto, “[…] las relaciones que se establecen entre unas y outras formas de la misma son, en parte, determinadas en sí mismas y por lo tanto, dando outra vuelta de tuerca.”27 (BAUTISTA; MUÑOZ, 2004, p. 1167). As razões para o fenômeno da violência não são apenas as aparentes, mas outras que se sustentam e se relacionam, conforme o autor espanhol retrocitado. Assim, paz, segurança e direitos humanos são, portanto, categorias de profunda interação. Bobbio (1992, p. 1, grifo nosso) reafirmou essa relação ao afirmar um suposto caminho para a paz perpétua:28
[...] o processo de democratização do sistema internacional, que é o caminho obrigatório para a paz perpétua [...] não pode avançar sem uma gradativa ampliação do reconhecimento e da proteção dos direitos do homem, acima de cada Estado, direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem, reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos.
O CIIIP (2002) foi incisivo ao afirmar que a história do enfrentamento das violências, diretas e as invisíveis, e de luta pela paz multidimensional confundem-se com o próprio percurso pela afirmação da gramática dos direitos humanos. Nesse tom,
[...] a história dos direitos humanos se confunde com a história da luta pela paz. E quando se fala em direito à paz, como elemento de uma terceira geração de direitos, trata-se, na verdade, de incorporar ao acervo jurídico internacional a possibilidade de negar a violência na sua forma mais direta. Parece mais correto afirmar que cada geração de direitos corresponde a uma dada visualização dos tipos de violência e ao acordo entre nações sobre novas formas de expressões jurídicas que buscam cumprir o objetivo de evita-los ou combate-los. (CENTRO INTERNACIONAL DE INVESTIGAÇÃO E INFORMAÇÃO PARA A PAZ, 2002, p. 31, grifo nosso).
Em O novo paradigma da violência, Wieviorka (1997, p. 13, grifo nosso) também refletiu sobre a negação das subjetividades – com o que nesse texto se coaduna no contexto das relações em ambientes marcados pela violência estrutural:
[...] para que haja conflito, sistema de atores em relações conflituais, é preciso de um lado de atores, de outros problemas que eles reconhecem como comuns, e de outro ainda possibilidades para eles de se oporem sem se destruir e, portanto, de mecanismos políticos e institucionais. E para que se possa falar da crise, é necessário que haja um sistema, em dificuldade, é certo, mas que permaneça ainda perceptível como tal. Se a violência parece hoje tão ameaçadora ou dramática, não é pelo fato da multiplicação dos ‘anti-atores’, protagonistas externos a qualquer sistema de ação, ou de uma violência exclusivamente vinculada à lógica da força e do poder, sem debate nem relação possível com eles bem como não é também em virtude das carências no que concerne aos procedimentos e processos que permitem o funcionamento do conflito, a relação; não é ainda porque os sistemas que funcionaram desde o fim da II Guerra Mundial, sociais, ou internacionais, fazem mais do que se transformar: eles se desfazem a ponto de a noção de crise ser tão frágil para dar conta de sua desestruturação? Não é também porque pessoas e grupos se percebem como negados, impossibilitados de manifestarem sua própria subjetividade, arrebentados ou destruídos pelo desprezo de outras pessoas e grupos melhor situados e que se recusam a reconhecê-los como sujeitos.
Com efeito, a violência estrutural29, historicamente invisibilizada, demarca a forma como os Estados Nacionais tratam os seus30, apontando na direção de uma formulação de intervenções públicas, por vezes descomprometidas para a emancipação e as formas necessárias para a superação das desigualdades. Na pauta, incrementos e números de vitimização e revitimização; fora da pauta, a inefetividade da atuação estatal31, sobretudo, para a concretização, por meio de políticas públicas, de direitos declarados e necessidades básicas dos diversos sujeitos32, em suas peculiaridades e defasagens.
Pressupondo a ambiência contraditória, demarcada pelas influências da afirmação da gramática dos direitos humanos e da contemporaneidade fluida e de desassossego, depreende-se a complexidade do fenômeno das violências. Manifestada direta ou indiretamente, simbólica ou criminalmente, urge colocar na pauta a violência estrutural, investigando suas características e fundamentos, analisando, após colocar em suspense, a invisibilidade dessa faceta violenta.
Sem dúvidas, a invisibilidade da violência estrutural com assento nas desigualdades sociais demonstra o que entra e o que sai da pauta política que deveria voltar-se para a concretização de direitos e efetivação das necessidades básicas dos diversos sujeitos.
De fato, a política pública também se faz na nota da indiferença, do descaso e do descompromisso com a realização das potencialidades dos diversos sujeitos, decorrendo daí a necessidade de realçar o fenômeno das violências, historicamente politicamente invisível.
Necessário falar, refletir, questionar e acompanhar os desdobramentos e mutações da violência estrutural que, em ambiência plural, camufla-se em diversas situações de opressão, dominação e ideologias que fomentam o discurso do ódio e de intolerância; destituições dos sujeitos; e etiquetamento, mascarando problemas sociais ao rotular, pela aparência, de problemas penais, rotinizando as violências em processo civilizatório notoriamente defasado.