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AFIRMAÇÃO E DESTITUIÇÃO DE SUBJETIVIDADES: a (in)visibilidade da violência estrutural na perspectiva da demodiversidade contemporânea
Thiago Allisson Cardoso de Jesus
Thiago Allisson Cardoso de Jesus
AFIRMAÇÃO E DESTITUIÇÃO DE SUBJETIVIDADES: a (in)visibilidade da violência estrutural na perspectiva da demodiversidade contemporânea
Revista de Políticas Públicas, vol. 22, pp. 1021-1040, 2018
Universidade Federal do Maranhão
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Resumo: Analisa-se, por meio da sociologia reflexiva e ampla revisão de literatura, as manifestações da violência estrutural em ambiência de riscos e incertezas, investigando seus fundamentos e marcos teóricos conceituais. Realça-se a necessária inserção das discussões acerca desse fenômeno na pauta contemporânea bem como as reflexões para a visibilidade política historicamente negligenciada.

Palavras-chave:ViolênciasViolências, destituições destituições, subjetividades subjetividades.

Abstract: Analized through the reflexive sociology and extensive literature review, the manifestations of structural violence in the ambience of risks and uncertaintiesare investigated, investigating its foundations and theoretical conceptual frameworks. It is highlighted the necessary insertion of the discussions about this phenomenon in the contemporary agenda as well as the reflections for historically neglected political visibility.

Keywords: Violence, dismissals, subjectivities.

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AFIRMAÇÃO E DESTITUIÇÃO DE SUBJETIVIDADES: a (in)visibilidade da violência estrutural na perspectiva da demodiversidade contemporânea

Thiago Allisson Cardoso de Jesus
Universidade Estadual do Maranhão - UEMA; Universidade Ceuma; Universidade Federal do Maranhão - UFMA, Brasil
Revista de Políticas Públicas, vol. 22, pp. 1021-1040, 2018
Universidade Federal do Maranhão

Recepção: 20 Março 2018

Aprovação: 09 Maio 2018

1 INTRODUÇÃO

Discussão situada na ambiência conturbada de crise entre paradigmas1 na contemporaneidade fluida (BAUMAN, 2013), de riscos, incertezas2, informação rápida e marcada pelo medo3 e pela insegurança;4 não obstante também pautar-se na busca de tentativas políticas de concretização de direitos multidimensionais comprometidos com a pessoa humana5 e com o respeito à pluralidade da vida, a violência estrutural gera reflexões novas na medida em que insere na pauta questões tidas como tabus ou feito paradigma historicamente invisível.

Com efeito, o conceito de paradigma não contempla a linearidade temporal, a sucessão pura e simples de uma concepção por outra tampouco a substituição de um modelo científico por outro considerado mais atual ou verdadeiro. (KUHN, 2003). Pelo contrário, entende-se que

[...] não só não se sustenta uma noção de linearidade progressiva, como é perfeitamente possível que mais de um paradigma possa conviver simultaneamente, cada qual invocando para si primazia ao apresentar soluções para problemas que lhe são apresentados [...] Assim, é que um novo paradigma além de introduzir inovações, não raras vezes mantém elementos de paradigmas passados que ainda se mostrem compatíveis e condizentes com o modelo proposto. (KUHN, 2003, p. 31-32).

Esse tempo de desassossego fomenta a produção de novos sistemas, marcados pelo hibridismo e pelo distanciamento do estado de pureza e neutralidade científica, apontando a construção de novos caminhos, comprometidos ideologicamente com contrários e elementos, a priori, paradoxais. Nessa arena contraditória, configura-se uma sociedade da vigilância6, punitiva e disciplinar, estruturalmente desigual, nos moldes de um Estado Constitucional permeado por valores e princípios de justiça dialeticamente construídos, ratificando uma política geral da verdade que consagra formas diversas de poder

[...] a verdade não está fora do poder nem carece de poder (ela não é, apesar do mito cuja história e função seria necessário analisar, a recompensa dos espíritos livres, ou a filha das longas solidões, ou o privilégio daqueles que souberam libertar-se). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a coerções múltiplas. E ela possui nele efeitos regrados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ da verdade, isto é, os tipos de discurso que ela aceita e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros ou falsos, a maneira como se sancionam uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm a função de dizer o que funciona como verdadeiro [...]. (FOUCAULT, 2014, p. 112, grifo nosso).

Nesse ambiente de múltiplas relações e determinações, marcado pela tensão entre o mundo da razão e da cultura; entre o mundo objetivo e o mundo da subjetividade, nos moldes de Touraine (1992), demarca-se o campo social7 para análise da violência.8 Entende-se, por seu turno, que essa análise

[...] deve ser apreendida através de uma de suas novidades radicais: o fato de ser, ao mesmo tempo globalizada, posto que relativa a fenômenos planetários, e localizada; geral, e para utilizar o termo de Hans Magnus Enzensberger (1995), molecular: ela própria mundializada, e fragmentada ou eclodida. Ela não é forçosamente diferente segundo se considere o centro ou a periferia, noções que ela veio contribuir para enfraquecer [...] Esse caráter singular da violência contemporânea nos obriga a refletir ainda mais, indo de um extremo sociohistórico, a outro, centrado na pessoa. A violência nos interroga, não porque, mais do que em outros momentos, caminharíamos para o caos generalizado, ou porque, mais do que em outros momentos estaríamos mergulhados na incerteza crescente do pós-Guerra Fria, mas porque devemos aprender a concebê-la de outra forma, com a mais viva consciência de uma nova situação histórica e política. (TOURAINE, 1992, p. 28, grifo nosso).

Assim, o problema central do presente texto gira em torno da (in)visibilidade da violência estrutural. Com uso da sociologia reflexiva em Bourdieu e Foucault, por meio de técnicas de pesquisa bibliográfica, objetiva-se discutir os fundamentos e características da violência estrutural considerando a ambiência contemporânea de diversas manifestações de violências, razão para destituição das diversas subjetividades bem como motivo para a reflexão científica voltada à reconstrução de um ambiente plural e de respeito às diversas formas de vida.

2 VIOLÊNCIAS NO PLURAL: investigação de um fenômeno multifacetado

Pertencendo a violência ao âmbito político dos negócios humanos (ARENDT, 2014), concebe-se, com Galtung (1996, p. 101), que a violência está presente quando os indivíduos são persuadidos de tal modo que suas realizações efetivas, somáticas e mentais, ficam aquém de suas realizações potenciais. Assim, “[...] a violência pode assumir uma feição extrema, ilimitada, relacionada com um desejo, frustrado, de aceder aos frutos da modernidade e sem que se trate de utilizá-los como recurso para alcançar determinados fins”.

A violência é um fenômeno multifacetado, gerando, pois, consequências para os variados sujeitos e instituições na contemporaneidade dialética (REALE, 2010), no plano interno e no cenário internacional9; é um sério entrave para os governos democráticos10 (CENTRO INTERNACIONAL DE INVESTIGAÇÃO E INFORMAÇÃO PARA A PAZ, 2002; PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2006); é um problema para a saúde pública (PERES, 2008) que repercute em altos custos no sistema sanitário; é indicativo de fragilização do processo civilizatório e dos arranjos democráticos11 (ELIAS, 2005; O’DONNELL, 1999); é causa para afastamento de investimentos (GLAESER, 2007).12 Logo, coaduna-se com o entendimento de que

O estado de paz das diferentes nações é especialmente importante na atualidade. Se uma sociedade se move mais em direção da violência do que da paz, isso significa a perda de vidas humanas e materiais, custos econômicos, impossibilidade de uma ordem política e a erosão de valores de convivência e integração sociais (CENTRO INTERNACIONAL DE INVESTIGAÇÃO E INFORMAÇÃO PARA A PAZ, 2002, p. 22).

Em diálogo com a complexa e tensa relação da histórica ambiência de guerra e paz até aqui delineada, uma tipologia estudada pelo Centro Internacional de Investigação para a Paz (CIIIP) categorizou as manifestações de violências conforme o maior e o menor grau de (in)visibilidade na contemporaneidade. Assim, foram

[...] identificadas como violências visíveis os tipos coletivo e institucional. Em segundo lugar, temos as violências invisíveis que abarcam todos os tipos de violência estrutural e cultural. Por último, numa situação intermediária de violência semi-invisível ou parcialmente visível, temos a violência social (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2002, p. 33).

Considerando a paz como um dos problemas fundamentais na contemporaneidade13, visto que dessa depende a própria sobrevivência da humanidade (BOBBIO, 2000); também elaborada por Galtung (1996), outra tipologia é a que distingue as violências a partir de duas grandes categorias de paz: a paz positiva e a paz negativa. A paz negativa está relacionada com a ausência de violência direta e pessoal; e a positiva refere-se à inexistência de violência estrutural e indireta e que, para Bobbio (2003, p. 146), “[...] é a que se pode instaurar somente por meio de uma radical mudança social ou que, pelo menos, deve caminhar pari passu com a promoção da justiça social, a eliminação das desigualdades etc.”. Utilizando essa tipologia, o Centro Internacional de Investigação e Informação para a Paz (2002, p. 25, grifo nosso) apregoa:

[...] esta conceituação representa um grande avanço nos estudos sobre a Paz. Com base nisso, é possível compreender que a paz não significa apenas a ausência de guerra, mas também a ausência de outros tipos de violência que limitam ou impedem uma relação de proximidade entre realidade e potencialidade. A violência estrutural ocorre quando por motivos alheios a nossa vontade não somos o que poderíamos ser ou não temos o que deveríamos ter.

A violência direta é a manifestada pelo ataque aos bens jurídicos14, goza de visibilidade e é passível de um controle imediato. Pode ser exercida pela sociedade coletivamente ou por grupos específicos, de maneira ativa e declarada e sua repressão é viável por mecanismos repressivos. (ANDRADE, 2015). Também seria direta e visível a violência praticada pelas instituições estatais legitimadas para o uso da força quando essas, segundo o Centro Internacional de Investigação e Informação para a Paz (2002), de maneira abstrata priorizam a cultura da repressão e investem no crescimento das tecnologias de destruição e em processos armamentistas.

Já a violência estrutural,15 entretanto, é oculta, pouco reconhecida e parcamente discutida pela sociedade; contempla alguns interesses e influencia a atuação do Estado, inclusive, no que tange a própria atividade de controle.

3 VIOLÊNCIA ESTRUTURAL EM XEQUE: fundamentos e manifestações

A invisibilidade é nota característica desse tipo de violência que se transveste de um poder simbólico16 a ser desmascarado a partir da análise acerca das estruturas de dominação. Constitui, pois, uma forma particular de violência simbólica que “[...] contém o reconhecimento tácito da dominação que está implicada no desconhecimento dos fundamentos verdadeiros da dominação.” (BOURDIEU, 2011, p. 21).

A violência estrutural manifesta-se dentro das estruturas sociais quando há repartição desigual de poder e, consequentemente, possibilidades diferentes de vida e desenvolvimento humano.

O CIIIP – refletindo as categorias metodológicas sobre paz elaborada por Galtung (1996) – expõe que por essa manifestação da violência percebeu-se que além dos recursos distribuídos desigualmente, são também desigualmente repartidos o poder de decisão sobre a distribuição dos recursos.

Com efeito, em sentido amplo, a fórmula geral que está por trás da violência estrutural é a desigualdade (CENTRO INTERNACIONAL DE INVESTIGAÇÃO E INFORMAÇÃO PARA A PAZ, 2002). Essa desigualdade, todavia, não é necessariamente anormal. Conforme Baratta (2002, p. 63), “[...] dentro de certo limites quantitativos, em que não atinge o nível crítico da anomia, [é] um elemento funcional ineliminável da estrutura social”. Frisa-se, com o mesmo autor, “[...] a desproporção que pode existir entre os fins culturalmente reconhecidos como válidos e os meios legítimos, à disposição do indivíduo para alcançá-los, está na origem dos comportamentos desviantes”.

Assim, a violência estrutural,17 como tipologia ainda pouco estudada, indica que a violência não pode ser entendida apenas em sede de comportamento agressivo; mas como fenômeno que decorre das relações desiguais em sociedade,18 locus situado sobretudo em democracias aparentes (WACQUANT, 2012), formais, declaradora de direitos19 pifiamente efetivados (ANDRADE, 2003). Para o Centro Internacional de Investigação e Informação para a Paz (2002, p. 104, grifo nosso),

Na medida em que uma sociedade possui elevados índices de distribuição negativa da riqueza e que limita a participação dos indivíduos nas decisões – principalmente mas não exclusivamente – no plano econômico, a violência estrutural é ainda maior. Iniquidade, marginalidade e exclusão são termos por meio dos quais a literatura especializada tem se referido ao fenômeno. Desde esse ponto de vista, a não realização dessas dimensões supõe que os indivíduos se encontram impossibilitados de obter níveis minimamente satisfatórios de qualidade de vida, daí ela fazer parte da problemática que envolve a paz e a violência [...] quando se observa a violência estrutural e se selecionam os indicadores, levam-se em consideração dimensões relativas ao acesso à educação, saúde, oportunidades de mobilidade social, outros fatores decorrentes da distribuição dos benefícios do desenvolvimento econômico relacionados à qualidade de vida e dimensões relativas à posse de ativos ou capital mobilizável pelos núcleos familiares ou pelos indivíduos [...]. Além desse aspecto é necessário enfatizar que ao mesmo tempo que a desigualdade econômica se constitui num determinado tipo de violência, ela também se relaciona com outros tipos. Nesse sentido, pode-se afirmar que tal desigualdade pode incrementar a desintegração social, diminuir as forças de ação solidária ou cooperativas, aumentar a desconfiança mútua e dificultar os processos de governabilidade e os acordos políticos.

A partir dos estudos sobre a paz em Galtung (1996, p. 28, grifo nosso), destaca-se sobre a invisibilidade20 da violência estrutural. Para ele, previsivelmente, não se estranha

[...] que a atenção tenha sido centrada na violência pessoal e não na estrutural. A violência pessoal é visível. O objeto da violência pessoal com frequência sente a violência e pode se queixar, enquanto o objeto da violência estrutural pode ser persuadido a não vê-la de nenhum modo. A violência pessoal promove mudança e dinamismo; não apenas espuma sobre as ondas, mas ondas em águas que em outras circunstâncias seriam calmas. A violência estrutural é silenciosa, não se mostra; é essencialmente estática, é como água parada.

Contextualizado, para Baratta (1993, p. 4-5), a violência estrutural é

[...] a repressão das necessidades reais e, portanto, dos direitos humanos no seu conteúdo histórico-social [...] potencialidades de existência e qualidade de vida das pessoas, dos grupos, dos povos que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento da capacidade de produção material e cultural numa formação econômico-social.

Sob a ótica sociocultural, sem dúvida, a violência constitui uma importante e desafiadora expressão da questão social. Consoante Telles (1999, p. 85), ao utilizar tal categoria na expectativa da máxima efetividade de uma ambiência de realização das inúmeras potencialidades dos sujeitos

[...] estamos realizando uma análise na perspectiva da situação em que se encontra a maioria da população – aquela que só tem na venda de sua força de trabalho os meios para garantir sua sobrevivência. É ressaltar as diferenças entre trabalhadores e capitalistas, no acesso a direitos, nas condições de vida; é analisar as desigualdades e buscar formas de superá-las. É entender as causas das desigualdades e o que essas desigualdades produzem na sociedade e na subjetividade dos homens.

Revelou-se, por conseguinte, a necessidade de ordenamentos sociais mais justos, assim como denunciou a parca atuação estatal no cumprimento de um projeto de equilíbrio e atenuação das diferenças na vida em sociedade21, superando o estigmatizante22 controle penal da subcidadania (CARVALHO, 2014). Nessa linha, o Centro Internacional de Investigação e Informação para a Paz (2002, p. 40, grifo nosso),

[...] a hiperconcentração de capitais, informação e tecnologia nos centros de poder produz um abismo cada vez maior entre os países ricos e pobres, entre os Estados e internamente a eles. Esse contexto produz contingentes cada vez maiores de excluídos, que vão ficando à margem do emprego e da satisfação das necessidades básicas, ficando assim cada vez mais expostos a formas de sobrevivência anômicas marginais, criminais e não-convencionais. É dessa forma que se produz a cultura da violência associada aos grandes centros, cada vez mais superpovoados, em decorrência da desestruturação do núcleo familiar rural e das migrações das populações do campo para os centros urbanos. É dentro desse panorama que se manifestam também as tensões culturais, fruto dos grandes contingentes de discriminados pelo mundo do consumo. A difusão pelos monopólios da comunicação de um modo de vida idealizado e próprio ‘aos países democráticos, seculares e em constante desenvolvimento econômico’ entra em choque com outras identidades próximas do autoritarismo, do fundamentalismo e particularmente permeadas por uma desigualdade básica.

Demarcou-se, pois, um ambiente contemporâneo – especialmente no Brasil – no qual vários riscos23 e incertezas concorrem para sua configuração como consequência de uma modernização desigual24 e não refletida, na qual manifestam-se, perenemente, as contradições fundamentais do sistema econômico e de produção capitalista, configurando aqui uma permanente máquina de moer gente. (RIBEIRO, 2009)25 transvestida em política criminal de controle, combate e contenção26.

Decerto, “[…] las relaciones que se establecen entre unas y outras formas de la misma son, en parte, determinadas en sí mismas y por lo tanto, dando outra vuelta de tuerca.”27 (BAUTISTA; MUÑOZ, 2004, p. 1167). As razões para o fenômeno da violência não são apenas as aparentes, mas outras que se sustentam e se relacionam, conforme o autor espanhol retrocitado. Assim, paz, segurança e direitos humanos são, portanto, categorias de profunda interação. Bobbio (1992, p. 1, grifo nosso) reafirmou essa relação ao afirmar um suposto caminho para a paz perpétua:28

[...] o processo de democratização do sistema internacional, que é o caminho obrigatório para a paz perpétua [...] não pode avançar sem uma gradativa ampliação do reconhecimento e da proteção dos direitos do homem, acima de cada Estado, direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem, reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos.

O CIIIP (2002) foi incisivo ao afirmar que a história do enfrentamento das violências, diretas e as invisíveis, e de luta pela paz multidimensional confundem-se com o próprio percurso pela afirmação da gramática dos direitos humanos. Nesse tom,

[...] a história dos direitos humanos se confunde com a história da luta pela paz. E quando se fala em direito à paz, como elemento de uma terceira geração de direitos, trata-se, na verdade, de incorporar ao acervo jurídico internacional a possibilidade de negar a violência na sua forma mais direta. Parece mais correto afirmar que cada geração de direitos corresponde a uma dada visualização dos tipos de violência e ao acordo entre nações sobre novas formas de expressões jurídicas que buscam cumprir o objetivo de evita-los ou combate-los. (CENTRO INTERNACIONAL DE INVESTIGAÇÃO E INFORMAÇÃO PARA A PAZ, 2002, p. 31, grifo nosso).

Em O novo paradigma da violência, Wieviorka (1997, p. 13, grifo nosso) também refletiu sobre a negação das subjetividades – com o que nesse texto se coaduna no contexto das relações em ambientes marcados pela violência estrutural:

[...] para que haja conflito, sistema de atores em relações conflituais, é preciso de um lado de atores, de outros problemas que eles reconhecem como comuns, e de outro ainda possibilidades para eles de se oporem sem se destruir e, portanto, de mecanismos políticos e institucionais. E para que se possa falar da crise, é necessário que haja um sistema, em dificuldade, é certo, mas que permaneça ainda perceptível como tal. Se a violência parece hoje tão ameaçadora ou dramática, não é pelo fato da multiplicação dos ‘anti-atores’, protagonistas externos a qualquer sistema de ação, ou de uma violência exclusivamente vinculada à lógica da força e do poder, sem debate nem relação possível com eles bem como não é também em virtude das carências no que concerne aos procedimentos e processos que permitem o funcionamento do conflito, a relação; não é ainda porque os sistemas que funcionaram desde o fim da II Guerra Mundial, sociais, ou internacionais, fazem mais do que se transformar: eles se desfazem a ponto de a noção de crise ser tão frágil para dar conta de sua desestruturação? Não é também porque pessoas e grupos se percebem como negados, impossibilitados de manifestarem sua própria subjetividade, arrebentados ou destruídos pelo desprezo de outras pessoas e grupos melhor situados e que se recusam a reconhecê-los como sujeitos.

Com efeito, a violência estrutural29, historicamente invisibilizada, demarca a forma como os Estados Nacionais tratam os seus30, apontando na direção de uma formulação de intervenções públicas, por vezes descomprometidas para a emancipação e as formas necessárias para a superação das desigualdades. Na pauta, incrementos e números de vitimização e revitimização; fora da pauta, a inefetividade da atuação estatal31, sobretudo, para a concretização, por meio de políticas públicas, de direitos declarados e necessidades básicas dos diversos sujeitos32, em suas peculiaridades e defasagens.

4 CONCLUSÃO

Pressupondo a ambiência contraditória, demarcada pelas influências da afirmação da gramática dos direitos humanos e da contemporaneidade fluida e de desassossego, depreende-se a complexidade do fenômeno das violências. Manifestada direta ou indiretamente, simbólica ou criminalmente, urge colocar na pauta a violência estrutural, investigando suas características e fundamentos, analisando, após colocar em suspense, a invisibilidade dessa faceta violenta.

Sem dúvidas, a invisibilidade da violência estrutural com assento nas desigualdades sociais demonstra o que entra e o que sai da pauta política que deveria voltar-se para a concretização de direitos e efetivação das necessidades básicas dos diversos sujeitos.

De fato, a política pública também se faz na nota da indiferença, do descaso e do descompromisso com a realização das potencialidades dos diversos sujeitos, decorrendo daí a necessidade de realçar o fenômeno das violências, historicamente politicamente invisível.

Necessário falar, refletir, questionar e acompanhar os desdobramentos e mutações da violência estrutural que, em ambiência plural, camufla-se em diversas situações de opressão, dominação e ideologias que fomentam o discurso do ódio e de intolerância; destituições dos sujeitos; e etiquetamento, mascarando problemas sociais ao rotular, pela aparência, de problemas penais, rotinizando as violências em processo civilizatório notoriamente defasado.

Material suplementar
REFERÊNCIAS
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Notas
Notas
1 Nesse sentido, Santos (2000, p. 15) considerou que “[...] ao contrário do que se passa com a morte dos indivíduos, a morte de um dado paradigma traz dentro de si o paradigma que lhe há de suceder. Esta passagem da morte para a vida não dispõe de pilares firmes para serem percorridos com segurança. O que nasce é incomensurável com que o morre, não havendo, pois, nem ressurreições nem reencarnações”.
2 “Os paradigmas de desigualdade social estão sistematicamente relacionados a fases específicas do processo de modernização. A distribuição e os conflitos distributivos em torno da riqueza socialmente produzida ocuparão o primeiro plano enquanto em países e sociedades (atualmente, em grande parte do assim chamado Terceiro Mundo) o pensamento e a ação das pessoas forem dominados pela evidência da carência material, pela ‘ditadura da escassez’. Em tais circunstâncias, na sociedade da escassez, o processo de modernização encontra-se e consuma-se sob a pretensão de abrir com as chaves do desenvolvimento científico-tecnológico os portões que levam às recônditas fontes de riqueza social. Essas promessas de libertação da pobreza e da sujeição imerecidas estão na base da ação, do pensamento e da investigação com as categorias da desigualdade social, abarcando, na verdade, desde a sociedade de classes, passando pela sociedade estratificada, até a sociedade individualizada.” (BECK, 2013, p. 24).
3 Bauman (2013, p. 99-100, grifo nosso) aduziu em Vigilância Líquida, referenciando Anna Minton que “[...] a ‘necessidade de segurança torna-se viciante; as pessoas descobrem que, embora tenham muito, isso nunca será suficiente; e que, de modo muito semelhante ao que acontece com a droga que vicia, uma vez tendo se acostumado, a pessoa não pode passar sem ela’. ‘O medo alimenta o medo’, conclui Minton, e eu concordo plenamente. Creio que você também. A resistência singular e solitária à tendência geral e à disposição quase universal tem pouca utilidade; exige uma vontade forte e é social e financeiramente cara. Esse é o paradoxo de nosso mundo saturado de dispositivos de vigilância, quaisquer que sejam seus pretensos propósitos: de um lado, estamos mais protegidos da insegurança que qualquer geração anterior; de outro, porém, nenhuma geração anterior, pré-eletrônica, vivenciou os sentimentos de insegurança como experiência de todos os dias (e de todas as noites)”.
4 A crise de paradigmas tem nota de intertemporalidade. Para Santos (1999, p. 5), são “[...] sombras que vêm do passado que ora pensamos já não sermos, ora pensamos não termos deixado ainda de ser, sombras que vêm do futuro que ora pensamos já sermos, ora pensamos nunca virmos a ser”.
5 obre os valores da pessoa humana, a reflexão feita por Bittar (2010, p. 259). O autor entende que o “[...] valor da dignidade da pessoa humana, dentro da cultura de uma sociedade aberta e pluralista, pressupõe não somente a preponderância desta visão sobre os demais valores (aquele que poderia ser dito a regra comum de todos os direitos humanos), mas sobretudo que seus valores, consagrados inclusive através de normas jurídicas, sendo uma delas e a de maior importância a Constituição (e sua função especular da sociedade pluralista) estejam em permanente processo de troca intersubjetiva, que pertençam ao nível do diálogo comum intercomunicativo (de um agir em comum em torno de princípios), que compareçam ao espaço público para sua crítica e discussão, para que estejam de acordo com uma ética do agir comunicativo”.
6 “A crença de que vivemos em um momento particularmente perigoso devido ao aumento da criminalidade violenta e a legitimação de posturas autoritárias que, de acordo com interesses políticos, são difundidas como capazes de solucionar este problema. Isso não quer dizer que a sociedade brasileira, embora descrente com a democracia, apoie um golpe ou uma revolução contra o regime democrático. Não se difunde a ideia, mas apenas o que é interessante nela [...] Esta cultura do medo, como observa Marilena Chauí, vem configurar o desejo pela segurança, identificada como ordem, suscitando o pavor quanto a tudo que pareça capaz de destruí-la internamente [...] Barry Glassner também observa que o que está por trás da cultura do medo é a possibilidade de vender perigos imaginários como reais, justificando diferentes formas de defesa [...]. Enfim, esta cultura do medo que observamos é o somatório dos valores, comportamentos e do senso comum associada à questão da violência criminal que reproduzem a ideia hegemônica de insegurança e, com isso, perpetuam uma forma de dominação autoritária que só subsiste com a degradação da sociabilidade e o enfraquecimento da cidadania.” (PASTANA, 2006, p. 95-96).
7 Nesse campo social, inevitavelmente há uma exposição do ser social do pesquisador. Decerto, razão se dá a Bourdieu (2011, p. 18-19) que sobre a pesquisa asseverou que seja “[...] um discurso em que a gente se expõe, no qual se correm riscos (para estar mais certo de desarmar os sistemas de defesa e de neutralizar as estratégias de apresentação, gostaria de poder apanhar-vos de surpresa, dando-vos a palavra sem que vocês estejam prevenidos nem preparados – mas, não tenham receio, eu saberei respeitar as vossas hesitações). Quanto mais a gente se expõe, mais possibilidades existem de tirar proveito da discussão e, estou certo, mais benevolentes serão as críticas ou os conselhos (a melhor maneira de liquidar os erros – e os receios que muitas vezes os ocasionam – seria podermos rir-nos deles, todos ao mesmo tempo”. Nesse sentido, assumindo riscos e o desejo de dar ênfase ao que valorar oportuno, optei pelo uso do itálico para realçar categorias trabalhadas pelos diversos autores aqui referenciados que fundamentam a minha textualidade assim como as retomadas dessas construções no corpo do texto e para grifar enunciados discursivos importantes para a análise aqui pretendida.
8 Em título denominado Violência e Crise da Modernidade, Wieviorka (1997, p. 29) concluiu pela “[...] fragmentação dos espaços políticos e de uma distorção do espectro geral da violência a partir de suas dimensões políticas. A violência pode continuar instalada ao nível político, mas também devemos ser sensíveis às dimensões que fazem com que ela se complete, e talvez mais do que antes, com formas que a invadem por baixo e por cima”.
9 Para Oliveira (2010, p. 167, grifo nosso), ganhando notoriedade no cenário internacional, “[...] a violência emergiu como um problema para os indivíduos e sociedades [...] Embora, muitas vezes, não aprofundado e sujeito à influência da mídia, assumiu a proporção de um debate popular, expresso tanto na conversa cotidiana dos cidadãos e cidadãs, dos seus comportamentos e sentimentos, quanto na pauta das instituições que compõem a sociedade. As respostas a esse fenômeno têm-se mostrado múltiplas e diversas, abrangendo uma gama de medidas, nos mais diversos níveis: individual, comunitário e governamental”.
10 Segundo o Centro Internacional de Investigação e Informação para a Paz (2002, p. 50-51), “[...] quando se pretende determinar se uma democracia está ou não consolidada, deve-se considerar o desaparecimento do risco eminente de novos golpes militares ou a existência de movimentos contrários ao sistema, mas o que se impõe essencialmente é a verificação do aprofundamento das condições de estabilidade democrática”.
11 Constata o Programa Nacional das Nações Unidas para o Desenvolvimento (2006, p. 4), no caderno de trabalho para a boa gestão de políticas públicas de segurança cidadã, que “[...] a violência e a insegurança cidadã desestimulam o investimento nacional e o investimento estrangeiro direto, acarretam a destruição de bens públicos e privados, reduzem a produção e aumentam os gastos em segurança privada, tanto para particulares, como para empresas. Tudo isso implica em um custo de oportunidade perdido em investimentos sociais para favorecer o desenvolvimento humano”.
12 Pressupondo que cidades violentas afastam bons negócios infere-se que “[...] grandes cidades não crescem apenas por causa da produtividade econômica, mas também pelas vantagens de consumo. Onde a possibilidade de mobilidade existe, cada vez mais pessoas escolhem morar em lugares prazerosos. Áreas que deixam de ser atraentes ou que se tornam inabitáveis por causa da violência perdem negócios e pessoas [...] e fazem os motores do progresso não funcionar.” (GLAESER, 2007, p. 3).
13 Para o autor italiano, “[...] quando alguém me pergunta quais são, na minha opinião, os problemas fundamentais do nosso tempo, não tenho qualquer hesitação em responder: o problema dos direitos do homem e o problema da paz. Fundamentais no sentido de que da solução do problema da paz depende a nossa própria sobrevivência e a solução do problema dos direitos do homem é o único sinal certo do progresso civil.” (BOBBIO, 2000, p. 497).
14 [...] a determinação do ilícito é resultante de uma operação simbólica e convencional de distinção e diferenciação ou, em outras palavras, de uma construção conceitual e jurídica. Aquilo que, em determinada sociedade ou momento histórico, é conceituado e tipificado como ilícito não necessariamente o é em outro contexto social ou temporal. O ilícito advém, pois, de uma conceituação jurídica mediante a qual se tipifica um conjunto de ações violatórias da ordem jurídica e que, valoradas negativamente e reprovadas, são passíveis de uma certa punição institucional, sempre que se comprove, de maneira fidedigna, que o ato implicou em uma infração da norma, ou seja, em uma conduta que não está legalmente autorizada (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO,2006, p. 2, grifo nosso).
15 Guimarães (2010, p. 140) afirma que “[...] a violência estrutural atinge diretamente os direitos humanos, ferindo de morte a democracia. Em vez de resolver os problemas estruturais e resgatar os direitos humanos estimulando a cidadania, a resposta do poder é repressiva, o que acaba por inviabilizar de vez os ideais democráticos. Logo, um sistema penal mais justo, que respeite os direitos humanos e, acima de tudo, seja igualitário e mínimo - com drástica redução do uso da pena privativa de liberdade - é via para superação da violência estrutural e, consequentemente, para o resgate da democracia”.
16 Bourdieu (2011, p. 13-15) refletiu o poder simbólico concebendo esse “[...] como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a acção sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário [...] se define numa relação determinada – e por meio desta – entre os que exercem o poder e os que lhe estão sujeitos, quer dizer, isto é, na própria estrutura do campo em que se produz e se reproduz uma crença [...].”
17 Utilizando uma categoria em Bourdieu, Cruz Neto e Moreira (1999, p. 279) afirmam que “[...] o locus da violência estrutural é exatamente uma sociedade de democracia aparente (no caso, a democracia liberal), que apesar de conjugar participação e institucionalização e advogar a liberdade e igualdade dos cidadãos, não garante a todos o pleno acesso a seus direitos, pois o Estado volta suas atenções para atender aos interesses de uma determinada e privilegiada classe”.
18 Nessa lição, o Centro Internacional de Investigação e Informação para a Paz (2002, p. 28) ao citar um relatório sobre o estudo das causas da violência realizado na década de 70 em Paris: “[...] as pesquisas sobre as causas da violência deveriam ter como ponto de partida uma ampla acepção sociocultural do fenômeno [...] Não era possível estudar a violência apenas como fenômeno exclusivamente negativo mas também como forma de continuar por outros meios a defender interesses positivos ou a reagir a uma violência negativa menos visível, presente no conjunto da estrutura social”.
19 Nessa mesma perspectiva, Jakobs (2010, p. 40) refletiu o necessário reconhecimento da condição de sujeito das pessoas por parte de uma Constituição de base garantista e compromissória. Para ele, “como se tem mostrado, a personalidade, como construção normativa, é irreal. Só será real quando as expectativas que se dirigem a uma pessoa também se realizam no essencial. Certamente, uma pessoa também pode ser construída contrafaticamente como pessoa; porém, precisamente, não de modo permanente ou sequer preponderante. Quem não presta uma segurança cognitiva suficiente de um comportamento pessoal não só não pode esperar ser tratado ainda, como pessoa, mas o Estado não deve tratá-lo, como pessoa, já que do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas. Portanto, seria completamente errôneo demonizar aquilo que aqui se tem denominado Direito Penal do inimigo. Com isso não se pode resolver o problema de como tratar os indivíduos que não permitem sua inclusão em uma constituição cidadã”.
20 Sobre a seletividade do Direito ante à arena de conflituosidade social e a invisibilidade como fenômeno predominantemente político “é necessário lembrar a escolha dos conflitos feito pelo Direito. Nem todos os conflitos são objeto de regulação jurídica. Ao Direito interessam apenas aqueles que colocam em risco a estabilidade social. Isso significa deixar fora da regulação um número considerável de conflitos sociais que ao serem deixados fora de controle ficam sujeitos à lei do mais forte, regulados pela violência. A falta de regulação implica, além disso, a invisibilidade. A escolha dos conflitos realizada pelo Direito faz com que o jurista, desde a sua formação, aprenda que conflitos são aqueles que ele deve reconhecer como tais. Desse modo, a racionalidade jurídica reconstrói a realidade social e torna possível manter e reproduzir situações de violência estrutural objetivando a paz social” (RUBIO, 1998, p. 75, grifo nosso).
21 Com Young (2002, p. 36-37), sobre a criminalização da miséria a partir do parâmetro sociológico da pobreza material e imaterial, assevera-se que “[...] a contribuição da precariedade econômica e da insegurança ontológica é uma mistura extremamente inflamável em termos de resposta punitiva à criminalidade e da possibilidade de criar bodes expiatórios. Nós já vimos [...] que elas opõem sutilmente os que estão no mercado de trabalho aos que estão transparentemente fora dele. A insegurança ontológica acrescenta a esta situação explosiva a necessidade de reelaborar as definições menos tolerantes de desvio e de reafirmar as virtudes do grupo constituído. Contudo, é importante distinguir tendências de necessidades, bem como especificar o cenário social preciso em que tais dinâmicas se desdobrarão”.
22 A seletividade “[...] ocorre não somente com a escolha dos tipos de comportamentos descritos na lei e com a diversa intensidade da ameaça penal, que frequentemente está em relação inversa com a danosidade social dos comportamentos, mas com a própria formulação técnica dos tipos legais. Quando se dirigem a comportamentos típicos dos indivíduos pertencentes às classes subalternas e que contradizem as relações de produção e de distribuição capitalistas, eles formam uma rede muito fina, enquanto a rede é frequentemente muito larga quando os tipos legais têm por objeto a criminalidade econômica e outras formas de criminalidade típica dos indivíduos pertencentes às classes no poder.” (BARATTA, 2002, p. 165).
23 Os riscos não dependem dos efeitos e danos já ocorridos. Entende-se que neles “[...] exprime-se sobretudo um componente futuro. Baseia-se em parte na extensão futura dos danos atualmente previsíveis e em parte numa perda geral de confiança ou num suposto amplificador do risco. Riscos tem, portanto, fundamentamente que ver com antecipação, com destruições que ainda não ocorreram mas que são iminentes, e que, justamente nesse sentido, são reais hoje” (BECK, 2013, p. 39).
24 Em O Estado da Paz e a evolução da Violência, o Centro Internacional de Investigação e Informação para a Paz (2002, p. 56) concluiu que “[...] temos por um lado os indivíduos com nível mais elevado de integração social - com trabalho estável e socialmente inseridos - menos expostos à pobreza e, por outro, um contingente cada vez maior de marginalizados por falta de emprego e de outros suportes societários. Entre esses dois extremos existem outros intermediários mais ou menos vulneráveis. As inovações conceituais, que não reduzem a pobreza a fatores exclusivamente econômicos, exigem a criação de novos indicadores. Esses, por sua vez, poderiam ser um bom instrumento de análise para relacionar, por exemplo, a problemática da violência urbana e a crise do emprego estrutural que assolou a América Latina na última década e que, entre outras coisas, provocou o empobrecimento de setores até então com níveis de vida satisfatórios, ao não garantir mais o mesmo nível de renda”.
25 Em A fenomenologia da violência, Gauer e Gauer (2011, p. 26) preconizam que “[...] através de uma visão sociohistórica, há que se constatar uma mudança de costumes e valores associada às dramáticas transformações da vida urbana. Esses aspectos estenderam-se de tal forma, que se tornou possível vermos hoje uma banalização e rotinização da violência, cujas consequências trazem o excesso que tende a se cristalizar como uma perversão difícil de ser controlada”.
26 Criticamente, Sousa Neto (2010, p. 61, grifo nosso), assevera que “[...] as maiores ameaças à democracia e ao Estado de Direito no Brasil de hoje advém das políticas de segurança pública, que têm assumido uma orientação predominantemente autoritária. A política de ‘combate’; a criação de ‘inimigos públicos’; a criminalização do negro e do pobre; o apelo ao emprego das Forças Armadas: é nesse tipo de retórica que germinam os elementos irracionais do ambiente cultural adequado à emergência do autoritarismo. Não há dúvidas de que parte considerável da população brasileira é objeto de práticas autoritárias. Não há dúvida tampouco de que, em parcela do território, não vigora o Estado Democrático de Direito. A imprensa, quando flerta com esse imaginário, não está senão fomentando as bases culturais que põem em xeque a estabilidade das instituições democráticas. O Judiciário e o Ministério Público, quando se omitem no controle das políticas de segurança ou decidem em desconformidade com a lei e o direito, não cumprem um dos principais papéis que a Constituição de 1988 lhes incumbiu: a defesa das instituições democráticas. Romper com a ilegalidade normal das políticas de segurança figura ainda como um objetivo fundamental a ser perseguido pelo Estado Brasileiro, como etapa indispensável de nosso processo civilizatório e como condição de possibilidade de progresso social.
27 Em tradução livre, os autores referenciam a reflexividade do fenômeno em comento, demonstrando que as relações que se estabelecem entre as diversas formas de violência autodeterminam-se e condicionam outros fenômenos.
28 A paz perpétua, para Annan (1997, p. 58, tradução livre), concretizaria-se pela vigilância da “[...] segurança militar, da lei e da ordem civis, dos direitos humanos, das questões envolvendo os refugiados, das eleições, da administração local, da participação em serviços de utilidade pública, como saúde e educação, das finanças, da alfandega e dos impostos, da reconstrução e das medidas de caráter geral para devolver à sociedade um certo sentido de normalidade”.
29 Nesse feito, “[...] o modo como falamos da violência e de suas mudanças contemporâneas, inclusive no discurso científico, deriva do estado do fenômeno e de suas transformações objetivas ou de outros tipos de mudanças que interferem nos diferentes níveis que foram enunciados aqui, mas de maneira relativamente autônoma em relação aos fatos de violência, influenciando nossas percepções e modelando representações que só de maneira mais ou menos artificial corresponderia às expressões concretas do fenômeno? De uma experiência concreta a outra, a resposta não pode senão variar: o essencial aqui é insistir sobre a necessidade que há de se colocar em questão.” (WIEVIORKA, 1997, p. 26).
30 Zaffaroni (2007, p. 18, grifo nosso) apregoa fundamentos para o processo de destituição de subjetividade a partir do entendimento de que “a essência do tratamento diferenciado que se atribui ao inimigo consiste em que o direito lhe nega sua condição de pessoa. Ele só é considerado sob o aspecto de ente perigoso ou daninho. Por mais, que a ideia seja matizada, quando se propõe estabelecer a distinção entre cidadãos (pessoas) e inimigos (não-pessoas), faz-se referência a seres humanos que são privados de certos direitos individuais, motivo pelo qual deixaram de ser considerados pessoas, e esta é a primeira incompatibilidade que a aceitação do hostis, no direito, apresenta com relação ao princípio do Estado de Direito”.
31 Sousa Neto (2010, p. 58, grifo nosso) frisa que “uma ordem pública democrática, em contraste, é aquela estruturada pela Constituição e pelas leis. Preservar a ordem pública significa, sobretudo, preservar o direito, a ordem juridicamente estruturada, garantir a legalidade. Políticas públicas e ações policiais que desconsiderem direitos fundamentais transgridem, até não mais poder, a própria ordem pública que pretendem preservar. A democracia política depende do exercício do poder em conformidade com o direito. Não é difícil constar que apenas essa orientação é compatível com a Constituição de 1988, e que, por essa razão, grande parte das políticas de segurança praticadas nas últimas duas décadas está em confronto, aberto ou velado, com a presente ordem constitucional”.
32 “[...] o homem deve ser entendido como referencial e sentido porque, evitando a tríplice atitude de tomá-lo como coisa (coisificando-o), abstração (universalizando-o) ou dado (imutável), é assumido em sua subjetividade, contextualização e devir. O homem é o ser humano de um tempo e lugar, e tem história. É o homem concreto, material e existencialmente situado e ressituado na dinâmica das relações humanas e sociais. Tanto é assim que, na obra de Baratta, o próprio sentido do sujeito está a se redefinir, holisticamente, na trama da vida e dos reencontros das unidades separadas (em classe, gênero, raça, etc.) pela violência socioepistemicida da modernidade” (ANDRADE, 2012, p. 55).
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