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O ESTADO PENAL-PSIQUIÁTRICO E A NEGAÇÃO DO SER HUMANO (PRESUMIDAMENTE) PERIGOSO
Revista de Políticas Públicas, vol. 22, pp. 1063-1078, 2018
Universidade Federal do Maranhão

Mesas temáticas coordenadas


Recepção: 07 Março 2018

Aprovação: 16 Maio 2018

Resumo: O artigo trata dos contornos do Direito Penal de “tratamento” com base no discurso médico-psiquiátrico, buscando analisar as consequências da reação (penal) ao sujeito “perigoso” e potencialmente criminoso, bem como a herança dessa periculosidade no Sistema de Justiça criminal brasileiro. Dessa forma, problematiza o Estado penal-psiquiátrico que passa a conectar a noção de “doença” e de “perigo” como justificativa de negação e aniquilamento do ser humano.

Palavras-chave: Periculosidade, sistema de justiça criminal, Estado penal-psiquiátrico.

Abstract: The article deals with the contours of the criminal law of “treatment” based on the medical-psychiatric discourse, seeking to analyze the consequences of the (criminal) reaction to the “dangerous” and potentially criminal subject, as well as the inheritance of this dangerousness in the Brazilian Criminal Justice System. In this way, it problematizes the penal-psychiatric state that comes to connect the notion of “disease” and “danger” as justification for denial and annihilation of the human being.

Keywords: Dangerousness, Criminal Justice System, penal-psychiatric state.

1 INTRODUÇÃO

No final do século XIX, a Ciência havia demonstrado que todo louco era naturalmente perigoso; era potencialmente criminoso. Todo criminoso era um degenerado e a impulsividade criminal era uma manifestação da anomalia causada, principalmente, pela mestiçagem; a criminalidade era qualidade ontológica de determinados indivíduos. Resumindo, os dois sujeitos englobavam os quesitos de enfermidade e perigosidade ligados ao contexto criminal. O somente louco, se não estava envolvido num fato criminoso, breve e determinadamente estaria; o criminoso era criminoso porque apresentava fatores biológicos indutivos ao comportamento delinquente. Não havia saída, a diagnose médica cercava por todos os lados e o toque de sofisticação seria enfatizar e esgotar a questão da periculosidade, para ter apoio social capaz de legitimar as incursões legislativas que estariam a caminho. A luta entre as Escolas1 − Clássica e Positiva − demarcava um momento de readequação e redefinição do Direito Penal e do controle do delito.

O positivismo criminológico fomentou um novo momento intelectual e ideológico. Pelo trilho do intervencionismo e da fundamentação preventiva-especial, sem abandonar as heranças da escola clássica, nutria um Direito Penal híbrido, de conciliação entre garantias penais liberais e intervenções sobre a personalidade perigosa e anormal do delinquente, em nome da defesa social.

Tais movimentos incentivaram o processo de produção de normas e de definição da conduta desviada que Alessandro Baratta (2002) denominou de criminalização primária, que junto com os mecanismos de aplicação das normas (criminalização secundária), isto é, o processo penal – constituído pelos órgãos de investigação e poder judiciário – e, com os mecanismos de execução da pena e das medidas de segurança (criminalização terciária), formou um sistema dinâmico e complexo de funções do Direito Penal Moderno.

Estava aberto o caminho para se afirmar que se alguém fosse preso, privado de suas garantias de cidadão, ocorreria não apenas em razão de ter sido cometido um injusto penal, mas em razão de uma doença que se queria curar. “A prisão, como forma de intimidação,de vingança, estava em desuso ou fora de moda. O judiciário ‘humanizou-se’ ao mesmo tempo que incorporou o desenvolvimento da ciência. A prisão se dava em nome da cura e em benefício do próprio preso.” (RAUTER, 2003, p. 39-40).

Nessa linha, a criminologia positivista brasileira surge sustentada pela medicina social com aportes policialescos e, assim, os médicos (criminólogos) encontraram (como estratégia político-criminal) o corpo doente que tanto procuravam no indesejado e inútil criminoso; provaram, comprovaram e precisavam traduzir essas pesquisas e (con)firmações, juridicamente. Legislar era preciso e prender também!

Essa é a discussão do pequeno texto que ora se inicia. Pelas bases do discurso médico-psiquiátrico buscou-se analisar a construção do direito penal de tratamento enquanto reação ao sujeito perigoso e potencialmente criminoso, bem como as consequências da herança dessa periculosidade no Sistema de Justiça criminal brasileiro.

2 A CONSTRUÇÃO DO DIREITO PENAL DE TRATAMENTO

O positivismo criminológico fomentou um novo momento intelectual e ideológico. Pelo trilho do intervencionismo e da fundamentação preventiva-especial, sem abandonar as heranças da escola clássica, nutria um Direito Penal híbrido, de conciliação entre garantias penais liberais e intervenções sobre a personalidade perigosa e anormal do delinquente, em nome da defesa social.

É por isso que as legislações penais do século XX serão, sobretudo, legislações sob o império da fundamentação preventivo-especial e da necessidade de individualização da pena, mas convivendo com as concepções herdadas do classicismo, como a Legalidade, o retribucionismo e a responsabilidade moral. Serão legislações geralmente conciliadoras e de compromisso (como o código penal brasileiro de 1940) e, portanto, cindidas entre as exigências e objetividade, certeza e segurança jurídica e de valorização da concreta individualidade perigosa do criminoso. (ANDRADE, 2003, p. 73).

Tais movimentos incentivaram o processo de produção de normas e de definição da conduta desviada que Baratta (2002) denominou de criminalização primária, que junto com os mecanismos de aplicação das normas (criminalização secundária), isto é, o processo penal – constituído pelos órgãos de investigação e poder judiciário – e, com os mecanismos de execução da pena e das medidas de segurança (criminalização terciária), formou um sistema dinâmico e complexo de funções do Direito Penal Moderno.

Esse sistema agigantado e estruturado conseguiu muitos apoiadores e não ficou só. Encontra-se inserido e cada vez mais fortalecido na mecânica global de controle social, sendo concebido como um processo articulado e dinâmico de criminalização e poder para o qual concorrem, além das instituições formais de controle, os mecanismos do controle social informal: família, escola, mídia, moral, religião, medicina, mercado de trabalho, internet, etc. Existe, portanto, um “[...] macrossistema integrado pelas instituições formais e informais, ou seja, todos nós integramos e participamos da mecânica do controle, seja como operadores formais ou equivalentes, seja como senso comum ou opinião pública.” (ANDRADE, 2012, p. 133-134).

Chega-se, por esta via, à dimensão ideológica2 do sistema penal; e esse poder simbólico, invisível, é exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem; é um poder de construção da realidade e que tende estabelecer uma ordem gnoseológica.

Nessa linha, a (re)produção sócio-individual da necessidade de controle penal-psiquiátrico no Brasil pautou-se em três eixos básicos: criminalidade/anormalidade (a aproximação entre crime e doença entendida pelo viés da antropologia criminal desenvolvida e modificada ao longo dos anos), periculosidade (associada diretamente ao louco-criminoso) e medo/insegurança (conceito intrínseco à doença mental e às relações sociais modernas). A construção do estereótipo do criminoso no século XIX com todos os seus atributos (negro/miscigenado, pobre, doente, degenerado, perigoso etc.), somado à tônica do medo3 − que, segundo Castel (2005), é o alicerce das sociedades modernas, pois não encontram em si a capacidade de assegurar proteção – (re)legitimaram a ideologia da defesa social, a política recrudescida de controle e repressão e o direito penal moderno autodefinido como direito penal de tratamento4.

Em busca da proteção e da segurança social, do benefício do sujeito (criminoso e doente), da terapêutica humanitária, da prevenção, essa via penalógica de tratamento, fecundava uma codificação e uma legislação transversal (de áreas afins) coerente com suas bases ideológicas, mas transvestida do que se denominou de mito do Direito Penal igualitário5 – sedutor, simbólico e ilegítimo.

3 A CONTENÇÃO DA “PERSONALIDADE PERIGOSA”

A incursão da medida de segurança6 - em 1940 ainda no sistema do duplo binário - no ordenamento jurídico-penal brasileiro significou a incorporação de um critério de aplicação de pena que não se refere mais ao delito, mas sim ao sujeito considerado louco-criminoso. Passa-se a um direito penal do autor onde o julgamento do magistrado fica condicionado à suposta anormalidade do indivíduo, ligada ao conceito de periculosidade. Uma vez considerado perigoso o destino é a medida de segurança e a personalidade perigosa é definida, segundo Rauter (2003, p. 71), “[...] como aquela em que existe uma tendência delituosa, tendência essa avaliada pelo juiz como auxílio de seus peritos auxiliares (os psiquiatras, principalmente)”.

Interessante observar que, embora a prisão e o manicômio tenham se separado no passado, o código de 1940 tratou de juntá-los novamente exaltando a conservação das funções idênticas de ambos: defesa social, exclusão social, relação objetal, violência institucional, círculo coisificante, etc. Tanto o sofrimento psíquico como o comportamento desviante, em geral, “[...] definem-se na base de uma ideologia da diversidade, em que o direito de ser diferente é negado e todos os mecanismos institucionais estão destinados à sua submissão e transformação.” (CASTRO, 1983, p. 177)

A periculosidade passa a ser pressuposto e a grande gestora das medidas de segurança e estas se tornam tão importantes, que além de serem exclusivas em casos de inimputabilidade, tornam-se aplicáveis como complemento de pena privativa de liberdade ou multa, suprindo assim, a ineficácia dessas penas simples (quando impostas isoladamente). Afinal, havia necessidades reais de defesa social e tornava-se urgente aplicar sanções intimidatórias e inocuizadoras. Sim, os sujeitos perigosos precisavam de maior atenção e essa perigosidade, agora comprovada pelas ciências médicas, tinha urgência de contenção. Não é coincidência que as medidas surgem como sanções – da mesma forma que o projeto Ferriano de 1921 e o código da Rússia que as incluiu na fórmula geral das medidas de defesa social – não distinguindo essencialmente das penas.

Os códigos modernos, que não queriam aventurar-se decididamente pelo campo do positivismo, iniciaram o tratamento da periculosidade criminal adotando um princípio que se considerava ser avançado e fecundo, sem comprometer os axiomas clássicos da imputabilidade e da pena. Era preciso deter em tempo a tendência delituosa e a saída era a profilaxia da infração primária; “[...] reconhecer a periculosidade sem delito e sobre ela atuar, com os recursos jurídicos e médico-pedagógicos que conhecemos é a conclusão necessária das premissas em que se fundamenta todo o movimento da profilaxia criminal”. (BRUNO, 1977, p. 47).

A descoberta da ciência técnica e de seus reflexos no direito penal estabeleceu as medidas de segurança como consequência jurídica-penal de reconhecimento de um estado perigoso constante. A realidade anterior que era o crime e que em torno dele desdobrava-se toda a dinâmica do direito penal, agora sofria um deslocamento para o criminoso-doente-perigoso. “A consideração da personalidade do agente na apuração do delito e na determinação das medidas de defesa tornou-se imperiosa das ciências positivas do direito penal”. (BRUNO, 1977, p. 119-122).

Diante do quadro demasiadamente complexo, apresentam-se, resumidamente, três eixos de análise: 1) o portador de sofrimento psíquico não infrator (encaminhado não mais para asilos de alienados, mas para hospitais psiquiátricos); 2) O portador de sofrimento psíquico quando atribuída uma conduta delituosa (que após o código de 1940 passa a ser encaminhado para locais específicos – manicômios judiciários, casa de custódia e tratamento; colônia agrícola ou em instituto de trabalho, de reeducação ou de ensino profissional; ou na falta destes, secção especial de outro estabelecimento; 3) O criminoso perigoso (que além de pena privativa de liberdade, por conta de sua perigosidade, passou a receber uma medida de segurança como complemento de pena).

Percebe-se que o núcleo duro dessas três categorias é o mesmo – a perigosidade-anormalidade −, ou seja, no cotidiano de hospitais psiquiátricos e manicômios judiciários, são indivíduos tratados igualmente, isso porque mesmo pertencentes a esferas de dominação distintas, relacionam-se, pois utilizam mecanismos de controle com os mesmos objetivos, sendo diferencialmente executados, em pouquíssimos casos. Entende-se por diferença o modus operandi até a efetiva inocuização e o local de execução da medida; no mais, tudo se inter-relaciona. A medicina psiquiátrica com seus tentáculos inocuizadores trafega pelo Direito (Penal) pela justificativa científica e este se fortalece com elementos externos e absolutamente utilitários. “O louco sob a lei e o louco sob o cuidado médico não configuram estatutos diversos”. (DELGADO, 1992, p. 9).

4 A HERANÇA MALDITA DA PERICULOSIDADE

O indivíduo perigoso construído no Brasil, oficialmente a partir do século XIX, passa a ser o principal alvo de intervenção punitiva, tornando-se o fio condutor subsequente do desenvolvimento das legislações (penal-psiquiátricas), bem como da política criminal ligada à pessoa em sofrimento psíquico submetida ao Sistema de Justiça Criminal.

É assim que o Estado Penal-Psiquiátrico funciona como reação à periculosidade (presumida) do agente − adepta ao tradicional direito penal do autor −, ou seja, além de esta ser um requisito da dogmática penal de imposição da medida de segurança, após o incidente penal, o núcleo duro do processo penal (tanto na fase de instrução como de execução) também está voltado (única e exclusivamente) para a questão subjetiva do agente, ou seja, para a probabilidade de cometer novos crimes em decorrência da sua condição biopsicológica supostamente comprovada pela ciência médica. “O direito de punir, mesmo do século XIX, foi modulado não somente a partir do que os homens fazem, mas a partir do que eles são ou daquilo que se supõe que eles sejam.” e cada vez mais, no nível do funcionamento, “[...] os juízes necessitam acreditar que eles julgam um homem tal como ele é e segundo aquilo que ele é.” (FOUCAULT, 2006, p. 24-25).

É a nova psiquiatria − que desponta no século XIX − que apresenta essa subjetividade criminosa, ou seja, o crime patológico, que tem por motivo aquilo que está fora de sua responsabilidade. O psiquiatra entra como uma modalidade de poder nessa esfera, tratando o perigo social como uma enfermidade e atribuindo a necessidade do exame psiquiátrico para legitimar a sanção, fornecendo um nexo causal a cada momento processual. O exame, então, “[...] edifica um mecanismo de distribuição do poder-dizer a outros protagonistas, externos ao campo jurídico, são eles: médicos, psicólogos e psiquiatras.”, os juízes paralelos do processo penal. (GLOECKNER; AMARAL, 2013, p. 351).

As perícias psiquiátricas apresentam uma fisionomia técnico-científica anacrônica. A linguagem é estereotipada; o desenvolvimento e o tipo de indagações são comprimidos em uma visão da psi-copatologia predominantemente biológica e tradicional; a argumentação se concentra em um raciocínio centrado no juízo consumado. Para compensar o esquema convencional e previsível, concedem-se longas citações, reveladoras da situação crítica de uma ciência que, como a psiquiátrico-forense, raramente consegue se ancorar em sólidas certezas científicas. Na realidade, dever-se-ia admitir que o problema da indeterminação atinge toda a psiquiatria. Com efeito, bastaria considerar que a hipótese multifatorial da doença mental, adotada em nossos dias, demonstra exatamente a subsistência de uma não resolvida crise epistemológica da disciplina e a tentativa de chegar a um compromisso, diante de sua incapacidade de se reconhecer em um paradigma definível cientificamente. (VENTURINI; CASAGRANDE; TORESINI, 2012).

Com efeito, a periculosidade social não corresponde a nenhum dos critérios que constroem o diagnóstico psiquiátrico sobre os quais se funda o método científico e não se reveste de qualquer valor terapêutico, cumprindo, tão somente, a função de defesa social. Segundo Venturini, Casagrande e Toresini (2012), o juízo de periculosidade se funda num critério de probabilidade, muito mais que de possibilidade: expressa, do ponto de vista estatístico, uma perspectiva de recaída no evento negativo superior a 50%. Esse critério, que talvez seja válido em alguns âmbitos médicos, é totalmente arbitrário no campo psíquico, porque o comportamento humano é extremamente complexo e não pode ser facilmente reduzido a estatísticas.

São essas qualidades morais de periculosidade e marginalidade que separam artificialmente a sociedade do sujeito em sofrimento psíquico e, assim, “[...] institui-se uma correlação e identificação entre punição e terapeutização, a fim de produzir uma ação pedagógica moral que possa restituir dimensões de razão e equilíbrio” (AMARANTE, 1995, p. 46-47).

Ainda sob essa perspectiva, a face que se expõe é o tipo de relação que se tem com esse doente/criminoso, previamente selecionado. O significado estigmatizante e todas as consequências da doença mental imposta variam de acordo com essa abordagem. Ou seja, confirmam a perda do valor social do indivíduo muito anterior à suposta doença, enquanto entidade mórbida. Esta, por sua vez, “[...] adquire significados concretamente distintos segundo o nível socioeconômico de quem está doente.” (BASAGLIA, 2010, p. 99).

Tudo vai depender de quem se trata e não da doença que se impõe ou do incidente penal supostamente cometido.

A indissociabilidade preconceituosa e institucionalizada entre sofrimento mental e perigo é o fundamento desse sistema penal psiquiatrizado que trabalha no funcionamento da punição (retributiva) como técnica de transformação individual, contenção dos riscos e prevenção, assim como na procura dos estigmas patológicos para marcar os rotulados como perigosos.

5 OS RACISMOS COMO FUNDAMENTOS DO PODER DE MATAR DO ESTADO

Essa periculosidade, que se viu ressignificada nos últimos tempos pela retórica do risco, justificando o paradigma segregacionista, sugere agora um questionamento importante que não gira mais em torno do ponto se o confinamento protege ou não a sociedade, mas sim, de qual perigo o confinamento verdadeiramente protege?

Tentando aclarar este ponto, necessária se faz uma retomada sobre a questão dos racismos.

Os racismos7 como mecanismos fundamentais de poder surgem como um corte entre o que deve viver e o que deve morrer. No campo biológico da espécie humana a que se dirige o biopoder, a distinção e a hierarquia das raças surgem como maneiras de desqualificar grupos em relação a outros. Outra função é deixar morrer para garantir a sobrevivência; noutros termos, a morte da raça ruim, inferior, garantirá a vida sadia dos demais. Numa sociedade de normalização, o direito de matar do Estado necessariamente passa pela trilha do racismo, afirma Foucault. E foi por esse eixo que se estabeleceu o vínculo entre a teoria biológica e o discurso de poder e se encontrou “[...] uma maneira de pensar as relações de colonização, a necessidade das guerras, a criminalidade, o fenômeno da loucura e da doença mental, a história das sociedades com suas diferentes classes, etc.” (FOUCAULT, 1999, p. 304-307).

Dessa forma, a raça adversa, o miscigenado (degenerado) representa o perigo biológico das raças declaradas superiores e os racismos asseguram a mortificação na economia do biopoder. A noção de degeneração permite ligar o menor dos criminosos a todo um perigo patológico para a sociedade e para a espécie humana. (FOUCAULT, 2006). Os racismos modernos, assinalados por Foucault,tratam de uma técnica de poder utilizada pelo Estado para exercer o mecanismo de eliminação ou contenção e não uma simples ideologia ou uma espécie de operação biológica. (FOUCAULT, 1999).

Faz todo o sentido observar que o combate à criminalidade foi pensado através dos racismos, justificando e legitimando a eliminação do criminoso perigoso ou seu isolamento. O mesmo se deu com a loucura e as diversas anomalias.

Alinhado à Foucault, Basaglia (2010) endossa que os racismos são a busca do bode expiatório dentro de um grupo, a necessidade de excluir a parte de si que se tem medo, a parte que se teme por ser inacessível. É um modo de negá-lo em si mesmo, negando o outro; de afastá-lo, excluindo os grupos em que foi reificado.

A tese foucaultiana se comprova plenamente no Brasil. Foram os racismos científico e biológico, utilizados pela medicina (psiquiátrica), que inspiraram e afirmaram o conceito de periculosidade e ditaram o plano de inocuização e extermínio como fundamento do direito de prevenir comportamentos futuros. E respondendo ao questionamento inicial, é desse perigo (?) que o Estado penal-psiquiátrico, com suas estratégias de confinamento e eliminação, supõe querer proteger a sociedade.

Nesse ponto, o perigo é posto em questão porque devido aos usos e abusos de diagnósticos psiquiátricos poder-se-ia concluir que nada significam, mas não é bem assim.

Quando os psiquiatras chamam as pessoas de ‘paranoicas’ ou ‘compulsivas’, em geral se referem a algo tão real como a pele escura de um negro ou a pele rósea de um homem branco. A questão não é que os diagnósticos psiquiátricos não tenham significado, mas que podem ser, e geralmente são, usados como cassetetes semânticos: golpear a respeitabilidade e dignidade do sujeito o destrói, efetiva e frequentemente, mais do que golpear seu crânio. A diferença é que o homem que empunha um cassetete é reconhecido por todos como uma ameaça pública, mas aquele que empunha um diagnóstico psiquiátrico não é. (SZASZ, 1977, p. 194).

Apesar de vazios, monótonos e impessoais − segundo Hulsman e Celis (1993) − tais diagnósticos empreendem consequências desastrosas, que vão desde a fixação de estereótipos à invalidação dos seres humanos. No Sistema de Justiça Criminal brasileiro, quando se tem um incidente de insanidade mental, os laudos que insistem em afirmar (inquestionável e cientificamente) a presença de uma anormalidade perigosista (na maioria dos casos) sentenciam o sujeito à pena perpétua, apelidada de medida de segurança (de tratamento), que terá como papel exclusivo diminuir o risco que o indivíduo perigoso supostamente oferece à coletividade, seja pela eliminação ou pela exclusão. Por isso, Zaffaroni (2007) sinaliza que a periculosidade e seu ente portador (o perigoso) ou inimigo onticamente reconhecível, cedo ou tarde, devido à sua segurança individualizadora, termina na supressão física dos inimigos. “O desenvolvimento coerente do perigosismo, mais cedo ou mais tarde, acaba no campo de concentração.” (ZAFFARONI, 2007, p. 104).

Com efeito, a periculosidade social não corresponde a nenhum dos critérios que constroem o diagnóstico psiquiátrico sobre os quais se funda o método científico e não se reveste de qualquer valor terapêutico, cumprindo, tão somente, a função de defesa social. Segundo Mattos (2012), o juízo de periculosidade se funda num critério de probabilidade, muito mais que de possibilidade: expressa, do ponto de vista estatístico, uma perspectiva de recaída no evento negativo superior a 50%. Esse critério, que talvez seja válido em alguns âmbitos médicos, é totalmente arbitrário no campo psíquico, porque o comportamento humano é extremamente complexo e não pode ser facilmente reduzido a estatísticas.

São essas qualidades morais de periculosidade e marginalidade que separam artificialmente a sociedade do sujeito em sofrimento psíquico e, assim, “[...] institui-se uma correlação e identificação entre punição e terapeutização, a fim de produzir uma ação pedagógica moral que possa restituir dimensões de razão e equilíbrio.” (AMARANTE, 1995, p. 46-47).

Ainda sob essa perspectiva, a face que se expõe é o tipo de relação que se tem com esse doente/criminoso, previamente selecionado. O significado estigmatizante e todas as consequências da doença mental imposta variam de acordo com essa abordagem. Ou seja, confirmam a perda do valor social do indivíduo muito anterior à suposta doença, enquanto entidade mórbida. Esta, por sua vez, adquire significados concretamente distintos segundo o nível socioeconômico de quem está doente. Tudo vai depender de quem se trata e não da doença que se impõe ou do incidente penal supostamente cometido.

6 CONCLUSÃO

Insiste-se aqui que a descoberta do homem pela ciência influenciou decisivamente no destino do direito penal (e de seus clientes8), exatamente por aquela afirmar ter achado os fundamentos (biopsicológicos) e as razões (hereditárias, físicas e sociais) do comportamento humano. Assim, a periculosidade criminal e a defesa social transformaram-se em polos entre os quais passam a desenvolver-se toda a dinâmica do direito penal. Isso se torna substancial para nortear, por exemplo, a disposição e os incrementos ramificados das medidas de segurança no Sistema de Justiça Criminal brasileiro.

A indissociabilidade preconceituosa e institucionalizada entre sofrimento mental e perigo é o fundamento desse sistema penal psiquiatrizado que trabalha no funcionamento da punição (retributiva) como técnica de transformação individual, contenção dos riscos e prevenção, assim como na procura dos estigmas patológicos para marcar os rotulados como perigosos.

Nessa busca incessante do poder penal-psiquiátrico para conter e inocuizar/eliminar os perigosos-criminosos chega-se à neutralização e negação do próprio ser humano e suas subjetividades. O adversário social que oferece perigo iminente torna-se o alvo da política (jurídico-penal) do vale-tudo que não mede esforços para preservar a vida humana da sociedade de bem, através da eliminação da vida não-humana dos considerados indesejáveis.

REFERÊNCIAS

AMARANTE, P. Loucos pela vida: a trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1995.

ANDRADE, V. R. P. de. A ilusão da segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

ANDRADE, V. R. P. de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, 2012.

BARATTA, A. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2002.

BASAGLIA, F. Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica. Organização Paulo Amarante. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.

BAUMAN, Z. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

BOURDIEU, P. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989.

BRUNO, A. Perigosidade criminal e medidas de segurança. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1977.

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CASTRO, L. A. de. Criminologia da reação social. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1983.

DELGADO, P. G. G. As razões da tutela. Rio de Janeiro: Te Corá, 1992.

FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999.

FOUCAULT, M. Ética, sexualidade, política (ditos e escritos V). Organização e seleção de textos Manoel Barros da Motta. 2. Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

GLOECKNER, R.; AMARAL, A. J. do. Criminologia e(m) crítica. Curitiba: Editora Champagnat – PUCPR; Porto Alegre: EDIPUCRS, 2013.

HULSMAN, L.; CELIS, J. B. de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Tradução de Maria Lúcia Karam. Rio de Janeiro: LUAM, 1993.

RAUTER, C. Criminologia e subjetividade no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

SZASZ, T. Ideologia e doença mental: ensaios sobre a desumanização psiquiátrica do homem. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.

VENTURINI, Ernest; CASAGRANDE, Domenico; TORESINI, Lorenzo. O crime louco. Organizador Virgílio de Mattos; Tradução de Maria Lúcia Karam. Brasília, DF: CFP, 2012.

ZAFFARONI, E. R. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

ZAFFARONI, E. R. et al. Direito penal brasileiro I: teoria geral do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

Notas

1 “Enquanto a Escola Clássica sentou as bases ideológicas da reforma e das codificações penais que se seguiram ao longo do século XIX e modelou o programa para a maturação jurídica do direito penal do fato-crime, a Escola Positiva senta, por sua vez, as bases ideológicas e programáticas para a reforma do direito penal clássico, no sentido intervencionista e para sua maturação.” (ANDRADE, 2003, p. 71).
2 “As ideologias devem a sua estrutura e as funções mais específicas às condições sociais da sua produção e da sua circulação, quer dizer, às funções que elas cumprem, em primeiro lugar, para os especialistas em concorrência pelo monopólio da competência considerada (religiosa, artística, etc...) e, em segundo lugar e por acréscimo, para os não-especialistas. Ter presente que as ideologias são sempre duplamente determinadas, que elas devem as suas características mais específicas não só aos interesses das classes ou das fracções de classes que elas exprimem (função de sociodiceia), mas também aos interesses específicos daqueles que as produzem e à lógica específica do campo de produção”. (BOURDIEU, 1989, p. 13).
3 Segundo Bauman (2009), o medo do século XX é fruto de um duplo movimento: por um lado, é nas grandes áreas urbanas que se concentram as funções mais avançadas do capitalismo. “[...] As cidades tornam-se objeto de novos e intensos fluxos de população e de uma profunda redistribuição de renda. Essa cidade social-democrata que se afirmou no segundo pós-guerra torna-se ameaçada em suas fundações, pois o tecido social é submetido a intensas pressões que produzem uma verticalização crescente. O efeito desse duplo movimento é evidente na vida cotidiana de quem mora na cidade contemporânea: enquanto os bairros centrais são valorizados e tornam-se objeto de grandes investimentos urbanísticos, outras áreas são corroídas pela degradação e tornam-se marginais. Quem possui recursos econômicos ou tem condições de deslocar-se tenta se defender criando verdadeiros enclaves nos quais a proteção é garantida por empresas privadas de segurança, ou transferindo-se para áreas mais tranquilas e nobres. Os mais pobres são forçados, ao contrário, a suportar as consequências mais negativas das mudanças. Isso só pode gerar um crescente e difuso sentimento de medo. Se essa é a dinâmica estrutural a que estão sujeitas as cidades, não surpreende que alguns especulem com o medo, transformando-o na base de uma política de controle e repressão.” (BAUMAN, 2009, p. 8-9).
4 “Na era do industrialismo, a disciplina é mais sutil. Não se centra na programação de seleção de inimigos para eliminá-los, mas na submissão de massas e nações para incorporá-las à sua tecnologia e torná-las funcionais para o poder industrial. Seu principal objetivo não é matar, mas domesticar para explorar. Isso tende a criar uma humanização das penas: do corpo se passa à alma e a pena privativa de liberdade se expande.” (ZAFFARONI et. al., 2003, p. 395).
5 Sobre o assunto, veja Baratta ( 2002).
6 Sanção penal esta destinada tão somente aos inimputáveis e semi-imputáveis desde o Código Penal (CP) de 1984, que impôs o sistema vicariante no ordenamento jurídico-penal brasileiro. Cabe destacar que não se trabalhará de forma mais específica tal instituto por não ser o objeto direto do presente texto.
7 Não o racismo propriamente étnico, mas também do tipo evolucionista, biológico, científico.
8 “A seletividade é a função real e a lógica estrutural do sistema penal, comum às sociedades capitalistas patriarcais. E nada simboliza melhor a seletividade do que a clientela da prisão, ao revelar que a construção (instrumental e simbólica) da criminalidade – a criminalização – incide seletiva e de modo estigmatizante sobre a pobreza e a exclusão social, majoritariamente de cor não branca e masculina, e apenas residualmente (embora de forma crescente) feminina”. (ANDRADE, 2012, p. 137-138).


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